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Anhanhonhacanhuva

©Públio Athayde
publio.athayde@gmail.com

Recorro a uma das mais curiosas expressões do tupi, que devemos aos
bravos goitacás precedentes aos bandeirantes, para dar uma pálida ideia
do que penso de nosso sistema educacional.

Claro, poucos sabem: Anhanhonhacanhuva significa água parada que


some no buraco da terra, é o antigo nome indígena da localidade, em
Minas Gerais, atualmente conhecida pelos nomes Fidalgo e Quinta do
Sumidouro (distritos de Pedro
Leopoldo, MG), onde situa-se a
Lagoa do Sumidouro (a dita
Anhanhonhacanhuva), local sagrado
dos citados índios e referencial
geográfico central e principal do
Parque Estadual do Sumidouro. A
ocorrência de sumidouros não é
rara, principalmente em regiões
calcárias.

Anhannhonhacanhuva, palavra quase impronunciável – onde nasalar ou


não? É simplesmente um sumidouro. Sobrou em nossa língua como
toponímico, embora restem lembranças de seu significado comum:
sumidouro, a espiral que suga as águas e desaparece com elas pelo
interior ignoto dos oceanos subterrâneos de água doce.

Pois bem, uns dizem que o sistema educacional do Brasil é um círculo


vicioso: professores mal pagos, profissionais insatisfeitos e desqualificados
extraídos do restolho do mercado de trabalho, condições de trabalho
abaixo da crítica, carga horária exígua, superlotação das salas, legislação
castradora, hierarquia administrativa vertical, resultados desastrosos – e
os mais infelizes produtos dessa tragédia se tornam, para fechar a ciranda,
professores de novo! Podem-se acrescentar ou retirar elementos dessa
roda infernal, mas o resultado é sempre o analfabetismo funcional com
que a juventude surge de todos os graus de ensino, cada vez mais
elevados em tese.

Mas não bastava, pioraram tudo. Não era suficiente a trama circular e
nefasta que já degringola a educação brasileira há quase quatro décadas,
fartamente nutrida por correntes de pensamento pedagógico hauridas
nas mais pitorescas fontes, sempre em detrimento da experiência dos
professores pelo experimento dos pedagogos.

Agora que todo o conhecimento do mundo está disponível


universalmente, justo quando o ideal iluminista do ensino cíclico e
universal (egkuklopaideía – enciclopédia) se torna verossímil pelo advento
da internet, mergulham de vez o sistema educacional em um buraco sem
fundo, trocam a ciranda viciada pelo sumidouro com a introdução de um
abantesma a que chamam educação a distância.

Educação a distância há de ser o golpe final no sistema que nos fará


eternamente fornecedores de mão de obra desqualificada, atacadistas de
açúcar (desde o século XVII), de minérios (desde o XVIII), de grãos (XIX em
diante) até chegarmos ao petróleo (a promessa do XXI no pré-sal) –
sempre commodities mercantilizadas sem agregação de valor, apenas o
extrativismo ou cultura primária, prescindindo de conhecimento ou
trabalho agregados.

Educação a distância é o que há de mais distante da educação. Não há


nenhuma dúvida de que os seus fautores fazem o pior uso possível da
internet, tornando-a o inverso do que ela representa de positivo: ao invés
de uma fonte imensurável de todo conhecimento humano a ser gerida no
processo educativo pelos professores, torna-se o substituto do próprio
professor e a alternativa para a gestão do processo de apropriação do
conhecimento passa a ser sua redução ao apostilismo eletrônico. O
sistema educacional mergulha no sumidouro em que o magistério será a
primeira vítima: professores se tornarão dispensáveis, pelo menos nas
quantidades até aqui demandadas. Se já impunham quatro, cinco, seis ou
mais dezenas de alunos em cada turma, chagando alguns professores a
somar cinco ou seis centenas de alunos dentre suas diversas turmas, agora
esses números se exponenciam. Milhares podem ver as aulas gravadas
(telecurso mudou de nome?) e difundidas pelos sites das instituições de
ensino (para as privadas isso virou o negócio da China!). Na propaganda
governamental, os dados retumbam: dobram o número de alunos dos
cursos superiores (superiores em relação a quê?).

Os casos de que tomo conhecimento se tornam dia a dia mais escabrosos.


Vou citar apenas três, suficientes para formar opinião de quem quer ter
alguma no caso. Primeiro, na mesma instituição de minha primeira
graduação há um curso de bacharelado a distância em administração de
empresas. Mais de cinco mil – não errei não: cinco mil – cinco mil infelizes
recebem apostilas, vídeo-aulas e diplomas (não consigo deixar de me
lembrar do Instituto Universal Brasileiro – meu pai aprendeu desenho
mecânico com eles). Quero saber quem é que vai dar emprego para essa
moçada depois de formados. Hoje já temos o mercado inflacionado de
administradores advindos de faculdades abertas em qualquer garagem
que estivesse desocupada. Agora termos desocupados desinformados
longe das faculdades e das garagens. O débito social para com essa massa
de juventude ludibriada por tal política pública falsífica é incomensurável.
A frustração do desemprego decorrente, ou subemprego para os menos
infelizes, terá repercussão nos índices de criminalidade, de suicido,
alcoolismo e em todos os mais nefastos indicadores sociais. Pessimismo?
Predicação friamente calculista eu diria.

Segundo caso: tenho notícia da existência de um curso de graduação em


artes cênicas a distância... Podem imaginar algo mais grotesco que isso?
Imaginem as aulas de mímica, de improvisação (para as quais, então, a
faculdade pode ser substituída pelo Youtube). A profundidade dramática
que tais alunos alcançarão ultrapassará todas as didascálias, estejamos
certos. Mas aqui ainda nos resta o consolo de que não se morre de rir, por
melhor que seja a comédia – nem se morre de raiva, por pior que seja o
drama.

E a pior noticias de todas: há treinamento a distância também na área de


medicina. Tenho notícia segura de treinamento a distância em cirurgia
oncológica pediátrica. Creia-me. Não preciso divagar sobre os benefícios e
qualidades de tal programa – todos adorariam ter um filho canceroso
operado por um cirurgião formado pela internet. Morbidez no sentido
mais literal impossível.

Estão conseguindo romper o círculo vicioso do sistema educacional no


Brasil. O giro sem fim dos vícios do sistema está findando. Abriram um
sumidouro para engolir a didática, o humanismo, a humanidade da
relação professor-aluno. Estamos mergulhando numa incógnita do
tamanho do Aquífero Guarani. E para nutrir o aquífero, nada tão eficiente
como um sumidouro, ou anhanhonhacanhuva.

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