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Coma Kant e o resto faz a vida

“Há esperas noturnas de não se s


abe que amor”
André Gide
Fingir em não querer nada tem hora que não agüento. Queria ter um escudo para mi
nha sensualidade e ser como uma árvore que perde até sua última folha e, com tod
as as suas perdas não morre, continua respirando. Eu sei, tu não aprovas esse me
u desassossego. Gosto do irremediável, enveneno minha alma porque não acredito e
m pecado. Queria ser tua árvore olhada. Meu sono não acabou porque eu me estendi
em ti por inteira. Talvez pudéssemos ter uma vida desregrada, aí eu poderia aco
rdar em volúpia. Não tenho cabeça para esperar o sono essa noite. Tu te encontra
s isolado em cada linfa de meu cérebro.
Quero falar com muita elegância sobre tua pessoa, mas só pronuncio etc. E penso
nos meus cinco anos de erros.
Cola em mim o gosto amargo-doce de passear pela Bernardino e prostrar-me em fren
te ao edifício marmitão. Há um lado gótico nessa cena. Aqui em frente fora um ce
mitério um dia. E tu, tal qual uma personagem de Kafta bate cartões e carimbos e
m velhas carteiras de trabalho, sentado à frete de restos de jardins onde vivem
os mortos.
Gosto de teus pés delicados apontados para mim enquanto soluço de ternura sobre
os meus na esquina quase quadrada quase redonda de camelôs de goiabas.
Tudo é tão chato até que uma chuva divina se abate naturalmente sobre meus papir
os. Agradeço a Deus a escuridão da tarde. Portas e paredes de vidro te escondem
de mim. O guarda me barra e diz: “é tarde moça, é muito tarde para pagar qualque
r conta.” “Ó pra você”, mostro uma pedra azul de um anel. E concluo: “estes dev
em ser os demônios vadios do cemitério daqui de frente.” Num jeito muito particu
lar de embevecimento te vejo saído de uma garagem em teu carro. Cara franzida. E
eu, a mais bela nos jardins que poderias ver. A chuva atrapalha tua vista, esfr
ega a mão no vidro do carro; se olhasses para ambos os lados verias um público e
ncantado pela tarde.
Pense na intensidade de nossas delícias. Tu chegas com um hálito de chiclete; fr
onte arqueada e vimos apenas uma noite chegar; renunciamos a cascatas e a banhei
ras de uma cidade intranqüila. Te achei selvagem e lembrei-me de areias longínqu
as, de uma praia da França. antes da noite chegar quero te rever nu, novamente,
porém sopro um resto de talco de minha sandália – proteção que me serviu e agora
voava, inútil.
As lojas se fecham, as casas se fecham, é Domingo. Acho que poderia mudar meu ma
l-estar mas a tua carne branca se amarra em meu pensamento. Dou lugar a uma pequ
ena passagem sobre o ódio e entro numa porta de vaivém (igual ao velho Oeste). P
eço uma dose de Domec – um conhaque antigo que consumiu alguns de meus segredos.
A passagem das horas me irrita. Meus desejos bem que poderiam estacionar ali, n
aquela situação de fuga. Um homem vizinho come um peixe e pede para se embriagar
comigo. Invejei a compreensão daquele homem, todavia mostrei para ele uma image
m vaga, quase um vulto de minha pessoa, e que eu poderia ser apenas uma alma pen
ando, atravessando a cidade; dei a entender que não me prendia a nada na terra e
que minha vida estava em constante mobilidade. Não me encontrava interessada a
me prender a lares e nem encontrar descanso. Aquele homem disse que era executiv
o, e sabia que toda liberdade é provisória, mas havia escolhido uma escravidão.
Eu fale pra ele que minha vida era desaprender o que havia aprendido na escola.
O homem também responde com uma tonteria diz que já estava acostumado a esse t
ipo de esgotamento. “Qual foi sua melhor escravidão?” Pergunto. “Minha melhor es
cravidão é comer. Só dou pelota para minha fome. A coisa mais importante de min
ha vida é ela.” Vejo um arco-íris através do copo do homem e digo que fome é nec
essidade.
Eu detesto ter fome. Eu detesto comer. Eu detesto histórias de almoços aos domin
gos.
Dessas impossibilidades que a vida só nos apresenta uma vez no século sou acomet
ida: te vejo do outro lado da rua com uma mulher e duas crianças. Serão teus os
bambini? Será tua a mulher?
O homem que comia bacalhau com vinho do porto me interpela. “A senhora passa mal
?”
“Preciso apenas de minha farmácia da alma”.
“Algum remédio urgente?”
“Sim. Uma dose de jejum para me dar um certo aturdimento.”
Para evitar um entristecimento maior disse adeus para o homem e andei a passos l
argos até não mais sentir as pernas.
Por causa do teu medo até de tua sombra não te ofereço essa história. E como di
sse Polônio a Hamlet: “havia método nessa loucura.” Com licença, Shakespeare, há
muito método em minha loucura. E se eu não moro em outras plagas é porque eu te
nho muito mistério para esconder.

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