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Fuga e realidade...

Na madrugada fria me levanto. Pego meu casaco mais pesado. Coloco uma touca e por cima
um capuz. Pego minha mochila. Saio de casa, deixo um bilhete de despedida e vou seguir
meu caminho. Se vou voltar, não sei.

Começo a andar sem rumo. Pensamento longe, olhar ao horizonte. Não vejo nada. Só ouço os
meus passos naquela estrada de terra. Ninguém por perto. Pego meu celular, troco o chip.
Não quero ser incomodado por ninguém. Coloco meu fone e continuo seguindo meu rumo.

Não enxergo nada nessa estrada. A solidão no caminho é de arrepiar. O medo consome.
Encolho-me junto do casaco, ajeito minha touca e capuz e continuo a andar. Vasculho dentro
da mochila por uma lanterna ou fogo. Sinto o cigarro, o álcool, a revista pornô. Mas... “Cadê a
porra da lanterna?” Não tenho. “Fodeu!”

Olho para o céu. A luz não há. A lua está escondida por trás das nuvens. Cada vez mais
sombrio, continuo a caminhar. Vejo algo a se mexer ali na frente. O que seria? Não me atrevi
a ir ver. Aumentei o passo. Fugindo da desgraça daquele lugar.

Coloco o som do rap nacional onde ajuda a correr na minha veia a critica. Criticando esse
país. País da corrupção, da fome, da indolência, da impunidade, do desemprego e das
merdas. Ninguém para confiar. Ninguém para pra vigiar.

Na batida do som, na adrenalina do coração, penso em viajar... Dinheiro não tenho. O jeito é
trabalhar. “Ou roubar? Os chefes de Estado roubam, por que eu não?” O mundo está
influenciado pelas piores classes e seres.

À noite está passando, e meus pés latejando. Bolhas e sangue. Preciso de água. Sinto sede e
fome. Comida não importa agora. Quero água. Miserável terra sem casa em beira à estrada.
Pego minha carteira, conto meus trocados. Total: R$ 17,50. “Sem dinheiro, com fome e sede.
Eu tô na merda!”

Acendo um cigarro, fumo até o talo. Engasgo no primeiro trago. Mas depois acostumo. A sede
aumenta. Gosto de fumaça na boca.

O dia nasce. Sem sol, sem luz. Encontro uma miserável casa e penso se é certo eu ir lá.
“Foda-se! Vou arriscar.”

Chego a casa. Bato na porta. Novamente arrumo meu capuz. Retiro o fone. “Que demora para
atender...” Não deve ter ninguém. Rodo a maçaneta. Entro. Vejo louças na pia, sangue no
chão. Apavoro-me. Mas sigo dentro da casa. Chego a um quarto. Vejo um lençol manchado.
Apresso-me... Vou, abro a geladeira, roubo tudo o que nela possui. Carne estragada, coisas
vencidas. Água... Muita água.

Fecho a porta. Olho ao redor e corro. Olho no celular. 7h:52min. Ligo meu rap e vou bebendo
água. Gosto estranho. Mas só tem ela. Bebo alegre.

Vejo um carro. Agora a estrada antes deserta, começa a ter vida. Chego a uma vila. As
pessoas me encaram. Não ligo. Ando e continuo na minha fuga. Fuga de esperança. Quero
liberdade. Vejo uma escola caindo aos pedaços e crianças nas ruas com os pés descalços.
Passo numa rua onde só tem viciado. Crack, maconha, heroína e cocaína. “Porra, cadê as
autoridades desse lugar?” - Pergunto-me.

Continuo a vagar e a observar. Vejo lá na frente, no bar, o xerife, se assim pode ser chamado.
Sentado naquela mesa imunda se embriagando, enquanto as crianças numa rua atrás com os
pés descalços consomem crack. Encaro o xerife, entro no bar. Ele me acha estranho, mas
continua no mesmo lugar. Falo com o balconista que quero um café. Vejo-o pondo o mesmo
na xícara. Parecia mais água suja. Bebi aquilo forçado. Preciso me manter acordado para ver
as dificuldades daquele lugar pacato.

Celular, bateria descarregando, marcando 9h:28min. Saio do bar e vejo uma senhora me
seduzindo. Pedindo para que eu transasse com ela. Não dei bola. Minha meta não era aquela.
Dei o troco do café para aquela desgraçada. Oitenta centavos. Ela se alegrou e rebolou pra
mim, como alguém que recebe um prêmio. Pobre mulher vendendo seu corpo por algumas
migalhas. Infeliz!

Meu caminho é longo e não sei se vou chegar até o fim. O xerife me vê andando só e me
grita. “Ô moleque!” Não ouvi, estava com o fone no ouvido. Ele dispara um tiro pro alto. Paro,
olho para trás. Pensei: “Morreu um viciado.” Não! O morto ali poderia ser eu. Olho e vejo o
xerife me mandando voltar. Volto. Mas com a maldade na mente. Imagino onde está minha
faca na mochila. Qualquer movimento dele sobre mim, eu o ataco.

Começa o interrogatório. “Qual é o seu nome?”. “De onde você é?”. “Cadê seus pais?”. “Qual
a sua idade”. “Estado civil?”... “Estado civil? Pra quê?”- Pensei.

Respondo tudo. Algumas mentiras. Pode ser.

Nome: Carlos - Lugar de Origem: Solidão - Pais: Em casa - Idade: 16 - Estado Civil: Talvez
morto

Ele me acha estranho. Encara-me e eu o encaro. Não afrouxo. Olho fixamente pra ele. Sem
piscar. Viro-me, coloco o fone e sigo meu caminho. Depois de alguns passos, viro e olho. O
“chefão” de merda da vila desconhecida estava sentado e bebendo na mesma espelunca
onde se encontrava.

Preciso arrumar algo para comer. Algo para me locomover. Meus pés estão fodidos. Continuo
a andar. Vejo dois pivetes vindo em minha direção. Um com “três oitão” na mão. Não olho.
Não enfrento. Sigo em frente. O vagabundo atira. Aumento o passo. Não corro para não
parecer suspeito. Entro em uma birosca. Compro um salgado e uma cerveja. Como, bebo e
sigo. Pago R$ 3,50.

Celular apita. Bateria acabando. Olho a hora. Marca 11h:17min. Reviro a mochila em busca de
algo que me ajude a me localizar. Nada! Não possuo nada que me faça localizar nessa merda
de vila.

Vejo uma bicicleta avulsa. Vou roubar. Não! Aqui só tem viciado e armado. Vou procurar
comprar. “Só tenho R $ 16,50.” Acho que não vai dar. Vejo um maluco vindo para apanhá-
la. Ofereço meu maço de cigarros, um litro de álcool e dois reais. Ele aceita. “Agora tudo vai
ficar mais fácil!” - Pensei. Pedalei alguns metros e a bicicleta já estava com um barulho
estranho. Segui o caminho de terra...

Pedaladas longas. Já estou muito longe de casa. Que bom! Meus pais devem estar
preocupados. Mas o que importa? Eles vivem no álcool, nas brigas e nas drogas. Quero é paz
e liberdade. Não quero ser mais um. Quero ser diferente.

Saio da vila. Entro em uma estrada asfaltada. O sol começa a aparece por entre as nuvens. Só
que não me importo. Meu corpo já está aquecido. Adrenalina pura naquela infeliz vila. Agora
avisto placas. Setas. Carros. Muitos carros. Parece que o ruralismo está terminando. A
bicicleta tá toda empenada. Medo de cair tá sinistro.

Chego a uma cidade, cujo nome eu não sei. Não li a placa principal. Paro para mijar. E penso:
“Nessa cidade não tem criminalidade.”. Porra nenhuma. Já roubaram minha bicicleta. Sigo eu
novamente a pé. Agora com os pés um pouco melhores. Avisto uma banca de jornal. Vou
procurar me atualizar. Manchete: “Morre em uma pequena vila xerife embriagado com um
tiro na cabeça.”. Eu ri. Aquele mané não servia pra nada mesmo. Que vá para o inferno.
Continuo a andar. Meu celular sem bateria. Não tenho como ver as horas. Entro num puteiro.
Não tinha segurança nem nada. Entrei com maior facilidade. Uma puta me viu. Alisou-me.
Fiquei louco. Mas não estava lá pra isso. Só queria ver a hora. Relógio já batia 19h:56 min.

“Onde vou dormir?“- Pensei. Com R$11,00 no bolso, nenhum lugar do mundo me hospedaria.
Voltei ao puteiro. Conversei com a cafetina e pedi um lugar pra dormir. Ela me olhou de cima
em baixo. Lambeu os beiços, pensou e me arrumou um lugar. Só com uma condição. Me disse
que teria que recolher camisinhas nos quartos de suas putas. Foda! Aceitei a proposta. Já tava
fodido mesmo. As camisinhas não seriam problema.

Terminei meu trampo. Fui dormir era 4h:11min.

Sonhei com minha casa. Mas isso não é um bom sinal. Pode ser sintoma de saudades. E isso
eu não posso sentir dos meus entes. Acordei com uma gritaria no andar de cima. O puteiro foi
invadido por bandidos. Bandidos fracamente armados. Com faca em punho. Acordei rápido,
peguei minha mochila e meti o pé. O sono ainda me consumia. Tropecei umas três vezes.
Essa vida de fuga é o inferno.

Mais na frente, numa padaria, encontro uma puta conhecida lá do lugar onde eu dormi. Ela
me perguntou por que eu estava com aquela cara. Expliquei a situação. Ela não voltou mais
para a luz vermelha. Bom! Ajudei uma pessoa a se livrar dessa merda chamada prostituição.
Pego meu pão com manteiga, como-o e bebo meu café. Pago. E novamente vou andando sem
rumo. Ou melhor, tinha um rumo. Achar uma estação e ir pra um lugar onde possa repousar.
Mas estava cada vez mais difícil. Não conhecia ninguém, exceto aquela puta maltrapilho que
deixei para trás. Continuei andando. Sentei num quebra gelo. Peguei minha revista pornô.
Comecei a folhear e depois joguei no lixo. “Papel é o caralho!” - Disse para mim mesmo.
Fiquei vendo um menino negro fazendo malabares com bola no sinal. “Pô! Cadê o apoio
governamental?” - Pensei. Menino aparentava ter 11 anos. Juntando trocados. Possivelmente
para ajudar a família.

Olhando para o outro lado vejo um gay sendo espancado. Um grupo de cinco homens o
espancou até a morte. E quando passaram perto de mim, riram. Olhei para eles, com
pensamento de injustiça. Mas eu sou a minoria. Nada posso fazer. A Polícia chega, joga um
plástico preto sobre o miserável cadáver e nada mais acontece. Os cinco homens seguem
sem a menor culpa.

Mais a frente o racismo aparece. Aquele menino do sinal é visto como bandido por um
motorista filho da puta. Que sai do carro e grita com ele. “Sai de perto do meu carro, seu
pivete.”. Tenso! Muito complicado essa vida de indiferença.

Depois de ver aquilo tudo, levanto-me e vou andando. Procuro algum lugar para carregar a
bateria do meu celular. Entro em um restaurante popular. Comida a um real. Fico num canto,
com o capuz por cima da cabeça. Não quero e não preciso que ninguém venha conversar
comigo. Sou um mero observador da realidade desse mundo de miséria, fome e dor.

Abro a minha mochila, pego o carregador. Vejo que na mochila também tem o terço. Coloco
em meu braço em busca de proteção e termino o almoço. Pago na saída e vou embora.
Embora não sei pra onde. Não tenho pra onde ir. Estou perdido nessa imensidão.

A bateria carregou um pouco. Dá pra ouvir meu rap. Coloco o fone, retorno no mesmo estilo
de antes. O rap crítico. Fazendo a minha visão se expandir nesse mundo de contorcionismo.
É! Contorção é o que qualquer cidadão daqui precisa para viver. O relógio marca 14h:39min.
Não tem jeito, vou ter que dialogar. Não sei o que falar, mas vou apelar. Puxei papo com um
coroa de bengalas no ponto do ônibus. Perguntei por que ele usava bengalas. Ele me disse
que os filhos dele o espancava. Fiquei quieto. Pensando e analisando. “Pelo menos isso eu
não fiz com os meus pais.” Aliás, estava fugindo por um pouco de paz. Mas me deparo com
história e realidades. Tenso! Não estou nesse mundo para julgar.

Pergunto a ele com tom de despedida, onde se encontrava uma estação de trem. Ele me
disse que eu teria que andar cerca de seiscentos metros. Despedi-me e fui.

Cansado de tanto andar. A vida de fuga fica cada vez mais difícil. Deixei escola, amigos
(colegas, pois amigos eu não tinha), pais... Tudo! “A liberdade custa caro.”. Já ouvi alguém
dizer isso, mas não me recordo quem.

Um policial de merda, querendo mostrar serviço, me para. Me revista. Joga minha mochila no
chão. “Sou inocente, não fiz nada!” - Disse. Ele riu e me mandou ir pra puta que pariu. Juntei
minhas coisas, e andei...

Uma raiva do caralho na minha mente. Enfurecido. Procurei me acalmar. Aliás, tinha uma faca
na mochila que eu poderia me auto matar. A noite entra, a cidade continua tumultuada. Ouço
barulho de tiro. Sirenes. Me desvio. Não quero ser considerado suspeito de um assassinato.
Vejo uma escadaria. Olho e vejo jovens armados, com touca na cabeça. Era a porta de uma
favela. Os traficantes me gritaram, eu apenas acenei e vazei.

Não queria entrar pra esse mundo. Minha meta era a paz e liberdade. Se eu entrasse, seria
violência e morte. Encontro uma mulher na rua, vou dialogar. “Boa noite, senhora! Onde fica
a estação mais próxima?”- Perguntei. Ela olhou pra mim e não falou nenhum um A. Pelo
menos apontou, e me mostrou o caminho.

Cheguei à estação. Tumulto! As pessoas fazem protesto contra o governo que não ajuda na
melhora da estação. Dizem que o trem está caindo aos pedaços. Opa! Talvez eu vá de graça.
Chego ao guichê, vejo uma passagem sobrando. Pego, leio e entro no trem. Olho entre a
janela e vejo o protesto rolando solto. A polícia tentando acalmar a multidão. Porradaria rola
solta. Bombas de gás lacrimogênio são jogadas. Pessoas desmaiadas.

O governo ri da cara dessas pessoas. E os chefes de Estado não fazem nada. Só querem
comer e beber cachaça. E eu aqui neste trem, sem destino nenhum. Vou até onde o último
ponto. Onde por acaso eu possa encontrar um lugar onde haja paz, igualdade e descanso.

Wallace S. Gonçalves

28/09/2010

“Escrevi esse texto simplesmente pela crítica às indiferenças e preconceitos que

esse mundo possui. E a falta de apoio dos chefes de Estado.”

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