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Este artigo busca explicitar o discurso enunciado por trabalhadores do Comupra, uma ONG de
Belo Horizonte, sobre a relação sentido positivo/prazer e negativo/sofrimento do trabalho. O
estudo considera o trabalho como central na vida dos indivíduos e da sociedade. A pesquisa foi
qualitativa e teve como principal instrumento de coleta de dados a entrevista semi-estruturada.
Para tratamento das informações, utilizou-se a análise do discurso. As análises mostraram o
predomínio do sentido positivo e prazeroso do trabalho no Terceiro Setor.
1 INTRODUÇÃO
Desde a década de 1970, o número de Ongs está em expansão, tornando essas organizações do
Terceiro Setor uma opção de trabalho. Algumas visam contribuir para um processo de
desenvolvimento baseado em transformações estruturais da sociedade a fim de minimizar mazelas
da humanidade como pobreza, violência, doenças, poluição ambiental, conflitos religiosos, étnicos,
sociais e políticos, problemas que resultam do desenvolvimento capitalista (HUDSON, 1999).
Representam um espaço aberto para cidadãos que desejam se organizar e lutar pela construção
diária do processo de cidadania.
Vários estudos apontam que o trabalho é central na vida das pessoas, engajando toda a
subjetividade do trabalhador. Segundo Dejours (2007a, p. 21) o trabalho “é e continuará central em
face da construção da identidade e da saúde, da realização pessoal, da formação das relações entre
homens e mulheres, da evolução da convivência e da cultura”.
O principal referencial teórico aqui adotado para discutir sobre o tema é a psicodinâmica do
trabalho. Seus representantes Dejours, Abdoucheli e Jayet (2007) postulam que o sentido do
trabalho é construído pelo trabalhador e pode ser positivo/prazer ou negativo/sofrimento de acordo
com as características das tarefas realizadas, a organização do trabalho e as diferenças individuais.
Este estudo visa compreender o discurso dos trabalhadores sobre o sentido do trabalhado que
realizam no Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu (COMUPRA), uma ONG.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
O termo Terceiro Setor, no Brasil, passou a ser utilizado a partir do início dos anos de 1990 para
designar as organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, criadas e mantidas principalmente
pela participação voluntária visando à solução de problemas sociais (SOUR, 1999).
As organizações não governamentais (ONGs) estão inseridas do ponto de vista formal no Terceiro
Setor. Juridicamente, toda ONG é uma associação civil ou uma fundação privada, porém nem toda
associação civil ou fundação é uma ONG (ABONG, 2007).
[...] à luta da sociedade civil pela redemocratização do País nos anos 60 e 70. Nesse
período, surgiram as primeiras ONGs, com a missão principal de reconstruir o tecido
social que havia se rompido com a ditadura, defender os direitos humanos e praticar a
educação popular (HADDAD, 2002, p.1).
Nesta pesquisa, o termo comunidade refere-se à reunião de pessoas que se juntam, mantendo sua
singularidade e diferenças, para ter voz e vez, e para lutar pelos seus direitos e deveres enquanto
cidadãos(ãs). Assim, entende-se que o trabalho comunitário “é um aglomerado de saberes ou
conjunto de idéias políticas e filosóficas que nasceram no bojo dos movimentos sociais sob a
forma de resistência da Cultura Popular e da Educação Popular” (PEREIRA, 2001, p. 63) e pode
ser considerado como:
Para Dejours e Abdoucheli (2007, p. 141), o sentido diz respeito àquilo que o sujeito atribui à sua
relação na vivência com o trabalho. “[...] o sentido que o sujeito constrói é fortemente
singularizado pela forma através da qual a situação atual de trabalho se encaixa, faz ressonância
com as experiências passadas e expectativas atuais do sujeito; [...]”.
Com a psicodinâmica do trabalho, Dejours (2004, p. 30) procura compreender como o trabalhador
preserva o equilíbrio psíquico diante das pressões no trabalho. Nessa concepção,
[...] o trabalho não é reduzido a uma atividade de produção no mundo objetivo. O trabalho
sempre coloca à prova a subjetividade [...]. Trabalhar não é somente produzir, é, também,
transformar a si mesmo e, no melhor dos casos, é uma ocasião oferecida à subjetividade
para se testar, até mesmo para se realizar.
Para Dejours (2007b, p. 25), prazer-sofrimento inscreve-se numa relação subjetiva da pessoa com
seu trabalho: “se um trabalho permite a diminuição da carga psíquica, ele é equilibrante. Se ele se
opõe a essa diminuição, ele é fatigante”.
Então, o trabalho pode ser uma forma de descarga psíquica para o sujeito e a maneira como ele irá
lidar com o impasse psíquico gerado definirá se a vivência permanecerá como sofrimento ou se
transformará em prazer.
O presente estudo está centrado no discurso do trabalhador sobre o sentido do trabalho em uma
ONG que se caracteriza por adotar perspectiva produtiva não capitalista e por estar voltada para a
transformação das condições sociais de vida de seus membros e da comunidade em torno.
O Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu (COMUPRA) foi fundado em 2001. Sua
sede, Casa da Cidadania, está localizada na Rua Remi Pereira Lopes, 75, no bairro Ribeiro de
Abreu. É gerenciada pelos seus próprios trabalhadores, que, em sua maioria, são moradores da
região. Em dezembro de 2007, foi declarada Instituição de Utilidade Pública Municipal.
A pesquisa realizada foi de natureza qualitativa e de tipo descritiva. Para coleta das informações
foram utilizados: questionário socioeconômico, entrevista de pesquisa aberta semi-estruturada,
consulta a jornais e a documentos da instituição, observações e conversas informais.
A entrevista de pesquisa com seis trabalhadores do Comupra foi o principal instrumento utilizado
para obter o discurso dos trabalhadores sobre o sentido do trabalho na ONG. Elas foram gravadas,
cuidadosamente transcritas e tratadas por meio da análise do discurso que articulou a análise
textual (fala dos trabalhadores do Comupra transformada em corpus empírico, do qual foram
extraídas seqüências discursivas relativas ao sentido do trabalho) e a consideração das condições
de produção do discurso.
5 ANÁLISES E RESULTADOS
De cada corpus, isto é, de cada entrevista transcrita e transformada em unidade de análise, retirou-
se um conjunto de seqüências discursivas apontando o sentido positivo (prazer) e negativo
(sofrimento) do trabalho.
Eu digo que hoje aqui no Comupra, é um espaço muito rico, onde a gente aprende muito, a
gente tem oportunidades para estar fazendo o que a gente acredita, né? (ANTÔNIA).
A gente começou do início cavacando terra dura, fazendo um trabalho, um projeto com
mais de trinta família na época. Todos nós organizamos e começamos aaa mexer. Então, a
gente foi é... aprendendo (FERNANDO).
Observa-se nas seqüências discursivas que a organização do trabalho mostra-se flexível, sem
divisão fixa de tarefas. A pessoa tem liberdade de escolher participar dos projetos de que gosta.
Tem liberdade para organizar seus horários, tarefas e tomar algumas decisões. Há uma diversidade
de atividades que permite a interação do trabalhador com todas as questões tratadas pela ONG, e
isso promove sua participação ampla. Há liberdade para criar e atuar de maneira dinâmica,
característica associada ao sentido positivo, de prazer.
Outras seqüências discursivas mostram o trabalho como algo que dá sentido positivo à vida, que
ajuda a ocupar a cabeça e o tempo:
[...] a horta pra mim é minha vida [...] a horta nos deu essa chance... de viver. É uma
chance de viver viu! (FERNANDO).
É...Eu... sempre falo que quando a gente vem pensando que vai contribuir com o outro, aí
a gente descobre que o maior beneficiado é a gente mesmo (ANTÔNIA).
[...] eu acredito que eu não consigo ficar sem essa bagunça na minha cabeça. [...] é um
trem muito legal isso (ITAMAR).
O trabalho do Comupra [...] eu tinha que ocupar minha cabeça [...] (FERNANDO).
[...] pelo serviço que eu adoro. Números é o que eu gosto de fazer... Estou no Comupra
porque eu realmente gosto ... do que eu faço aqui... né! (LUCINÉIA).
A gente entrava na horta, parece que a gente tava pagando pena fazendo aquele trabalho.
As pessoas da escola tinha hora que olhava pra gente com indiferença. [...] no início tudo é
mais difícil (FERNANDO).
Os resultados da análise das entrevistas revelam que o discurso enunciado pelos trabalhadores do
Comupra enfatiza o predomínio do sentido positivo do trabalho. O sentido negativo aparece com
menos evidência.
Pode-se dizer que o trabalho no Comupra, para todos os entrevistados, caracteriza-se como uma
atividade que dá orientação à vida, ajuda a estabelecer uma nova relação com a realidade,
possibilita a formação de vínculos entre as pessoas e maior inserção social. Esses resultados
corroboram a tese de Freud (1974), para quem o trabalho livremente escolhido é algo
indispensável para a preservação da sociedade. Diante disso, ratifica-se que o trabalho constitui
aspecto importante da subjetividade e é central na vida das pessoas (DEJOURS, 2004).
Os resultados permitem identificar a existência de prazer e sofrimento no trabalho das pessoas que
atuam no Comupra, confirmando os estudos de Dejours (2004), Dejours e Abdoucheli (2007).
Esses autores afirmam ser o prazer-sofrimento um constructo único e dialético, resultado da
relação entre os aspectos subjetivos do trabalhador, a organização do trabalho e o contexto no qual
o sujeito está inserido. Reiteram que o sofrimento provocado pelas dificuldades vivenciadas no
trabalho pode ser transformado pelo trabalhador em prazer quando a organização do trabalho é
flexível.
De fato, os entrevistados relatam ter liberdade para escolher as atividades que querem desenvolver
e para definir seus dias e horários de trabalho. Opinam quanto à forma de realização da tarefa e não
há ênfase em hierarquia. Algumas decisões são tomadas de maneira compartilhada pelo grupo,
outras são centradas no atual presidente, principalmente as questões estratégicas. Cada trabalhador
é responsável pelas questões relacionadas ao projeto ou ação que escolheu desenvolver. Quanto ao
sentido negativo (sofrimento) do trabalho vivido pelos trabalhadores do Comupra, ele é pouco
influenciado pela organização do trabalho, que, como se viu, é flexível e promotora de autonomia.
A vivência de sofrimento se relaciona às contingências de um trabalho comunitário realizado sem
recursos e apoio necessário, caracterizando a precarização do trabalho. São os fatores externos,
como falta de recursos financeiros para desenvolver as ações na comunidade e para remunerar os
trabalhadores, falta de apoio das empresas privadas e instituições públicas e rixas com os políticos
e demais pessoas atuantes no bairro, que causam insatisfação e sofrimento aos trabalhadores.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste estudo, as vivências de prazer surgiram como predominantes sobre as de sofrimento.
Manifestam-se no reconhecimento social, na satisfação em trabalhar numa área que permite
aprendizagens constantes, na autonomia para organizar o horário de trabalho e nas relações
saudáveis com os colegas. Tais vivências são indicadores de saúde no trabalho, proporcionam
estruturação psíquica e expressão da subjetividade (DEJOURS, 2004; DEJOURS;
ABDOUCHELI, 2007).
Referências Bibliográficas
DEJOURS, Christophe. Uma nova visão do sofrimento humanos nas organizações. In: TORRES,
Ofélia de Lanna Sette (Org.). O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. 3. ed. São
Paulo: Atlas, 1996.
ENRIQUEZ, E. Instituições, poder e “desconhecimento”. In: ARAÚJO, José Newton Garcia de;
CARRETEIRO, Teresa (Org.). Cenários sociais e abordagem clínica. São Paulo: Escuta; Belo
Horizonte: Fumec, 2001. p. 49-74. 263 p.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização [1927/1931]. Trad. José Otávio de Aguiar Abreu.
Rio de Janeiro: Imago, 1974. 309 p.
HADDAD, Sérgio. As ONGs e os novos direitos. São Paulo: ABONG, 2002. Disponível em:
<www.abong.org.br>. Acesso em: 4 jan. 2008.
PEREIRA, William César Castilho. Nas trilhas do trabalho comunitário e social: teoria, método
e pratica. Belo Horizonte: Vozes: PUC Minas, 2001. 335 p.
SOUR, R. H. Poder, cultura e ética nas organizações. Rio de Janeiro: Campus, 1999.