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Vogais Kwazá
u Capítulo 6
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A ARTE VERBAL EAS CULTURAS DE TRADIÇÃO ORAL
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a
(há 7 vogais nasais)
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da sua terra de origem e conquistou a costa brasileira de norte a sul nas narrativas foi a complexidade da língua. Para analisar o Karitia-
antes da chegada dos colonizadores, além de ter se espalhado para na, é necessário entender como as sentenças são usadas pragmati-
vários países adjacentes. Além do ramo Tupi-Guarani, há outros 9 ra- camente, ou seja, em contextos de vários tipos. Por exemplo, a ordem
mos dentro da família Tupi, e a língua Karitiana é a última sobrevivente de constituintes em Karitiana é variável (SVO, OVS, VSO, VOS, SOV
de um destes ramos - o Arikém (a língua Arikém foi registrada por meio e OSV), e fatores sintáticos (como o movimento verbal para uma se-
de 2 listas de palavras na década de 1920, mas está extinta hoje). O gunda posição estrutural na sentença onde a flexão verbal é adquirida,
Karitiana é falado por aproximadamente 400 pessoas que vivem na ou o movimento de sintagmas nominais para uma posição inicial da
Área Indígena Karitiana (95 Km a sul de Porto Velho, capital do estado sentença, que indica foco) explicam apenas em parte essa variação.
de Rondônia) ou em suas imediações, seja na cidade de Porto Velho, Há fatores pragmáticos que regem o modo assertivo, a repetição do
seja em outras cidades e áreas próximas (novos aldeamentos). sujeito, as sentenças declarativas verbo-iniciais e vários outros fenô-
menos, alguns dos quais não são bem entendidos até hoje.
Procuraremos demonstrar que uma descrição profunda da lín-
gua é um pré-requisito para analisar essa narrativa, já que fenômenos O Karitiana é uma língua verbo-final dentro do sintagma verbal
linguísticos complexos são usados frequentemente pelo narrador na e núcleo-final em geral, na qual praticamente todos os núcleos de sin-
construção da estrutura narrativa. Apesar de não ser possível afirmar tagmas ocorrem após seus complementos: o objeto precede o verbo
que estes fenômenos ocorrem exclusivamente dentro de narrativas, em sintagmas verbais (nominalizados ou compostos, por exemplo),
pelo menos dois deles - o uso do modo assertivo e a repetição do o complemento precede a posposição em sintagmas posposicionais,
sujeito tópico (informação pressuposta no discurso) - parecem ter sen- possuidores precedem possuídos em sintagmas nominais e em ora-
tidos narrativos bem particulares, tais como delimitar fronteiras de con- ções subordinadas os subordinadores ocorrem no firial da oração. No
teúdo e expressar continuidades e descontinuidades. entanto, quando sentenças são formadas, o verbo sai de sua posição
final dentro do sintagma verbal e se move para a segunda posição
Essa narrativa foi gravada em fita K7 por nós em nosso primeiro
estrutural da sentença para ser flexionado. Assim, em orações declara-
trabalho de campo na aldeia Karitiana, em julho de 1992, e foi contada
tivas temos as ordens SVO e OVS, a primeira usada como a ordem de
em um ambiente tradicional, dentro da casa do narrador, com sua famí-
foco do sujeito (e também como a ordem não-marcada, default, da lín-
lia nuclear (duas esposas, filhos, noras e netos) como público ouvinte.
gua, provavelmente por influência do português), e a segunda quando
Ela foi imediatamente traduzida com a ajuda de falantes da língua em
há foco no objeto. Já em orações subordinadas, as ordens possíveis
várias sessões de trabalho de campo e uma análise morfema-por-mor-
são SOV e OSV, com o verbo na última posição. As ordens VOS e
fema foi feita. Após mais de 20 anos de pesquisa linguística em Karitia-
VSO em sentenças declarativas são normalmente precedidas por con-
na, nós finalmente nos sentimos confiantes em nosso conhecimento da
junções discursivas e adjuntos - advérbios (ou orações adverbiais) e
gramática da língua para poder realizar uma análise da arte verbal que
sintagmas posposicionados. Veremos a seguir que este conhecimento
envolva construções complexas do ponto de vista da sintax~, semântica
sintático e pragmático da língua é necessário para analisar a estrutura
e pragmática. Este trabalho foi apresentado, pela primeira vez, a convite
da narrativa.
do professor Nigel Fabb em um seminário na Universidade de Glasgow
(Escócia), em novembro de 201 O, depois mais recentemente em um A narrativa que vamos analisar foi contada pelo pajé Cizino Ka-
seminário do CESTA na Universidade de São Paulo, posteriormente foi ritiana 26 anos atrás, quando ele tinha 48 anos de idade. Cizino é re-
expandido e apresentado na Conferência Internacional Amazonicas em conhecido pela comunidade como um excelente conhecedor das tra-
Barios, Equador em 2018, e fará parte de um livro em elaboração em dições e um exímio contador de histórias. Ele nos conta a sua história,
que a narrativa será transcrita, glosada e analisada em sua totalidade. de que passou pelo ritual de iniciação masculina 4 vezes, construindo
sua narrativa como um ensinamento, algo de valor a ser ensinado aos
A razão principal pela qual foi tão demorado resolver problemas
jovens que o ouviam, ou seja, algo que não diz respeito a ele exclusi-
da gramática do Karitiana que nos permitissem analisar a arte verbal
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Nas seis sentenças citadas, que iniciam o ritual, temos a parte tos para o casamento (linha 6). As categorias de espaço e tempo não
1, ou resumo da narrativa. Nela , ficamos sabendo o tema da narrativa , são tão importantes nessa parte da narrativa, mas há, claramente um
que é o ritual de iniciação masculina "Osiipo" (linhas 2 e 3), que se momento de referência pretérito, anterior ao tempo do ato da fala, que
trata de algo programado pelo pai do menino iniciado (linha 5), que a fica explícito no advérbio "antigamente", e na oração adverbial "quando
invasão de vespeiros pelo menino está envolvida (linhas 4 e 6), que temos dez anos", que remetem a uma concomitância em relação ao
um remédio - soyoty- é usado (linha 4), que o objetivo disso é tornar tempo de referência pretérito, e "quando estamos prestes a nos casar"
o menino um bom caçador para que ele esteja pronto para se casar que indica uma concomitância temporal e posterioridade aspectual a
(linhas 5 e 6).
esse pretérito. Além do pretérito, há também um tempo presente om-
Os números que aparecem no fim das linhas, nesta primeira par- nipresente (também chamado de gnómico) que faz referência a ver-
te, indicam o recurso linguístico usado para criar um efeito poético. Na dades eternas dentro da cultura Karitiana, como em "aos dez anos é
abertura da narrativa, a primeira sentença está marcada com o número o Osiip do nosso povo", "nós perfuramos o vespeiro, nós passamos o
1 para indicar que se trata se uma sentença assertiva (apresentada na soyoty", "nosso pai nos aconselha".
página anterior, como um dos seis recursos linguísticos discutidos). Voltando a uma análise linguística detalhada do tempo na narra-
Uma sentença no modo assertivo é diferente de uma sentença no modo tiva, é importante ressaltar que, além da sentença 1 ser assertiva, ela
declarativo porque a primeira , por ser afirmativa por natureza, traz uma ocorre marcada pelo evidenciai direto flexionado no passado {ta'ã-n},
ênfase existencial a mais quando comparada a uma simples declara- um auxiliar que indica que a informação veiculada pela sentença foi
ção ou constatação - a asserção da existência de algo, nesse caso presenciada pelo falante (Storto 2002). O sufixo {-n} no auxiliar eviden-
o evento de "meu pai dizer algo antigamente". Poderíamos comparar ciai é o morfema marcador de tempo não-futuro - presente ou passado
uma sentença assertiva usada no início de uma narrativa em Karitiana - em sentenças assertivas, que neste uso significa passado. Em ver-
com a fórmula "era uma vez" usada nas narrativas fantásticas (Propp bos marcados pelo modo declarativo, o tempo não-futuro é marcado
1970). A diferença é que em Karitiana sentenças assertivas também por outro morfema : {-t/-0}, como veremos a seguir. De qualquer ma-
são usadas no fim das narrativas, como fórmula para concluí-las ou em
neira, tanto o modo assertivo quanto o declarativo vêm acompanha-
início de subpartes da narrativa, para marcar mudanças de conteúdo . dos de apenas dois morfemas de tempo: futuro ou não-futuro. Não há
Quando linguistas analisam um texto, seja ele oral ou escrito, distinção gramatical entre presente e passado na língua, além daquela
buscam, entre outras coisas, entender o uso das categorias da enun- que se pode inferir pelo contexto.
ciação - pessoa, tempo e espaço - para entender como foi construido
As sentenças restantes (linhas 2 a 5) estão no modo declarativ~.
pelo autor o nível discursivo da narrativa, no qual se concretizam as
que é marcado pelo prefixo {na(ka)-} nos verbos {naka-m-'y-t}, {naka
categorias linguísticas em tempos, atores, espaços, temas e figuras. -hadn-0}, e {naka-'obm-0} nas linhas 2, 4, 5 e 6 , respectivamente. A
Quanto a essas categorias da enunciação (o ato da fala), temos na sentença 3 também é declarativa , mas a cópula {na-aka-t} 'ser/estar'
parte 1 uma primeira pessoa - o narrador - dizendo que seu pai disse foi omitida neste caso, como pode ser sempre que for flexionada pelo
algo a ele antigamente (linha 1 ), e logo em seguida entra a citação da tempo não futuro {-t}. Ou seja, nos tempos presente ou passado uma
fala direta do pai (recurso linguístico marcado pelo número 5), em pri-
sentença copular pode ser e frequentemente é usada sem a cópula no
meira pessoa do plural, ensinando ao filho que aos 1O anos de idade
Karitiana. A linha 3 é um exemplo disso: traduzida pelo presente "aos
é quando o povo Karitiana realiza o ritual de iniciação masculina em
dez anos é o Osiip do nosso povo', ela é expressa apenas pelo sin-
que o menino iniciado fura o vespeiro e se usa uma erva como remédio
tagma 'aos dez anos' e o complemento oracional predicativo 'a nossa
(linhas 2 a 4). Na linha 5, a primeira pessoa do narrador volta e explica
salvação de mau caçador". Uma tradução literal seria : "É aos dez anos
que esse aconselhamento do pai, seguido do ritual de iniciação ocorre
a nossa salvação de mau caçador". Sabemos que se trata de LJma sen-
quando os meninos estão prestes a se casar, para que estejam pron-
tença de cópula não só pela tradução, mas pelo sufixo {-t} que ocorre
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Note que a linha 7 faz uma ponte entre a parte 1 e a parte 11 que se usa a expressão do numeral 'quatro' não em português como
do texto, pois a última sentença da parte 1 (linha 6) está na primeira na sentença anterior, mas na língua Karitiana {otadnamyn yjpyoot}.
pessoa do plural, e informa que 'quando nós, de fato, recebemos uma Note que, em quatro linhas do texto, cinco recursos poéticos, foram
mulher, nós perfuramos o vespeiro', enquanto que a linha 7 retoma o usados, intercalada e repetidamente:
assunto na primeira pessoa do singular ('quanto a mim, eu não furei
muitos vespeiros'). Esta mudança de sujeito que marca um limite entre 11 . Atyldrt lpynpyfy adyky gop by'y
o conteúdo das duas partes do texto - o resumo e a orientação - se 'Logo depois do vespeiro, não pode comer'
efetiva através do recurso linguístico de mudança de tópico (informa-
12. M)'Jymp yJkat napynpyt'yt gop
ção pressuposta, no caso o sujeito), identificado no fim da sentença
Três dias depois do vespeiro a gente já pode comer'
pelo número 4 . Este fenômeno linguístico, como vimos, consiste na
repetição do sujeito (nome ou pronome), que costuma ocorrer em posi- 13. A sara'ldna pltat oplpyt:yty seakaty
ção pré-verbal (SVO) em sentenças transitivas, após o verbo (SVSO), 'Isso é muito ruim, pela fome e pela sede'
objeto (SVOS), algum adjunto ou no final da sentença.
No caso da sentença 7, o sujeito de primeira pessoa do singu- 14. Neng nenglt, lpynhadnl lpynorooronl
'Deitado, não pode haver nenhuma conversa, não pode haver nenhum barulho'
lar {yn} que ocorre no início da sentença, foi repetido após o verbo
{i-'obm} 'furar' modificado pelo quantificador adverbial {pita-dni} 'não 15. Pongyp napyntarakat
muito': {i-'obm pita-dni} 'não furar muito'. A tradução dessa mudança 'Deve-se caminhar em direção à serenidade'
de tópico implica em uma mudança no tópico do discurso (de primei-
ra pessoa do plural para a primeira pessoa do singular)- "já quanto a 16. Pongyp yJakat tyklr1, napysemem osllp
mim, eu não furei muitos vespeiros". Por se tratar de uma sentença 'Quando estamos serenos, o espírito do Osiip atua
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Da sentença 11 em diante são apresentadas as proibições ali- argumento que tem Caso absolutivo de primeira e segunda pessoas
mentares e comportamentais pelas quais passa o iniciado em seu pe- ({y-} e {a-} no singular e {yj-} e {aj-} o plural) , respectivamente. O uso
ríodo de recuperação física , mental e espiritual após furar o vespeiro e ou não da sílaba {ka} tem a ver com o acento da raiz verbal: {naka-}
ser picado pelas vespas. O tipo sentenciai mais usado é a modalida- e {taka-} ocorrem com raízes iniciadas por sílaba tônica e {na-} e {ta-}
de deôntica (Ferreira 2016, Storto 2018), marcada pelo prefixo verbal ocorrem em raízes iniciadas por sílabas átonas. Vimos a forma {naka-}
{pyn-}, que pode ser traduzido para o português com o modal 'pode' ou usada na parte 1do texto com verbos cuja acento caia na primeira sí-
'deve'. As linhas em que a modalidade deôntica ocorre são 11 {(i-pyn laba, e, agora , na parte li, temos {na-} em 16 e 17 porque o verbo não
-pyt'y} 'não pode comer'), 12 ({na-pyn-pyt'y-t} 'pode comer')), 14 ({i-pyn tem acento na primeira sílaba. Nos trechos da narrativa selecionados
-hadn-i} 'não pode falar'; {i-pyn-orooro-ni} 'não pode fazer barulho'), e nessa seção do capítulo não há nenhuma ocorrência dos alomorfes
15 ({na-pyn-tarakat} 'deve caminhar'). {ta-} e {taka-} do prefixo de modo declarativo.
De 14 a 17 temos, como na parte 1, o uso do presente gnómico As sentenças 18 a 23 continuam a apresentar, dessa vez em
para introduzir verdades eternas, regras rituais que são sempre válidas maior detalhe, as restrições alimentares por que passa o menino ini-
e devem ser obedecidas para que o ritual funcione. ciado no ritual. Neste trecho, dois recursos poéticos são usados: uma
sentença de cópula em 19 e paralelismos em 20-22.
As linhas 13, 16 e 17 não são deônticas pois não falam de obri-
gações e deveres. Na linha 13 o verbo deadjetival 'ser. ruim' avalia o A construção clivada de cópula ocorre, novamente, como visto
que foi dito antes, que não se pode comer nem beber após as pica- na linha 3 na parte 1, sem o uso explícito do verbo copular {na-aka-t},
das das vespas, e que 'isso é ruim por causa da fome e da sede'. As pois no tempo não-futuro (presente ou passado) se pode omitir a có-
sentenças 16 e 17 são declarativas e falam sobre a necessidade de pula. Sabemos que se trata de uma sentença de cópula em 19 por
se estar sereno para que a magia do ritual Osiip funcione e o iniciado causa do seu significado 'mingau forte, sementes de milho assadas,
se torne um bom caçador. Na sentença 16, traduzida como 'quando espigas de milho assadas com as folhas, milho assado na espiga é o
estamos serenos, o espírito do Osiipo atua' temos o morfema de modo que nós comemos' e também pela estrutura sentenciai, que apresenta
declarativo {na-} usado com o verbo {pysemem} da oração matriz, que um sujeito e um predicado oracional não verbal marcado pelo adver-
deriva do nome 'espírito'. Literalmente, o sentido da oração principal bializador {-t}:
[{napysemem} {Osiip}] seria 'O Osiip espiualiza', que traduzimos como
2. Sojsara, jom hopo, jom pyka, jom porojo
'o espírito do Osiip atua', já que não é possível transformar o nome 'es-
mingau sementes.assadas espiga.assada.com.folha espiga.assada
pírito' em um verbo em português. Uma outra tradução possível seria (0-na-aka-t) (yjxa ti'yJ-t
'a magia do Osiip atua', mas nesta tradução perderíamos a informação 3-decl-copula-nfut nós comida-advzr •
de que o verbo deriva do nome 'espírito', que parece crucial para o
entendimento do ritual. A sentença 17 descreve a consequência da
'Mingau forte, sementes de milho assadas, espigas de milho as-
magia do ritual, que é transformar meninos em bons caçadores: 'nós
sadas corri as folhas, milho assado na espiga são a comida da gente'
matamos caça'.
O sujeito da cópula é o sintagma nominal complexo, formado
Uma explicação se faz necessária sobre a morfologia do modo
pela conjunção de todas as coisas que são comidas na ocasião: 'min-
declarativo. Note que os quatro alomorfes (variante do morfema) do
gau forte, sementes de milho assadas, espigas de milho assadas com
modo declarativo, previsíveis de acordo com critérios fonológicos e as folhas, milho assado na espiga'. O predicado é a oração [{yjxa}
morfológicos, são {na-} e {naka-}, {ta-} e {taka-}. Os alomorfes {na(ka)-}
{ti'yt}] 'comida da gente'. O sufixo {-t}, rotulado como 'adverbializador'
são usados quando a concordância verbal se dá com o argumento de
marca a oração complemento da cópula.
terceira pessoa de Caso absolutivo, que é nulo (o prefixo {0-}), e os
alomorfes {ta(ka)-} são usados quando a concordância se faz com o
parte li do texto.
32. Taso osllkl loky padnl keerep hlm 3
A complicação, que se inicia na parte Ili, linha 24, descreve o 'Os homens sem o osiip não matavam caça antigamente'
primeiro ritual de iniciação pelo qual o narrador passou. Nessa seção,
36. "lm'y osllpo" naka'at ta'At ynty y'lt 28. Osllp naakat lse'at 2
"'Faça o Osiipo", O meu pai dizia para mim' 'O ritual Osiip é bom'
37. "An lhot oky asooj Osiip an nam'ykl tyklri" 29. Kydnym laoky hlm 3
'Você não matará para a sua esposa se você não fizer o Osiip' 'A caça não é morta de graça'
39. Atyklri yn nakam'yt ta'At Osllp yn 4 31. Kydnym la'y keerep hlm 3
'Quanto a mim, eu fiz o Osiip por isso' 'A caça não era comida de graça antigamente'
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a mesma estrutura usada nos paralelismos discutidos nas linhas 20- Yn (na'a) ty(kaki) (myno) (8 cr)
22. Literalmente o que a sentença 29 significa é 'não se mata caça de 'Eu estou carregando, estou'
graça'; o morfema de negação {padni} é omitido nessa sentença e nas (Piko)mo se(repam)o (7 cr) (oky)(wyndok) (oky)(wyndok) (8 cr)
seguintes, como foi em algumas sentenças em 20-22. O paradigma 'O cesto de macaco está cheio, está cheio'
29-31 chama a atenção para o fato de que só come quem mata (29 e ('õro)mo se(repam)o (7 cr) (oky)(wyndok) (oky)(wyndok) (8 cr)
30), e que isso era verdade antigamente (30 e 31 ), numa referência ao 'O cesto de macaco aranha está cheio, está cheio'
fato de que hoje em dia isso não é mais verdade, já que se pode ter um
Yn (na'a) ty(kakl) (myno) (8 cr)
emprego ou aposentadoria, ou bolsa para comprar comida. 2 'Eu estou carregando, estou'
Em 32-33 o paralelismo envolve o paradigma introduzido pela
Podemos observar que pés métricos binários iâmbicos (cuja sí-
sentença complexa '(os homens sem Osiip] não matavam caça antiga-
laba forte é a segunda, em negrito) formam versos de 7 e 8 sílabas,
mente' que é transformada em 'não eram presentedos com caça anti-
que se alternam no seguinte padrão:
gamente (os homens que não matassem]'. Com essas comparações,
o narrador reafirma que para se matar caça nos velhos tempos era 7 8
necessário passar pelo ritual do Osiip e que isso era possível porque a 8
7 8
mágica do ritual presenteava os iniciados com o dom de matar.
7 8
Depois deste paralelismo, temos a finalização do trecho de justi- 8
ficativa do ritual nas sentenças 34-39, quando o narrador reafirma que
essas são as razões pelas quais o ritual era realizado antigamente, re- Note que há sílabas extramétricas, que ficam fora da formação
lembrando o ouvinte de que o pai dele o incentivou a passar pelo Osiip dos pés métricos binários. Mesmo o padrão de extrametricalidade é
para ser um bom caçador a fim de poder se casar. recorrente: Nos dois primeiros versos e no último, a primeira sílaba é
Na linha 39 uma mudança de tópico do discurso é usada (mar- extramétrica, e nos dois versos centrais a última sílaba da primeira e
cada pelo número 4) e inicia-se um trecho da parte Ili da narrativa em segunda palavra é que ficam fora da formação do pé métrico.
que o narrador fala em sentenças declarativas na primeira pessoa do Encerramos aqui nossa análise da aplicação de seis recursos
singular, oferecendo detalhes sobre o que ele fez no seu primeiro ritual poéticos na narrativa ritual Karitiana intitulada Osiip. Passemos agora
do Osiip: as plantas a serem usadas no ritual como remédio para as à análise da arte verbal na língua Kuikuro (família Karib).
picadas de vespa, as restrições alimentares e comportamentais, o ato
de perfurar o vespeiro, e a orientação que o pai dá ao iniciado sobre a
caça a ser abatida (que segue uma hierarquia) os banhos de água de
A arte verbal em Kvikvro
cipó e a cronologia de todas as partes do ritual.
Passemos, finalmente, ao último recurso linguístico a ser identi-
ficado no texto Osiip: métrica em música. Note o número de sílabas (o) Nessa seção, apresentamos a análise de Franchetto (2003a)
em cada pé métrico (parêntese): sobre narrativas Kuikuro, que podem fazer parte de rituais menciona-
dos no capítulo 2.
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7) kukakihake akinhaki tirado da abertura da narrativa intitulada {Jamugikumalu}, "a origem do
kuk-aki-ha-ke akinha-ki Jamugikumalu", também conhecida pelo título {itão kwegü etinkipügü}
1incl-raiz-fazer-imp história-inst
que Franchetto (2003b) traduz para o português como "a metamorfose
'Me conta uma história!'
das hiper-mulheres":
Além disso, contar uma história pode ser entendido como 'mos-
10) tumuguko ipolü ihekeni, Magija heke
trar algo distante', O que fica claro quando (8) é pronunciado com um Magija heke
t-umugu-ko ipo-lü i-heke-ni,
gesto de apontar para longe: refl-filhos-pl furar-pont 3-erg-pl Magija erg
'Eles furaram as orelhas de seus próprios filhos, foi Magija'
8) akinhá ihatagü iheke, akinhá ato heke
11) ipolüha leha ihekeni leha
akinhá iha-tagü i-heke akinhá ato heke
ipo-lü-há leha i-heke-ni leha
.História mostrar-cont 3-erg história mestre
furar-pont asp 3-erg-pl asp
'Ele mostra uma história, o mestre das histórias'
'Eles furaram as orelhas'
E, finalmente, contar uma história pode ser entendido como 'dar' Franchetto (2003) esclarece que a repetição elementar da arte
Kuikuro está exemplificada em (1 O) e (11 ), quando se tem um enuncia-
9) akinhá tundagü iheke, akinhá ato heke do repetido de maneira quase linear, porém não como uma cópia exata
Akinhá tuN-tagü i-heke akinhá ato heke do que foi dito anteriormente. Note que em (11) a repetição do verbo
história dar-cont 3-erg história mestre e do sujeito do verbo transitivo, que recebe Caso ergativo 'eles' se dá
'Ele dá uma história, o mestre das histórias'
com a adição do morfema aspectual {leha} após cada constituinte: Ver-
bo leha e Sujeito leha.
Segundo Franchetto, a repetição é um traço fundamental da arte Também há algo interessante sobre a ordem dos constituintes
verbal Kuikuro. Os "mestres das histórias" Kuikuro utilizam paralelis-
das sentenças em narrativas Kuikuro, que podemos exemplificar com-
mos estruturais e prosódicos para criar efeitos poéticos. Três tipos de
parando (10) com (12). Em (10) um exemplo de ordem não marca-
exemplos são fornecidos: (1) o gênero discursivo "histórias verdadei-
da ou default é OVA, em que A é o sujeito agente do verbo transitivo
ras", a maior parte tirada da narrativa sobre as hiper-mulheres; (2) os
ocorrendo em posição de tópico, ou velha informação, mas em (12)
macroparalelismos existentes nas histórias em nível de conteúdo nar-
temosAOV, em que o elemento A- as esposas -é nova informação na
rativo, por exemplo, as oposições e complementaridades entre o mas-
narrativa e por isso ganha uma posição de foco, na periferia esquerda
culino e o feminino; (3) os microparalelismos existentes nas histórias
da sentença:
em nível de forma linguística.
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um passado mítico, transformando-se em hiper-mulheres, mulheres- Além deste paralelismo, há uma repetição do verbo 'metamor-
monstro que mataram seus filhos homens, ficando apenas com as fi- fosear' nos três primeiros versos ou linhas (13-15), sendo que em (15)
lhas e mudaram para o fim do mundo e lá fizeram uma aldeia só de há uma mudança do aspecto continuativo para o pontual. Nos versos
mulheres, onde as mulheres podem fazer tudo o que não podem no (16-17) há, ainda, a repetição do advérbio 'aqui'.
mundo real. Dentro desta narrativa ocorre também a metamorfose dos
O macroparalelismo ocorre quando um bloco se repete dentro
homens em queixadas (porcos do mato), descrita a seguir:
da narrativa. Por exemplo, o bloco analisado de (13)-(18) se repete,
em termos de conteúdo, nas 4 linhas a seguir ((19)-(22)). Franchetto
13) etlnkltako leha egei leha (Jam.Ag.: Ili, b, 24-29) (2003a) nos informa que a localização desse bloco no texto original
etinki-ta-ko leha ege-i leha
ocupa as linhas 24 a 29 e o bloco a seguir corresponde às linhas 54 a
metamorfosear-cont-pl asp deit-cop asp
'Eles se metamorfoseavam, lá longe, enfim'
57 da transcrição original da mesma narrativa.
14) etlnkltako leha, heu kwegüi, 19) lnte leha, lsaenl leha, ipuguko leha atai (Jam.Ag.: Ili, e, 54-57)
etinki-ta-ko leha, heu kwegü-i, inte leha i-tsae-ni leha i-pugu-ko asp atai
metamorfosear-cont-pl asp porco hiper-cop aqui asp 3-sobre-pl asp 3-pelo-pl asp temp
'Eles se metamorfoseavam em queixadas' 'Quando, aqui, enfim, sobre eles, seus pelos'
17) lnte leha isigüko ihatigagü leha (mbü] 22) Heu kwegü leha
inte leha is-igü-ko ihati-gagü leha [mbü] heu kwegü leha
aqui asp 3-dente-pl sair-cont asp
porco enfim
'Aqui, enfim, seus dentes saíram'
'Queixadas enfim'
170 EDITORA MERCADO DE LETRAS LÍNGUAS INDÍGENAS: TRADIÇÃO, UNIVERSAIS E DIVERSIDADE 171
Microparalelismos efeito do belo. A segunda semelhança é que os contadores de histórias
são sempre reconhecidos na comunidade de fala como mestres ou
Franchetto (2003a) oferece o trecho a seguir como exemplo de especialistas na arte verbal, e, por esta razão, argumentamos que o
um microparalelismo, definido como um paralelismo em que oposições discurso especializado deve ser considerado parte da tradição literária
entre relações gramaticais (Sujeito de verbo transitivo, sujeito de ver- das línguas em questão.
bo intransitivo, objeto direto, objeto indireto) são exploradas. Na linha
(23), temos a ordem AOV, em que o objeto é incorporado no verbo e o
sujeito inicia a sentença, o que indica que ele foi focalizado, marcado Exercícios do capítulo 6
como um novo participante no discurso. Já na segunda linha temos
um objeto oracional e uma sentença na ordem OVA. A interpretação
Questão 1 O Karirtiana é uma língua em que há muitas diferenças
de Franchetto (2003a) é que a primeira oração tem o verbo intransi-
possíveis na ordem dos constituintes da sentença. Des-
tivizado, e a construção resultante é de-ergativizada, ou seja, perde
creva as diferenças no verbo em negrito nos dois pares de
o argumento ergativo, que se torna absolutivo por ser agora o sujeito
sentenças e explique a razão provável desses padrões.
de um verbo intransitivo. O paralelismo entre formas intransitivizadas
e formas transitivas é usado frequentemente em Kuikuro como efeito
(1a) Taso 0-na-oky-t boroja
poético dentro dos blocos da narrativa (microparalelismo).
homem 3-DECL-NFUT cobra
"O homem matou a cobra.
23) Ahasa ngengepOgD
Ahasa ng-enge-pügü (1b) [Boroja taso oky tykiri] 0-naka-hyryp- 0 õwã
Ahasa mo-comer-perf cobra homem matar PERF 3-DECL-NFUT criança
'O que Ahasa tinha comido' "Quando o homem matou a cobra, a criança chorou."
172 EDITORA MERCADO DE LETRAS LÍNGUAS INDÍGENAS: TRADIÇÃO, UNIVERSAIS E DIVERSIDADE 173