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Consoantes Kwazá (isolada)

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Vogais Kwazá
u Capítulo 6
e ce o
A ARTE VERBAL EAS CULTURAS DE TRADIÇÃO ORAL
!:
a
(há 7 vogais nasais)

As línguas indígenas brasileiras são línguas ágrafas, ou seja ,


Exercícios Capítulo 5 línguas de tradição oral. Assim, o que há de literatura nessas línguas é
parte da cultura oral dos povos que as falam. As ortografias que exis-
tem foram criadas recentemente, nos séculos XX e XXI . Esta seção
Questão 1 Há uma hipótese sustentada por Aryon Rodrigues de que
é dedicada ao tema construção de sentido poético em narrativas tra-
as línguas Tupi e Karib são relacionadas geneticamente.
dicionais. Nosso objetivo é que o leitor se aprofunde em aspectos de
Observando os inventários fonológicos segmentais des-
narrartivas orais em que a própria língua é usada para criar efeitos
tas duas familias, discuta as características que eles têm
artísticos. Em 6.1 analisaremos a criação de sentidos poéticos em uma
em comum e construa um inventário fonêmico provável
narrativa ritual Karitiana (subfamília Arikém, família Tupi) e em 6.2 a
para a língua mãe das duas famílias.
arte verbal em Kuikuro (família Karib) será apresentada.
Questão 2 Qual é a diferença entre fone e fonema? Exemplifique
a partir de palavras do português que não tenham sido
citadas nesse capítulo .
Uma narrativa dtua/ Karitiana
Questão 3 Quais são os fenômenos suprassegmentais mais impor-
tantes descritos nas línguas brasileiras? Exemplifique al-
guns deles nas famílias Tukano e Tupi. Nosso objetivo é analisar aspectos da estrutura de uma narra-
tiva - "Osiipo", o ritual de iniciação masculino do povo Karitiana - que
Questão 4 Identifique as semelhanças e diferenças entre os inventá-
nos foi contada pelo pajé Cizino Karitiana em sua língua nativa. Ao fa-
rios segmentais das línguas presentes em uma das áreas
zê-lo, procuraremos explicitar os procedimentos linguístico-discursivos
de contato linguístico tais como o Alto Rio Negro, o Xingue o
utilizados pelo narrador a fim de criar fronteiras estruturais e efeitos
Sul de Rondônia. Analise os fatos encontrados levando em
poéticos.
conta a possibilidade de empréstimos entre as línguas.
O Karitiana é uma língua pertencente ao ramo Arikém da família
Questão 5 Quais os fonemas vocálicos típicos das línguas indígenas
linguística Tupi. As línguas Tupi estão divididas em 1O subfamílias ou
brasileiras? Os sistemas que fogem do inventário comum
ramos, um dos quais tem sido dominante na história da América do
apresentam que tipos de vogais?
Sul - a ramo Tupi-Guarani (40 línguas ou dialetos), que se expandiu

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da sua terra de origem e conquistou a costa brasileira de norte a sul nas narrativas foi a complexidade da língua. Para analisar o Karitia-
antes da chegada dos colonizadores, além de ter se espalhado para na, é necessário entender como as sentenças são usadas pragmati-
vários países adjacentes. Além do ramo Tupi-Guarani, há outros 9 ra- camente, ou seja, em contextos de vários tipos. Por exemplo, a ordem
mos dentro da família Tupi, e a língua Karitiana é a última sobrevivente de constituintes em Karitiana é variável (SVO, OVS, VSO, VOS, SOV
de um destes ramos - o Arikém (a língua Arikém foi registrada por meio e OSV), e fatores sintáticos (como o movimento verbal para uma se-
de 2 listas de palavras na década de 1920, mas está extinta hoje). O gunda posição estrutural na sentença onde a flexão verbal é adquirida,
Karitiana é falado por aproximadamente 400 pessoas que vivem na ou o movimento de sintagmas nominais para uma posição inicial da
Área Indígena Karitiana (95 Km a sul de Porto Velho, capital do estado sentença, que indica foco) explicam apenas em parte essa variação.
de Rondônia) ou em suas imediações, seja na cidade de Porto Velho, Há fatores pragmáticos que regem o modo assertivo, a repetição do
seja em outras cidades e áreas próximas (novos aldeamentos). sujeito, as sentenças declarativas verbo-iniciais e vários outros fenô-
menos, alguns dos quais não são bem entendidos até hoje.
Procuraremos demonstrar que uma descrição profunda da lín-
gua é um pré-requisito para analisar essa narrativa, já que fenômenos O Karitiana é uma língua verbo-final dentro do sintagma verbal
linguísticos complexos são usados frequentemente pelo narrador na e núcleo-final em geral, na qual praticamente todos os núcleos de sin-
construção da estrutura narrativa. Apesar de não ser possível afirmar tagmas ocorrem após seus complementos: o objeto precede o verbo
que estes fenômenos ocorrem exclusivamente dentro de narrativas, em sintagmas verbais (nominalizados ou compostos, por exemplo),
pelo menos dois deles - o uso do modo assertivo e a repetição do o complemento precede a posposição em sintagmas posposicionais,
sujeito tópico (informação pressuposta no discurso) - parecem ter sen- possuidores precedem possuídos em sintagmas nominais e em ora-
tidos narrativos bem particulares, tais como delimitar fronteiras de con- ções subordinadas os subordinadores ocorrem no firial da oração. No
teúdo e expressar continuidades e descontinuidades. entanto, quando sentenças são formadas, o verbo sai de sua posição
final dentro do sintagma verbal e se move para a segunda posição
Essa narrativa foi gravada em fita K7 por nós em nosso primeiro
estrutural da sentença para ser flexionado. Assim, em orações declara-
trabalho de campo na aldeia Karitiana, em julho de 1992, e foi contada
tivas temos as ordens SVO e OVS, a primeira usada como a ordem de
em um ambiente tradicional, dentro da casa do narrador, com sua famí-
foco do sujeito (e também como a ordem não-marcada, default, da lín-
lia nuclear (duas esposas, filhos, noras e netos) como público ouvinte.
gua, provavelmente por influência do português), e a segunda quando
Ela foi imediatamente traduzida com a ajuda de falantes da língua em
há foco no objeto. Já em orações subordinadas, as ordens possíveis
várias sessões de trabalho de campo e uma análise morfema-por-mor-
são SOV e OSV, com o verbo na última posição. As ordens VOS e
fema foi feita. Após mais de 20 anos de pesquisa linguística em Karitia-
VSO em sentenças declarativas são normalmente precedidas por con-
na, nós finalmente nos sentimos confiantes em nosso conhecimento da
junções discursivas e adjuntos - advérbios (ou orações adverbiais) e
gramática da língua para poder realizar uma análise da arte verbal que
sintagmas posposicionados. Veremos a seguir que este conhecimento
envolva construções complexas do ponto de vista da sintax~, semântica
sintático e pragmático da língua é necessário para analisar a estrutura
e pragmática. Este trabalho foi apresentado, pela primeira vez, a convite
da narrativa.
do professor Nigel Fabb em um seminário na Universidade de Glasgow
(Escócia), em novembro de 201 O, depois mais recentemente em um A narrativa que vamos analisar foi contada pelo pajé Cizino Ka-
seminário do CESTA na Universidade de São Paulo, posteriormente foi ritiana 26 anos atrás, quando ele tinha 48 anos de idade. Cizino é re-
expandido e apresentado na Conferência Internacional Amazonicas em conhecido pela comunidade como um excelente conhecedor das tra-
Barios, Equador em 2018, e fará parte de um livro em elaboração em dições e um exímio contador de histórias. Ele nos conta a sua história,
que a narrativa será transcrita, glosada e analisada em sua totalidade. de que passou pelo ritual de iniciação masculina 4 vezes, construindo
sua narrativa como um ensinamento, algo de valor a ser ensinado aos
A razão principal pela qual foi tão demorado resolver problemas
jovens que o ouviam, ou seja, algo que não diz respeito a ele exclusi-
da gramática do Karitiana que nos permitissem analisar a arte verbal

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vamente, mas que deve ser divulgado como uma informação que per- soa impessoal para falar de regras e proibições que
tence ao povo Karitiana como um todo. Ele menciona detalhes a serem
são parte do ritual; para o mesmo fim, são usadas
guardados para a posteridade e mostra que o ritual intitulado "Osiip" sentenças deônticas e habituais na terceira pessoa.
é importante para todos, já que ao passar por ele um jovem torna-se
A fim de adicionar interesse à narrativa, o narrador
um bom caçador e, portanto, pode casar e prover o sustento de sua(s) pode fazer uso de fala direta por parte de alguns per-
esposa(s), filhos e agregados.
sonagens, ou frases ideofônicas. Estes recursos têm
Osiip significa, literalmente algo como "sobre a salvação do mau o efeito de trazer o ouvinte para perto do espaço nar-
caçador", sendo que a raiz {osii} é um nome que significa 'salvação rativo, ao fazer dele uma testemunha de diálogos ou
do mau caçador' e {-p} é uma posposição locativa. O sufixo {-o} que ações que se passaram naquele ambiente.
ocorre no título da narrativa é um enfático usado apenas em nomes. Parte IV. Complicação repetida: linhas 101 a 126. Nessa parte
A narrativa "Osiipo" apresenta a seguinte estrutura geral em ter- o narrador descreve, em sentenças declarativas de
mos de conteúdo: primeira pessoa do singular usando um evidenciai di-
reto, as repetições do ritual pelas quais passou.
Parte 1. Resumo. Linhas 1 a 6. Resume o conteúdo da narra- Parte V. Avaliação: linhas 127 a 260. Essa parte descreve os
tiva: quando um jovem rapaz está para se casar, ele resultados do ritual. Ela é narrada em declarativas
. tem que passar por um ritual de iniciação chamado de primeira pessoa do singular com um evidenciai
"Osiip" no qual ele invade o ninho de vespas com a direto, e inclui uma parte sobre como a magia que
sua própria mão e se deixa ser atacado por elas. resulta do ritual opera sobre os animais que são ca-
Parte li. Orientação. Linhas 7 a 23. O narrador prepara a çados, tornando-os mansos, atraídos pelo caçador,

os processos de cura de picadas de vespas através
cena para a narrativa, dando informações sobre o
ritual. Ele dá uma breve introdução de cada parte da do uso de ervas e restrições comportamentais, e as
narrativa que vem a seguir, a saber, a complicação, habilidades adquiridas pelo caçador. Uma expedição
a avaliação e a resolução. O narrador usa sentenças de caça que o narrador realizou com seu pai para
habituais, a modalidade deôntica e a primeira pes- provar suas habilidades é descrita e a música do
soa do plural para falar das regras do ritual em geral Osiip é cantada. No final, o processo de "furar" o ni-
e declarativas para antecipar a complicação (senten- nho de vespas é descrito, em um retorno à complica-
ças 9 e 10), a avaliação (sentença 16) e a resolução ção (partes Ili e IV) e a cura final de suas lesões dos
(sentença 17), ou seja, cada uma das subpartes na 4 episódios rituais pelos quais passou fecha a seção.
narrativa. Parte VI. Resolução: linhas 261 a 296. Este pode ser chama-
Parte Ili. Complicação: linhas 24 a 100. Esta parte é onde o do de o clímax da narrativa, no qual o narrador des-
narrador descreve, em sentenças declarativas na creve como ele satisfez seu pai ao passar pelo ritual,
primeira pessoa do singular com um evidenciai dire- lembrando ao leitor das glórias que ele obteve como
to, em detalhe, o primeiro ritual de iniciação pelo qual resultado de seu sofrimento e privação.
ele passou no passado. Há várias interrupções no
uso das sentenças declarativas. Uma das maneiras Cizino claramente procura fazer a narrativa parecer interessante
em que o narrador frequentemente interrompe a nar- e bela aos seus ouvintes, através de recursos de arte verbal, alguns
rativa é usando sentenças passivas na terceira pes- dos quais discutiremos a seguir. Há seis tipos de fenômenos linguísticos

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que são usados frequentemente para estes fins e que gostaríamos de uma descontinuidade usada para indicar uma mudança de
explicitar. A seguir, cada um dele é descrito e suas ocorrências no texto categoria de pessoa.
são identificadas com o número correspondente ao fim de cada linha: 5. Efeitos sonoros usados para criar uma aproximação do ouvinte
com o tempo e espaço da narrativa são a fala direta de perso-
1. Sentenças no modo assertivo. Este tipo sentenciai é for- nagens e as frases ideofõnicas. As últimas são categorias gra-
mado por orações verbo-iniciais, marcadas pelo prefixo de maticais presente no léxico da língua que, juntamente com al-
modo assertivo {pyr-}, que tem três alomorfes: condiciona- gumas raízes verbais, formam frases que denotam sequências
dos fonologicamente: [py-], [pyr-] e [pyry-]. Seu significado de eventos. Esses recursos também oferecem uma quebra in-
é expressar um enunciado afirmativo. Ele é usado na língua teressante na sequência da performance, alternando a voz do
obrigatoriamente em respostas afirmativas a perguntas po- narrador com outras vozes (as de personagens e eventos).
lares (sim/não) de acordo com Landin (1984). Em diálogos, 6. Música e métrica são usados em quase toda narrativa tra-
ele é usado frequentemente para expressar opiniões dos dicional Karitiana (mitos e rituais) para adicionar interesse
falantes (Storto 2002). Em narrativas, o morfema é usado poético e valor histórico à performance do narrador.
também para demarcar fronteiras de conteúdo dentro da
narrativa, seja no início/fim de uma narrativa, seja no início/
Passemos à análise do uso dos seis recursos poéticos em al-
fim de uma subseção dela (Storto 2002, 2018). guns trechos selecionados da narrativa, a saber, as partes 1, li e Ili: 1
2. Sentenças copulares, formadas pelo verbo cópula {aka} 'ser,
estar', que tem uma raiz supletiva plural {ki}, são usadas em
Parte 1
descrições ou avaliações que o narrador utiliza quando fala
de sua experiência sensorial ou quando cita regras e costu- 1. Pyry'a ta'An y'lt keerep 1
mes tradicionais. 'Antigamente, meu pai me disse'

3. Paralelismos, introduzidos no texto através de paradigmas, 2. Dez anos yJakat yJxa nakam'yt osllp 5
são usados como efeito poético. O narrador repete sentenças 'Quando temos dez anos de idade, eles nos fazem receber o Osiip'
previamente mencionadas mas varia um dos elementos na
nova sentença, seja em sua forma ou em seu significado. É 3. Dez ngogorongãt yJxa osllt 5 2
possível, ainda, falar em uma métrica construída na narrativa 'Aos dez anos, é o Osiip do nosso povo'

que é usada frequentemente para reforçar os paralelismos.


4. Y]xa naka'obm gopo, yJxa nakam'yt sojoty 5
4. A repetição do sujeito após o verbo, objeto ou no final da 'Nós perfuramos o vespeiro, nós passamos o sojoty'
sentença é usada para indicar que o sujeito é um tópico (in-
5. Nakahadn yjxat yJ'lt yJsooJ paaagngam tykl'oot, 3
formação pressuposta) e que houve mudança de tópico; às
'Nosso pai nos aconselha, quando estamos prestes a nos casar'
vezes esta repetição se dá mais do que uma vez em uma
"jonsot yjamy pasagng tykl'oot 3
mesma sentença, desde que separada por pelo menos um 'Quando estamos prestes a receber uma mulher'
constituinte. Parece que o único requerimento para este tipo
de repetição é que o sujeito seja uma palavra única (um 6. 1onsot yjamy tyklr1, yJxa naka'obm gop 3
nome ou pronome). Uma tradução possível deste tipo de 'Quando nós, de fato, recebemos uma mulher, nós perfuramos o vespeiro'

repetição para um pronome como "eu" seria, por exemplo,


"quanto a mim, eu .... ". Em narrativas este recurso marca 1. As linhas não correspondem, necessariamente a uma sentença, mas devem ser en-
tendidas corno unidades prosódicas, as frases entoacionais utilizadas pelo narrador.

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Nas seis sentenças citadas, que iniciam o ritual, temos a parte tos para o casamento (linha 6). As categorias de espaço e tempo não
1, ou resumo da narrativa. Nela , ficamos sabendo o tema da narrativa , são tão importantes nessa parte da narrativa, mas há, claramente um
que é o ritual de iniciação masculina "Osiipo" (linhas 2 e 3), que se momento de referência pretérito, anterior ao tempo do ato da fala, que
trata de algo programado pelo pai do menino iniciado (linha 5), que a fica explícito no advérbio "antigamente", e na oração adverbial "quando
invasão de vespeiros pelo menino está envolvida (linhas 4 e 6), que temos dez anos", que remetem a uma concomitância em relação ao
um remédio - soyoty- é usado (linha 4), que o objetivo disso é tornar tempo de referência pretérito, e "quando estamos prestes a nos casar"
o menino um bom caçador para que ele esteja pronto para se casar que indica uma concomitância temporal e posterioridade aspectual a
(linhas 5 e 6).
esse pretérito. Além do pretérito, há também um tempo presente om-
Os números que aparecem no fim das linhas, nesta primeira par- nipresente (também chamado de gnómico) que faz referência a ver-
te, indicam o recurso linguístico usado para criar um efeito poético. Na dades eternas dentro da cultura Karitiana, como em "aos dez anos é
abertura da narrativa, a primeira sentença está marcada com o número o Osiip do nosso povo", "nós perfuramos o vespeiro, nós passamos o
1 para indicar que se trata se uma sentença assertiva (apresentada na soyoty", "nosso pai nos aconselha".
página anterior, como um dos seis recursos linguísticos discutidos). Voltando a uma análise linguística detalhada do tempo na narra-
Uma sentença no modo assertivo é diferente de uma sentença no modo tiva, é importante ressaltar que, além da sentença 1 ser assertiva, ela
declarativo porque a primeira , por ser afirmativa por natureza, traz uma ocorre marcada pelo evidenciai direto flexionado no passado {ta'ã-n},
ênfase existencial a mais quando comparada a uma simples declara- um auxiliar que indica que a informação veiculada pela sentença foi
ção ou constatação - a asserção da existência de algo, nesse caso presenciada pelo falante (Storto 2002). O sufixo {-n} no auxiliar eviden-
o evento de "meu pai dizer algo antigamente". Poderíamos comparar ciai é o morfema marcador de tempo não-futuro - presente ou passado
uma sentença assertiva usada no início de uma narrativa em Karitiana - em sentenças assertivas, que neste uso significa passado. Em ver-
com a fórmula "era uma vez" usada nas narrativas fantásticas (Propp bos marcados pelo modo declarativo, o tempo não-futuro é marcado
1970). A diferença é que em Karitiana sentenças assertivas também por outro morfema : {-t/-0}, como veremos a seguir. De qualquer ma-
são usadas no fim das narrativas, como fórmula para concluí-las ou em
neira, tanto o modo assertivo quanto o declarativo vêm acompanha-
início de subpartes da narrativa, para marcar mudanças de conteúdo . dos de apenas dois morfemas de tempo: futuro ou não-futuro. Não há
Quando linguistas analisam um texto, seja ele oral ou escrito, distinção gramatical entre presente e passado na língua, além daquela
buscam, entre outras coisas, entender o uso das categorias da enun- que se pode inferir pelo contexto.
ciação - pessoa, tempo e espaço - para entender como foi construido
As sentenças restantes (linhas 2 a 5) estão no modo declarativ~.
pelo autor o nível discursivo da narrativa, no qual se concretizam as
que é marcado pelo prefixo {na(ka)-} nos verbos {naka-m-'y-t}, {naka
categorias linguísticas em tempos, atores, espaços, temas e figuras. -hadn-0}, e {naka-'obm-0} nas linhas 2, 4, 5 e 6 , respectivamente. A
Quanto a essas categorias da enunciação (o ato da fala), temos na sentença 3 também é declarativa , mas a cópula {na-aka-t} 'ser/estar'
parte 1 uma primeira pessoa - o narrador - dizendo que seu pai disse foi omitida neste caso, como pode ser sempre que for flexionada pelo
algo a ele antigamente (linha 1 ), e logo em seguida entra a citação da tempo não futuro {-t}. Ou seja, nos tempos presente ou passado uma
fala direta do pai (recurso linguístico marcado pelo número 5), em pri-
sentença copular pode ser e frequentemente é usada sem a cópula no
meira pessoa do plural, ensinando ao filho que aos 1O anos de idade
Karitiana. A linha 3 é um exemplo disso: traduzida pelo presente "aos
é quando o povo Karitiana realiza o ritual de iniciação masculina em
dez anos é o Osiip do nosso povo', ela é expressa apenas pelo sin-
que o menino iniciado fura o vespeiro e se usa uma erva como remédio
tagma 'aos dez anos' e o complemento oracional predicativo 'a nossa
(linhas 2 a 4). Na linha 5, a primeira pessoa do narrador volta e explica
salvação de mau caçador". Uma tradução literal seria : "É aos dez anos
que esse aconselhamento do pai, seguido do ritual de iniciação ocorre
a nossa salvação de mau caçador". Sabemos que se trata de LJma sen-
quando os meninos estão prestes a se casar, para que estejam pron-
tença de cópula não só pela tradução, mas pelo sufixo {-t} que ocorre

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após o predicado nominal {yjxa osii} da cópula, sufixo este que Everett trecho pelo narrador são o fato de que quando se casa na comunidade
(2006) descreve como concordância de cópula, mas Rocha (2016) rea- Karitiana tradicionalmente são as famílias que oferecem aos noivos
nalisa como adverbializador. O exemplo (1) mostra, explicitamente, a aqueles com quem se casarão, de maneira que o menino 'recebe uma
composição sintática da sentença de cópula: mulher' e não a escolhe. O segundo paralelismo diz algo sobre a ine-
vitabilidade do casamento acontecer uma vez que uma esposa já foi
(yjxa osii]-t
escolhida para o menino - se ele está prestes a se casar, então ele se
1. Dez ngogorong-ã-t (0-na-aka-t)
Dez ano-vt-obl 3-decl-cópula-nfut nós alvação.caçador-advzr casa. Neste último exemplo, a atenção do ouvinte se foca nos vários
'Aos dez anos é que a gente salva mau caçador' estados psicológicos por que passa o iniciado frente às obrigações
sociais ligadas ao ritual.
O efeito causado por uma oração de cópula nessa parte da nar- Em seguida, vem a parte li (Orientação), orientando o ouvinte
rativa é interromper o trecho em que o pai do iniciado tem a palavra (li- para a narrativa que está por vir, ao fornecer informações sobre quais
nhas 2 a 4), e fala em primeira pessoa para introduzir uma informação serão as partes seguintes: partes Ili e IV (Complicação), parte V (Ava-
sobre uma regra ou tradição do povo. A sentença anterior é causativa, liação) e parte VI (Resolução).
com 'nós' como objeto traduzida como 'nos fazem receber o Osiip' e A parte li inicia-se na primeira pessoa do singular, com o nar-
a seguinte tem 'nós' como sujeito 'nós furamos o vespeiro, nós pas- rador relatando a sua experiência ao furar vespeiros nas linhas 7 a
samos o soyoty', mas a sentença de cópula está na terceira pessoa 1O. A partir da linha 11, até a linha 23, o assunto são as proibições, as
do presente gnómico, o que denota uma objetividade, uma verdade restrições alimentares e comportamentais pelas quais passa o inicia-
que tem valor de lei, para gerar sobre o ouvinte um efeito civilizatório, do no ritual e se explica por quanto tempo algumas delas devem ser
educativo. mantidas. As privações são tão severas, que os Karitiana descrevem
Na linha 5 o narrador retoma a palavra para dizer que o pai o ritual do Osiipo como o equivalente, na sua cultura, ao serviço militar
aconselha o filho a fazer o ritual quando ele está prestes a se casar dos homens brancos.
e em todas as sentenças restantes nessa parte da narrativa (linhas 5
e 6) quem tem a palavra é o narrador, em primeira pessoa do plural, Parte li
colocando-se como parte do ritual pelo qual todos os homens devem
passar. 7. Yn l'obm pltadnl yn gop 4
'Eu não perfurei muitos vespeiros'
Note que em 5 e 6 temos paralelismos poéticos (marcados pelo
número 3 no fim de cada linha) introduzidos através da repetição da 8. Pyryklldn taso gopo'obmon tyym 1
oração subordinada 'quando estamos prestes a nos casar', que se 'Há verdadeiros perfuradores de vespas' •
transforma na primeira repetição em 'quando estamos prestes a rece-
ber uma mulher' e depois em 'quando, de fato, recebemos uma mu-
9. Dez gopo 'obmono, cinco gopo 'obmono, quatro myry'ln yn naka'obm yn gop 3
lher'. A diferença introduzida da primeira para a segunda subordinada
4
adverbial é a diferença entre 'casar' e 'receber uma mulher', que revela 'Dez vezes perfuradores de vespas, cinco vezes perfuradores de vespas; quanto
o real sentido de se casar na cultura tradicional Karitiana, que é ligar-se a mim, eu apenas perfurei quatro vezes'
a alguém já prometido a você pelas regras de parentesco e escolhas
dos pais baseadas em alianças. Já da segunda para a terceira subor- 10. Otadnamyn yjpyoot myry'ln naka'obm yn gop 3
'Apenas quatro vezes eu perfurei um vespeiro'
dinada adverbial, a diferença está no valor aspecto-temporal da ora-
ção 'estamos prestes a receber uma mulher' versus 'recebemos uma
mulher'. As sutilezas de sentido que estão sendo exploradas neste

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Note que a linha 7 faz uma ponte entre a parte 1 e a parte 11 que se usa a expressão do numeral 'quatro' não em português como
do texto, pois a última sentença da parte 1 (linha 6) está na primeira na sentença anterior, mas na língua Karitiana {otadnamyn yjpyoot}.
pessoa do plural, e informa que 'quando nós, de fato, recebemos uma Note que, em quatro linhas do texto, cinco recursos poéticos, foram
mulher, nós perfuramos o vespeiro', enquanto que a linha 7 retoma o usados, intercalada e repetidamente:
assunto na primeira pessoa do singular ('quanto a mim, eu não furei
muitos vespeiros'). Esta mudança de sujeito que marca um limite entre 11 . Atyldrt lpynpyfy adyky gop by'y
o conteúdo das duas partes do texto - o resumo e a orientação - se 'Logo depois do vespeiro, não pode comer'
efetiva através do recurso linguístico de mudança de tópico (informa-
12. M)'Jymp yJkat napynpyt'yt gop
ção pressuposta, no caso o sujeito), identificado no fim da sentença
Três dias depois do vespeiro a gente já pode comer'
pelo número 4 . Este fenômeno linguístico, como vimos, consiste na
repetição do sujeito (nome ou pronome), que costuma ocorrer em posi- 13. A sara'ldna pltat oplpyt:yty seakaty
ção pré-verbal (SVO) em sentenças transitivas, após o verbo (SVSO), 'Isso é muito ruim, pela fome e pela sede'
objeto (SVOS), algum adjunto ou no final da sentença.
No caso da sentença 7, o sujeito de primeira pessoa do singu- 14. Neng nenglt, lpynhadnl lpynorooronl
'Deitado, não pode haver nenhuma conversa, não pode haver nenhum barulho'
lar {yn} que ocorre no início da sentença, foi repetido após o verbo
{i-'obm} 'furar' modificado pelo quantificador adverbial {pita-dni} 'não 15. Pongyp napyntarakat
muito': {i-'obm pita-dni} 'não furar muito'. A tradução dessa mudança 'Deve-se caminhar em direção à serenidade'
de tópico implica em uma mudança no tópico do discurso (de primei-
ra pessoa do plural para a primeira pessoa do singular)- "já quanto a 16. Pongyp yJakat tyklr1, napysemem osllp
mim, eu não furei muitos vespeiros". Por se tratar de uma sentença 'Quando estamos serenos, o espírito do Osiip atua

negativa, o modo nunca é marcado explicitamente no verbo em Kari-


17. Y)xa naokyt hlm
tiana (Storto 2018), mas a concordância de pessoa continua presente
'Nós matamos a caça'
- neste caso, uma terceira pessoa não-declarativa {i-} prefixada ao
verbo, que concorda com o objeto (ver capítulo "A gramática das língua 18. Tres dias yJakat yJxa naka'yt sojsara
indlgenas brasileiras: morfologia e sintaxe" para entender a diferença 'Depois de três dias, nós comemos o mingau forte'
entre pronomes e concordância de pessoa e o padrão absolutivo de
concordância verbal). 2 19. Sojsara,')om hopo,')om pyka,')om poroJo (naakat) yJxa tt'yt
'Mingau forte, sementes de milho assadas,
Após a mudança de tópico, o narrador usa outro recurso poético, espigas de milho assadas com as folhas,
o modo assertivo e a terceira pessoa, para iniciar a parte li efetivamen- milho assado na espiga
te, orientando o leitor sobre a existência de pessoas que perfuraram são a comida da gente •
vespeiros muitas vezes no ritual do Osiip: 'Há verdadeiros perfurado-
res de vespas'. Na sentença 9, o narrador continua falando dos verda- 3 20. la'yese,
'Água não é para ser bebida'
deiros perfuradores de vespeiros, enumerando, através da repetição
da fórmula {gopo 'obmono} 'perfuradores de vespas' quantas vezes 21. kytop la'yt
algumas pessoas já furaram vespeiros, mas termina usando, de novo, 'Chicha é para ser bebida'
a mudança de tópico: "dez vezes ... cinco vezes ... quanto a mim, eu só
perfurei quatro vezes". Este início da parte li, que vai das linhas 7 a 10, 22. la'y padnl ase
termina com um paralelismo - a repetição do que foi dito anteriormente 'Água não é para ser bebida mesmo'

- 'apenas quatro vezes eu perfurei um vespeiro' - com a diferença de


23. YJ'ltl hadna t.yym
'De acordo com a palavra dos nossos pais'

158 EDITORA MERCADO DE LETRAS LÍNGUAS INDÍGENAS: TRADIÇÃO, UNIVERSAIS E DIVERSIDADE 159
Da sentença 11 em diante são apresentadas as proibições ali- argumento que tem Caso absolutivo de primeira e segunda pessoas
mentares e comportamentais pelas quais passa o iniciado em seu pe- ({y-} e {a-} no singular e {yj-} e {aj-} o plural) , respectivamente. O uso
ríodo de recuperação física , mental e espiritual após furar o vespeiro e ou não da sílaba {ka} tem a ver com o acento da raiz verbal: {naka-}
ser picado pelas vespas. O tipo sentenciai mais usado é a modalida- e {taka-} ocorrem com raízes iniciadas por sílaba tônica e {na-} e {ta-}
de deôntica (Ferreira 2016, Storto 2018), marcada pelo prefixo verbal ocorrem em raízes iniciadas por sílabas átonas. Vimos a forma {naka-}
{pyn-}, que pode ser traduzido para o português com o modal 'pode' ou usada na parte 1do texto com verbos cuja acento caia na primeira sí-
'deve'. As linhas em que a modalidade deôntica ocorre são 11 {(i-pyn laba, e, agora , na parte li, temos {na-} em 16 e 17 porque o verbo não
-pyt'y} 'não pode comer'), 12 ({na-pyn-pyt'y-t} 'pode comer')), 14 ({i-pyn tem acento na primeira sílaba. Nos trechos da narrativa selecionados
-hadn-i} 'não pode falar'; {i-pyn-orooro-ni} 'não pode fazer barulho'), e nessa seção do capítulo não há nenhuma ocorrência dos alomorfes
15 ({na-pyn-tarakat} 'deve caminhar'). {ta-} e {taka-} do prefixo de modo declarativo.

De 14 a 17 temos, como na parte 1, o uso do presente gnómico As sentenças 18 a 23 continuam a apresentar, dessa vez em
para introduzir verdades eternas, regras rituais que são sempre válidas maior detalhe, as restrições alimentares por que passa o menino ini-
e devem ser obedecidas para que o ritual funcione. ciado no ritual. Neste trecho, dois recursos poéticos são usados: uma
sentença de cópula em 19 e paralelismos em 20-22.
As linhas 13, 16 e 17 não são deônticas pois não falam de obri-
gações e deveres. Na linha 13 o verbo deadjetival 'ser. ruim' avalia o A construção clivada de cópula ocorre, novamente, como visto
que foi dito antes, que não se pode comer nem beber após as pica- na linha 3 na parte 1, sem o uso explícito do verbo copular {na-aka-t},
das das vespas, e que 'isso é ruim por causa da fome e da sede'. As pois no tempo não-futuro (presente ou passado) se pode omitir a có-
sentenças 16 e 17 são declarativas e falam sobre a necessidade de pula. Sabemos que se trata de uma sentença de cópula em 19 por
se estar sereno para que a magia do ritual Osiip funcione e o iniciado causa do seu significado 'mingau forte, sementes de milho assadas,
se torne um bom caçador. Na sentença 16, traduzida como 'quando espigas de milho assadas com as folhas, milho assado na espiga é o
estamos serenos, o espírito do Osiipo atua' temos o morfema de modo que nós comemos' e também pela estrutura sentenciai, que apresenta
declarativo {na-} usado com o verbo {pysemem} da oração matriz, que um sujeito e um predicado oracional não verbal marcado pelo adver-
deriva do nome 'espírito'. Literalmente, o sentido da oração principal bializador {-t}:
[{napysemem} {Osiip}] seria 'O Osiip espiualiza', que traduzimos como
2. Sojsara, jom hopo, jom pyka, jom porojo
'o espírito do Osiip atua', já que não é possível transformar o nome 'es-
mingau sementes.assadas espiga.assada.com.folha espiga.assada
pírito' em um verbo em português. Uma outra tradução possível seria (0-na-aka-t) (yjxa ti'yJ-t
'a magia do Osiip atua', mas nesta tradução perderíamos a informação 3-decl-copula-nfut nós comida-advzr •
de que o verbo deriva do nome 'espírito', que parece crucial para o
entendimento do ritual. A sentença 17 descreve a consequência da
'Mingau forte, sementes de milho assadas, espigas de milho as-
magia do ritual, que é transformar meninos em bons caçadores: 'nós
sadas corri as folhas, milho assado na espiga são a comida da gente'
matamos caça'.
O sujeito da cópula é o sintagma nominal complexo, formado
Uma explicação se faz necessária sobre a morfologia do modo
pela conjunção de todas as coisas que são comidas na ocasião: 'min-
declarativo. Note que os quatro alomorfes (variante do morfema) do
gau forte, sementes de milho assadas, espigas de milho assadas com
modo declarativo, previsíveis de acordo com critérios fonológicos e as folhas, milho assado na espiga'. O predicado é a oração [{yjxa}
morfológicos, são {na-} e {naka-}, {ta-} e {taka-}. Os alomorfes {na(ka)-}
{ti'yt}] 'comida da gente'. O sufixo {-t}, rotulado como 'adverbializador'
são usados quando a concordância verbal se dá com o argumento de
marca a oração complemento da cópula.
terceira pessoa de Caso absolutivo, que é nulo (o prefixo {0-}), e os
alomorfes {ta(ka)-} são usados quando a concordância se faz com o

EDITORA MERCA DO DE LETRAS LÍNGUAS INDÍGENAS: TRADIÇÃ O, UNIVERSAIS E D IVERSIDADE 161


160
Paralelismos são usados como recurso poético nas linhas 20-22 interrompemos a análise na linha 39, pois a seção é longa (vai até a
através do paradigma sentenciai repetido a seguir: linha 100) e não cabe discutir toda a narrativa em detalhe neste ca-
pítulo. Nosso objetivo aqui é mostrar que as línguas de tradição oral
3. la'y ese, têm literatura, no sentido de que o narrador é o autor, aquele que tem
'Água não é para ser bebida' habilidades em usar recursos linguísticos de maneira poética.

4. kytop (naakat) ia'yt De qualquer maneira, para se entender a narrativa como um


'Chicha é para ser bebida' todo, é importante saber que: (1) a parte IV retoma o tema da parte
Ili, descrevendo os outros 3 rituais de iniciação pelos quais o narrador
5. la'y padni ese
passou; (2) na parte V o narrador descreve e avalia os resultados do
'Água não é para ser bebida mesmo'
ritual; e (3) na parte VI temos a resolução, sanção ou desfecho, quando
o narrador fala do sucesso e reconhecimento obtidos ao se submeter
Note que o que muda de uma sentença para outra neste tre- ao ritual, avaliando-o positivamente apesar das privações pelas quais
cho é apenas uma palavra. Isso é possível pois a gramática da língua passou .
Karitiana permite que orações negativas omitam o morfema de nega-
ção {padni}, pois as orações negativas não têm prefixo de modo nem Parte Ili
de tempo, e, portanto sabe-se que são negativas por essas razões,
mesmo que a negação seja omitida. As duas sentenças negativas no 24. Ynty y'ltl hadna tyym, yn nakam'at ta'ãt Osllp
'(Com) a palavra do meu pai (direcionada) a mim, eu fiz o Osiip'
trecho são idênticas a não ser pelo fato de a primeira ter a palavra de
negação omitida e a última não. Assim, é possível diferenciar as duas 25. Alyklrt yn naoky pymbyrat klnda ka y'a tykat tyym
primeiras sentenças no trecho em questão como negativa e afirmativa 'Por causa disso, eu mato um pouco de caça assim até hoje'
pois o verbo da segunda apenas {i-a-'y-t} apresenta o sufixo adverbia-
lizador {-t}, que ocorre nas construções de cópula. 26. Plkom myry'ln
'Apenas macaco'
O trecho de paralelismo poético fala de proibições alimentares
sem usar a modalidade deôntica. O que se usa, aqui, é a voz passiva 27. Yn lpopl padnl hlm ondyt yn 4
impessoal, marcada pelo prefixo verbal {a-}. Assim, 'o que não se bebe' 'Quanto a mim, eu não matei caça grande'
e 'o que se bebe' aparecem intercalados, iniciando-se pela proibição de
28. Osllp naakat lse'at 2
se beber água, passando pela afirmação de que beber chicha - uma
'O ritual Osiip é bom'
bebida fermentada feita de milho, mandioca ou batata - é permitido,

terminando pela proibição, dessa vez com o uso do morfema negativo 29. Kydnym laoky hlm 3
{padni}, portanto mais veemente, de se beber água. 'A caça não é morta de graça'

A linha 23 é, na verdade, uma oração subordinada que pode ser


30. Kydnym la'y hlm 3
traduzida como 'de acordo com a palavra dos nossos pais'. A oração 'A caça não é comida de graça'
principal à qual a subordinada pertence está expressa na linha 22, mas
também nas sentenças 20 e 21. Com essa oração subordinada, que 31. Kydnym la'y keerep hlm 3
pode se relacionar às 3 orações principais que a precedem, termina a 'A caça não era comida de graça antigamente'

parte li do texto.
32. Taso osllkl loky padnl keerep hlm 3
A complicação, que se inicia na parte Ili, linha 24, descreve o 'Os homens sem o osiip não matavam caça antigamente'
primeiro ritual de iniciação pelo qual o narrador passou. Nessa seção,

162 EDITORA MERCADO DE LETRAS


LÍNGUAS IN DÍG ENAS: TRADIÇÃO, UNIVERSAIS E DIVERSIDA DE 163
33. lahitl padnl hlm okyyklt keerep himty 3 Após essa transição poética efetuada na linha 27, o trecho que
'O homem que não matasse a caça não era presenteado com caça antigamente' vai da linha 28 até a linha 33, repetidas abaixo por razões didáticas,
utiliza os seguintes recursos poéticos: (1) Uma sentença de cópula em
34. Atyklri nam'yt keerep Osllp
'Então, por causa disso, costumava-se fazer o Osiip antigamente'
28, usada como uma avaliação ou juízo de valor positivo, do ritual Osiip
(marcada com o número 2); (2) Paralelismos nas linhas 29-31 e 32-33
35. Nakahadn ta'At ynty y'lt (marcados com o número 3):
'O meu pai dizia para mim'

36. "lm'y osllpo" naka'at ta'At ynty y'lt 28. Osllp naakat lse'at 2
"'Faça o Osiipo", O meu pai dizia para mim' 'O ritual Osiip é bom'

37. "An lhot oky asooj Osiip an nam'ykl tyklri" 29. Kydnym laoky hlm 3
'Você não matará para a sua esposa se você não fizer o Osiip' 'A caça não é morta de graça'

36. Naka'at ta'At ynty y'lt 30. Kydnym la'y hlm 3


'O meu pai dizia para mim' 'A caça não é comida de graça'

39. Atyklri yn nakam'yt ta'At Osllp yn 4 31. Kydnym la'y keerep hlm 3
'Quanto a mim, eu fiz o Osiip por isso' 'A caça não era comida de graça antigamente'

32. Taso osllkl loky padnl keerep hlm 3


Em termos de conteúdo, o trecho da narrativa entre as linhas 27 'Os homens sem o Osiip não matavam caça antigamente'
a 39 versa sobre a importância de se passar pelo ritual Osiip para que
se possa tornar um bom caçador. Essa justificativa do ritual é iniciada 33. lahlU padnl hlm okyyklt keerep hlmty 3
'O homem que não matasse a caça não era presenteado com caça antigamente'
(linhas 24, 25, 26, 27) e terminada em sentenças declarativas na primei-
ra pessoa do singular (linha 39) com o evidenciai direto {ta'ã}, que indica
que o narrador estava presente quando os eventos sobre os quais fala A sentença de cópula na linha 28 é formada pelo sujeito {Osiip},
aconteceram, para criar uma aproximação do ouvinte com o tema atra- pela cópula {naakat} e pelo predicado {ise'at}. Este último é formado
vés da experiência de um narrador que participou do ritual. Este uso pelo prefixo glosado como nominalizador {i-}, necessário neste caso,
da primeira pessoa do singular serve o fim pedagógico de convencer o já que o predicado é adjetival e precisa ser nominalizado para ocorrer
ouvinte da eficácia do ritual Osiip em tornar o iniciado um bom caçador. como complemento da cópula. O sufixo {-t} marca a adverbialização do
Essa eficácia se opera por uma espécie de mágica que o espírito do complemento da construção de cópula:
Osiip realiza quando o menino segue todas as regras do ritual.

Após as primeiras linhas, onde a experiência do narrador é usa- 6. Osiip 0-na-aka-t i-se'a-t
Osiip 3-decl-cópula-nfut nmz-bom-advzr
da como convencimento do ouvinte, segue um trecho pleno de recur-
'O Osiip é bom'
sos poéticos onde se fala da mágica transformadora do Osiip. Na linha
27 temos uma mudança de tópico, efetivada através da repetição do
sujeito {yn} 'eu', traduzida como 'Quanto a mim, eu não matei caça Os paralelismos que se seguem são usados para justificar a afir-
grande'. Com este recurso, cria-se uma fronteira entre o trecho em pri- mação de que 'O Osiip é bom'. A sentença 29, traduzida como 'a caça
meira pessoa do singular e o trecho poético que se inicia em seguida, não é morta de graça' explica que para se matar caça tem que se pagar
em terceira pessoa. algo, no caso o sofrimento e as privações do ritual Osiip. O tipo sen-
tenciai utilizado de 29-31 é uma sentença passiva impessoal negada,

164 EDITORA MERCADO DE LETRAS LÍNGUAS INDÍGENAS: TRADIÇÃO, UNIVERSAIS E DIVERSIDADE 165
a mesma estrutura usada nos paralelismos discutidos nas linhas 20- Yn (na'a) ty(kaki) (myno) (8 cr)
22. Literalmente o que a sentença 29 significa é 'não se mata caça de 'Eu estou carregando, estou'

graça'; o morfema de negação {padni} é omitido nessa sentença e nas (Piko)mo se(repam)o (7 cr) (oky)(wyndok) (oky)(wyndok) (8 cr)
seguintes, como foi em algumas sentenças em 20-22. O paradigma 'O cesto de macaco está cheio, está cheio'
29-31 chama a atenção para o fato de que só come quem mata (29 e ('õro)mo se(repam)o (7 cr) (oky)(wyndok) (oky)(wyndok) (8 cr)
30), e que isso era verdade antigamente (30 e 31 ), numa referência ao 'O cesto de macaco aranha está cheio, está cheio'
fato de que hoje em dia isso não é mais verdade, já que se pode ter um
Yn (na'a) ty(kakl) (myno) (8 cr)
emprego ou aposentadoria, ou bolsa para comprar comida. 2 'Eu estou carregando, estou'
Em 32-33 o paralelismo envolve o paradigma introduzido pela
Podemos observar que pés métricos binários iâmbicos (cuja sí-
sentença complexa '(os homens sem Osiip] não matavam caça antiga-
laba forte é a segunda, em negrito) formam versos de 7 e 8 sílabas,
mente' que é transformada em 'não eram presentedos com caça anti-
que se alternam no seguinte padrão:
gamente (os homens que não matassem]'. Com essas comparações,
o narrador reafirma que para se matar caça nos velhos tempos era 7 8
necessário passar pelo ritual do Osiip e que isso era possível porque a 8
7 8
mágica do ritual presenteava os iniciados com o dom de matar.
7 8
Depois deste paralelismo, temos a finalização do trecho de justi- 8
ficativa do ritual nas sentenças 34-39, quando o narrador reafirma que
essas são as razões pelas quais o ritual era realizado antigamente, re- Note que há sílabas extramétricas, que ficam fora da formação
lembrando o ouvinte de que o pai dele o incentivou a passar pelo Osiip dos pés métricos binários. Mesmo o padrão de extrametricalidade é
para ser um bom caçador a fim de poder se casar. recorrente: Nos dois primeiros versos e no último, a primeira sílaba é
Na linha 39 uma mudança de tópico do discurso é usada (mar- extramétrica, e nos dois versos centrais a última sílaba da primeira e
cada pelo número 4) e inicia-se um trecho da parte Ili da narrativa em segunda palavra é que ficam fora da formação do pé métrico.
que o narrador fala em sentenças declarativas na primeira pessoa do Encerramos aqui nossa análise da aplicação de seis recursos
singular, oferecendo detalhes sobre o que ele fez no seu primeiro ritual poéticos na narrativa ritual Karitiana intitulada Osiip. Passemos agora
do Osiip: as plantas a serem usadas no ritual como remédio para as à análise da arte verbal na língua Kuikuro (família Karib).
picadas de vespa, as restrições alimentares e comportamentais, o ato
de perfurar o vespeiro, e a orientação que o pai dá ao iniciado sobre a
caça a ser abatida (que segue uma hierarquia) os banhos de água de
A arte verbal em Kvikvro
cipó e a cronologia de todas as partes do ritual.
Passemos, finalmente, ao último recurso linguístico a ser identi-
ficado no texto Osiip: métrica em música. Note o número de sílabas (o) Nessa seção, apresentamos a análise de Franchetto (2003a)
em cada pé métrico (parêntese): sobre narrativas Kuikuro, que podem fazer parte de rituais menciona-
dos no capítulo 2.

Se(repam) (oky)(wyndok) (7 cr) (oky)(wyndok) (oky)(wyndok) (8 cr)


O termo {akinha} em Kuikuro significa 'palavra, língua' e é usa-
'O cesto de caça está cheio, está cheio, está cheio' do para se referir a qualquer narrativa, formal ou informal. Hanchet-
to (2003a) sugere que 'contar história' em Kuikuro é um conceito que
deve ser entendido como a construção de um objeto formal. Na morfo-
2. Os jovens Karitiana têm procurado estudar a fim de se profissionalizar, fazendo o
2º. e 3º. graus para prestar concursos e obter um salário ou bolsa de estudos. logia de (7) temos {-ha} que quer dizer 'fazer algo material':

166 EDITORA MERCADO DE LETRAS LÍNGUAS INDÍGENAS: TRADIÇÃO, UNIVERSAIS E DIVERSIDADE 167
7) kukakihake akinhaki tirado da abertura da narrativa intitulada {Jamugikumalu}, "a origem do
kuk-aki-ha-ke akinha-ki Jamugikumalu", também conhecida pelo título {itão kwegü etinkipügü}
1incl-raiz-fazer-imp história-inst
que Franchetto (2003b) traduz para o português como "a metamorfose
'Me conta uma história!'
das hiper-mulheres":

Além disso, contar uma história pode ser entendido como 'mos-
10) tumuguko ipolü ihekeni, Magija heke
trar algo distante', O que fica claro quando (8) é pronunciado com um Magija heke
t-umugu-ko ipo-lü i-heke-ni,
gesto de apontar para longe: refl-filhos-pl furar-pont 3-erg-pl Magija erg
'Eles furaram as orelhas de seus próprios filhos, foi Magija'
8) akinhá ihatagü iheke, akinhá ato heke
11) ipolüha leha ihekeni leha
akinhá iha-tagü i-heke akinhá ato heke
ipo-lü-há leha i-heke-ni leha
.História mostrar-cont 3-erg história mestre
furar-pont asp 3-erg-pl asp
'Ele mostra uma história, o mestre das histórias'
'Eles furaram as orelhas'

E, finalmente, contar uma história pode ser entendido como 'dar' Franchetto (2003) esclarece que a repetição elementar da arte
Kuikuro está exemplificada em (1 O) e (11 ), quando se tem um enuncia-
9) akinhá tundagü iheke, akinhá ato heke do repetido de maneira quase linear, porém não como uma cópia exata
Akinhá tuN-tagü i-heke akinhá ato heke do que foi dito anteriormente. Note que em (11) a repetição do verbo
história dar-cont 3-erg história mestre e do sujeito do verbo transitivo, que recebe Caso ergativo 'eles' se dá
'Ele dá uma história, o mestre das histórias'
com a adição do morfema aspectual {leha} após cada constituinte: Ver-
bo leha e Sujeito leha.
Segundo Franchetto, a repetição é um traço fundamental da arte Também há algo interessante sobre a ordem dos constituintes
verbal Kuikuro. Os "mestres das histórias" Kuikuro utilizam paralelis-
das sentenças em narrativas Kuikuro, que podemos exemplificar com-
mos estruturais e prosódicos para criar efeitos poéticos. Três tipos de
parando (10) com (12). Em (10) um exemplo de ordem não marca-
exemplos são fornecidos: (1) o gênero discursivo "histórias verdadei-
da ou default é OVA, em que A é o sujeito agente do verbo transitivo
ras", a maior parte tirada da narrativa sobre as hiper-mulheres; (2) os
ocorrendo em posição de tópico, ou velha informação, mas em (12)
macroparalelismos existentes nas histórias em nível de conteúdo nar-
temosAOV, em que o elemento A- as esposas -é nova informação na
rativo, por exemplo, as oposições e complementaridades entre o mas-
narrativa e por isso ganha uma posição de foco, na periferia esquerda
culino e o feminino; (3) os microparalelismos existentes nas histórias
da sentença:
em nível de forma linguística.

12) ihitsão heke leha ihangamikünkgo leha


i-hitsão heke leha i-haNami-kiN-ko leha
Histórias verdadeiras 3-esposa.pl erg asp 3-esperar/em/vão-perf-pl asp
'As esposas os esperaram em vão'

As chamadas "histórias verdadeiras" em Kuikuro são as narra-


Macroparalelismos
tivas que fazem uso pleno da arte verbal. Elas são narrativas tradi- •
cionais e costumam ser contadas por mestres de histórias reconheci-
A narrativa da metamorfose das hiper-mulheres conta, segundo
damente experientes. Vejamos, a seguir, um exemplo de paralelismo
Franchetto (2003b) como as mulheres se separaram dos homens em

168 EDITORA MERCADO DE LETRAS LÍNGUAS INDÍGENAS: TRADIÇÃO, UNIVERSAIS E DIVERSIDADE 169
um passado mítico, transformando-se em hiper-mulheres, mulheres- Além deste paralelismo, há uma repetição do verbo 'metamor-
monstro que mataram seus filhos homens, ficando apenas com as fi- fosear' nos três primeiros versos ou linhas (13-15), sendo que em (15)
lhas e mudaram para o fim do mundo e lá fizeram uma aldeia só de há uma mudança do aspecto continuativo para o pontual. Nos versos
mulheres, onde as mulheres podem fazer tudo o que não podem no (16-17) há, ainda, a repetição do advérbio 'aqui'.
mundo real. Dentro desta narrativa ocorre também a metamorfose dos
O macroparalelismo ocorre quando um bloco se repete dentro
homens em queixadas (porcos do mato), descrita a seguir:
da narrativa. Por exemplo, o bloco analisado de (13)-(18) se repete,
em termos de conteúdo, nas 4 linhas a seguir ((19)-(22)). Franchetto
13) etlnkltako leha egei leha (Jam.Ag.: Ili, b, 24-29) (2003a) nos informa que a localização desse bloco no texto original
etinki-ta-ko leha ege-i leha
ocupa as linhas 24 a 29 e o bloco a seguir corresponde às linhas 54 a
metamorfosear-cont-pl asp deit-cop asp
'Eles se metamorfoseavam, lá longe, enfim'
57 da transcrição original da mesma narrativa.

14) etlnkltako leha, heu kwegüi, 19) lnte leha, lsaenl leha, ipuguko leha atai (Jam.Ag.: Ili, e, 54-57)
etinki-ta-ko leha, heu kwegü-i, inte leha i-tsae-ni leha i-pugu-ko asp atai
metamorfosear-cont-pl asp porco hiper-cop aqui asp 3-sobre-pl asp 3-pelo-pl asp temp
'Eles se metamorfoseavam em queixadas' 'Quando, aqui, enfim, sobre eles, seus pelos'

15) etlnkllOko leha 20) ltsuponl leha isigüko ihatiga leha


etinki-lü-ko leha i-tsupo-ni leha is-igü-ko ihati-ga leha
metamorfosear-pont-pl asp 3-sobre-pl asp 3-dente-pl sair-cont asp
'Eles se metamorfosearam'
'Sobre eles, enfim, seus dentes saíram'

16) lnte leha ipuguko leha itsaeni, 21) Etinkitakoha egei


inte leha i-pugu-ko leha Hsae-ni, etinki-ta-ko-há ege-i
aqui asp 3-pelo-pl 3-sobre-pl
metamorfosear-cont-pl-enf deit-cop
'Aqui, enfim, seus pelos sobre eles' 'Lá, eles se metamorfosearam'

17) lnte leha isigüko ihatigagü leha (mbü] 22) Heu kwegü leha
inte leha is-igü-ko ihati-gagü leha [mbü] heu kwegü leha
aqui asp 3-dente-pl sair-cont asp
porco enfim
'Aqui, enfim, seus dentes saíram'
'Queixadas enfim'

18) tsekegüi leha inhünkgo leha


tsekegü-i leha i-nhün-ko leha Voltando aos detalhes dos paralelismos internos ao bloco, te-
grande-cop asp ser-pont-pl asp mos, além da já vista repetição de {leha}, uma repetição de significa-
'Eles se tornaram enormes, enfim'
dos (sinônimos ou antônimos) com mudança de forma: 'sobre' aparece
como {tsae} e {tsupo} e os dêiticos como 'aqui' e 'lá', com mudança de
Há um paralelismo óbvio da repetição constante do morfema forma em {inte} e {egei}. lnteressantemente, este novo tipo de parale-
aspectual {leha}, que, no trecho citado, aparece na tradução como 'en- lismo em que significados repetidos ocorrem com formas morfológicas
fim', e marca a fronteira direita de cada constituinte, exceto 'queixadas' variadas ocorre no texto em posições diferente na linha em que ocor-
e 'sobre eles'. Trata-se da repetição elementar das "histórias verdadei- rem: 1) {inte} no início da linha (19) e {egei} no final da linha (2a. ); 2)
ras". {tsae} no meio linha (19) e {tsupo} no início da linha (20).

170 EDITORA MERCADO DE LETRAS LÍNGUAS INDÍGENAS: TRADIÇÃO, UNIVERSAIS E DIVERSIDADE 171
Microparalelismos efeito do belo. A segunda semelhança é que os contadores de histórias
são sempre reconhecidos na comunidade de fala como mestres ou
Franchetto (2003a) oferece o trecho a seguir como exemplo de especialistas na arte verbal, e, por esta razão, argumentamos que o
um microparalelismo, definido como um paralelismo em que oposições discurso especializado deve ser considerado parte da tradição literária
entre relações gramaticais (Sujeito de verbo transitivo, sujeito de ver- das línguas em questão.
bo intransitivo, objeto direto, objeto indireto) são exploradas. Na linha
(23), temos a ordem AOV, em que o objeto é incorporado no verbo e o
sujeito inicia a sentença, o que indica que ele foi focalizado, marcado Exercícios do capítulo 6
como um novo participante no discurso. Já na segunda linha temos
um objeto oracional e uma sentença na ordem OVA. A interpretação
Questão 1 O Karirtiana é uma língua em que há muitas diferenças
de Franchetto (2003a) é que a primeira oração tem o verbo intransi-
possíveis na ordem dos constituintes da sentença. Des-
tivizado, e a construção resultante é de-ergativizada, ou seja, perde
creva as diferenças no verbo em negrito nos dois pares de
o argumento ergativo, que se torna absolutivo por ser agora o sujeito
sentenças e explique a razão provável desses padrões.
de um verbo intransitivo. O paralelismo entre formas intransitivizadas
e formas transitivas é usado frequentemente em Kuikuro como efeito
(1a) Taso 0-na-oky-t boroja
poético dentro dos blocos da narrativa (microparalelismo).
homem 3-DECL-NFUT cobra
"O homem matou a cobra.
23) Ahasa ngengepOgD
Ahasa ng-enge-pügü (1b) [Boroja taso oky tykiri] 0-naka-hyryp- 0 õwã
Ahasa mo-comer-perf cobra homem matar PERF 3-DECL-NFUT criança
'O que Ahasa tinha comido' "Quando o homem matou a cobra, a criança chorou."

24) kisukigopeko engepOgD Ahasa heke (2a) yn 0-na-opl-t 'ep


kisu-ki-go-pe-ko enge-pügü Ahasa heke eu 3-DECL-NFUT madeira
cabaça-inst-subst-pst-pl comer-perf Ahasa erg "Eu cortei madeira'
'Ahasa comeu aqueles que tinham ido colher cabaças'
(2b) ["ep taso opT tykiri] a-ta-yryt-0 an
madeira homem cortar quando 2-DECL-NFUT você
Além do prefixo marcador de objeto (mo) exemplificado, um ou- "Quando o homem cortou madeira, você chegou'
tro recurso de semelhante usado para obter o mesmo efeito poético é o
prefixo intransitivizador {e-}, que varia previsivelmente com {et-}.
Questão 2 Vimos que o a periferia esquerda se uma sentença decla-
rativa, como são as sentenças de cópula, é a posição em
que nova informação (foco) é veiculada na língua Karitia-
Conclusão na. Vejamos outros exemplos de sentenças em que :i pe-
riferia esquerda está sendo usada para o mesmo objetivo.
Tanto em Karitiana como em Kuikuro há dois pontos em comum a) Descreva as semelhanças e diferenças das sentenças
que foram identificados por nós na análise de extratos de sua cultura (1) e (2). Justifique.
oral. O primeiro é que ambas as tradições poéticas fazem uso de para- b) Adivinhe que tipo de sentença seria a sentença (3).
lelismos, sendo que a repetição do sintagma nunca é exatamente igual Justifique.
à primeira ocorrência, introduzindo sempre algo de novo para criar o

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