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Há muito tempo atrás “um tal de” acento diferencial, que muita gente nem sabe
que já existiu, foi extinto. Ele servia para diferençar palavras com a mesma grafia, mas
com som diferente.
O acento diferencial só não acabou completamente por ter sido mantida a exceção
em que ele permanece para distinguir «pode» de «pôde».
A confusão possível entre pode e pode, se não fosse mantido tal tipo de acento,
me faz lembrar de uma embrulhada em um registro de nascimento: onde o escrivão
devia escrever o nome da criança, Diogo, escreveu, Digo, e quando foi escrever «digo»,
para corrigir «Diogo», escreveu «diogo»; então, para desfazer a confusão, a certidão
ficou assim: “... Digo, diogo, digo digo, onde digo diogo digo digo e onde digo Digo
digo Diogo”!
Pois, voltando ao começo, fui um dos que reagiram mal, de início, à proposta de
extinção do acento diferencial. (um parêntese: ao contrário do que se costuma dizer na
televisão, nos jornais e nas conversas fiadas, eu fui um dos que reagiram e não um dos
que reagiu , porque dos que reagiram eu fui um -- seria impensável inverter a frase e
dizer “dos que reagiu eu fui um”, não é mesmo?).
Como dizia, eu não podia aceitar viver sem o acento diferencial. Acreditava que
os meus textos iriam ficar sem pé nem cabeça se as palavras não tivessem o seu sentido
próprio perfeitamente estabelecido.
Resultado: os anos se passaram, o acento diferencial acabou e não faz tanta falta.
Já foi tarde. Menos uma dificuldade neste nosso idioma. Mas, como nem tudo é
perfeito, dessa extinção às vezes decorrem certas dificuldades de compreensão de
textos, como é caso de alguns poemas modernos e de alguns títulos, em que nem sempre
a evidência resultante da aplicação da lógica em face da estrutura do texto se revela
induvidosamente. Só por isso, não seria estranhável repensar o assunto para tornar
facultativo o acento diferencial.
Essa linha de raciocínio conduz a uma questão parecida, que é a da crase.
Hoje, a coisa mais irritante na língua é o uso completamente atabalhoado da
crase. Ela só é colocada onde não devia e só não aparece onde tinha de estar. Viajar
pelas estradas do Brasil é uma tortura, por causa da crase. De minuto em minuto
encontram-se as placas de sinalização com as crases que não deviam existir: “retorno à
500 metros”, “restaurante à 2 quilômetros”, “obras à 100 metros”; e sem as crase que
deveriam ter sido colocadas: “retorno a direita” e “posto a frente”. Nunca acertam. Entre
Belo Horizonte e Sete Lagoas, fizeram uma bela e útil sinalização, com imensas e
numerosas placas indicativas de retorno, só que estão todas craseadas de forma errada, o
que cito como exemplo mas que não é privilégio dos mineiros: é crase para todos os
lados; na dúvida, craseia-se; se não houver dúvida, craseia-se ainda mais. Como parece
que ninguém tem dúvida, haja crase espalhada, dando nos nervos dos motoristas que
conhecem as regras do seu uso, comprometendo, por isso, a segurança nas estradas.
Na televisão, especialmente nos comerciais, é um espanto: oferecem-se
mercadoria “à prazo”, mas a farmácia fica aberta “a noite”. Nas cidades, em cartazes,
folhetos, placas, avisos, para onde você olhar, lá estarão as crases, exatamente onde não
deveriam estar. A Internet é outra tortura, todos craseiam «à todos» (abraços à todos!),
afastando-se da regra básica, de que não cabe crase na concordância do masculino
Não me lembro se é do Sérgio Porto ou do Stanislaw ponte Preta a frase “a crase
não foi feita para humilhar ninguém”. Ele enganou-se. Para que ninguém fosse
humilhado pela crase, seria necessário, ou dar uma educação sofisticada a toda a
população, ou liberar a crase para cada um usar como quiser: Que tal, “vamos ào
cinema?”. Experimente pronunciar. Elegante, não? Se «à todos» pode ter crase,
qualquer coisa passa a ser permitida!
A verdade, a meu ver, é que a crase, a exemplo do acento diferencial, poderia ser
«quase» extinta, sem grandes danos à estrutura da língua. Não deveria ser abolida
totalmente, mas tornada em geral facultativa, ficando obrigatória apenas nos casos em
que sua ausência comprometesse o sentido, como no caso do título desta crônica — “À
CRASE” — que sem a crase seria “A CRASE” e exprimiria coisa completamente
diferente do que se pretendia dizer.
Se vocês pensam que o acento diferencial e a crase são as únicas incongruências
da Língua Portuguesa, posso adiantar: enganam-se!
Outras bandeiras de luta podem ser levantadas quanto à adaptação da língua á
realidade. Por isso, deixo mais uma palavra de ordem, um grito de guerra para novas
batalhas que virão, mais cedo ou mais tarde:
— Trema, tremei!