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Mapas no Tratado de Marinharia

achado por João de Lisboa em 1514


Alvor-Silves da Maia1

(Dezembro de 2010)

INTRODUÇÃO

Não querendo falar aqui sobre a enigmática existência de mapas, sejam eles egípcios,
sumérios, gregos, romanos, etc… fica claro que só temos acesso a uns poucos mapas
do final da Idade Média (catalães, italianos), e a verdadeira produção só é começada a
partir de 1500. Há alguns mapas que merecem uma atenção e um relevo especial, mas
que pouco têm de tão informativo e surpreendente quanto o conjunto de mapas
incluso no Tratado de Marinharia (ou Livro de Marinharia) de João de Lisboa, de
1514. Desde a representação do Estreito de Magalhães, às quinas nos castelos em
território Inca, ou numa bandeira em Jerusalém, tudo isto deveria merecer a máxima
atenção. No entanto, a obra é quase desconhecida, relegada para terceiro plano, e
conheço apenas um trabalho [4] de Luís de Albuquerque no final do Séc. XX, sobre
uma parte escrita inclusa – que é o Tratado da Agulha de Marear.

Não vamos falar aqui dessa parte escrita, a que parecem faltar muitas páginas. É
demasiado evidente o que está nos mapas, e são esses que prendem a nossa atenção
imediata.

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DATAÇÃO

Na página 26 do Tratado de Marinharia surge a primeira indicação sobre a sua data.

Aqui se começa o tratado da agulha de marear achado por João de Lisboa o ano
de 1514 - pelo que se pode saber em qualquer parte que homem estiver quanto
é arredado do meridiano verdadeiro pelo variar das agulhas.

O ano de 1514 é aqui referido e serve como datação para o Tratado da Agulha de
Marear. Não é preciso ser perito em caligrafia para perceber que há duas formas, mas
pelo seu uso ao longo do texto percebe-se que terá havido alguma simultaneidade
temporal.

A caligrafia para os títulos dos capítulos é diferente, mas alterna com uma caligrafia
corrida, de forma natural. Uma excepção é esta inclusão da datação, fora das margens
da página. Ou o próprio autor fazia uso de duas formas, o que nos parece difícil, ou
houve duas pessoas a escrever o texto, talvez pai e filho, ou mestre e aluno.

A menção “achado por João de Lixboa” deve ser entendida como “encontrado por João
de Lisboa”. O corrente sentido popular do verbo achar (no sentido “considerar”,
“julgar”) não faz aqui qualquer sentido. É dito claramente que João de Lisboa
encontrou um tratado anterior a 1514, que dá conta.

Os problemas de datação continuam com os mapas inclusos. Essas dificuldades são


brevemente relatadas na Portugalia Monumenta Cartographica, [2]. Aí estabelece-se
como data limite superior o ano de 1560, já que as referências ao Estreito de
Magalhães, ao Japão, ou aos bancos de D. João de Castro, obrigariam a uma datação
posterior a 1540.

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A análise feita na Portugalia Monumenta Cartographica parece-nos feita de forma
propositadamente pouco detalhada. Não são mencionados problemas nos mapas,
inconsistentes com a teoria oficial, que colocam bandeiras portuguesas em território
Inca (Perú), em Jerusalém, etc. Seria talvez mais importante publicar os mapas do que
entrar em polémicas que poderiam comprometer a publicação da obra em 1960.

MAPA DO GLOBO

(página 104)

O mapa do globo, em representação polar, é talvez a peça mais fascinante do conjunto


de mapas no Tratado de Marinharia. Encontramos uma representação que em traços
gerais não é muito diferente dos mapas actuais. Mais, é globalmente superior às
representações encontradas posteriormente noutros mapas até 1770.

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Em vários aspectos este será talvez o melhor mapa-mundi de que há registo durante os
250 anos seguintes à data da sua publicação.

Analisemos a disposição das bandeiras no hemisfério português de Tordesilhas

Reparamos que não há qualquer bandeira na península arábica. Isso só seria possível
antes das conquistas levadas a cabo por Afonso de Albuquerque, nomeadamente de
Ormuz, e dá-nos uma indicação clara para ser anterior a 1515. Há uma bandeira na
China, o que se ajusta aos primeiros contactos em 1513, e também bandeiras em Java
e Timor (1512). Não há qualquer bandeira no Japão. As bandeiras seguem a costa
africana, indicando as possessões portuguesas, e encontram-se ainda na Índia.

Uma análise desta parte leva-nos a uma consistência com a datação de 1514.

Surge agora o problema oficial, com as bandeiras colocadas na parte americana

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Vemos que praticamente toda a costa do continente americano está coberta com
bandeiras. Perante a datação de 1514, estamos no ano seguinte à chegada de Balboa à
costa do Oceano Pacífico. Portanto, nenhuma das bandeiras na costa do Pacífico se
pode referir a presença espanhola (nem a nenhuma outra).

A diferença entre bandeiras azuis e vermelhas tem apenas a ver com a distinção entre
as bandeiras de quinas (reais, azuis), e as bandeiras com a cruz de Cristo (vermelhas).

A parte da costa americana que não tem bandeiras, é exactamente a que já se


encontraria sob reserva espanhola – uma parte no golfo do México (Cortés
desembarca em 1519), e uma parte na costa venezuelana (onde Colombo teria
desembarcado em 1502).

Este é na nossa opinião o mapa de 1514 que não sofreu alterações posteriores, tal
como o mapa da Europa, que mostra uma situação política anterior a Carlos V,
fazendo notar uma bandeira de Castela em Sevilha (Juana I, mas sob influência do pai
Fernando), e uma bandeira francesa com o arminho bretão, justificado apenas para o
reinado com Ana da Bretanha (que morre em 1514).

(página 81)

Com os outros mapas notam-se algumas inclusões, que “justificariam” a datação


posterior do conjunto, e que passamos a explicar.

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COLA DO DRAGÃO

António Galvão (cf. [3]) faz referência ao prévio conhecimento do Estreito de


Magalhães, que teria sido chamado Cola do Dragão (i.e. Cauda do Dragão).

No ano de 1428 diz que foi o Infante D. Pedro a Inglaterra, França, Alemanha,
à Casa Santa, e a outras daquela banda, tornou por Itália, esteve em Roma, e
Veneza, trouxe de lá um Mapamundo que tinha todo o âmbito da terra, e o
Estreito de Magalhães se chamava "Cola do Dragão", o Cabo de Boa Esperança:
"Fronteira de África" (…)

Portanto, não é novidade que poderia haver um prévio conhecimento do Estreito,


muito antes de Magalhães ter efectuado a sua viagem.

No mapa do globo não encontramos referência ao “Estreito de Magalhães”, porém um


destaque é dado ao Cabo da Boa Esperança. Situação inversa é encontrada nos mapas
de pormenor. Aí não encontramos destaque para o Cabo da Boa Esperança, mas um
grande destaque é dado ao “Estreito dos Magalhãis”:

(página 72)

Trata-se de uma inclusão posterior facilmente exequível. Acresce que, à saída do


Estreito, encontramos uma outra referência a vermelho que ultrapassa os limites do
mapa, notando-se a inclusão limitada pelo espaço dizendo “estreito de fernão
magalhãis ”. Tudo indica tratar-se de inclusão posterior, a que acresce a designação
portuguesa “porto de são Julião”, entre outros detalhes.

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COSTA DO PERU

(página 68)

No mapa de detalhe sobre a costa do Peru, vemos então castelos com bandeiras
nacionais (as cinco quinas são indiscutíveis), e ainda uma possível bandeira islâmica.
Não havendo qualquer registo de presença portuguesa nestas paragens, a execução é
anterior à conquista castelhana de Pizarro, ou seja, anterior a 1535. Há uma mistura
de nomes portugueses e castelhanos, resultado de possíveis inclusões posteriores de
nomes, adaptados à conquista em curso. É de suspeitar que as inclusões sejam
posteriores a Balboa e a Cortés, anteriores à conquista de Francisco Pizarro.

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TERRA NOVA

Outro caso onde se poderia colocar em causa da datação do conjunto, relaciona-se


com um mapa da Terra Nova e Labrador, onde se pode ler o nome “Estreito do
Franceses”. Este nome poderia ser antigo, relacionado com viagens bretãs, mas pode
também ser relacionado com a viagem de Jacques Cartier, sugerindo data posterior a
1535. No entanto, mesmo aqui, parece-nos notória a inclusão de nomes, pela própria
necessidade em cortar a palavra “franceses” para adaptar ao espaço existente.

(página 66)

Uma das poucas designações que referem a presença francesa é a de “c. dos bretões”,
ou seja Cap Breton (que curiosamente, sob domínio francês, foi chamada Île Royale). O
frequente aparecimento do arminho bretão nos mapas de Reinel, na zona de França,
faz supor um eventual entendimento com os bretões na exploração da zona da Nova
Escócia e Terra Nova.

JERUSALÉM

Num dos mapas aparece de forma surpreendente uma bandeira azul com as 5 quinas
em Jerusalém. Não é um facto menor… todas as Cruzadas tiveram como propósito a
reconquista da Terra Santa, por isso não seria ligeiramente que alguém colocaria uma
bandeira portuguesa em Jerusalém, perdida para Saladino em 1187. A terceira
cruzada, com Ricardo Coração de Leão, e todo o esforço templário durante vários
séculos tinha esse propósito.

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De que forma isto faz sentido? Como tal facto passaria despercebido na História?

(página 94)

A bandeira não é exactamente igual às restantes bandeiras com 5 quinas. São


conhecidos os relatos de Afonso de Albuquerque no sentido de recuperar Jerusalém,
havendo referência a uma possível troca com Meca (que após a conquista do Suez
estava à mercê dos portugueses). A cidade estava sob controlo Mameluco, com capital
no Cairo, e a esse império já o vice-rei Francisco de Almeida tinha infligido uma
pesada derrota naval em Chaúl. Afonso de Albuquerque teria pedido autorização ao
rei, mas ao invés foi imediatamente substituído no cargo de vice-rei por Lopo Soares
de Albegaria, tendo morrido na viagem de retorno.

A partir desse momento, e com a queda do domínio Mameluco pelo império Otomano,
o desígnio de conquistar Jerusalém parece ter deixado de figurar como prioridade nas
conquistas portuguesas, e em geral, deixou de figurar como objectivo principal,
mesmo no Séc. XIX, quando os ingleses possuíam um poder naval completo. A
incursão napoleónica chegou apenas a Jaffa, e não prosseguiu pela peste…

Referências:

• [1] “Livro de Marinharia, de João de Lisboa”. Arquivo da Torre do Tombo, Colecção nº166
(Referência PP/RR/CRT/166), 241 f.
• [2] Portugaliae Monumenta Cartographica – Armando Cortesão, Avelino Teixeira da Mota,
Imprensa Nacional da Casa da Moeda (1960), reedição de 1987.

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• [3] Tratado dos Descobrimentos Antigos e Modernos – António Galvão. Biblioteca Nacional de
Portugal. João de Barreira Impressor, 1563.
• [4] O “Tratado da Agulha de Marear” de João de Lisboa; reconstituição do seu texto, seguida de
versão francesa com anotações - Luís de Albuquerque. Revista da Universidade de Coimbra,
Vol. XXIX, Ano 1981, pág. 129-162.

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