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O Dicionário Kazar
(Edição Masculina)
Milorad Pavitch
Aqui jaz o leitor
Que jamais abrirá este livro.
Aqui, ele está morto para sempre.
OBSERVAÇÕES PRELIMINARES
À SEGUNDA EDIÇÃO
RECONSTITUÍDA E
AMPLIADA
O autor atual deste livro garante que o leitor não será condenado a morrer depois de tê-lo
lido, como foi o destino dos seus predecessores, em 1691, quando o Dicionário Kazar ainda
estava em sua primeira edição e quando o seu primeiro autor ainda vivia. A propósito dessa
primeira edição é necessário fornecer algumas explicações, mas, a fim de não se estender
inutilmente, o lexicógrafo propõe um acordo ao leitor: ele escreverá suas observações antes do
jantar, e o leitor as lerá depois das refeições. Assim, a fome impulsionará o escritor a ser breve e o
leitor, saciado, não achará a introdução demasiado longa.
•
Um repertório da literatura sobre os kazares foi publicado em Nova York (The Khazars, a Bibliography, 1939);
o russo M. I. Artamónov forneceu, em duas ocasiões, monografias sobre a história dos kazares (Leningrado,
1936 e 1962), e D. M. Dunlop escreveu a História dos Kazares Judeus (History of Jewish Kazars, Princeton,
1954).
islamismo e o cristianismo. Pouco tempo após a conversão, o reino dos kazares sucumbiu. O
kniaz Sviatoslav, um desses senhores russos da guerra, devorou-o, no século X, como se fosse
uma maçã, sem descer do seu cavalo. A capital dos kazares, que se encontrava na embocadura do
Volga, às margens do mar Cáspio, foi destruída em 943 pelos russos que a sitiaram durante oito
dias e oito noites, inteiros, sem dormir. Do mesmo modo, o Estado kazar foi aniquilado entre
965 e 970. As testemunhas contam que as sombras das casas da capital kazar subsistiram ainda
por muito tempo depois que as construções foram destruídas. Essas sombras flutuavam no vento
e sobre as águas do Volga. Segundo uma crônica russa do século XII, Oleg já usa o título de
arconte de Kazária, em 1083, mas, no século XII, um outro povo, os cúmanos, já se tinha
estabelecido no antigo território dos kazares. Os vestígios materiais da cultura kazar são muito
incompletos. Não foi descoberta nenhuma inscrição, pública ou privada, não foi encontrado
nenhum traço dos livros kazares dos quais fala Halevi@, nem da língua dos kazares, embora
Cirilog tenha anotado que rezavam em sua própria língua. A única construção descoberta, em
Suvar, no antigo território dos kazares, ao que parece não é kazar, mas búlgara. As pesquisas
efetuadas em Sarkil não deram resultado, não foi nem mesmo encontrado qualquer sinal da
fortaleza que Bizâncio, como sabemos, construíra no território a pedido dos kazares. Depois da
ruína do seu Estado, o nome dos kazares muito raramente é pronunciado. No século X, um
chefe húngaro convida-os a se instalarem em seu território. Em 1117, alguns kazares vão até
Kiev, ver o kniaz Vladímir, o Monômaco. Em 1309, em Presburgo, é recusado aos católicos o
direito de se casarem com kazares e, em 1346, o papa confirma esta interdição. Isto é
praticamente tudo.
O citado ato da conversão, que foi decisivo para o destino dos kazares, desenrolou-se da
seguinte maneira: o kaghan∇, o chefe kazar, como esclarecem as antigas crônicas, mandou buscar,
depois de ter tido um sonho, três filósofos vindos de diferentes lugares para interpretarem o seu
sonho. O assunto tinha importância para o Estado kazar, pois o kaghan decidira adotar, com
todo seu povo, a crença do sábio que interpretasse seu sonho da maneira mais plausível. Algumas
fontes afirmam que, no dia em que o kaghan tomou essa resolução, seus cabelos morreram em
sua cabeça e ele sabia disto, mas alguma coisa impelia-o a continuar. Na residência de verão do
kaghan encontraram-se, então, três delegados: um muçulmano, um judeu e um cristão − ou seja,
um dervixe, um rabino e um monge. O kaghan ofereceu uma faca de sal a cada um, e eles
começaram a polêmica. Os pontos de vista dos três sábios, o conflito entre eles a partir dos
dogmas das três religiões diferentes, os atores e a conclusão da “polêmica kazar” provocaram
grande curiosidade e suscitaram julgamentos contraditórios sobre o acontecimento e suas
conseqüências, os vencedores e os vencidos. Ao longo dos séculos, a polêmica kazar deu origem
a inúmeros debates nos meios hebraicos, cristãos e islâmicos, e isto perdura até os dias de hoje,
embora os kazares tenham desaparecido há muito tempo. O interesse pela questão kazar
renovou-se subitamente no século XVII, pois as infindáveis informações sobre o assunto foram
reunidas e publicadas na Borússia (Prússia), em 1691. Estudaram-se espécimes de moedas
tricornes, os nomes inscritos em antigos anéis, os motivos gravados em jarros de sal, a
correspondência diplomática, retratos de escritores tendo, ao fundo, desenhos de livros cujos
títulos foram atentamente transcritos; estudaram-se os relatórios dos espiões, os testamentos, as
vozes dos papagaios das margens do mar Negro, que se acreditava falarem a língua kazar
desaparecida, as pinturas com cenas musicais nas quais decifraram-se as notas inscritas nas
partituras, e até mesmo uma pele humana tatuada, sem contar os arquivos de origem bizantina,
judaica e árabe. Em resumo, foi utilizado tudo o que a imaginação de um homem do século XVII
podia domar e colocar a seu serviço. E tudo isso foi reunido nas páginas de um dicionário. A
explicação desse recrudescimento do interesse pela polêmica kazar, no século XVII, mil anos
após o evento, é dada por um cronista, em algumas frases enigmáticas: “Cada um passeia seu
pensamento como se passeia um macaco na coleira. Quando lês, tens sempre dois macacos
diante de ti: o teu e o de um outro. Ou, ainda pior, um macaco e uma hiena. Vê lá o que darás
para alimentar a um e a outro. Pois a hiena não come a mesma coisa que o macaco...”
De todo modo, o editor de um dicionário polonês, Ioannes Daubmannus@ (ou um seu
descendente com o mesmo nome), publicou em 1691 tudo que fora reunido sobre a questão
kazar, todos os textos policromados que, durante séculos, foram amontoados ou perdidos por
aqueles que, com a pluma no brinco da orelha, faziam de suas bocas um tinteiro. Essa publicação
tomou a forma de um dicionário sobre os kazares, intitulado Lexicon Cosri. De acordo com uma
fonte (cristã), o livro foi ditado ao editor por um monge chamado Teoktist NikólskiA, que
recolhera no campo de uma batalha entre os exércitos austríaco e turco manuscritos de origens
diferentes sobre os kazares e decorara-os. A edição de Daubmannus compreendia três
dicionários: um glossário separado de fontes islâmicas sobre a questão kazar, um alefbetário de
textos tirados dos manuscritos e tradições hebraicas, e um dicionário composto com base nas
fontes cristãs.
Essa edição de Daubmannus, o dicionário dos dicionários sobre o reino kazar, teve um
destino incomum.
Um dos quinhentos exemplares desse primeiro dicionário sobre os kazares foi impresso
por Daubmannus com tinta venenosa. Esse livro envenenado, protegido por uma fechadura de
ouro, era acompanhado de um exemplar de controle com uma fechadura de prata. Em 1692, a
Inquisição mandou destruir a edição de Daubmannus, só restando o exemplar envenenado e o da
fechadura de prata que o acompanhava. Estes escaparam da censura. Assim, os insubmissos e os
infiéis que ousavam ler o dicionário proibido expunham-se a um perigo mortal. Aquele que abria
o livro paralisava-se rapidamente, aguilhoado pelo seu próprio coração como se fosse por um
alfinete. O leitor morria, efetivamente, na nona página, ao ler as seguintes palavras: Verbum caro
factum est (O verbo se fez carne). O exemplar de controle permitia conhecer o momento da
chegada da morte, se fosse lido ao mesmo tempo em que se lia a obra envenenada. Nesse
exemplar de controle figurava a seguinte observação: “Quando acordardes sem sentir nenhuma
dor, sabereis que não estais mais entre os vivos”.
Os autos de um processo de sucessão, o da família Dorfmer, no século XVIII, provam
que o exemplar “de ouro” (envenenado) do dicionário era transmitido de geração em geração
nessa família prussiana: o primogênito herdava a metade do livro, e um quarto cabia a cada um
dos outros filhos, ou menos, se fossem mais numerosos. A cada parte do livro correspondia uma
parcela dos outros bens da herança Dorfmer: pomares, campos, prados, casas e lagos, ou gado.
Durante muito tempo, não se estabeleceu nenhuma relação entre a morte das pessoas e a leitura
do livro. Quando, um dia, o gado começou a morrer e sobreveio a seca, alguém disse aos
habitantes da casa que qualquer livro, assim como qualquer donzela, podia tornar-se Tmorina,
uma vampira, e que então seu espírito vagava no mundo empesteando e matando tudo ao seu
redor. Era preciso, portanto, enfiar na fechadura do livro uma pequena cruz de madeira, como as
que se põem na boca das donzelas metamorfoseadas em vampiras, para impedir o espírito de sair
e matar os habitantes da casa. Assim foi feito com o Dicionário Kazar: enfiou-se uma cruz em sua
fechadura, como numa boca. Mas o desastre tomou maiores proporções, e as pessoas da casa
começaram a sufocar enquanto dormiam e a morrer. Foram então procurar um padre: ele retirou
a cruz do livro e a hecatombe terminou. Ele lhes disse: “Cuidai no futuro de não enfiar uma cruz
no livro, quando o espírito estiver fora, pois o medo mortal que ele tem da cruz impede-o de
retornar. E ele causa devastação e mortes”. Desse modo, a fechadura dourada foi trancada e o
Dicionário Kazar ficou sem uso sobre a prateleira, durante décadas. Da estante onde se encontrava
o livro provinha, de noite, um ruído estranho que saía do dicionário. As anotações de um Diário
mantido naquele tempo, em Lvov, esclarecem que no dicionário de Daubmannus havia uma
ampulheta criada por um certo Nehama, conhecedor do Zohar e capaz de escrever e falar ao
mesmo tempo. Este Nehama afirmava, aliás, que reconhecera em sua própria mão o desenho da
consoante He (heh) de sua língua hebraica, e na letra Vav (Vay) sua alma masculina. A ampulheta
que incorporara ao livro era invisível, mas, num silêncio total, podia-se escutar a areia escorrendo,
durante a leitura. Quando toda a areia escorresse, era preciso virar a obra e continuar a lê-la no
sentido inverso, em direção ao começo, o que permitia descobrir seu significado secreto. Outras
anotações esclarecem, entretanto, que os rabinos não aprovavam a atenção que seu compatriota
dispensava ao Dicionário Kazar, e que o livro era freqüentemente objeto de ataques por parte dos
eruditos do mundo hebraico. Os rabinos não colocavam em dúvida a veracidade das fontes
hebraicas do dicionário, mas não concordavam com as alegações das outras fontes. Finalmente, é
preciso dizer que o Lexicon Cosri não teve melhor sorte na Espanha, onde, nos meios islâmicos
mouros, o exemplar “de prata” foi condenado a não ser lido durante oitocentos anos. Esse prazo
ainda não transcorreu, e a interdição continua em vigor. Isto pode ser explicado pelo fato de que,
naquela época, na Espanha, ainda havia famílias de origem kazar. Esses “últimos kazares” – foi
observado – tinham um estranho costume. Quando entravam em conflito com alguém,
precisavam, a todo custo, injuriá-lo e maldizê-lo enquanto dormia, cuidando para não despertá-lo
com os xingamentos e maldições, pois a maldição, dessa maneira agia de modo mais eficaz e
chegava mais depressa se o adversário não estivesse lúcido. Foi desse modo – assegura
Daubmannus – que as mulheres kazares amaldiçoaram Alexandre, o Grande. Isso é confirmado,
em certo sentido, pelo testemunho de Pseudocalístenes afirmando que os kazares figuram entre
os povos que foram dominados por Alexandre da Macedônia.
2. Composição do Dicionário
Não é mais possível saber, hoje, como era a edição de Daubmannus do Dicionário Kazar
(1691), pois os únicos exemplares restantes, o envenenado e o prateado (de controle), foram
igualmente destruídos, cada um em um extremo do mundo. De acordo com uma fonte, o
exemplar “de ouro” foi destruído de uma maneira indigna. Seu último proprietário era um ancião
da família Dorfmer, conhecido pelo dom que possuía de identificar uma boa espada pelo timbre
que ela emitia, como se fosse um sino. Jamais lia livros e dizia: “A luz deposita seus ovos nos
meus olhos, como a mosca deposita sua saliva numa ferida. Sabe-se o que pode sair disso...” O
ancião não suportava os alimentos gordurosos e, sem que sua família soubesse, mergulhava todos
os dias uma folha do Dicionário Kazar em seu prato de sopa, para que ela absorvesse a gordura, e
depois jogava fora a folha engordurada. Antes que sua manobra fosse descoberta, destruiu o
Lexicon Cosri. A mesma anotação afirma que o livro era ilustrado com gravuras que o ancião não
utilizava pois elas estragavam o gosto de sua sopa. Somente essas páginas ilustradas teriam sido
conservadas, e talvez fosse possível reencontrá-las hoje tanto quanto seria possível distinguir,
num caminho, a primeira pegada das outras que a seguiram. Supõe-se que um professor de
Arqueologia e Orientalística, um certo Doutor Isailo Sukg, possuía um exemplar ou uma cópia do
Dicionário Kazar, mas nada foi descoberto entre suas coisas, depois de sua morte. Dessa forma, só
nos restam fragmentos do dicionário editado por Daubmannus, assim como dos sonhos só nos
resta a poeira nos olhos.
De acordo com esses fragmentos, citados por aqueles que entraram em polêmica com o
autor, ou autores, do Dicionário Kazar, é evidente (como foi dito acima) que a edição de
Daubmannus era uma espécie de enciclopédia kazar, uma compilação das biografias ou
hagiografias de personagens que, de um modo ou outro, atravessaram o céu do reino kazar, como
um pardal voando por um dormitório. A vida dos santos e a de outros participantes na polêmica
kazar e as vidas daqueles que a relataram ou estudaram, através dos séculos, constituíam a matéria
do livro, onde tudo estava dividido em três partes.
Essa organização do dicionário de Daubmannus, subdividido em fontes hebraicas,
islâmicas e cristãs, sobre a conversão dos kazares, também é o princípio desta segunda edição. O
lexicógrafo tomou esta decisão, apesar das dificuldades inauditas decorrentes da falta de
documentos originais, depois de ter lido esta frase na enciclopédia kazar: “O sonho é um jardim
do diabo, e todos os sonhos deste mundo já foram há muito sonhados. Hoje, eles são apenas
trocados pela realidade igualmente gasta e usada, assim como as moedas e notas são trocadas de
mão em mão...” Em tal mundo, ou, melhor dizendo, num mundo que chegou a este estágio,
podia-se aceitar uma tal responsabilidade.
É preciso, porém, não esquecer uma coisa: o editor desta segunda versão do Dicionário
Kazar está inteiramente consciente de que o material utilizado por Daubmannus no século XVII
não é garantido, que ele é, em grande parte, baseado em lendas, que representa o mesmo que uma
refeição consumida em um sonho, e que está envolvido numa rede de ilusões de diferentes eras.
Seja como for, este é o material aqui submetido à apreciação do leitor, pois este dicionário não
procura apresentar um ponto de vista moderno sobre os kazares; é uma tentativa de reconstituir a
edição perdida de Daubmannus. Os conhecimentos atuais sobre os kazares só são utilizados
como complemento indispensável aos fragmentos da fonte desaparecida.
É necessário igualmente sublinhar que não se pôde, por razões justificáveis, retomar aqui
a ordem alfabética do dicionário de Daubmannus, que foi escrito em três alfabetos e três línguas
diferentes: grego, hebraico e árabe, e no qual as datas correspondiam aos três calendários. Aqui,
todas as datas estão calculadas de acordo com o mesmo calendário, e o texto de Daubmannus,
com seus verbetes, está traduzido das três línguas em uma única. É da mesma forma evidente que
na edição do século XVII as palavras eram ordenadas de modo diferente e, segundo a língua
empregada em cada um dos três dicionários (o hebreu, o árabe, o grego) o mesmo nome aparecia
em lugares distintos, pois as letras não ocupam a mesma posição em alfabetos diferentes, assim
também como não se folheiam os livros na mesma direção, e os atores principais no teatro não
entram todos pelo mesmo lado do palco. Este livro, aliás, não terá o mesmo aspecto em todas as
traduções, pois inevitavelmente a matéria do Dicionário Kazar será ordenada diferentemente em
cada língua e em cada alfabeto, tomando os verbetes outra posição, e os nomes uma outra
hierarquia. Assim, verbetes importantes, da edição de Daubmannus, como São Cirilog, Yehuda
Halevi@, ou Yuçuf Maçudi e ainda outros, estão aqui numa disposição diferente da que tiveram
na primeira edição do Dicionário Kazar. Este é, sem dúvida, o principal defeito desta nova versão,
porque só aquele que lê as diferentes partes de um livro na ordem correta pode criar o mundo de
novo. Contudo não era possível proceder de outro modo, pois a ordem alfabética de
Daubmannus não pôde ser conservada.
Todos esses defeitos, entretanto, não devem ser encarados como um grande prejuízo: o
leitor capaz de desvendar o significado secreto do livro, lendo-o na ordem certa, há muito deixou
esta terra, pois o público atual considera que a imaginação é competência exclusiva do escritor,
não sua. Sobretudo quando se trata de um dicionário. Para tal público, o livro não tem
necessidade de conter uma ampulheta que indique o momento em que é preciso inverter o
sentido da leitura; o leitor de hoje jamais modifica seu modo de ler.
Apesar de todas as dificuldades, este livro conservou algumas das qualidades da primeira
edição, a de Daubmannus. Ele pode ser lido de inúmeras maneiras, a exemplo do primeiro. É um
livro aberto, inclusive quando o fechamos. Também pode ser completado: houve um primeiro
lexicógrafo, aqui está agora o trabalho do segundo, e no futuro pode haver outros. É composto
de verbetes, senhas e registros, como os livros santos ou as palavras cruzadas, e para todos os
nomes ou noções marcadas aqui por uma cruz, um quarto crescente, ou pela estrela de Davi, ou
outro sinal, é conveniente buscar no livro correspondente deste dicionário uma informação mais
pormenorizada. Na prática, para as palavras marcadas com o sinal:
g
– é preciso procurar no Livro Vermelho deste dicionário (fontes cristãs sobre a questão
kazar)
Â
– é preciso procurar no Livro Verde deste dicionário (fontes islâmicas sobre a questão
kazar)
@
– é preciso procurar no Livro Amarelo deste dicionário (fontes hebraicas sobre a questão
kazar)
Os verbetes marcados com o sinal ∇ encontram-se nos três dicionários, e os marcados
com o sinal A no Apêndice I, no final do livro.
Desse modo, o leitor poderá utilizar esta obra da maneira que mais lhe agradar. Uns
procurarão uma palavra ou um nome, que lhes interesse no momento, como em qualquer
dicionário; outros entenderão este livro como um texto que deve ser lido do princípio ao fim, de
uma só vez, a fim de adquirir uma visão global sobre a questão kazar e sobre os personagens,
objetos e acontecimentos que a ela se relacionam. Pode-se folhear este livro da esquerda para a
direita, ou da direita para a esquerda, como era folheada a enciclopédia editada na Prússia (fontes
hebraicas e islâmicas). Os três livros deste dicionário – o amarelo, o vermelho e o verde – serão
lidos na ordem escolhida pelo leitor: pode começar, por exemplo, naquele em que o dicionário se
abrir. É por esta razão, sem dúvida, que na edição do século XVII os livros eram encadernados
separadamente, o que não seria possível aqui, por razões técnicas. O Dicionário Kazar pode ser lido
igualmente em diagonal, a fim de se obter um corte através dos três livros – islâmico, cristão e
hebraico. Neste caso, a leitura mais eficaz é a que procede por grupos de três: escolhem-se, por
exemplo, três verbetes seguidos do sinal ∇, que indica que figuram nos três livros, como é o caso
das palavras Ateh, kaghan, polêmica kazar ou kazares, ou então escolhem-se três personagens
diferentes que desempenharam o mesmo papel no histórico da questão kazar. Pode-se assim,
lendo-se três textos em cada um dos livros, ter uma idéia precisa sobre, por exemplo, os
participantes da polêmica kazar (Çangari, Cirilo, Ibn Kora), ou sobre os cronistas (Bekri, Metódio,
Halevi), ou sobre os pesquisadores que estudaram a questão kazar no século XVII (Cohen, Maçudi,
Bránkovitch) e no século XX (Suk, Muaviya, Schultz). Naturalmente, é preciso não esquecer, nesses
grupos de três, dos personagens que vieram dos três infernos: islâmico, hebraico e cristão
(Efrosínia Lukárevitch, Sevast, Akcháni). Foram eles os que percorreram o caminho mais longo para
chegar até este livro.
Quem usar este dicionário, entretanto, não se deve deixar desencorajar por essas
recomendações pormenorizadas. Pode, simplesmente, saltar esta introdução e ler como come:
servindo-se do olho direito como se fosse um garfo, do olho esquerdo como se fosse uma faca, e
jogando fora os ossos por sobre os ombros. É o bastante. Pode ser que lhe aconteça de se perder
entre as palavras deste livro, como aconteceu com Maçudi, um dos autores deste dicionário, que
se perdeu nos sonhos de outra pessoa sem poder encontrar o caminho de volta. Neste caso, não
há outra coisa a fazer senão começar do meio, em qualquer página, desbravando seu próprio
caminho. Atravessará o livro como uma floresta, de sinal em sinal, orientando-se pela estrela, pela
lua e pela cruz. De uma outra vez, vai lê-lo como o falcão que voa unicamente na quinta-feira, ou
então poderá virá-lo e revirá-lo como se fosse um “cubo mágico”. Aqui, nenhuma cronologia
será necessária, nem respeitada. Desse modo, cada leitor criará seu próprio livro, como numa
partida de dominó ou de baralho, recebendo deste dicionário, como de um espelho, tanto quanto
nele investir, pois – está escrito nesta enciclopédia – não se pode receber da verdade mais do que
nela se investiu. Além disso, não se é obrigado a ler este livro por inteiro; pode-se percorrer
metade dele, ou apenas uma parte, e ficar por aí, como acontece geralmente com os dicionários.
Mas quanto mais se pede, mais se recebe, e o descobridor perseverante terá em suas mãos todas
as ligações entre os termos deste dicionário. O resto ficará para os outros.
1. O autor aconselha ao leitor só pegar este livro em caso extremo. E mesmo que se contente em
apenas passar os olhos por ele, deve fazê-lo no dia em que seu espírito e sua vigilância estejam
mais agudas do que de hábito e que o leia como se fosse contrair a febre “saltadora”, essa doença
que salta um dia em cada dois e que só nos dá febre nos dias femininos da semana.
2. Imaginem dois homens que puxam uma corda em cada uma de suas extremidades, mantendo
desse modo um puma no meio. Se querem se aproximar simultaneamente um do outro, o puma
vai atacá-los, pois a corda não mais ficará esticada; é preciso, então, conservar a corda bem
estendida a fim de que o puma permaneça a igual distância de cada um deles. E por esta mesma
razão que o escritor e o leitor dificilmente chegam a se aproximar: seu pensamento comum fica
amarrado por um fio que cada um puxa para seu lado. Se perguntássemos ao puma, ou seja, ao
pensamento, como ele vê os outros dois, ele poderia dizer que duas presas comestíveis puxam,
em cada extremidade da corda, aquele que não vão poder comer.
3. Evita sempre, meu irmão, lisonjear demais e curvar a espinha em adulações diante daqueles que
levam a autoridade no anel e o poder no silvo da espada. Eles estão sempre cercados por uma
multidão de pessoas que os cortejam de má vontade, porque são obrigadas a agirem assim. São
constrangidas a isto porque têm uma abelha no chapéu ou óleo escondido sob a axila, foram
apanhadas em flagrante delito, e agora pagam por isto; a liberdade delas está por um fio, estão
dispostas a tudo. Os de cima, que tudo governam, sabem disso bem e aproveitam-se. Cuida
bastante, portanto, que não te confundam, a ti, o inocente, com os culpados. Isto sucederá se te
pões a lisonjeá-los demais ou a te curvares demais diante deles: eles vão classificar-te entre os
fora-da-lei e os criminosos, pensando que és daqueles que têm uma mancha no olho e que tudo
que fazes, não o fazes de boa vontade e com convicção, mas porque és obrigado, a fim de expiar
tua má ação. Esse tipo de homem não merece ser respeitado; dão-lhes chutes como aos cães, e
são levados a cometer atos que se assemelham aos que já cometeram...
4. No que vos diz respeito, a vós, os escritores, pensai sempre no seguinte: o leitor é um cavalo
de circo ao qual é preciso ensinar a esperar, após cada tarefa bem feita, um pedaço de açúcar
como recompensa. Se o pedaço de açúcar falta, nada sobra da lição. Quanto aos que julgam um
livro, os críticos literários, são como os maridos traídos: sempre os últimos a ficarem sabendo...
O LIVRO VERMELHO
FONTES CRISTÃS SOBRE A QUESTÃO KAZAR
ATEH∇ (século IX) – Princesa kazar, cuja participação no debate que precedeu a
conversão dos kazares foi decisiva. Seu nome significa entre os kazares “os quatro estados do
espírito”. De noite, usava em cada uma das pálpebras uma letra, como aquelas que se inscrevem
nas pálpebras dos cavalos antes da corrida. Essas letras pertenciam ao alfabeto kazar proibido,
cujas letras matam logo depois de lidas. As letras eram traçadas por cegos e, pela manhã, antes da
toalete, as criadas atendiam a princesa com os olhos fechados. Assim, ela ficava protegida de seus
inimigos durante o sono. Para os kazares, o sono era o momento em que o homem é mais
vulnerável. Ateh era muito bela e pia, as letras assentavam-lhe perfeitamente; sobre sua mesa
havia sempre sete espécies de sal, e cada vez que ela queria comer um pedaço de peixe
mergulhava antes seus dedos em um sal diferente. Era sua maneira de orar. Diz-se que possuía
sete rostos, como havia sete espécies de sal. Segundo uma lenda, todas as manhãs ela apanhava
um espelho e sentava-se para se retratar: um ou uma escrava, nunca duas vezes o mesmo, vinha
posar. E a cada manhã ela fazia de seu rosto um novo rosto, jamais visto anteriormente. De
acordo com outras lendas, Ateh absolutamente não era bela, mas compunha os traços de seu
rosto diante do espelho de tal modo que conseguia dar-lhe uma expressão que a tornava bela.
Para obter esta beleza fictícia, era preciso despender um imenso esforço físico, e a princesa, assim
que se encontrava sozinha, distendia-se, e sua beleza se espalhava como o sal. Seja como for, um
imperador bizantino do século IX chamou o célebre filósofo e patriarca Fotios de “rosto kazar”,
o que podia significar ou que este patriarca tinha um laço familiar com os kazares, ou que tinha
um ar hipócrita.
Segundo Daubmannus@, nenhuma das duas hipóteses. Pela expressão “rosto kazar”
entendia-se o dom, comum a todos os kazares, inclusive à princesa Ateh, de acordar a cada
manhã metamorfoseado, com um rosto novo e desconhecido, o que dificultava o
reconhecimento da pessoa mesmo entre os parentes mais próximos. Os viajantes observam que,
pelo contrário, todos os rostos kazares são idênticos e não se modificam nunca, donde a
dificuldade e os riscos de confusão. De todo modo, o resultado é o mesmo: o “rosto kazar” é um
rosto difícil de se lembrar. Isto permite explicar a lenda segundo a qual Ateh tinha um rosto
diferente para cada um dos participantes da polêmica kazar∇ na Corte do kaghan, ou mesmo que
existiam três princesas Ateh – uma para o missionário e caçador de sonhos muçulmano, uma
outra para o cristão e uma terceira para o judeu. Sua presença na Corte kazar não é, entretanto,
assinalada num manuscrito cristão da época, escrito em grego e traduzido para o eslavo (A vida de
Constantino de Salônica – São Cirilog). Mas, de acordo com o Dicionário Kazar, havia uma espécie de
culto à princesa Ateh nos meios monásticos gregos e eslavos em certa época. Isso se liga à crença
de que Ateh venceu, durante a polêmica, o teólogo judeu, e converteu-se ao cristianismo, em
companhia do kaghan∇, do qual não se sabe se era seu pai, seu esposo ou seu irmão. Duas
orações da princesa Ateh foram conservadas numa tradução grega, e não foram jamais
consagradas, mas Daubmannus as cita como o Pai Nosso e a Ave Maria da princesa kazar. Eis o
texto da primeira:
Sobre nosso barco, meu Pai, os marinheiros ativam-se como formigas; lavei-o hoje de manhã com meus
cabelos; eles sobem pelos mastros limpos e carregam as velas verdes para seus formigueiros, como tenras folhas de
vinha; o timoneiro tenta arrancar o leme e levantá-lo em suas costas como se fosse uma presa que lhe permitiria
comer e viver por toda uma semana; os mais fracos puxam o cordame salgado e guardam-no no ventre de nossa
casa flutuante. És o único, meu Pai, que não tens direito a uma fome semelhante. Enquanto eles devoram a
velocidade, é a ti, meu coração, tu que és meu único Pai, que pertence a parte mais rápida. Tu te alimentas do
vento despedaçado.
A segunda oração da princesa Ateh parece explicar a história de seu “rosto kazar”:
Aprendi de cor a vida de minha mãe e, todas as manhãs, durante uma hora, interpreto-a diante dos
espelhos, como no teatro. Isso continua dia após dia, há anos. Uso seus vestidos e seu leque e penteio-me como ela,
trançando meus cabelos em forma de touca de lã. Imito-a também na presença dos outros e até no leito do meu bem
amado. Nos momentos de paixão, não existo mais, sou ela apenas. Imito-a tão bem, então, que minha paixão
desaparece, deixando lugar à dela. Desse modo, ela antecipadamente me roubou todas as carícias do amor. Mas
não a censuro por isso, porque sei que também ela foi pilhada da mesma forma por sua mãe. Se alguém me
perguntasse agora de que serve tal fogo, responderia: tento colocar-me no mundo de novo, tornando-me, porém,
melhor...
Sabe-se que a princesa Ateh jamais conseguiu morrer. Existe, entretanto, uma inscrição
entalhada em uma faca adornada com pequenos furos que fala da sua morte. Esta lenda, que é
única e pouco confiável, é-nos transmitida por Daubmannus@, não como uma história da
verdadeira morte da princesa, mas de como esta morte poderia ter acontecido, se ela tivesse sido
capaz de morrer. Citar semelhante lenda não pode fazer mal, assim como o vinho não faz
embranquecer os cabelos. Aqui está ela:
Em certa primavera, a princesa Ateh disse: “Acostumei-me aos meus pensamentos como
aos meus vestidos. Têm sempre a mesma cintura e vejo-os por toda parte, até nas esquinas. O
pior é que me escondem o cruzamento dos caminhos”.
Para distraí-la, seus criados trouxeram-lhe, certo dia, dois espelhos. Não eram muito
diferentes dos outros espelhos kazares. Ambos eram feitos de sal polido, no entanto um era
rápido e o outro lento. O que o espelho rápido tirava do futuro ao refletir o mundo, o espelho
lento devolvia, pagando a dívida do primeiro, pois este atrasava em relação ao presente tanto
quanto avançava o outro. Quando trouxeram os espelhos para a princesa Ateh, ela ainda estava
no leito, e as letras inscritas nas suas pálpebras ainda não tinham sido apagadas. Ela viu-se nos
espelhos com os olhos fechados e morreu imediatamente. Sucumbiu entre duas batidas de
pálpebra, mais exatamente no momento em que leu pela primeira vez as letras mortais inscritas
em suas pálpebras. Ela piscara no momento precedente e no momento seguinte, e os espelhos
refletiram isso. Morreu, fulminada ao mesmo tempo pelas letras do passado e pelas do futuro.
Fontes: os dados sobre Avram Bránkovitch estão espalhados nos relatórios de informantes austríacos,
especialmente os que foram preparados para o príncipe de Baden e o general Veterani por Nikon Sevastg, um dos
dois escribas de Bránkovitch. Na sua crônica valáquia, assim como nas suas vastas crônicas sérvias, em
passagens que estão, infelizmente, perdidas hoje em dia, o conde Djordje Bránkovitch (1645-1711) fala um
pouco de seu primo Avram Bránkovitch. Os últimos dias de Bránkovitch foram descritos por seu criado e
mestre-de-armas Averkiye Skilag.
Pode-se estabelecer de maneira precisa a cronologia da vida e da atividade de Bránkovitch, recorrendo-se à
confissão que seu segundo escriba Teoktist NikólskiA dirigiu da Polônia ao patriarca de Pêtch; bem como a um
ícone que representava os milagres do profeta Elias, pois a cada cena da vida do profeta, Bránkovitch adaptava
os acontecimentos de sua própria vida, cujos detalhes anotava no verso da imagem.
negra é a prova de que são herdeiros do sangue masculino. O valor dos bens dos Bránkovitch é
estimado atualmente em 27.000 florins aproximadamente, e sua renda anual em mais de 1.500
florins. Se sua árvore genealógica não está estabelecida com certeza, sua riqueza, em
compensação, é segura e sólida, como a terra sobre a qual galopam a cavalo. E há mais de
duzentos anos, nem as menores moedas de ouro escaparam de seus cofres.
Avram Bránkovitch chegou manco em Constantinopla, com um sapato de calcanhar
reforçado, e desde então circula a história de como ele ficou aleijado. Quando tinha apenas sete
anos – diz-se –, os turcos entraram de surpresa na propriedade de seu pai, no momento em que o
menino passeava acompanhado por alguns domésticos. À vista dos turcos, todos os servidores
fugiram, com a exceção de um velho que permaneceu para proteger Avram. Com a ajuda de um
longo bastão, respondeu ao ataque dos cavaleiros turcos até que o chefe atirou nele uma setinha
que guardava entre os dentes, escondida num canudo. Atingido, o velho caiu, e Avram, que tinha
também um bastão na mão, pôs-se a bater com todas as suas forças nas botas do turco.
Entretanto todo o desespero e todo o ódio que pôs nos seus golpes não bastaram. O turco riu e
depois partiu em seu cavalo, ordenando que se queimasse a aldeia. Os anos passaram como
tartarugas. Avram Bránkovitch cresceu e o acontecimento foi esquecido, porque houve nesse
ínterim outros combates, e Bránkovitch montava agora à frente de seus soldados, levando uma
bandeira nas luvas e um canudo com uma setinha envenenada na boca. Certo dia, encontraram
no caminho um espião inimigo, acompanhado de seu jovem filho. Ambos viajavam com caras de
inocentes, armados somente de um bastão cada um. Um dos soldados reconheceu o velho e
atacou-o com seu cavalo, tentando capturá-lo. Mas o velho defendeu-se com seu bastão, tão bem
que os outros acreditaram que o bastão continha uma mensagem secreta. Então, Bránkovitch
lançou a setinha envenenada e o velho caiu morto. O menininho que o acompanhava pôs-se a
bater em Bránkovitch com seu bastão. Mal deveria ter uns sete anos e, apesar de toda a força do
seu ódio e seu amor não pôde, na verdade, machucar Bránkovitch. No entanto, Bránkovitch riu
e, no mesmo instante, tombou como partido por uma foice.
Depois deste golpe de bastão, ficou manco, deixou o ofício de soldado e seu parente, o
conde Djordje Bránkovitch, introduziu-o nos negócios diplomáticos em Edirna, em Varsóvia e
em Viena. Aqui, cm Constantinopla, Bránkovitch trabalha para o embaixador inglês, mora numa
torre espaçosa, entre a de Ioroz Kaléchi e a de Karatach, sobre o Bósforo. No primeiro andar
dessa torre, Bránkovitch mandou construir a metade exata da igreja dedicada à Mae Angelina, sua
trisavô, proclamada santa pela Igreja Ortodoxa, enquanto a outra metade se encontra na
Transilvânia, no país natal do pai de Bránkovitch.
Avram Bránkovitch é um homem cuja aparência atrai o olhar: tem o tórax largo como
uma jaula para grandes pássaros ou pequenas feras e, freqüentemente, é alvo do ataque de
assaltantes, pois uma canção popular diz que seus ossos são de ouro.
Ele chegou em Constantinopla montado num grande camelo que alimenta com peixe, e
sempre viaja desta maneira. O animal galopa tão suavemente sob o dono que não entorna o copo
de vinho preso no seu cabresto. Desde sua mais tenra infância Bránkovitch nunca dorme à noite,
ao contrário de todo homem que possui olhos, mas somente durante o dia; porém ninguém sabe
dizer desde quando ele encurtou os cabelos e trocou o dia pela noite. Mas mesmo à noite quando
está acordado, ele não pode ficar muito tempo parado no mesmo lugar, como se tivesse
empanzinado com lágrimas alheias. Por isso, preparam-lhe sempre dois pratos, duas cadeiras e
dois copos, para que possa saltar subitamente de seu assento e mudar de lugar no meio da
refeição. Da mesma forma, ele não se contenta durante muito tempo com uma única língua,
muda de língua como se muda de amante, falando alternadamente valáquio, húngaro ou turco, e
começou a aprender com um papagaio a língua kazar. Conta-se que fala espanhol em sonho, mas
este seu saber dissipa-se assim que acorda. Recentemente, num sonho, alguém lhe cantou uma
canção numa língua incompreensível. Ele a memorizou e tivemos que procurar alguém que
conhecesse as línguas ignoradas por Bránkovitch, para interpretar seu sonho. Assim,
encontramos um rabino e Bránkovitch lhe recitou os versos que tinha decorado. Não eram
muitos e diziam:
Tradução do poema:
Conhecendo o grande interesse que a Corte de Viena tem em relação aos projetos do
Senhor Bránkovitch, posso dizer que ele faz parte desses homens que cuidam do seu futuro com
uma atenção e zelo particulares, como se cultiva uma horta. Não é dos que atravessam a vida
correndo. Povoa seu futuro lentamente e com cuidado. Descobre-o aos poucos, como se
descobre uma terra desconhecida, primeiro desbrava-a, depois constrói no melhor sítio e, nesta
construção, finalmente, arranja demoradamente a disposição dos objetos. Esforça-se para que seu
futuro não diminua o passo ou o alento, mas cuida também para não se precipitar e ir tão
depressa que o seu futuro não possa mais passar adiante dele. É uma espécie de corrida. O mais
rápido perde. Neste momento, o futuro de Kyr Avram é como um jardim semeado, e ninguém,
salvo ele mesmo, sabe o que brotará nele. No entanto, uma história que é transmitida em voz
baixa nos permite, talvez, entrever o objetivo de Bránkovitch.
Grgur Bránkovitchg, filho mais velho de Kyr Avram Bránkovitch, pôs bem cedo o pé no
estribo e desembainhou sua espada recoberta de estrume de camelo. Suas roupas de rendas
manchadas de sangue eram regularmente enviadas de Djula, onde vivia com sua mãe, para
Constantinopla, para serem lavadas e passadas, sob a vigilância de seu pai, para secarem ao vento
perfumado do Bósforo e corarem sob o sol grego, antes de serem reenviadas com a primeira
caravana que partisse para Djula.
O segundo filho de Avram Bránkovitch, mais jovem, nesta época estava deitado, em
algum lugar em Bátchka, atrás de um fogareiro multicor, na forma de uma igreja, e sofria.
Contava-se que o diabo mijara nele, e que o rapaz se levantava de noite, saía de casa e limpava as
ruas. Pois, de noite, Mora, a vampira, sugava-lhe o sangue, mordia-lhe o calcanhar, e o leite
masculino corria dos seios dele. Enfiaram um garfo na porta, benzeram os seios do rapaz,
cuspindo sobre o polegar. Em vão! Finalmente, uma mulher aconselhou-o a dormir tendo ao seu
lado uma faca anteriormente mergulhada no vinagre e, assim que Mora chegasse, deveria
oferecer-lhe sal, antes de transpassá-la. E assim ele fez: quando Mora veio para sugá-lo, ele lhe
ofereceu sal e enfiou-lhe a faca no corpo; no mesmo instante, ouviu um grito que lhe recordou
uma voz familiar. Três dias mais tarde, de manhã, sua mãe chegou em Bátchka, vinda de Djula,
pediu-lhe sal do umbral da porta e tombou morta. Encontraram em seu corpo um ferimento à
faca e, ao lamberem a chaga, perceberam que era ácida... A partir desse dia, o rapaz ficou
aterrorizado, seus cabelos começaram a cair, e com cada fio (foi o que os curandeiros disseram a
Bránkovitch) ele perdia um ano de sua vida. Enviavam para Bránkovitch as mechas de cabelos de
seu filho embrulhadas na juta, ele as colava no espelho mole onde estava desenhado o rosto do
menino, e sabia desse modo quantos anos o filho ainda tinha a viver.
Quase todo o mundo ignorava, porém, que Kyr Avram tinha também um terceiro filho,
um filho adotivo, se assim se pode dizer. Este não tinha mãe; Bránkovitch tinha-o feito de lama e
lera o quadragésimo salmo para animá-lo e insuflar-lhe vida. Quando chegou às palavras: “Por
muito tempo esperei o Senhor e Ele se inclinou sobre mim. E ouviu meus gritos. E me retirou da
grota murmurante e da lama, e pousou meus pés sobre uma pedra e tornou meus passos
sólidos...”, os sinos da igreja de Daly tocaram três vezes, e o jovem mexeu-se, dizendo:
– Na primeira badalada do sino, eu estava na Índia; na segunda, em Leipzig; e na terceira
cheguei ao meu corpo...
Então, Bránkovitch fez um nó de Salomão nos cabelos dele, amarrou numa das mechas
uma colher feita de espinheiro, deu-lhe o nome de Petkútin e soltou-o no mundo. Depois,
Bránkovitch passou ao redor do seu próprio pescoço uma corda com uma pedra na extremidade
e assim, com a corda no pescoço, assistiu à liturgia dominical do jejum pascal.
Para que tudo fosse como entre os vivos, o pai introduziu também a morte no peito de
Petkútin. Este embrião do fim, esta morte, ainda pequena e imatura no peito do seu filho, era a
princípio temerosa e um pouco tola. Tinha pouco apetite e seus membros eram atrofiados. Mas
tornou-se infinitamente alegre ao ver Petkútin crescer, e este crescia tão rápido que suas mangas
floreadas logo tornaram-se bastante largas para que um pássaro pudesse ali voar. Todavia a morte
em Petkútin tornava-se mais viva e mais inteligente do que ele, e era a primeira a perceber os
perigos. Então, ela teve uma rival da qual se falará mais adiante. Mostrou-se impaciente e
ciumenta, e chamava atenção sobre si, provocando uma coceira no joelho de Petkútin. Ele se
arranhava, e sua unha escrevia em sua pele letras que podiam ser decifradas. Assim, eles se
correspondiam. O que a morte não tolerava acima de tudo, eram as doenças de Petkútin. O pai
tivera, entretanto, de dotá-lo de doenças, para que ele se parecesse o mais possível com os seres
vivos, porque as doenças são para eles uma espécie de olho. Bránkovitch tudo fizera para que as
doenças de Petkútin fossem as mais benignas possíveis, e ofereceu-lhe a febre florida, aquela que
se manifesta na primavera, quando as ervas brotam em espigas e as flores espalham seu pólen ao
vento e sobre as águas.
Bránkovitch instalou Petkútin na sua propriedade de Daly, uma casa cujos cômodos
estavam sempre cheios de galgos mais apressados para matar do que para comer. Uma vez por
mês os domésticos escovavam os tapetes com cardas, jogando fora punhados de longos pelos
coloridos parecidos com os rabos dos cães. Os quartos que Petkútin ocupava, com o tempo
tomavam as mesmas cores especiais que permitiam que seus aposentos fossem reconhecidos
entre milhares de outros. As impressões gordurosas que ele e seu suor deixavam nas maçanetas
de vidro das portas, nos travesseiros, nas cadeiras e nos parapeitos, nos cachimbos, nas facas e
nas canecas formavam um arco-íris de nuanças que lhe era bem peculiar. Tudo isso compunha
uma espécie de retrato, de ícone ou de assinatura. Às vezes, Bránkovitch surpreendia Petkútin
nos espelhos dessa vasta casa, construída no silêncio verde. Ele lhe explicava como proceder para
harmonizar interiormente o outono, o inverno, a primavera e o verão com a água, a terra, o fogo
e o vento, que o homem também carrega em si. O imenso trabalho que deveria ser feito exigia
muito tempo. Petkútin teve calos em seus pensamentos, os músculos de sua memória incharam a
ponto de estourar, e Bránkovitch ensinou-o a ler uma página de um livro com seu olho esquerdo
e a outra com seu olho direito, a escrever em sérvio com a mão direita e em turco com a mão
esquerda. Depois ensinou-lhe noções de literatura, e Petkútin logo encontrou influências da
Bíblia em Pitágoras; ele escrevia seu nome tão rápido quanto se pega uma mosca.
Em suma, Petkútin tornou-se um jovem erudito, mostrando só às vezes, por sinais
dificilmente perceptíveis, que não era feito como os outros. Assim, por exemplo, ele podia numa
segunda-feira de noite escolher um de seus dias futuros para utilizar no dia seguinte, ao invés da
terça-feira. E, quando chegava no dia já consumido, ele pegava, para substituí-lo, a terça-feira que
deixara de lado, e desse modo a conta dava certo. Para dizer a verdade, nesses casos, as costuras
entre os dias não encaixavam exatamente, e havia falhas no tempo, mas isto servia apenas para
distrair Petkútin.
O mesmo não acontecia com seu pai. Este alimentava uma permanente dúvida sobre a
perfeição de sua obra, e assim que Petkútin atingiu a idade de vinte e um anos decidiu testá-lo e
verificar se seu filho podia rivalizar em todas as coisas com os verdadeiros seres humanos. Dizia
para si mesmo: “Os vivos puseram-no à prova; é preciso que os mortos também o façam. Pois
somente se os mortos se enganarem e tomarem Petkútin por um homem verdadeiro, em carne e
osso, que salga antes de morder, pode dizer-se que a experiência teve sucesso.” Tendo assim
concluído, ele encontrou uma noiva para Petkútin.
Como os suseranos da Valáquia têm sempre a seu serviço um guarda de corpo e um
guarda de alma, Bránkovitch também agia assim, ocasionalmente. Entre seus guardas de alma
encontrava-se um aromeno que costumava dizer que tudo neste mundo se tornou verdade, e
tinha uma filha de grande beleza. Ao nascer, tomara tudo que a mãe tinha de belo, de maneira
que esta, depois do parto, ficou feia para sempre. Quando a menina chegou à idade de dez anos,
sua mãe ensinou-a, com suas próprias mãos outrora belas, e amassar o pão, e seu pai, antes de
morrer, chamou-a e disse-lhe que o futuro não é água. A jovem chorou torrentes de lágrimas, de
tal modo que as formigas podiam subir pelo curso d’água até o rosto da donzela. Agora ela estava
órfã, e Bránkovitch agiu de modo a que ela encontrasse Petkútin. Ela se chamava Kalina, sua
sombra cheirava a canela, e Petkútin descobriu que ela se apaixonaria pelo homem que comesse
frutos do corniso em março. Ele esperou o mês de março, fartou-se com os frutos e propôs a
Kalina que dessem um passeio à beira do Danúbio. No momento de se separarem, ela tirou o
anel do dedo e jogou-o no rio.
– Quando nos acontece algo de agradável – disse a Petkútin, – é preciso temperá-lo com
um leve desagrado; assim, lembraremos dele melhor. Pois o homem sempre lembra-se por mais
tempo dos momentos desagradáveis do que dos momentos agradáveis...
Em resumo, Petkútin agradou a ela, e ela agradou a Petkútin. Seu casamento foi celebrado
naquele mesmo outono e com grande alegria. As testemunhas da cerimônia beijaram-se em
despedida, pois não deviam rever-se antes de longos meses; depois começaram a rondar os tonéis
de aguardente. Quando chegou a primavera, finalmente saíram da bebedeira, olharam ao seu
redor e, depois dessa longa embriaguez invernal, reconheceram-se de novo uns aos outros.
Depois voltaram para Daly e acompanharam os jovens casados ao costumeiro piquenique da
primavera, dando tiros de fuzil. É preciso que se saiba que os jovens de Daly fazem piqueniques
na primavera, em ruínas antigas, onde há bancos de pedra e uma obscuridade grega mais espessa
do que qualquer outra obscuridade, da mesma forma que o fogo grego é mais luminoso do que
todos os outros fogos. Foi para lá que se dirigiram Petkútin e Kalina. De longe, parecia que
Petkútin conduzia uma parelha de cavalos negros mas, assim que espirrava, devido ao perfume de
alguma flor, ou estalava o chicote, uma nuvem de moscas negras voava e podia-se ver que os
cavalos eram brancos. Mas isto em nada perturbava a Petkútin ou a Kalina.
Eles se apaixonaram naquele inverno. Comiam com o mesmo garfo, cada um de uma vez,
e ela bebia vinho da boca de Petkútin. Ele a acariciava tão bem que a alma dela murmurava no
seu corpo, e ela o adorava e pedia-lhe que urinasse dentro dela. Ela dizia, rindo, às amigas, que
nada coça melhor do que uma barba de homem de três dias, crescida no amor. E ela pensava
seriamente, no fundo de si mesma: “Os instantes de minha vida morrem como moscas engolidas
por peixes. Como torná-los bastante nutritivos para a sua fome?” Ela lhe implorou que mordesse
um pedaço de sua orelha e o comesse, e nunca fechava as gavetas e as portas atrás de si a fim de
não interromper a felicidade. Ela era silenciosa porque crescera no mutismo das intermináveis
leituras paternas de uma única e mesma oração, em torno da qual tecia-se sempre o mesmo
silêncio. E agora que estavam indo para o piquenique, era quase igual, e isso lhe agradava.
Petkútin pusera as rédeas em volta do pescoço e lia um livro, enquanto Kalina falava. Jogavam
um jogo. Se ela pronunciasse uma palavra no mesmo instante em que ele a lesse no livro, eles
trocariam de papel, e ela passaria a ler o livro e ele a falar. Quando ela apontou com o dedo um
carneiro no pasto, e ele declarou que havia justamente lido a palavra “carneiro”, ela mal acreditou
e apanhou o livro, para verificar. Com efeito o texto dizia:
Quando invoquei por votos e preces
essas tribos de mortos,
peguei os animais: ovelha e carneiro,
e lhes cortei a garganta sobre a
fossa,
e o sangue negro escorria,
as almas dos mortos se reuniam
no fundo do Érebo;
jovens noivas, jovens homens,
velhos sobrecarregados de provações,
ternas virgens levando no coração seu
primeiro luto,
Tendo acertado, Kalina continuou a leitura:
e quantos guerreiros feridos por
dardos de bronze,
vítimas de Ares, com suas armas
ensangüentadas!
Vinham em multidão de todas as partes
ao redor da fossa,
elevando um prodigioso clamor,
e o pálido temor apoderou-se de mim...
Eu, que tirei do lado da minha coxa minha espada aguda,
permanecia ali e impedia que os mortos,
sombras débeis,
se aproximassem do sangue, antes que eu tivesse
interrogado Tirésias.
No mesmo instante em que ela lia a palavra “sombras”, Petkútin viu a sombra que o
teatro romano lançava sobre a estrada. Tinham chegado.
Entraram pela porta dos artistas, colocaram sobre a pedra no meio do palco a garrafa de
vinho, os cogumelos e o chouriço que tinham trazido e retiraram-se rapidamente para a sombra.
Petkútin ajuntou esterco seco de búfalo, alguns gravetos recobertos de lama endurecida, colocou
tudo sobre o palco e acendeu o fogo. Ouviu-se claramente o ruído de sílex até o lugar mais
distanciado no mais alto degrau da platéia do teatro, enquanto lá fora, onde as ervas selvagens e
os perfumes de murta e de louros se espalhavam, não se percebia nada do que se passava no
interior. Petkútin jogou sal no fogo, para dissipar o odor de esterco e lama, depois lavou os
cogumelos com vinho antes de colocá-los com o chouriço sobre as brasas. Sentada, Kalina
olhava o sol poente que, caminhando sobre os degraus, aproximava-se da saída do teatro.
Petkútin passeava no palco e, ao perceber os nomes dos antigos proprietários dos lugares,
inscritos na frente dos degraus, começou a soletrar antigos nomes desconhecidos:
– Caius Veronius Aet... Sextus Clodius Cai filius, Publilia tribu... Sorto Servilio... Veturia
Aeia...
– Não invoque os mortos! – advertiu-o Kalina. – Não os chame, senão eles virão!
Assim que o sol deixou o teatro, Kalina retirou os cogumelos e o chouriço do fogo e
começaram a comer. A acústica era perfeita, a cada mordida o ruído de sua mastigação ressoava
com a mesma força em cada um dos lugares do teatro, do primeiro ao oitavo degrau, mas sempre
de maneira diferente, antes de voltar ao meio do palco. Era como se os espectadores cujo nome
estava escrito na frente dos degraus comessem em companhia dos jovens esposos, ou pelo
menos mastigassem com avidez, e ruidosamente, cada uma das mordidas deles. Cento e vinte
pares de ouvidos mortos escutavam com grande atenção, e o teatro inteiro mastigava em
concerto com o casal, cheirando com gula o odor do chouriço. Assim que paravam, os mortos
também paravam, como se os alimentos estivessem entalados em suas gargantas, e, crispados,
esperavam os gestos seguintes dos jovens. Nesses momentos, Petkútin tomava cuidado para não
se machucar ao cortar a comida, pois tinha o sentimento de que o cheiro do sangue humano
poderia perturbar a serenidade dos espectadores. Rápidos como a dor, poderiam se precipitar da
platéia sobre ele e Kalina e, impulsionados por sua sede duas vezes milenar, despedaçá-los.
Sentindo um calafrio, puxou Kalina para seus braços e beijou-a. Ela devolveu-lhe o beijo
e neste momento ouviram-se cento e vinte pares de lábios beijando-se ruidosamente, como se os
ocupantes da platéia se amassem.
Depois da refeição, Petkútin jogou o resto do chouriço no fogo que apagou regando com
vinho, e o chiado do fogo foi acompanhado por um abafado “Psssssst” que vinha da platéia. No
instante em que guardava a faca na sua bainha, o vento soprou de repente, salpicando o palco de
pólen. Petkútin espirrou e neste instante cortou a mão. O sangue caiu na pedra quente,
espalhando seu odor...
As cento e vinte almas mortas, gritando e berrando, precipitaram-se sobre o jovem casal.
Petkútin desembainhou sua espada, mas não pôde impedir que estraçalhassem Kalina, pedaço
por pedaço, até que seus gritos se confundissem com os dos mortos, e ela própria se juntasse ao
festim, devorando com gulodice os restos de seu próprio corpo.
Petkútin ignorava quantos dias já tinham transcorrido, quando compreendeu onde se
encontrava a saída do teatro. Vagava sobre o palco, ao redor do braseiro apagado e dos restos do
jantar, quando um ser invisível apanhou sua capa e jogou-a sobre os ombros. A capa vazia
aproximou-se dele e falou com a voz de Kalina.
Aterrorizado, Petkútin envolveu-a com os braços, mas sob a pele e no fundo daquela voz
nada via além do forro púrpura de sua capa.
– Diga-me – falou Petkútin, apertando Kalina em seus braços –, tenho a impressão de
que me aconteceu aqui, há mil anos, uma coisa terrível. Alguém foi despedaçado e devorado, e o
sangue continua ainda sobre o chão. Não sei se isto aconteceu, nem quando aconteceu. Quem foi
devorado? Você ou eu?
– Nada lhe aconteceu, não foi você o devorado – respondeu Kalina. – E isto aconteceu
há pouco, e não há mil anos.
– Mas não a vejo. Quem de nós dois está morto?
– Você não me vê, jovem, porque os vivos não vêem os mortos. Entretanto, pode ouvir
minha voz. Quanto a mim, ignoro quem é você e não saberei reconhecê-lo enquanto não
saborear uma gota do seu sangue. Mas eu o vejo, fique tranqüilo, vejo bem. E sei que você está
vivo.
– Kalina – gritou, então. – Sou eu, seu Petkútin, não me reconhece? Há poucos instantes,
se esse há pouco realmente existiu, você me beijava.
– Qual a diferença entre há pouco e há mil anos, agora que as coisas são como são?
Ouvindo essas palavras, Petkútin tirou sua faca, aproximou seu dedo do lugar onde
acreditava que estavam os lábios invisíveis de sua mulher e cortou-se.
O cheiro do sangue se espalhou, mas a gota não caiu sobre a pedra, porque Kalina a tinha
recolhido com seus lábios ávidos. Ela gritou, reconhecendo Petkútin, e despedaçou-o como se
fosse uma carniça, bebeu avidamente seu sangue e lançou seus ossos para a platéia de onde os
outros já se precipitavam.
No mesmo dia em que isso aconteceu a Petkútin, Kyr Avram Bránkovitch anotou as
seguintes palavras: “A experiência com Petkútin foi coroada de sucesso. Ele desempenhou tão
bem seu papel que conseguiu enganar tanto os vivos quanto os mortos. Agora, posso
empreender a parte mais difícil. Passar da pequena para a grande experiência. Do homem a
Adão”.
Desse modo, chegamos aos projetos de Kyr Avram Bránkovitch. Estes projetos, que são
a base do seu futuro, estão ligados a duas personagens-chaves. Uma é seu ilustre primo, o conde
Djordje Bránkovitch, sobre quem a Corte de Viena sabe, sem dúvida, mais do que nós. O
segundo é alguém que Kyr Avram chama de “Kuros” (o que, em grego, significa “rapaz”) e cuja
chegada aqui em Constantinopla ele espera assim como os judeus esperam pelo Messias. Até
onde podemos saber, Bránkovitch nunca o encontrou, ignorando até seu nome (por isto, o
apelido em grego, sinal de ternura), e só o vê em sonho. Mas esse “Kuros” aparece-lhe
regularmente em sonho e, quando Bránkovitch dormita, é com ele que sonha. Segundo a
descrição que faz dele, trata-se de um homem jovem, com a metade do bigode prateada, com as
unhas de vidro e os olhos vermelhos. Bránkovitch espera encontrá-lo um dia e, com sua ajuda,
espera descobrir ou realizar uma coisa que muito preza. Em seus sonhos, Bránkovitch aprendeu
com o “Kuros” a ler da direita para a esquerda, da maneira judia, e a sonhar sonhos do fim para o
começo. Estes sonhos extraordinários, onde Kyr Avram se transforma em “Kuros” ou, se assim
preferem, em judeu, começaram há muito tempo. O próprio Bránkovitch diz que isso lhe veio
inicialmente sob a forma de uma angústia que, atirada como uma pedra em sua alma, caía através
dela durante dias, só parando de noite, quando a alma também caía junto com a pedra. Depois,
esse sonho dominou completamente sua vida, e ele se tornava duas vezes mais jovem em sonho
do que na realidade. Primeiramente, os pássaros desapareceram de seus sonhos para sempre,
depois seus irmãos, e finalmente seu pai e sua mãe. Depois, todos os rostos e cidades de sua
vizinhança ou sua memória foram-se sem deixar sinais, e finalmente ele próprio desapareceu
desse mundo de sonhos totalmente alienado, como se, durante a noite, enquanto sonhava ele se
transformasse em algum outro homem cujo rosto, percebido num espelho do sonho, o
aterrorizava, como se sua mãe ou sua irmã tivessem deixado crescer a barba. Esse outro tinha os
olhos vermelhos, a metade do bigode prateada e as unhas de vidro.
Nesses sonhos onde se despedia de todas as pessoas que o cercavam, Bránkovitch via
mais demoradamente sua irmã defunta, mas ela perdia, a cada vez, um pouco do aspecto que
Bránkovitch conhecia, certas partes do seu corpo eram substituídas por outras que pertenciam a
um corpo desconhecido e estranho. Ela trocou inicialmente sua voz com essa pessoa anônima da
qual assumia a aparência, depois a cor dos cabelos e os dentes e, enfim, de seu restaram apenas os
braços que apertavam Bránkovitch com uma paixão crescente. Todo o resto já não era ela. Então,
numa noite tão breve que dois homens, estando um na terça-feira e outro na quarta-feira, podiam
apertar-se as mãos, ela lhe apareceu completamente transformada e tão bela que amedrontava as
pessoas. Ela se lançou ao seu pescoço, envolvendo-o com seus braços, e suas mãos tinham cada
uma dois polegares. Bránkovitch quis a princípio fugir, deixar seu sonho, mas logo cedeu e
colheu um dos seus seios como se colhe um pêssego. A seguir, como se colhesse seus dias dela
como de uma árvore, ela lhe oferecia sempre um fruto diferente, cada um mais doce que o
precedente, e ele dormia de dia com ela em seus diferentes sonhos, como outros homens
dormem de noite com suas amantes nos bordéis. Quando uma das mãos com dois polegares
aparecia nesses abraços, ele era incapaz de dizer qual mão ela usava para acariciá-lo, pois não
havia diferença entre elas. No entanto, esse amor sonhado esgotava-o tão real e completamente
que ele quase se derramava dos seus sonhos em seu leito. Então, ela veio pela última vez e lhe
disse:
– Aquele que amaldiçoa com a alma amarga será ouvido. Nós nos encontraremos de
novo, talvez, em algum lugar, numa outra vida.
E Bránkovitch nunca soube se ela se dirigira a ele, Kyr Avram Bránkovitch, ou a seu
duplo do sonho, que tinha a metade do bigode prateada, esse “Kuros” no qual Bránkovitch se
transformava em sonho. Pois já há muito que ele não se reconhecia mais enquanto dormia como
Avram Bránkovitch. Tornou-se o outro, o de unhas de vidro. Nos seus sonhos, já há anos não
manca mais como na realidade. De noite, ele sente como se estivesse sendo acordado pela fadiga
de um outro, e de manhã sente que vai adormecer, pois um outro, em algum lugar, desperta
sentindo-se plenamente descansado. Suas pálpebras fecham-se, enquanto alhures se abrem os
olhos de um outro. Ele e o desconhecido têm vasos comunicantes de energia e sangue, que
passam a força de um para o outro, assim como se passa o vinho de um vaso a outro para que
não se transforme em vinagre. Enquanto um, durante a noite e no seu sonho, repousa e recupera
suas forças, esta mesma força deixa o outro, levando-o ao cansaço e ao sonho. O mais grave é
que Kyr Avram adormece subitamente na rua, não como se caísse em sono, mas como se fosse o
eco do despertar súbito de um outro. Aconteceu-lhe, recentemente, enquanto observava um
eclipse lunar, de cair num sono tão subitamente que sonhou no mesmo instante que o
chicoteavam, sem dar-se conta de que se havia ferido ao cair, no mesmo lugar da testa onde o
chicote o tocara em sonho. Minha opinião é que todo esse caso – que envolve esse “Kuros” e
esse Yehuda Halevi – tem ligação direta com a tarefa à qual Kyr Avram e nós, seus servidores,
nos consagramos há muitos anos. Trata-se de um glossário, ou de um abecedário que se poderia
chamar de Dicionário Kazar. Ele trabalha nisso sem trégua nem repouso, e com um desígnio
preciso. Bránkovitch mandou vir de Viena e da região de Zarand para Constantinopla oito
camelos carregados de livros, e estão chegando ainda outros, de modo que agora ele está
separado do mundo por muralhas de dicionários e de velhos manuscritos. Eu, que sou dotado
para as cores, a tinta e as letras, reconheço cada tipo impresso pelo cheiro, durante as noites
úmidas, deitado no meu canto, leio, então, com meu olfato, páginas inteiras desses rolos selados
que jazem em algum lugar no sótão da torre. Kyr Avram prefere ler no frio, em manga de camisa,
expondo seu corpo aos arrepios, e diz que, da sua leitura, apenas aquilo que atravessa os arrepios
e chega até sua consciência merece ser lembrado e anotado. O arquivo de Bránkovitch, instalado
perto da biblioteca, compreende milhares de páginas sobre diferentes assuntos: desde um
catálogo de suspiros e exclamações nas preces em eslavo antigo até um repertório de sais e chás;
ele possui também uma enorme coleção de cabelos, de barbas e de bigodes das mais diversas
formas e cores, que pertenceram a mortos e vivos de todas as raças, e que cola em garrafas de
vidro, constituindo assim uma espécie de museu de penteados antigos. Seus próprios cabelos,
entretanto, não fazem parte dessa coleção, mas ele ordenou que fossem utilizados para bordar,
em todos os seus casacos, seu brasão com a águia de um olho e a divisa: “Todo senhor ama sua
própria morte”.
Bránkovitch trabalha todas as noites em seus livros, coleções e arquivos, mas consagra
uma atenção particular, e isto no maior dos segredos, à elaboração de um dicionário sobre a
conversão dos kazares∇ – um povo desaparecido outrora das margens do mar Negro e que
enterrava seus mortos em barcas. É uma espécie de compilação de biografias, o repertório
daqueles que; há algumas centenas de anos, participaram da conversão dos kazares ao
cristianismo, e outros personagens que deixaram posteriormente anotações sobre esse
acontecimento. Somos os únicos, Teoktist Nikólski, e eu, seus dois escribas, a ter acesso ao
Dicionário Kazar de Avram Bránkovitch. Essa precaução explica-se provavelmente, pelo fato de
Bránkovitch estudar diferentes heresias, não somente cristãs, mas também judias e muçulmanas,
e, se tivesse sabido, nosso patriarca de Pêtch seguramente ter-lhe-ia reservado um dos seus
anátemas, que ele conta e reconta todos os anos, no mês de agosto, no dia da Ascensão de
Sant'Ana. Bránkovitch dispõe de todos os dados acessíveis sobre Cirilog e Metódiog, missionários
e santos da cristandade, que participaram do lado grego da conversão dos kazares. Bránkovitch
encontra, contudo, as maiores dificuldades para incluir no seu dicionário os delegados judeu e
árabe que igualmente participaram da polêmica sobre a conversão kazar na Corte do kaghan∇.
Nada sabe sobre esse judeu e esse árabe, exceto que existiram, nem sequer lhes conhece os
nomes, e nenhuma fonte grega sobre os kazares, entre todas que pôde consultar, fala deles. Seus
enviados percorrem os mosteiros valáquios e os porões de Constantinopla, buscando
documentos hebraicos e árabes sobre a conversão kazar. Ele mesmo veio aqui, a Constantinopla,
de onde Cirilo e Metódio partiram outrora para a capital dos kazares para convertê-los, a fim de
encontrar os manuscritos e os homens que os estudam. Mas não se limpa uma fonte com lama, e
ele nada conseguiu. Ele não acredita que seja o único a se interessar pelos kazares, ou que
ninguém no passado tenha se interessado, salvo os missionários cristãos que, de São Cirilo até
nossos dias, deixaram anotações sobre o assunto. Deve certamente existir – ele assegura pelo
menos um dervixe e um rabino que conheçam detalhes da vida e da atividade dos participantes
árabe e judeu na polêmica, mas ele não encontra nem um nem outro, ou então são estes que não
querem dizer o que sabem. Supõe que existam, sobre a mesma questão e o mesmo povo, além
das fontes cristãs, fontes árabes e judias detalhadas, mas que algum obstáculo impede as pessoas
de se encontrarem e trocarem suas informações que, reunidas, forneceriam um quadro claro e
completo a respeito de tudo que se vincula a essa questão.
– Não compreendo – ele diz freqüentemente. – Provavelmente, eu sempre interrompo
minha reflexão cedo demais, e então esses pensamentos permanecem em mim formados apenas
pela metade e se mostrando só até a cintura....
Em minha opinião, não é difícil explicar o entusiasmo de Kyr Avram por um assunto tão
insignificante. Kyr Bránkovitch interessa-se pelos kazares por razões muito egoístas. Ele está, de
fato, tentando se curar, escapar dos sonhos dos quais é prisioneiro. O “Kuros” dos seus sonhos
também interessa-se pela questão kazar, e Kyr Avram sabe disto melhor do que ninguém. A única
maneira que tem de libertar seus sonhos da escravidão é encontrar esse estrangeiro, mas só
poderá conseguir isto através dos documentos kazares, única pista que o levará ao outro. Creio
que este outro pensa da mesma forma. O encontro deles é, portanto, inevitável, como o do
carcereiro e seu prisioneiro. Desse modo, não é surpreendente que Kyr Avram esteja se
preparando com um tal ardor, ajudado por seu mestre de esgrima. Odeia tanto seu “Kuros” que
seria capaz de engolir os olhos dele como se fossem ovos de pássaro. Assim que o apanhar... Isto
é apenas uma suposição. Se isto não, acontecer, então será preciso lembrar das palavras de Avram
Bránkovitch sobre Adão, e sua experiência bem sucedida com Petkútin. Neste caso, Bránkovitch
será um homem perigoso, e seu projeto terá conseqüências incomensuráveis; seu Dicionário Kazar
é apenas a preparação livresca de uma grande ação...”
Com estas palavras termina o relatório de Nikon Sevast sobre Avram Bránkovitch. Sobre
o desenrolar dos últimos dias da vida do seu senhor, Sevast não pôde informar ninguém, pois
senhor e servidor foram mortos juntos, numa quarta-feira coberta de brumas, em algum lugar da
Valáquia. Este acontecimento foi relatado por um outro criado de Bránkovitch, o mestre-de-
armas já citado, Averkiye Skila. Parece que anotou sua narrativa com a ponta de sua espada
mergulhada em tinta, numa folha de papel jogada no chão, que segurava com sua bota.
“Na última noite em Constantinopla, antes da partida – escreveu Averkiye Skila – Papas
Avram reuniu-nos na sala que dava para os três mares. Ventos verdes sopravam do mar Negro,
ventos azuis e transparentes do mar Egeu, e ventos secos e amargos da margem do Jônio.
Quando entramos, nosso senhor estava lendo, em pé, recostado na sela de seu camelo. As
moscas antólicas picavam, anunciando a chuva, e ele se protegia, açoitando com destreza suas
costas no lugar exato da picada. Naquela noite, há pouco tínhamos acabado nosso habitual
exercício de esgrima, e se eu não tivesse levado em conta sua perna aleijada, ele ter-me-ia feito em
pedaços na escuridão. De noite ele era sempre mais rápido do que de dia. Agora ele estava
usando, no pé do lado da perna doente, um ninho de pássaros como se fosse um calçado, pois o
ninho aquece melhor.
Sentamo-nos, os quatro que fôramos convocados, eu, os dois escribas e Maçudi, o criado
de quarto, que já havia preparado num saco verde seus objetos para viagem. Como de costume,
comemos uma colherada de geléia de cerejas com pimenta, bebemos um copo de água do poço
que fica na sala mas ressoa em algum lugar no porão, afogando nossas vozes. Papas Avram
pagou-nos então e declarou que, se desejássemos, podíamos permanecer. Todos os outros
partiriam com ele para a guerra, no Danúbio.
Pensávamos que isso era tudo que ele tinha para nos dizer e não nos reteria mais. Mas
Bránkovitch tinha uma particularidade: era ao deixar seu interlocutor que sempre se mostrava
mais sábio. Fingia, então, ser desajeitado e despedia-se de sua companhia um pouco depois do
que seria devido. Sempre passava da hora quando tudo já estava dito, hora em que os outros já
abandonavam suas mascaras e tomavam as feições que possuem quando estão a sós consigo
mesmos. Retardou-se dessa vez também, da mesma forma. Enquanto apertava a mão do anatólio,
observava todos os outros, de esguelha. E foi neste exato momento que um ódio terrível surgiu
como um raio entre Maçudi e Nikon Sevast, um ódio até então cuidadosamente dissimulado
pelos dois lados. Isto aconteceu porque Maçudi disse a Papas Avram:
– Senhor, antes de nos separarmos, gostaria de agradecer-lhe os seus presentes. Vou
dizer-lhe uma coisa que lhe dará prazer porque há muito tempo o senhor deseja ouvi-la. Aquele
com quem sonha se chama Samuel Cohen@.
– Ele mente! – gritou então Sevast e, subitamente, apanhou o saco verde de Maçudi e
lançou-o ao fogo.
Impassível, Maçudi virou-se para Papas Avram e disse-lhe, apontando Nikon Sevast:
– Olhe-o, senhor, só tem uma narina no nariz. E mija com sua cauda, como todos os
demônios.
Kir Avram pegou o papagaio que segurava uma lanterna entre suas garras e o abaixou.
Sob essa iluminação, efetivamente, o nariz de Nikon Sevast só tinha uma narina, uma única, negra
e sem septo no meio, como acontece com os demônios. Então Papas Avram lhe disse:
– Então, és desses que não ousam mudar de sapato?
– É verdade, meu senhor, mas não sou daqueles cujas fezes fedem a medo. Não nego ser
Satã – confessou, sem hesitar. – Digo apenas que pertenço ao mundo subterrâneo dos cristãos,
aos maus espíritos da terra grega e ao inferno do rito ortodoxo. Pois à imagem do céu acima de
nós que é dividido entre Jeová, Alá e Deus Pai, o mundo subterrâneo é dividido entre Asmodeu,
Iblis e Satã. A sorte quis que eu fosse descoberto em solo do atual império turco, mas isto não
autoriza Maçudi nem outros representantes do Islã a me julgarem. Este direito pertence aos
representantes da liturgia cristã cuja jurisdição é, para mim, a única válida. Senão, os tribunais
cristãos ou judaicos podem começar a julgar os membros do inferno muçulmano caídos em suas
mãos. Que nosso Maçudi reflita sobre esta advertência.
Papas Avram replicou:
– Meu pai, Ioaníkie Bránkovitch, teve alguma experiência com os de tua espécie. Todas as
nossas casas na Valáquia sempre tiveram suas pequenas feiticeiras domésticas, seus pequenos
satãs e lobisomens, com quem jantávamos. Enviávamos contra eles matadores de vampiros e
filhos do Sabá; dávamos-lhes uma peneira para que contassem os seus furos e encontrávamos
suas caudas arrancadas ao redor da casa; colhíamos amoras em sua companhia, amarrávamo-los
às portas, ou a um boi, e os chicoteávamos para puni-los antes de jogá-los nos poços. Certa noite,
em Djula, meu pai encontrou um enorme boneco de neve sentado no buraco da latrina. Bateu
nele com sua lanterna, matou-o e foi jantar. O jantar compunha-se de sopa de repolho e javali.
Começou a comer e, de repente, paf, sua cabeça caiu dentro do prato. Ele beijou sua própria
imagem que o fitava de baixo, e se afogou na sopa de repolho. Isto se passou diante de nossos
olhos, e não tivemos tempo de compreender coisa alguma. Lembro-me ainda que, enquanto ele
se afogava na sopa, como num abraço amoroso, envolvia o prato com seus braços, dir-se-ia que
abraçava, ao invés do javali, a cabeça de um outro ser. Em suma, nós o enterramos como se o
arrancássemos de um forte abraço... Jogamos suas botas no Morich, para que ele não se tornasse
vampiro. Se tu és Satã, e tu és, dize-me então o que significou a morte de meu pai Ioaníkie
Bránkovitch.
O senhor aprenderá o significado sozinho, sem minha ajuda – respondeu Sevast –, mas
vou-lhe dizer outra coisa. Sei as palavras que seu pai ouviu antes de morrer. São estas: “Um
pouco de vinho para lavar minhas mãos!” Essas palavras ressoavam em seus ouvidos no
momento em que deixou este mundo. E agora, ainda uma outra coisa, para que o senhor não diga
que chupei tudo isso de meus ossos ocos, pois tenho os ossos ocos. O senhor trabalha há várias
décadas no Dicionário Kazar, então permita-me contribuir também com o seu abecedário. Escute,
portanto, o que ignora. Os três rios do antigo mundo dos mortos – o Aqueronte, o Piriflégueton
e o Cócito – pertencem atualmente aos infernos do islã, do judaísmo e do cristianismo; correm
sob o solo do antigo país kazar, separando os três infernos – o Guehen, o Hades e o inferno
glacial dos maometanos. Aí, nesse tríplice lugar, encontram-se os três mundos dos mortos: o
reino ardente de Satã, os nove círculos do inferno cristão, com o trono de Lúcifer e as bandeiras
do rei do inferno; o mundo subterrâneo islâmico, com o reino dos sofrimentos glaciais de Íblis; e
o domínio de Gueburá, do lado esquerdo do Templo, onde estão sentadas as potências do mal,
da volúpia e da fome, o Guehen judeu dominado por Asmodeu. Esses três subterrâneos não se
confundem, a fronteira entre eles é traçada por uma charrua de ferro, e ninguém tem o direito de
transgredi-la. Aliás, a maneira como vocês representam esses infernos é falsa, pois falta-lhes
experiência. No de Belial, o inferno judeu, o reino dos anjos das trevas e dos pecados, não ardem
os judeus, contrariamente ao que acreditam. Lá queimam aqueles que se parecem com vocês, ou
seja, árabes e cristãos. Do mesmo modo, não há cristãos no inferno cristão – aí são jogados ao
fogo os maometanos e os adeptos da religião de Davi, enquanto no inferno islâmico de Íblis só se
encontram cristãos e judeus, nem um único turco ou árabe. Imagine, agora, Maçudi, que tem
tanto medo de seu terrível mas familiar inferno muçulmano, chegando no Cheól judeu ou no
Hades cristão onde estarei esperando por ele! Ao invés de Íblis, comparecerá diante de Lúcifer.
Imaginem o céu cristão sobre o inferno onde expia um judeu!
Considere isto como uma grande e suprema advertência, meu senhor! Como a mais
profunda das sabedorias. Não tenha nenhum contato aqui na terra com coisas que envolvem os
três mundos, o islã, o cristianismo e o judaísmo, para que não tenhas nenhuma relação com os
seus subterrâneos! Pois aqueles que se odeiam não são o problema neste mundo. Eles sempre se
parecem. Os inimigos são sempre idênticos, ou assim se tornam com o tempo, ou então não
seriam inimigos. Os que são realmente diferentes uns dos outros é que representam o maior
perigo. Esforçam-se para se conhecerem, pois as diferenças não os incomodam. São os piores.
Unindo nossas forças com as de nossos inimigos, acertaremos as contas com todos aqueles que
nos concedem o direito de sermos diferentes deles, sem que isto lhes perturbe o sono:
acertaremos as nossas contas unindo nossas forças às de nossos inimigos e os destruiremos de
três lados ao mesmo tempo...
Kyr Avram declarou, então, que em tudo isso havia alguma coisa que lhe escapava e
perguntou:
– Neste caso, por que isto ainda não foi feito, e se não cabe a ti agir, tu que ainda não
perdeste a cauda, então por que os mais idosos, os mais experimentados, não tentaram nada? Que
esperam, enquanto construímos a casa para Nosso Pai?
– Esperamos o bom momento, meu senhor. Além disso, nós, os demônios, só podemos
dar um passo depois de vocês, os homens. Cada um de nossos passos deve pisar na pegada de
um dos seus passos. Estamos sempre um passo atrás de vocês, só comemos quando vocês
terminaram de jantar e, como vocês, não vemos o futuro. Portanto, vocês primeiro, nós a seguir.
Mas gostaria de lhe dizer, meu senhor, que ainda não deu o passo que nos levaria a persegui-lo.
Se o senhor um dia der o passo, o senhor ou algum dos seus descendentes, nós o apanharemos
no dia da semana cujo nome não é pronunciado. Mas, no momento, tudo está em ordem pois o
senhor não encontrará seu “Kuros” de olhos vermelhos, mesmo que ele venha aqui, em
Constantinopla. Se ele sonha com o senhor como o senhor sonha com ele, se ele constrói no
sonho dele a sua realidade, e o senhor a dele no seu sonho, então não podem olhar-se nos olhos
um do outro, pois nunca estão acordados ao mesmo tempo. Apesar de tudo, não se coloque
diante da tentação. Creia-me, senhor, é mais perigoso compor um dicionário sobre os kazares, a
partir de palavras espalhadas, nesta torre pacífica, do que ir guerrear no Danúbio onde já se
batem turcos e austríacos; é bem mais perigoso esperar aqui, em Constantinopla, uma aparição
surgida dos sonhos do que correr ao assalto com o sabre desembainhado, o que o senhor sabe
fazer tão bem. Pense nisto e parta para onde tinha decidido, sem se inquietar, e não dê ouvidos a
esse anatólio que mergulha sua laranja no sal...
– Quanto ao resto, meu senhor – concluiu Sevast –, pode, é claro, entregar-me ao poder
espiritual cristão e fazer-me julgar pelo Tribunal Eclesiástico que persegue feiticeiras e demônios.
Mas, antes disso, permita que lhe faça uma única pergunta: o senhor crê que sua Igreja existirá
ainda daqui a 300 anos e poderá julgar como faz hoje?
– É claro que creio – respondeu Papas Avram.
– Então, prove-o: em 293 anos exatamente vamos encontrar-nos de novo, nesta mesma
estação do ano, aqui, em Constantinopla, no desjejum, e o senhor me julgará então como me
julgaria hoje...
Papas Avram riu, disse que estava de acordo e matou uma mosca com a ponta de seu
chicote.
Ao alvorecer, cozinhamos grãos de trigo com nozes e açúcar, embrulhamos o bolo com
sua fôrma numa almofada e o colocamos no saco de viagem, a fim de que aquecesse Papas Avram
quando repousasse. Pegamos o barco, atravessamos o mar Negro e subimos o delta do Danúbio.
As últimas andorinhas voavam de costas, e seus reflexos no Danúbio mostravam seus dorsos
negros ao invés de seus ventres brancos. Penetramos em nevoeiros que transportavam, através
das florestas e do Djerdap, o duro silêncio que ensurdece e para o qual confluem todos os outros
silêncios. No quinto dia, perto de Kládovo, fomos acolhidos na outra margem do rio por uma
tropa de cavaleiros da Transilvânia, cobertos por uma acre poeira romena. Assim que nos
encontramos no campo do príncipe de Baden, soubemos que o conde Gueórguie estava também
no combate, que os generais Haydersheim, Veterani e Haisel preparavam-se para atacar as
posições turcas, e que há dois dias os barbeiros corriam em volta deles para barbeá-los e penteá-
los, pois marchavam sem parar. Nesta mesma noite fomos testemunhas da inacreditável
habilidade de nosso senhor.
A estação mudava, as manhãs estavam frias, mas as noites ainda quentes – era verão até
meia-noite, e outono pela manhã. Papas Avram escolheu sua espada, foi selado seu cavalo, e do
campo sérvio chegou uma tropa de cavaleiros que traziam pombos vivos em suas mangas.
Cavalgando, fumavam compridos cachimbos, e encaixavam círculos de fumaça nas orelhas de
seus cavalos. Quando Bránkovitch montou, recebeu também um cachimbo aceso, e todos, assim
fumando, partiram para o acampamento do general Veterani para receber suas ordens. Foi então
que se ouviram vozes no campo austríaco:
– Sérvios nus estão chegando!
Efetivamente, atrás dos cavaleiros surgiu uma tropa de soldados de infantaria que não
usavam nada além dos seus barretes. Nus, atravessaram a luz dos fogos do campo como se
atravessa um portal e, atrás deles, um pouco mais rapidamente, passaram suas sombras nuas, duas
vezes mais velhas do que eles.
– Vocês não estão pretendendo atacar na escuridão? – perguntou Veterani, acariciando
seu cão, tão grande que podia bater com a cauda na boca de um homem.
– Vamos atacar, sim – respondeu Kyr Avram –, os pássaros nos mostrarão o caminho.
Acima das posições austríacas e sérvias elevava-se o monte Rs, onde a chuva nunca cai;
em seu cimo erguia-se uma fortaleza turca com seus canhões. Há três dias, não conseguiam
aproximar-se dele por nenhum lado. O general disse a Bránkovitch para atacar essa fortaleza.
– Se conseguir conquistar a posição inimiga, faça um fogo verde com galhos de bordo –
acrescentou o general –, para que possamos nos orientar.
Os cavaleiros receberam a ordem e partiram, fumando seus cachimbos. Pouco tempo
depois, vimos voar os pombos em fogo sobre as posições turcas – um, dois, três; depois ouviu-se
uma crepitação de armas, e Papas Bránkovitch e seus cavaleiros voltaram ao campo, sempre
fumando seus compridos cachimbos. Surpreso, o general perguntou-lhes por que não atacaram
os canhões, e Kyr Avram silenciosamente indicou-lhe com seu cachimbo o monte: uma fogueira
verde estava ardendo e os canhões turcos estavam calados. A fortaleza tinha sido tomada.
Na manhã seguinte, Papas Avram repousava em sua tenda, depois do combate noturno,
enquanto Maçudi e Nikon Sevast jogavam dados. Há três dias Nikon perdia somas consideráveis,
mas Maçudi não queria interromper o jogo. Deviam ter razões muito boas para permanecer
assim, como um alvo, quando começou a chuva de balas: Bránkovitch em seu sonho e eles em
seu jogo. Em todo caso, suas razões eram mais fortes do que as minhas: pus-me em um abrigo
seguro. Nesse instante, cavaleiros turcos surgiram em nossa trincheira e começaram a partir ao
meio tudo que se mexia, seguidos de perto por Sábliak-paxá de Trébinie, que olhava os mortos,
mas não os vivos. Atrás deles um jovem pálido chegou ao campo de batalha, a metade de seu
bigode era prateada, como se tivesse envelhecido pela metade. No casaco de seda de Papas Avram
adormecido, estava bordado o brasão dos Bránkovitch, com uma águia de um olho. Um soldado
turco enfiou sua lança na ave bordada com tal força que se ouviu o ferro, depois de ter
transpassado o peito do adormecido, bater na pedra sob ele. Acordando em sua morte,
Bránkovitch ergueu-se nos cotovelos e a ultima coisa que percebeu em vida foi o jovem de olhos
vermelhos, unhas de vidro e a metade do bigode prateada. Então Bránkovitch pôs-se a transpirar,
e dois rios de suor encontraram-se no seu pescoço. O braço sobre o qual se apoiava começou a
tremer tanto que para acalmá-lo Papas Avram deitou-se sobre ele com todo o peso. O braço
tremeu ainda por alguns instantes, cada vez mais fracamente, como uma corda que se tange e,
quando ficou completamente imóvel, Kyr Avram tombou sem dizer uma palavra. No mesmo
instante, o jovem caiu em sua própria sombra, como que ceifado pelo olhar de Bránkovitch, e o
saco que levava ao ombro escorregou e caiu por terra.
– Gohen morreu? – gritou o paxá, e os soldados, acreditando que um dos jogadores de
dados tinha atirado no jovem, imediatamente cortaram Nikon Sevast em dois, os dados ainda nas
mãos. Depois, viraram-se para Maçudi, mas ele gritou algumas palavras em árabe ao paxá, para
avisá-lo que o jovem não tinha morrido, apenas adormecido. Isto prolongou por um dia a vida de
Maçudi, pois o paxá ordenou que só o executassem no dia seguinte, o que foi feito.
Sou um esgrimista – Averkiye Skila assim concluiu sua nota sobre Avram Bránkovitch – e
sei bem que, quando se mata, é diferente a cada vez, como na cama com uma nova mulher. Só
que depois tu te esqueces de algumas delas, e de outras não. Do mesmo modo, alguns dos que
mataste e algumas mulheres que possuíste não te esquecem jamais. A morte de Kyr Avram
Bránkovitch era daquelas das quais nos lembramos. Eis o que aconteceu: os homens do paxá
surgiram com uma tina de água quente, nela banharam Kyr Avram e confiaram-no a um velhinho
que carregava no pescoço um terceiro sapato cheio de perfumes, bálsamos e cânhamo. Pensei
que fossem tratar dos ferimentos de Papas Avram, mas o velho passou ruge e pó-de-arroz no seu
rosto, barbeou-o, penteou-o, e transportou-o assim à tenda de Sábliak-paxá.
– Aí está mais um sérvio nu – pensei.
Na manhã seguinte, ele morreu na tenda. Isto se passou em 1689, segundo o calendário
ortodoxo, no dia do mártir Santo Eustáquio. No momento em que Avram Bránkovitch entregava
sua alma, Sábliak-paxá saiu de sua tenda e pediu um pouco de vinho “para lavar suas mãos.”
CAÇADORES DE SONHOS – Seita kazar cuja protetora era a princesa Ateh∇. Sabiam
ler os sonhos de outros, viver e morar neles e, percorrendo-os, caçar a presa que quisessem –
homem, objeto ou animal. Uma nota escrita pelo mais velho dos caçadores de sonhos foi
conservada e diz: “Num sonho, sentimo-nos como um peixe dentro d’água. De tempos em
tempos, emergimos do sonho, lançamos uma olhadela às margens do mundo, depois tornamos a
mergulhar rápida e avidamente, pois só nos sentimos bem nas profundezas. Durante essas curtas
saídas, percebemos em terra um ser bizarro, mais lento do que nós, que respira de um modo
diferente do nosso, colado com todo o seu peso à terra, privado da paixão que habitamos como
em nosso próprio corpo. Porque aqui embaixo a paixão e o corpo são inseparáveis, são um só.
Esse ser de fora, somos nós também, mas daqui a um milhão de anos e, além desses anos, há
entre nós e ele uma terrível calamidade que o vitimou porque ele separou o corpo da paixão...”
Um dos mais célebres caçadores de sonhos, segundo uma lenda, era Mokadaça Al SaferÂ.
Conseguia entrar no mais profundo dos segredos, domesticar peixes nos sonhos alheios, abrir
portas nas visões alheias, e tinha ido tão fundo, tão mais fundo do que qualquer outro antes dele,
que chegara até Deus, pois no fundo de cada sonho está Deus. Depois, de repente, ele não sabia
mais ler os sonhos. Durante muito tempo, acreditara que chegara ao limite e que não se podia ir
mais longe nessa arte mística. Aquele que chega ao final do caminho não precisa mais do
caminho, e o caminho não se apresenta mais para ele. Mas os outros, à sua roda, não pensavam
assim. Foram aconselhar-se com a princesa Ateh que lhes explicou o caso de Mokadaça Al Safer:
Uma vez por mês, na festa do sal, os partidários do kaghan kazar batem-se até à morte, nas cercanias de
nossas três capitais, contra vocês, meus partidários e defensores. Quando a noite cai, no momento em que se
enterram os mortos dele nos cemitérios judeus, árabes e gregos, e os meus nos cemitérios kazares, o kaghan abre
calmamente a porta de cobre do meu quarto, iluminando-se com uma vela cuja chama perfuma e treme com a sua
paixão. Nesses momentos, não o olho, pois ele se parece com todos os amantes do mundo cujas faces foram tocadas
pela felicidade. Passamos a noite juntos, mas ao alvorecer, quando ele se vai, olho o reflexo do seu rosto no cobre
brilhante de minha porta, e leio em seu cansaço o que ele tem intenção de fazer, de onde vem e quem ele é.
O mesmo acontece com seu caçador de sonhos. Sem dúvida alguma, ele chegou ao ápice de sua arte, rezou
nos templos dos sonhos alheios, e morreu inúmeras vezes na consciência dos sonhadores. Conquistou tamanho
sucesso que a mais bela matéria que existe – a matéria dos sonhos – começou a submeter-se a ele. Mas se ele não
cometeu nenhum erro na sua ascensão até Deus, o que lhe permitiu vê-Lo no fundo do sonho que lia, seguramente
cometeu algum erro ao voltar, descendo de novo neste mundo das alturas aonde tinha se elevado. E pagou por esse
erro. Atenção ao retorno! – concluiu a princesa Ateh. – Uma má descida pode anular uma ascensão vitoriosa
à montanha.
RETRATO DE CONSTANTINO DE
SALÔNICA – SÃO CIRILO – SEGUNDO UM
AFRESCO DO SÉCULO IX.
A língua dos bárbaros não se deixava domesticar. Durante um breve outono de três
semanas, os dois irmãos estavam sentados nas suas celas, tentando em vão traçar as letras que
mais tarde serão chamadas de cirílicas. O trabalho anunciava-se difícil. De sua cela, podia-se ver
claramente os meados de outubro, e o silêncio tinha uma hora de caminhada de comprimento e
duas horas de caminhada de largura. Então Metódio chamou a atenção do irmão para os quatro
cântaros que se encontravam no parapeito da janela, do lado de fora, do outro lado das barras.
– Se tua porta estiver fechada à chave, como farás para pegar um desses cântaros? –
perguntou.
Constantino quebrou um deles, depois fez passar cada pedaço através da grade e colou os
pedaços com uma mistura de saliva e da terra argilosa sob seus pés.
Foi assim que fizeram com a língua eslava: quebraram-na em pedaços, fizeram-na entrar
em suas bocas através das barras das letras cirílicas e recolaram os fragmentos com sua saliva e a
terra grega sob a sola de seus pés...
Neste mesmo ano, o imperador bizantino Miguel III recebeu um mensageiro do kaghan
kazar∇ pedindo que lhe enviassem de Constantinopla uma pessoa capaz de lhe explicar as bases
do cristianismo. O imperador pediu conselho a Fótios, a quem chamava de “cara de kazar”. Essa
atitude tinha um duplo sentido, mas Fótios levou a sério a pergunta, recomendou seu aluno e
protegido Constantino, o Filósofo, e este, acompanhado do irmão Metódiog, empreendeu sua
segunda missão diplomática, conhecida como “a missão kazar”. A caminho, pararam em
Quersônia, na Criméia, onde Constantino estudou hebreu e kazar, a fim de se preparar para sua
tarefa diplomática. Pensava: “Cada um é a cruz de sua vítima, mas os cravos atravessam também
a cruz”. Quando chegou à Corte do kaghan, encontrou os representantes das religiões islâmica e
hebraica, convidados igualmente pelo kaghan. Assim, Constantino travou com eles a polêmica
kazar, expondo seus Discursos Kazares, traduzidos mais tarde por Metódio para a língua eslava.
Refutando os argumentos do rabino e do dervixe, que defendiam, respectivamente, o judaísmo e
o islã, Constantino, o Filósofo, persuadiu o kaghan kazar a converter-se ao cristianismo, ensinou-
lhe que não se deve rezar diante de uma cruz partida, e foi então que percebeu no seu rosto uma
segunda ruga, a ruga kazar.
Quando o ano de 863 terminava, Constantino tinha a mesma idade que o filósofo Filon
de Alexandria ao morrer: trinta e sete anos. Terminou o alfabeto eslavo e, sempre acompanhado
pelo irmão, partiu para a Morávia para viver com os eslavos que conhecia de sua terra natal.
Traduzia manuscritos religiosos do grego para o eslavo, e uma multidão crescia ao redor
dele. Essas pessoas tinham olhos onde antes obviamente tinham cornos, atavam serpentes ao
redor da cintura como cintos, dormiam com a cabeça virada para o sul e jogavam os dentes
caídos sobre as casas. Ele os observava limparem os narizes com os dedos, comendo o catarro e
sussurrando preces. Lavavam os pés sem se descalçar, cuspiam na comida antes de engoli-la e
acrescentavam seus nomes bárbaros, masculinos e femininos, após cada palavra do “Pai Nosso”,
e assim o “Pai Nosso” inchava como um pão ao mesmo tempo em que desaparecia, e dessa
maneira, a cada três dias, era preciso limpá-lo, pois não podia ser visto nem ouvido por causa de
todos esses nomes selvagens que o engoliam. O cheiro de carniça atraía-os irresistivelmente: eles
tinham pensamentos rápidos e cantavam maravilhosamente, e Constantino chorava ao escutá-los
e ao perceber sua terceira ruga, a ruga eslava, a lhe descer pela testa como uma gota de chuva...
Depois da Morávia ele foi, em 867, para a Corte de Kótzely, o kniáz de Panônia; depois, para
Veneza, onde participou da discussão com os trilingüistas que diziam que o grego, o hebreu e o
latim eram as únicas línguas dignas da liturgia. Os venezianos perguntaram-lhe: “O carrasco de
Cristo é todo o corpo de Judas ou somente uma parte?” Foi então que Constantino sentiu
esboçar-se sua quarta ruga, a veneziana, que, com as precedentes – a sarracena, a kazar e a eslava
– ao cruzarem-se no seu rosto pareciam quatro redes lançadas sobre o mesmo peixe. Deu sua
primeira moeda de ouro a um tocador de trompa para que tocasse seu instrumento no momento
em que ele perguntava aos trilingüistas: “Um exército comparece ao chamado se não compreende
o sinal do clarim?” Era 869, e Constantino pensava em Boécio de Ravena, que morreu aos 43
anos. Tinha essa mesma idade agora. A pedido do Papa, dirigiu-se a Roma, onde conseguiu
demonstrar o justo fundamento de suas opiniões e da liturgia em eslavo. Seu irmão Metódio
acompanhava-o, bem como seus discípulos que foram batizados em Roma.
Rememorando sua vida e ouvindo os cânticos na igreja, pensava: “Assim como um
homem com talento para um certo trabalho realiza-o com esforço e imperícia quando está
doente, assim também um outro homem, pouco talentoso para esse mesmo trabalho, realiza-o
com o mesmo esforço e a mesma imperícia sem estar doente...”
Nessa ocasião, um ofício em língua eslava foi celebrado em Roma, e Constantino deu aos
cantores sua segunda moeda de ouro. Segundo um costume ancestral, colocou a terceira sob a
língua e retirou-se para um mosteiro grego de Roma, onde morreu sob seu novo nome monacal,
o de Cirilo, em 869.
Fontes principais: Uma importante bibliografia de trabalhos sobre Cirilo e Metódio está reunida na obra de G. A.
Ilínski (Ópyt Sistematítches – Koi Kiríllo – Mifodíev – Skoi Bibliográfíi), completada mais tarde por Poprujénko,
Románski, Ivánka Pétrovitch e outros. Na nova edição de sua monografia As Lendas de Constantino e Metódio Vistas de
Bizâncio (1969), F. Dvornik dá um apanhado sobre as pesquisas recentes. A edição de Daubmannus do Dicionário
Kazar (Lexicon Cosri, Regiemonti Borrusiae, excudebat Ioannes Daubmannus, 1691) trazia alguns dados, ligados aos
kazares e à polêmica kazar, mas esta edição foi destruída.
KAGHAN∇ – Título do soberano kazar. Sua capital era Itil. Sua residência de verão
situava-se às margens do mar Cáspio e tinha o nome de Samandar. Considera-se que a decisão de
admitir os missionários gregos na Corte kazar foi fruto de uma decisão política. Já em 740, um
dos kaghans kazares tinha pedido que lhe fosse enviado de Constantinopla um missionário que
conhecesse o dogma cristão. No século IX também foi preciso reforçar a aliança greco-kazar
diante do perigo comum: os russos que nessa época já tinham fechado o cerco às portas de
Constantinopla e tomado Kiev dos kazares. Mas existia um outro perigo. O kaghan da época não
tinha herdeiro. Um dia, comerciantes gregos vieram vê-lo, e ele recebeu-os bem. Eram todos de
pequena estatura, morenos e tão peludos que os cabelos de seus peitos eram repartidos como os
cabelos da cabeça. O kaghan estava sentado entre eles como um gigante e comia. A tempestade
se aproximava e os pássaros batiam contra as vidraças; as moscas, contra os espelhos. Depois da
refeição, o kaghan presenteou os viajantes e acompanhou-os até a porta. Voltando à sala, olhou
por acaso os restos do jantar: os sinais das mordidas dos gregos eram enormes, dir-se-ia de
gigantes, comparadas às suas, pequeninas como as de uma criança. Chamou imediatamente sua
Corte e pediu que lhe repetissem as palavras dos estrangeiros, mas ninguém se lembrava de nada.
“A maior parte do tempo os gregos permaneceram silenciosos”, disseram. Então, um judeu da
Corte aproximou-se do kaghan e declarou que poderia resolver sua dificuldade.
– Gostaria de saber como – disse o kaghan, lambendo um pouco de sal sagrado.
O judeu trouxe, então, um escravo e ordenou-lhe que desnudasse o braço: este era
absolutamente idêntico ao braço direito do kaghan.
– Sim – disse o kaghan –, segure-o. Segure-o e continues com teu trabalho. Estás no bom
caminho.
Mensageiros partiram, então, para todas as regiões do reino e, três meses mais tarde, o
judeu apresentou ao kaghan um rapaz cujos pés eram idênticos ao dele. Ele também foi retido na
Corte. Depois, encontraram ainda dois joelhos, uma orelha e um ombro – todos idênticos aos do
kaghan. Pouco a pouco formou-se na Corte um grupo de jovens, soldados, escravos, sapateiros,
judeus, gregos, kazares e árabes que – se se tomasse um membro ou uma parte do corpo de cada
um – podiam engendrar um jovem kaghan idêntico ao que governava em Itil. Só faltava a cabeça.
Então o kaghan certo dia convocou o judeu e lhe disse:
– A cabeça do kaghan, ou a tua.
O judeu não manifestou nenhum temor, o que provocou a curiosidade do kaghan.
– Tive medo há um ano – explicou o judeu –, mas hoje, não. Há um ano, encontrei a
cabeça. Guardei-a aqui todo esse tempo, mas não ouso mostrá-la.
O kaghan ordenou que ele lhe mostrasse essa cabeça, e o judeu lhe apresentou uma
donzela. Era bela, e sua cabeça parecia tanto com a do kaghan que seria possível confundi-las no
espelho. Se alguém tivesse visto o rosto dela num espelho, acreditaria ter visto o kaghan, um
pouco mais jovem. Então o kaghan ordenou que lhe trouxessem todas as outras pessoas que o
judeu tinha reunido no palácio, que este juntasse seus membros para criar um novo kaghan.
Assim que os sobreviventes estropiados partiram, seus membros foram juntados num segundo
kaghan; o judeu escreveu algumas palavras sobre a testa da nova criatura e o jovem kaghan, o
herdeiro, ergueu-se no leito do verdadeiro kaghan. Mas era preciso testá-lo, e o judeu enviou-o
aos aposentos da princesa Ateh∇, a amante do kaghan. Na manhã seguinte, a princesa dirigiu ao
verdadeiro kaghan esta mensagem:
– O homem que foi enviado ao meu leito ontem à noite é circuncidado, e tu não és.
Portanto, ou se trata de algum outro, e não o kaghan, ou o kaghan cedeu aos judeus e se fez
circuncidar, tornando-se um outro. Tu deves decidir o que se passou.
O kaghan pediu ao judeu que lhe explicasse o sentido dessa diferença. Este respondeu:
– A diferença não desaparecerá assim que te faças circuncidar?
Não sabendo o que fazer, o kaghan pediu conselho à princesa Ateh. Ela conduziu-o aos
porões do palácio e mostrou-lhe seu sósia. Ela mandara acorrentá-lo atrás das grades, mas ele já
quebrara suas cadeias e sacudia as barras com uma força colossal. Em uma única noite, crescera
tanto que o verdadeiro kaghan, o não-circunciso, parecia uma criança em comparação.
– Desejas que eu o libere? – perguntou a princesa.
Mas o kaghan teve tanto medo que ordenou que matassem o kaghan circuncidado. A
princesa Ateh cuspiu na testa do gigante, e ele caiu morto.
A seguir, o kaghan dirigiu-se aos gregos, assinou com eles uma nova aliança e converteu-
se à sua religião.
Com a intervenção do Papa, Metódio foi libertado e, em 880, defendeu pela terceira vez
em Roma a justeza de seu trabalho e da liturgia em língua eslava, e o Papa confirmou de novo
por uma bula a legitimidade da missa eslava. Além de uma informação sobre a flagelação de
Metódio, Daubmannus conta que ele se banhou três vezes no Tibre, como em nascimento,
casamento e morte, e lá ele comungou com três pães encantados. Em 882, Metódio foi recebido
na Corte de Constantinopla com todas as honrarias, depois na patriarquia comandada por seu
mestre e amigo de juventude, o filósofo Fotios. Metódio morreu na Morávia em 885, deixando
atrás de si as traduções eslavas do Livro Santo, do Nomocânon e dos sermões dos Pais da Igreja.
Testemunha e colaborador de Constantino, o Filósofo, na missão kazar, Metódio aparece
duas vezes como um cronista da polêmica kazar. Traduziu para o eslavo os Discursos kazares de
Cirilo e, a crer na hagiografia deste último, redigiu suas prédicas (reagrupadas em oito livros). Já
que os Discursos kazares não foram conservados, nem no original grego nem na tradução eslava de
Metódio, a biografia eslava de Constantino, o Filósofo (Cirilo), escrita sob a orientação de
Metódio, é a fonte cristã mais importante sobre a polêmica kazar. Aí se encontra a data da
polêmica (861), bem como uma descrição detalhada dos argumentos de Constantino e dos seus
adversários e interlocutores, na verdade não identificados, o representante judeu e o
representante muçulmano na Corte kazar. Daubmannus cita a seguinte opinião sobre Metódio:
“O mais difícil é lavrar o campo alheio e a própria mulher – ele observa –, mas como todo
homem está crucificado em sua mulher como em uma cruz, se conclui daí que parece mais difícil
carregar sua cruz do que a de outro. Foi assim com Metódio, que nunca carregou a cruz do
irmão... Pois o irmão mais novo era seu pai espiritual”.
SEVAST, NIKON (Século XVII) – Conta-se que, em certa época, o diabo viveu sob este
nome, na garganta de Óvtchar, nas margens do Mórava, nos Bálcãs. Era particularmente gentil e
chamava a todos por seu próprio nome: Sevast. Trabalhava como protocalígrafo no mosteiro de
São Nicolau. No lugar em que se sentava, deixava a marca de dois rostos e tinha um nariz no
lugar da cauda. Afirmava que numa vida anterior tinha sido um demônio do inferno judeu,
servindo Belial e Gueburá e enterrando cadáveres nos sótãos das sinagogas. Num outono em que
os pássaros soltavam titica envenenada, queimando folhas e infectando as ervas, contratou um
capanga para que o matasse. Era sua única maneira de passar do inferno judeu para o inferno
cristão, e de poder servir Satã em sua nova vida.
Segundo outras narrativas, ele nem morreu. Deixou um cão lamber um pouco de seu
sangue, entrou na tumba de um turco, pegou-o pelas orelhas e, tendo-o esfolado, vestiu sua pele.
Por causa disto, seus olhos de cabra miravam através de belos olhos turcos. Temia os isqueiros de
sílex, jantava depois dos outros e roubava uma pedra de sal por ano. Diz-se que de noite montava
os cavalos do mosteiro e das cidadezinhas vizinhas, que, pela manhã, estavam cobertos de
espuma, sujos e com a crina trançada. Diz-se que agia assim para esfriar seu coração cozido em
vinho fervente. Por causa disto, era costume atar na crina dos cavalos o selo de Salomão que ele
temia, protegendo-os, assim, dele e de suas botas sempre cheias de mordidas de cão. Andava
ricamente vestido e fazia belos afrescos pois, segundo a lenda, recebera este dom do Arcanjo
Gabriel. Seus afrescos ainda podem ser vistos nas paredes das igrejas da garganta de Óvtchar.
Neles existem inscrições que, lidas numa ordem determinada, imagem após imagem, mosteiro
após mosteiro, formam uma mensagem. Esta poderá ser decifrada enquanto as pinturas
existirem. Nikon a deixou para seu próprio uso, para o dia em que voltar entre os vivos, em
trezentos anos; os demônios, ele dizia, esquecem tudo de suas vidas passadas e devem, portanto,
agir desse modo. No início de sua carreira de pintor, ele não era particularmente bem dotado.
Trabalhava com a mão esquerda, suas imagens eram bastante bonitas, mas simplesmente não se
podia conservá-las na memória, como se desaparecessem das paredes no instante em que se
parasse de contemplá-las. Certa manhã, Sevast olhava desesperadamente suas cores e, de repente,
sentiu que um silêncio de qualidade diferente acabava de se instalar no seu próprio mutismo,
deslocando-o. Alguém estava ali e se calava. Mas não na língua de Nikon. Então, ele começou a
implorar ao Arcanjo Gabriel que lhe desse o dom das cores. Naquele tempo, nos mosteiros de
Iôvany, Blagovechtênie, Níkoly e Sréteny, jovens monges iconógrafos pintavam afrescos e
rivalizavam, numa prece muda e coletiva, para saber quem pintaria melhor seu santo. Ninguém
poderia imaginar que somente a prece de Sevast seria ouvida. Foi, no entanto, o que aconteceu.
Em agosto de 1670, na véspera do dia dos Sete Mártires de Éfeso, dia em que se começa
a comer carne de gazela, Nikon Sevast disse:
– O caminho mais seguro para chegar ao verdadeiro futuro (pois existe também um falso
futuro) é ir na direção em que teu medo cresce.
E partiu à caça. Levou consigo um monge chamado Teoktist NikólskiA que o ajudava a
caligrafar os livros no mosteiro. E se tal caçada entrou para a lenda, foi sem dúvida graças às
notas tomadas por esse monge. Segundo a narrativa, Sevast fez o galgo montar na sua garupa e
partiram para caçar gazelas. Em certo momento, o cão saltou do cavalo, mas Teoktist não
percebeu nenhum cervo diante deles. No entanto, o cão ladrava como se farejasse caça, e
lentamente alguma coisa invisível mas pesada começou a se aproximar dos caçadores. Ouvia-se o
estalido da mata. Sevast comportava-se, aliás, como o cão. Agia como se houvesse um cervo
diante dele. Ouviu-se, de fato, um bramido bem perto, e Teoktist concluiu que era o Arcanjo
Gabriel que aparecia a Nikon sob a forma de um cervo, um cervo que não era senão a alma de
Nikon Sevast. Em outras palavras, o Arcanjo oferecera uma alma a Nikon. Assim, naquela
manhã, caçou e capturou sua própria alma e começou a dialogar com ela.
– Em tua voz imensa, o que está em baixo chama o que está no alto: ajuda-me a
glorificar-te pela cor! – gritou Sevast ao Arcanjo, ao cervo, ou à sua alma, ou a seja lá o que fosse.
– Quero pintar a noite que separa o sábado do domingo e no coração desta noite o mais belo
ícone teu, para que, mesmo sem vê-lo, de toda parte dirijam-te preces!
Então o Arcanjo Gabriel falou:
– Preobived Potasta se Oslobiti...•
E o monge compreendeu que o Arcanjo se expressava saltando os substantivos. Porque
os substantivos são para Deus, e os verbos para o homem. E o iconógrafo replicou:
– Como posso trabalhar com a mão direita, eu que sou canhoto?
Mas o cervo já havia desaparecido, e o monge perguntou a Nikon:
– O que era isso?
E ele respondeu calmamente:
– Nada em particular, tudo isso é temporário, só estou de passagem, a caminho de
Constantinopla... – Mas logo acrescentou: – Se levantares o homem do seu leito, aí verás vermes,
animaizinhos transparentes como pedras preciosas e mofo...
Então, a alegria tomou-o como se fosse doença, e mudou seu pincel da mão esquerda
para a direita e começou a pintar. As cores jorravam dele como leite e mal tinha tempo de
espalhá-las. Em um átimo aprendera tudo: como misturar a tinta da China com a secreção do
cervo almiscarado, que a cor amarela é a mais rápida a secar, que a negra é a mais lenta, a que
mais demora a mostrar seu verdadeiro rosto. Manipulava com perfeição o “branco de São João”
e o “sangue do dragão”. Não recobria as imagens com verniz, mas utilizava um pincel
mergulhado em vinagre para captar a cor do ar luminoso. Pintava, alimentava e curava através das
cores tudo que havia ao seu redor, as armações das portas e os espelhos, as colméias e as
abóboras, as moedas de ouro e as polainas. Pintou os quatro evangelistas, Mateus, Marcos, Lucas
e João, nas ferraduras do seu cavalo; e os dez mandamentos de Deus nas unhas da mão; Maria, a
Egípcia, no balde do poço; as duas Evas, a primeira (Lilith) e a outra (a de Adão), nos postigos da
janela. Pintava nos ossos roídos, nos seus dentes e nos dos outros, nos bolsos revirados, nos
chapéus e nos tetos. Pintou os doze apóstolos em tartarugas vivas e soltou-as na floresta. As
noites eram tão calmas quanto quartos; ele escolhia a que mais lhe agradava, penetrava nela,
prendia um lampião numa trave e executava um díptico. Pintou desse modo os arcanjos Gabriel e
Miguel no momento em que um passava para o outro a alma de uma pecadora, através da noite
de um dia para o outro, Miguel estando na terça-feira e Gabriel na quarta. Eles caminhavam
sobre os nomes dos dias e o sangue esguichava dos pés dos arcanjos feridos pelas pontas das
letras. As pinturas de Nikon Sevast eram ainda mais belas quando ele trabalhava no inverno, sob
o reflexo branco da neve, mais do que quando trabalhava sob o sol do verão. Nelas havia, então,
uma espécie de brilho amargo, como se tivessem sido realizadas durante um eclipse, e nos rostos
uma espécie de sorriso que se apagava em abril para renascer com a primeira neve. Punha-se
então a pintar de novo, empurrando com o cotovelo, de vez em quando, seu enorme pênis para o
meio das pernas, para não ser atrapalhado em sua tarefa.
•
– Tendo atravessado bebentes enfurecer-se... (em eslavo eclesiástico)
Todos os que as viam guardavam a recordação de suas novas pinturas por toda a vida:
por isto os monges e os pintores da garganta do Óvtchar corriam até Níkoly, como se
atendessem ao chamado de uma sirene, para ver as cores de Nikon. Os mosteiros começaram a
disputá-lo, pois cada um dos seus ícones rendia tanto quanto uma vinha, e seu trabalho nos
afrescos era tão rápido quanto o mais rápido dos cavalos. Uma anotação, escrita em 1674 nas
páginas de um octoeco, que relata como trabalhava o iconógrafo Nikon, foi conservada:
“Há dois anos, no dia de Santo Andréi Stratilat, na época em que se começa a comer
perdizes, estava eu sentado – anota um monge anônimo – na minha cela em Níkoly, lendo os
poemas de Kiev sobre a Nova Jerusalém, enquanto na cela vizinha três monges e um cão estavam
comendo: os dois monges idiorrítmicos, de fato, já tinham comido, pois o iconógrafo Sevast
Nikon tem o costume de comer sozinho, depois de todos. Segundo o ruído das mandíbulas,
podia-se saber, através do silêncio dos poemas que eu lia, que Nikon mastigava uma língua de boi
que, antes de ser cozida, tinha sido batida sobre o tronco da ameixeira em frente à porta, para
amaciar. Depois, Nikon saiu e instalou-se para pintar e, vendo-o preparar as cores, perguntei-lhe
o que ia fazer.
– Não sou eu quem misturo as cores, mas teu olho – respondeu-me. – Apenas espalho-as
na parede, uma ao lado da outra, assim como são, e aquele que olha mistura as cores no seu olho,
como uma massa de pastel. Nisto reside o segredo. O que fizer a melhor massa obterá a melhor
imagem, mas a massa pode desandar se se utilizar farinha da má qualidade. A paixão de olhar, de
escutar e de ler é mais importante que a paixão de pintar, de cantar ou de escrever.
Pegou a cor azul e a vermelha, colocou-as uma ao lado da outra para pintar os olhos de
um anjo. E vi que o anjo tinha olhos violeta.
– Apenas trabalho com uma espécie de dicionário de cores – acrescentou Nikon – e é o
espectador quem cria, a partir desse dicionário, frases e livros, ou seja, imagens. Tu também
poderias proceder do mesmo modo escrevendo. Não se poderia oferecer ao leitor um dicionário
cujas palavras constituiriam um livro, deixando-lhe a tarefa de compor um conjunto a partir
dessas palavras?
Depois Nikon virou-se para a janela, apontando com seu pincel o campo diante do
mosteiro de Níkoly e disse:
– Vês aquele sulco? Não é um sulco de arado. Foi traçado pelo latido de um cão...
Então, pensou por um momento e perguntou, como que para si mesmo:
– Se pinto deste modo com a mão direita, sendo canhoto, imagine como pintaria se
usasse a mão esquerda? – E mudou o pincel de mão.
A notícia espalhou-se rapidamente nos mosteiros das proximidades, e todos ficaram
apavorados, temendo que Nikon Sevast tivesse voltado para Satã e por isto fosse punido. De
fato, suas orelhas voltaram a ficar afiadas como uma navalha, e dizia-se que podia cortar um
pedaço de pão com elas. Mas sua arte permaneceu idêntica, pintava com a mão esquerda tão bem
quanto com sua mão direita e nada mudou, a maldição do Arcanjo não se realizou. Certa manhã,
Nikon Sevast esperava o igúmano do mosteiro de Blagovechtênie onde devia decorar a porta
central do iconostasse. Mas ninguém chegou de Blagovechtênie, nem naquele dia, nem no
seguinte. Então Sevast lembrou-se, de repente, de alguma coisa, recitou o quinto “Padre Nosso”,
o que se diz habitualmente para o repouso da alma dos suicidas, e partiu para o mosteiro em
questão. Diante da igreja encontrou o igúmano e perguntou-lhe, chamando-o, como de costume,
pelo seu próprio nome:
– Sevast, Sevast, o que foi que aconteceu?
Sem dizer uma palavra, o velho mandou-o entrar numa cela e lhe mostrou um pintor,
jovem como a fome, que estava pintando o iconostasse. Nikon olhou a imagem e ficou atônito.
O jovem mexia as sobrancelhas, como se fossem asas, e pintava tão bem quanto Nikon. Não era
nem melhor nem pior do que ele. Então Nikon compreendeu em que consistia sua punição. Aí
correu o rumor de que um outro jovem trabalhava na igreja de Prniávor tão bem quanto Nikon
Sevast, e isto revelou-se exato. Rapidamente, outros pintores e iconógrafos mais idosos puseram-
se, como se deixassem o porto e ganhassem o alto mar, a pintar cada vez melhor, igualando-se à
arte de Nikon Sevast, que era para eles, até então, um modelo inacessível. Assim, todas as paredes
dos mosteiros da garganta do Óvtchar foram pintadas com iluminuras e restauradas, e Nikon
encontrou-se de novo no ponto de partida, quando abandonara a mão esquerda pela mão direita.
Não podendo suportar isso, disse:
– De que serve ser um iconógrafo como todos os outros? Agora todo mundo sabe pintar
tão bem quanto eu...
E abandonou para sempre os pincéis e nunca mais pintou imagem alguma. Nem mesmo
em um ovo. Chorou todas as cores de seus olhos no almofariz do mosteiro e, em companhia de
Teoktist, seu assistente, partiu de São Nicolau, deixando atrás de si a pegada de uma quinta
ferradura. Disse, ao partir:
– Conheço em Constantinopla um grande senhor cuja cabeleira é tão espessa quanto a
cauda de um cavalo. Ele nos contratará como escribas.
E pronunciou o nome dele. Era o senhor Avram Bránkovitchg.
O doutor Suk tinha acordado com essa promessa e encontrara a chave em sua boca.
Quando saiu para a rua, o meio-dia estava bem doente, uma espécie de peste luminosa
corroía o brilho do sol, espinhas e furúnculos de ar se multiplicavam e explodiam em epidemia,
contaminando as nuvens que apodreciam e se degradavam em um vôo cada vez mais lento.
A semana tinha tido seu mênstruo, e o domingo exalava um odor desagradável, soltando
ventos como um aleijado que convalesce. Ao longe, no fundo do horizonte sarnento, os dias
gastos de Suk azulavam, pequenos porque vistos de longe, mas em plena saúde; privados dos seus
nomes de calendário, distanciavam-se alegremente num bando livre dele e de suas preocupações,
deixando uma nuvem de poeira atrás de si...
Um dos meninos que brincavam de trocar de calças parou diante da banca onde o doutor
Suk comprava seus jornais e mijou em suas pernas. O doutor Suk virou-se, com ar de quem
descobre, de noite, que sua braguilha permaneceu desabotoada durante todo o dia, e foi então
que um desconhecido lhe aplicou uma formidável bofetada. Fazia frio e o doutor Suk percebeu
através do tapa que a mão do seu agressor era muito quente. Apesar da dor, aquilo lhe foi quase
agradável. Virou-se para o descarado, prestes a protestar, mas sentiu no mesmo instante que a
calça molhada lhe colava na perna. Neste exato momento, um outro homem, que esperava o
troco ao lado do primeiro, esbofeteou-o por sua vez. O doutor Suk deduziu que era melhor se
afastar dali, o que fez, não compreendendo estritamente nada, exceto que a segunda bofetada
cheirava a cebola. Mas era preciso que não perdesse tempo, pois vários passantes corriam atrás
dele e os tapas choviam como se fosse algo absolutamente natural. O doutor Suk percebeu,
então, que, entre aqueles que o esbofeteavam, alguns tinham as mãos frias, e isto lhe pareceu
curiosamente agradável no meio desta situação inteiramente desagradável. Ele começava a sentir
muito calor. Havia, ainda, neste caos, outros momentos favoráveis. Embora não conseguisse
refletir, porque entre duas bofetadas não se tem tempo para refletir, ele percebera que os tapas
eram, às vezes, dados por mãos suadas e que os perseguidores empurravam-no para a igreja de
São Marko, na praça central, portanto, na direção que queria tomar para chegar a uma loja onde
pensara fazer compras. Assim, ele deixou-se conduzir pelas bofetadas que o levavam ao seu
objetivo.
Então ele chegou a uma cerca atrás da qual nada jamais foi visto nem ouvido. Como
agora era obrigado a correr, impulsionado pela chuva de bofetadas que não diminuía, as fendas da
cerca se reuniram em seus olhos e, pela primeira vez (embora já tivesse passado por ali antes), viu
uma casa atrás da cerca, e um jovem que estava numa das janelas, tocando violino. Notou
também a estante com a partitura e reconheceu de imediato o concerto para violino e orquestra
em sol menor de Bruch, mas não ouviu nenhum som, embora a janela estivesse aberta e o jovem
tocasse enfurecido. Surpreso e atordoado sob a saraivada de golpes que ainda caía sobre ele, o
doutor Suk entrou finalmente como uma flecha na loja que era o objetivo de sua saída matinal e,
aliviado, fechou ruidosamente a porta atrás de si. Reinava aí um silêncio tão espesso quanto
dentro de um pote de conserva de pepino; apenas um odor de milho flutuava no ar. A loja estava
vazia, com a exceção de uma galinha, num canto, deitada num chapéu. Ela abriu um olho em
direção ao doutor Suk e observou tudo que havia nele de comestível. Depois, abriu o outro olho
e viu todas as partes indigestas. Permaneceu pensativa um instante, e finalmente o doutor Suk
apareceu no olho de sua mente como um todo, constituído de partes comestíveis e não-
comestíveis, e finalmente ela soube com quem estava tratando. Mas o que aconteceu a seguir,
quem deve contar é ele.
Saindo da loja, o doutor Suk temia, por um instante, um novo ataque na rua, mas nada
aconteceu. Enquanto estava imerso em seus pensamentos, a chuva começou a cair. Encontrava-
se justamente diante da cerca atrás da qual, naquela manhã, um jovem tocava. Como pôs-se a
correr, as fendas da cerca juntaram-se de novo e ele percebeu a janela e o jovem com o violino.
Mas ainda desta vez não ouviu nada, apesar da janela aberta. E certo que ele era surdo para certos
sons, mas deveria ter percebido outros. Correndo, aproximava-se da casa de sua mãe, e suas mãos
exploravam sua pele como o cego que tateia seu caminho. Seus dedos reconheciam a direção e o
caminho já percorrido. Em seu bolso encontrava-se de fato a chave que anuncia a morte, e o ovo
que poderia salvá-lo desse dia mortal... O ovo com a data; a chave com um pequeno aro de ouro.
Sua mãe estava sozinha; ela gostava de fazer uma pequena sesta no final da tarde e ainda estava
sonolenta.
– Traga-me meus óculos, por favor – disse ao filho –, e deixa que te leia apenas essa
passagem sobre o cemitério kazar. Escuta o que escreve o doutor Suk sobre os kazares de
Tchelárevo:
“Eles jazem em sepulturas familiares, espalhadas aqui e ali às margens do Danúbio, e em
cada tumba a cabeça está voltada na direção de Jerusalém. Repousam em tumbas duplas, com
seus cavalos, com os olhos fechados e virados na direção oposta ao animal; estão deitados sob
suas mulheres, que estão curvadas sobre os ventres, de modo a deixarem visíveis apenas seus
seios, e não seus rostos. Às vezes, estão enterrados em pé, terrivelmente envelhecidos e quase
decompostos de tanto fixarem o céu; estão protegidos por tijolos onde está inscrito o nome de
Yehuda, ou então a palavra ‘Chakhor’ que significa ‘negro’. Foi aceso fogo nas quinas das tumbas,
alimento foi posto a seus pés e facas amarradas à sua cintura. Um segundo animal sempre jaz ao
lado deles: aqui um carneiro, um boi, ou uma cabra; ali uma galinha, um porco ou um cervo; e
nas tumbas das crianças depositam ovos. Às vezes, encontram-se perto deles suas ferramentas,
foices ou pinças de ourives. Há, sobre seus olhos, orelhas e bocas, uma espécie de proteção, ou
seja, um pedaço de telha de origem romana, datando do século III ou IV, sobre o qual há uma
imagem do candelabro judeu de sete braços, esta datando do século VII ou VIII ou IX. Os
candelabros menores e outros símbolos judeus foram gravados na telha com ajuda de
instrumentos pontudos e com imperícia, às pressas, talvez em segredo, como se não se tivesse o
direito de desenhá-los bem. Ou ainda como se os gravadores não se lembrassem bem da forma
dos objetos, como se nunca tivessem visto um candelabro, uma pazinha de cinzas, um limão, um
chifre de carneiro ou uma palmeira, e que desenhassem a partir da descrição de um terceiro.
Essas coberturas gravadas, colocadas sobre os olhos, as bocas e as orelhas, impedem os
demônios e os ‘chedim’ de entrarem nos túmulos, mas todas essas telhas estão atualmente
espalhadas através do cemitério como se uma força imensa, o fluxo da gravitação terrestre, as
tivesse deslocado, e nenhuma se encontra mais no local onde deveria exercer sua função de
guardiã. Poder-se-ia até suspeitar que um zelo fervoroso e tardio tenha trazido de outros túmulos
essas coberturas para olhos, bocas e orelhas, abrindo o caminho para certos demônios e
fechando-o para outros...”
Neste instante, todas as sinetas da porta tocaram e a casa encheu-se de convidados.
Gelsomina Mohoróvitchitch entrou, calçada com botinhas que rangem, com seus belos olhos
imóveis como pedras preciosas engastadas. A mãe do professor Suk ofereceu-lhe o violoncelo
diante de todo mundo, beijou-a entre os olhos, desenhando-lhe um terceiro olho com o batom, e
disse:
– Em tua opinião, Gelsomina, de quem vem este presente? Adivinha! Do professor Suk!
É preciso que lhe escrevas uma linda carta para agradecê-lo. É um homem jovem e bonito.
Sempre lhe reservo um lugar de honra em minha mesa!
Sonhadora e acompanhada de sua sombra pesada, com a qual poderia pisar em cima de
alguém como se fosse uma bota, madame Suk dispôs os convidados em torno da mesa, deixando
o lugar de honra vazio, como se ainda esperasse o convidado mais importante e, distraidamente,
instalou o doutor Suk ao lado de Gelsomina e de outros jovens, perto de um fícus bem regado
que suava e lacrimejava atrás deles, de modo que se ouviam as gotas cair de suas folhas sobre o
assoalho.
Naquela noite, durante o jantar, Gelsomina dirigiu-se ao doutor Suk, colocando seu
mindinho ardente sobre a mão dele:
– Os atos do homem são como os alimentos, e os pensamentos e sentimentos são os
temperos. Quem salga as cerejas ou tempera um doce com vinagre terá problemas...
Enquanto Gelsomina dizia essas palavras, o doutor Suk cortava o pão e pensava em
como a idade dela, para ele, era uma, e para o resto do mundo, era outra.
Quando voltou para o hotel, depois da festa, o doutor Suk tirou a chave do bolso, pegou
uma lupa e examinou-a. Na moeda de ouro que servia de aro leu a letra judia He. Riu e colocou a
chave de lado, tirou de sua pasta o Dicionário Kazar editado por Daubmannus em 1691 e, antes de
adormecer, leu o verbete Amas-de-leite. Estava convencido de ter entre as mãos o exemplar
envenenado, aquele que fazia o leitor morrer ao fim de nove páginas e por isso ele nunca lia mais
do que quatro páginas seguidas evitando expor-se ao perigo. Pensava: nunca se deve tomar sem
necessidade o caminho que traz a chuva. O verbete que escolhera essa noite não era longo:
“Existiam entre os kazares – estava escrito no dicionário de Daubmannus – amas que
podiam envenenar seu próprio leite. Eram, por causa disto, muito reivindicadas. Considera-se que
descendiam de uma ou duas tribos árabes que Maomé tinha exilado de Medina, pois adoravam
uma quarta divindade beduína Manat. Vinham, provavelmente, da tribo dos Qoraichitas ou da dos
Hawazitas. Eram contratadas para amamentar (uma só vez bastava) um príncipe indesejável, ou
um rico herdeiro que co-herdeiros queriam eliminar. Por causa disso foram criados os
‘provadores de leite envenenado’. Eram rapazes que dormiam com as amas e chupavam seus
seios, um pouco antes que dessem de mamar à criança que lhes tinha sido confiada. Se seus
amantes não sentissem nenhum mal, tinham o direito de entrar no quarto da criança...”
O doutor Suk adormeceu antes do alvorecer, pensando que jamais saberia o que
Gelsomina quisera dizer-lhe naquela noite. Era completamente surdo à voz dela.
TCHELÁREVO (século VII – século XI) – Sítio arqueológico com uma necrópole
medieval, no vale do Danúbio, na Iugoslávia. Não foi encontrada a cidade que alimentava o
cemitério. Não se sabe, também, de maneira rigorosa, quem foi enterrado no cemitério de
Tchelárevo, mas foram observados sinais dos ávaros e influências persas nos objetos retirados
dos túmulos. Foram descobertos aí desenhos que representavam o menorá (o candelabro
litúrgico judeu de sete braços) e outros símbolos judeus e inscrições em hebreu. Os sítios
arqueológicos de Quersônia, na Criméia, guardam também menorás, do mesmo tipo de
Tchelárevo.
Desse fato, os especialistas tiraram as seguintes conclusões: a descoberta de vestígios nas
cercanias de Novi Sad (onde se encontra Tchelárevo) que diferem dos que são habitualmente
interpretados como de origem ávara, sugere a presença de um outro substrato, um povo que se
teria estabelecido no vale da Panônia, antes da chegada dos húngaros. Aliás, dele subsistem ainda
sinais escritos. Efetivamente, um escriba anônimo do rei Béla, como também Abdul Hamid da
Andaluzia e Kinnamos acreditam que essa região da margem do Danúbio foi habitada por povos
de origem turca (ismaelitas) que se diziam herdeiros de tribos vindas da Quersônia. Tudo isso
indicaria, portanto, que a necrópole de Tchelárevo pertencia em parte aos kazares judaizados. O
doutor Isailo Sukg, arqueólogo e arabista dessa região, que foi um dos primeiros a trabalhar nas
descobertas de Tchelárevo, deixou uma nota a esse respeito, encontrada após sua morte. Essa
nota não trata somente de Tchelárevo, mas também das opiniões emitidas a propósito desse sítio.
Eis o texto: “Quanto aos que foram enterrados em Tchelárevo, os húngaros gostariam que
fossem húngaros ou ávaros, os judeus que fossem judeus, os muçulmanos que fossem mongóis,
mas ninguém deseja que sejam kazares. E no entanto eles provavelmente são... O cemitério está
cheio de fragmentos de cântaros e de menorás incrustados. Ora, entre os judeus, um cântaro
partido significa um homem aniquilado, perdido. Esse cemitério é aquele das pessoas aniquiladas,
perdidas, o que os kazares efetivamente eram, nesse lugar e nessa época”.
MENORÁ DE TCHELÁREVO
O LIVRO VERDE
FONTES ISLÂMICAS SOBRE A QUESTÃO KAZAR
AKCHANI, YABIR IBN (século XVII) – Segundo uma lenda contada na Anatólia pelos
tocadores de alaúde, este nome foi, em certa época, usado por um demônio para apresentar-se a
Yuçuf MaçudiÂ, um dos mais célebres alaudistas do século XVII. Ibn Akchani era também um
excelente músico. Um dos seus dedilhados para uma melodia foi anotado, e isso permitiu
descobrir que tocava com mais de dez dedos. Era um homem que atraía os olhares, não tinha
sombra e seus olhos eram tão rasos que pareciam duas pequenas poças d’água. Embora não
dissesse com franqueza o que pensava sobre a morte, sugeria-o às pessoas contando histórias,
aconselhando-as a analisar seus sonhos, ou ainda a escutar, para compreender a morte, os
caçadores de sonhos. Devem-se a ele dois ditados: 1) “A morte tem o mesmo sobrenome que o
sonho, mas nós ignoramos este sobrenome”; 2) “O sono é o fim cotidiano da vida, um pequeno
exercício da morte, que é sua irmã, mas nem todo irmão e irmã são igualmente próximos.” Certa
vez, quis mostrar às pessoas como a morte age na prática, e deu como exemplo um chefe militar
cristão cujo nome foi conservado: chamava-se Avram Bránkovitchg e combatera na Valáquia
onde, segundo o demônio, todo homem nasce poeta, vive como ladrão e morre vampiro. Em
certa época, Yabir Ibn Akchani foi guardião do túmulo do sultão Murat e foi nesta circunstância
que um visitante anônimo anotou algumas palavras de Akchani:
“O guardião fecha o túmulo – anota o desconhecido –, deixando ressoar na obscuridade
interior o ruído surdo da fechadura, como se lá fechasse o nome da chave. Tão preguiçoso
quanto eu, ele senta-se numa pedra próxima e fecha os olhos. No momento em que penso que
está dormindo, no seu canto, à sombra, o guardião levanta o braço e mostra-me uma traça que
volteia sob o pórtico do túmulo, tendo escapado de nossas roupas ou dos tapetes persas do
interior da tumba.
– Vê – diz-me com desinteresse –, o inseto encontra-se longe, lá em cima, sob a curva
branca do pórtico, e só o percebemos porque se move. Se confundíssemos a arcada com o céu,
poderíamos pensar que era um pássaro, longe, entre as nuvens. Para a traça, essa parede é sem
dúvida um céu, e somos os únicos a saber que ela se engana. E ela ignora até que nós o sabemos.
Nem mesmo sabe que existimos. Tenta comunicar-te com ela! Podes dizer-lhe alguma coisa –
qualquer coisa – de uma maneira que ela compreenda e que te dê certeza de que ela
compreendeu?
– Não sei – respondi. – E tu? Podes?
– Posso – disse, calmo, o velhote.
Esmagou a traça entre a mãos e mostrou-a na palma da mão. E encadeou:
– Não crês que ela compreendeu o que eu lhe disse?
– Poderias demonstrar do mesmo modo que existes para uma vela, apagando-a entre dois
dos teus dedos – observei.
– Naturalmente, se a vela fosse capaz de morrer... E agora que sabemos tudo isto sobre a
traça – continuou –, imagina que exista alguém que saiba tanto sobre nós. Alguém que saiba
como, através do que e por que nosso espaço é limitado, que conheça realmente o que, a nossos
olhos, é o céu, e que nós consideramos ilimitado – alguém que não tenha condições de se
aproximar de nós e que só tenha uma maneira de nos fazer compreender que existe: matando-
nos. Alguém cuja veste seja nosso alimento, alguém que carregue nossa morte em suas mãos
como uma linguagem, como um meio de comunicação conosco. Matando-nos, esse
desconhecido informa-nos sobre ele mesmo. E, através da nossa morte, que é talvez um
ensinamento para um outro vagabundo qualquer, sentado perto do matador, percebemos no
último momento, como através de uma porta entreaberta, que existem outros espaços e outros
limites. Esse sexto e mais alto grau da angústia mortal (que a lembrança ignora) mantém-nos
juntos no mesmo jogo, a nós, parceiros anônimos. A hierarquia das diferentes mortes é, na
verdade, o único contato possível entre todos os níveis da realidade, num espaço de outro modo
indefinido, onde as mortes, como eco entre ecos, respondem-se infindavelmente...
Enquanto o guardião fala, concluo: se o que ele me diz é só uma questão de sabedoria, de
experiência ou de leitura, então não merece reter minha atenção. Mas e se ele estivesse
simplesmente ocupando, neste exato instante, uma posição de onde pudesse ter uma visão
melhor do que nós ou do que ele próprio, um dia antes?...”
Yabir Ibn Akchani viveu ainda algum tempo como vagabundo levando consigo seu
instrumento de música feito com uma carapaça de tartaruga branca. Errava pelas cidadezinhas da
Ásia Menor, onde tocava e jogava flechas envenenadas, roubando ou mendicando duas medidas
de farinha por semana. Morreu em 1699 depois de Iça, de uma maneira curiosa. Nessa época, ele
ia às aldeias onde a feira se realizava às quintas-feiras e, sentado ou em pé, ele sempre criava
problemas. Cuspia nos cachimbos das pessoas, atava as rodas de suas carroças, ou dava nós nas
caudas dos seus turbantes, fazendo com que um desatasse o outro. Quando as pessoas ficavam
tão irritadas que caíam sobre ele, ele simplesmente cortava suas bolsas ou esvaziava-lhes os
bolsos, enquanto eles o esmurravam. Como passatempo. Certo dia, quando considerou que
chegara o momento, encontrou um camponês que possuía uma vaca amarela e pagou-lhe para
que a conduzisse para um certo local, a uma dada hora. O lugar permanecera por um ano virgem
de toda sonoridade. O camponês aceitou o trato, levou a vaca, e ela estripou Ibn Akchani. Teve
uma morte rápida e fácil, como se tivesse adormecido, e neste instante, finalmente, sua sombra
apareceu debaixo dele, talvez apenas para acolher seu corpo. Deixava atrás de si o alaúde feito
com uma carapaça de tartaruga branca, que começou a caminhar de novo, outra vez
transformada em animal, e retornou ao mar Negro. Os alaudistas crêem que sua tartaruga se
transformará novamente em alaúde branco, e substituirá sua sombra, no dia em que Yabir Ibn
Akchani voltar de novo entre os vivos.
Ele foi enterrado em Trnovo, próximo de Néretva, no lugar que ainda se chama “a tumba
do demônio”. Um ano mais tarde, um cristão das margens do Néretva, que conhecera bem
Akchani, foi até Salônica para negócios. Entrou numa loja para comprar um desses garfos de dois
dentes, que pegam duas espécies de carne, de porco e de vaca, de uma só vez.
Assim que o proprietário da loja chegou para servi-lo, o cristão imediatamente
reconheceu nele Akchani e perguntou-lhe o que ele estava fazendo em Salônica, se já o tinham
enterrado um ano antes em Trnovo.
– Meu amigo – respondeu Akchani –, estou de fato morto, mas Alá rejeitou-me por toda
a eternidade e um dia, e assim sendo aqui estou como comerciante e tenho tudo que você possa
imaginar, só não me peças uma balança, pois não mais tenho o direito de pesar. Por isso mesmo é
que vendo sabres, facas, garfos e ferramentas, todos objetos que se contam, mas não se pesam.
Estou sempre aqui, exceto na undécima sexta-feira do ano, quando devo voltar à minha tumba.
Tu sabes, vou vender-te a mercadoria a crédito, tanta quanta quiseres, mas vais fazer-me a
promessa escrita de me pagares na data combinada...
O homem de Néretva aceitou, embora aquele fosse um desses dias em que os cachimbos
gemem e não soltam fumaça. Assinou uma fatura da dívida, com vencimento depois da undécima
sexta-feira, que cai no mês de rabi-al-awwal. Afiou seu bastão negro com grãos de trigo sarraceno e
voltou para casa, levando toda mercadoria que desejava. A caminho, na beira do Néretva, foi
atacado por um gigantesco javali e conseguiu defender-se com dificuldade, graças a seu bastão,
mas o animal ainda assim arrancou-lhe um pedaço do seu cinto azul. No mês de rabi-al-awwal, na
undécima sexta-feira, pegou sua pistola e o garfo comprado em Salônica, abriu a “tumba do
demônio” e encontrou nela duas pessoas. Uma estava deitada de costas e fumava um comprido
cachimbo; a outra, recostada de lado, estava calada. No momento em que o homem de Néretva
apontou a pistola para eles, o fumante de cachimbo soprou-lhe a fumaça no rosto e disse:
– Sou Nikon Sevastg, nada podes contra mim, porque estou enterrado na margem do
Danúbio – e desapareceu imediatamente, deixando o cachimbo na tumba. No mesmo instante, o
outro virou-se para ele e o camponês reconheceu Akchani, que lhe disse com tom reprovador:
– Ei, meu amigo, poderia ter-te matado em Salônica, mas não quis e, pelo contrário,
ajudei-te. Ousa, então, matar-me agora, e em nome do teu Deus...
Com essas palavras, Akchani sorriu e o camponês percebeu em sua boca um pedaço do
seu cinto azul... Teve um sobressalto, puxou o gatilho de sua pistola e atirou em Akchani. Este
tentou atingi-lo com a mão, mas era tarde demais, e só conseguiu arranhá-lo. Akchani caiu
berrando como um boi e encheu a tumba de sangue.
Voltando para casa, o camponês guardou a arma e procurou o garfo de dois dentes, mas
não o encontrou. Enquanto atirava em Akchani, este tinha lhe roubado o garfo...
Segundo uma outra lenda, Yabir Ibn Akchani nem chegou a morrer. Em certa manhã, em
1699, em Constantinopla, jogou uma folha de louro numa tina de água e mergulhou nela a cabeça
para lavar sua trança. Permaneceu assim alguns instantes. Quando tornou a levantar a cabeça para
respirar, ao seu redor nada mais restava de Constantinopla, nem do reino em cujo coração fazia
sua toalete. Encontrava-se agora no Kingston, um luxuoso hotel de Istambul, em 1982 depois de
Iça, tinha uma mulher, um filho e um passaporte belga, falava francês, e diante dele, no fundo da
pia de marca F. Primavesi & Son, Corrella, Cardiff nadava ainda uma folha de louro.
REGISTRO DO DEDILHADO DO
DEMÔNIO (ADAPTADO PARA O VIOLÃO,
NA ESPANHA NO SÉCULO XVIII)
FRAGMENTO DE BASSORÁ – Sob este nome foi conservado, graças a uma cópia
feita no século XVIII, um texto árabe que se supõe tenha pertencido a uma edição lexicográfica
de Ioannes Daubmannus@. Esta edição, intitulada Dicionário Kazar e publicada na Prússia (1691),
foi logo destruída, de modo que esta hipótese não pôde ser verificada e não se conhece, portanto,
o lugar exato do fragmento no dicionário. Aqui está, todavia, o conteúdo:
“Do mesmo modo que vossa alma encerra, bem no fundo, vosso corpo, também o Adão
Ruhani, o terceiro anjo, encerra o universo no fundo de sua alma. O Adão Ruhani, neste ano de
1689 depois de Iça, encontra-se na curva descendente de sua órbita, e aproxima-se da intersecção
das rotas da Lua e do Sol, ali onde está a Treva de Arimã; é por isto que não vamos ao vosso
encalço, como poderíamos fazer, vós, os caçadores de sonhosg e leitores da imaginação que
perseguis o Adão Ruhani, tentando recriar seu corpo sob a forma de um livro. Mas quando ele
estiver, no fim do século XX, depois de Iça, na etapa ascendente de seu caminho, seu estado de
sonho se aproximará do Criador e seremos obrigados a matar-vos, vós que reconheceis e ajuntais
nos sonhos alheios os fragmentos do Adão Ruhani, para reuni-los sobre a terra num livro feito de
seu corpo. Pois não podemos permitir que o livro de seu corpo torne-se um reino. Mas não
acrediteis que apenas nós, alguns demônios sem importância, nos interessamos por Adão Ruhani.
No melhor dos casos, chegareis a recriar a ponta do seu dedo ou o sinal de sua anca. E nós
estamos aqui para impedir a reconstituição dessa ponta do seu dedo ou do sinal na sua anca. Os
outros demônios ocupam-se daqueles que procuram reunir outras extremidades do seu corpo.
Não tenhais ilusões. A maior parte do seu corpo imenso – Reino de vossos sonhos –, nenhum
dentre vós, os homens, sequer roçou. O trabalho de soletração de Adão Ruhani apenas começou.
O livro que deveria encarnar seu corpo sobre a terra encontra-se ainda nos sonhos dos homens.
Uma parte desse corpo dormita nos sonhos dos mortos. Não se pode extraí-lo dali, como não se
pode tirar água de um poço seco.”
IBN, (ABU) HADRACH – Demônio que retirou o sexo da princesa Ateh∇. Morava no
inferno, no lugar onde se cruzam os caminhos da Lua e do Sol... Era poeta e anotou estes versos,
onde fala de si:
Que desvario entre os abissínios,
os gregos, os turcos e os eslavos
quando me aproximo de suas mulheres...
Os poemas de Ibn Hadrach foram recolhidos por um homem chamado Al Mazrubani que
colecionava os poemas de demônios e compôs, no século XII, um livro de poesia demoníaca
(comparar com a compilação árabe de Ahmed Abu Al Ale, Al Maarri, que fornece este dado).
Ibn Hadrach montava um cavalo que tinha uma passada muito longa. Ainda hoje, pode-
se ouvir seu galope: uma pata em cada dia.
KAGHAN∇ – Nome dos soberanos dos kazares. Vem da palavra tártara “kan” que
significa príncipe. Segundo Ibn Fadlan, os kazares enterravam seus kaghans sob a água, no fundo
dos riachos. O kaghan partilhava sempre o poder com um co-soberano, sobre o qual tinha
precedência somente na medida em que era saudado sempre em primeiro lugar. O kaghan
procedia, sem dúvida, da antiga família reinante, talvez de origem turca, enquanto o rei ou bei,
seu co-soberano, vinha do povo e era, portanto, kazar. Um documento do século IX (Yacubi)
revela que já no século VI o kaghan tinha um vice-rei ao seu lado, um califa. O melhor
testemunho desta co-soberania entre os kazares foi deixada por Al Ichtakhri. Seu texto, escrito
em 320 da Hégira (932 d. C), é o seguinte:
“No que concerne à política dos kazares e sua arte de governar, o soberano é chamado
kaghan dos kazares. Tem uma posição superior à do rei kazar (beg ou bei), mas é o rei que o
designa (dá-lhe o título de kaghan). Quando se quer designar um kaghan, trazem o escolhido e
apertam o seu pescoço com um pedaço de seda, até que comece a sufocar, e aí lhe perguntam:
“Quanto tempo queres governar?” E ele responde: “Tantos e tantos anos”. Se ele morre antes do
fim deste prazo, tudo está bem. Senão, é morto assim que o prazo esgota. O poder do kaghan
limita-se à autoridade que exerce sobre os notáveis. Não tem o direito de ordenar nem de proibir,
mas é respeitado, e as pessoas ajoelham-se em sua presença. O kaghan é escolhido entre os
notáveis que não têm nem poder nem dinheiro. Quando chega o momento da escolha, sua
fortuna não interessa. Uma testemunha confiável relata ter visto na rua um rapaz que vendia pão.
Dizia-se que quando o kaghan morreu, este rapaz era o único que merecia o lugar dele. Mas ele
era muçulmano, e só um judeu pode tornar-se kaghan.”
O co-soberano do kaghan era, em geral, um excelente guerreiro. Certa vez, depois de uma
batalha, o saque da vitória incluía uma coruja pequena que, com seus pios, fazia jorrar fontes de
água potável. Os inimigos vieram, então, viver com eles. E o tempo começou a correr muito
lentamente. Envelheciam em um ano tanto quanto em sete anos de outrora, e foram obrigados a
mudar seu calendário, que foi dividido em três meses – o mês do sol, o da lua e o mês sem lua.
As mulheres davam à luz em vinte dias, eles tinham nove colheitas num único verão e, depois,
nove invernos seguidos para comer o que tinham colhido. Cinco vezes por dia repousavam,
quinze vezes preparavam as refeições e punham-se à mesa, o leite não coalhava somente nas
noites sem lua que duravam tanto tempo que as pessoas se esqueciam da localização dos
caminhos e, quando, enfim, surgia a aurora, não mais podiam se reconhecer, pois uns tinham
crescido e outros envelhecido. E eles sabiam que, quando uma nova noite chegasse, essa geração
nunca mais se reveria. As letras desenhadas pelos caçadores de sonhos tornavam-se cada vez mais
altas, e eles tinham enorme dificuldade para atingir seus topos, pondo-se nas pontas dos pés. Os
livros tornaram-se pequenos, e assim os caçadores de sonhos puseram-se a desenhar letras nas
encostas das colinas; a água dos rios corria com terrível lentidão para o grande mar, e, certa noite,
enquanto os cavalos pastavam sob a lua, o kaghan viu em sonho um anjo que lhe disse:
– O Criador aprova tuas intenções, mas reprova teus atos.
Então o kaghan perguntou aos caçadores de sonhos o que significava seu sonho e de
onde vinha a desgraça dos kazares. Um dos caçadores disse que um grande homem estava vindo
e que o tempo já estava acertado por ele. Então o kaghan replicou:
– Isso não é verdade. Nossas desgraças decorrem do fato de que nos tornamos menores.
Então, ele repudiou os religiosos e os caçadores de sonhos kazares, e ordenou que
buscassem um judeu, um árabe e um grego, para interpretar seu sonho. Tinha decidido converter-
se, com seu povo, à religião do que lhe desse a melhor explicação. Quando a polêmica sobre as
três religiões começou em sua Corte, o kaghan foi dominado pelos argumentos do missionário
árabe, Farabi Ibn Kora que, entre outras coisas, respondeu a esta questão do kaghan:
– O que ilumina nossos sonhos, na escuridão completa de nossas pálpebras fechadas? É a
lembrança da luz que não existe mais, ou da luz do futuro que tomamos como um adiantamento
ao dia seguinte, embora ele ainda não tenha chegado?
– Nos dois casos, trata-se de uma luz que não existe – respondeu Farabi Ibn Kora. – É-
nos, pois, indiferente qual a resposta exata, pois é preciso considerar a própria questão como
inexistente.
O nome do kaghan que se converteu ao islã não é conhecido. Sabe-se que foi enterrado
sob o signo de elif (letra árabe em forma de meia-lua). Outras fontes pretendem que ele se
chamava Kitab, antes de se descalçar e lavar os pés para entrar na mesquita. Quando ele terminou
sua prece, e saiu para o sol, não usava mais calçados, nem seu antigo nome.
A organização do Estado kazar é muito complexa, e seus súditos são divididos em dois
grupos: os que nasceram sob o vento (os kazares propriamente ditos) e os outros, que nasceram
sobre o vento, ou seja, os que emigraram para a Kazária a partir de outros países, como os
gregos, os judeus, os sarracenos ou os russos. Os kazares são os mais numerosos do império; os
outros formam minorias. Entretanto, a divisão administrativa do império é feita para que isto não
apareça. O Estado é dividido em províncias. Aquelas onde vivem também judeus, gregos ou
árabes têm nomes judeus, gregos ou árabes. Enquanto isto, na maioria do Estado, onde apenas
vivem kazares, todas as províncias têm nomes diferentes. Com a exceção de uma única, batizada
Província Kazar. As demais, recebem seus nomes de maneira distintas. No norte, por exemplo,
inventou-se um povo completamente novo que não mais se chama kazar, nem fala mais sua
língua e designa sua província por um nome totalmente diferente. Em razão de todas essas
circunstâncias, e de sua posição desfavorável no reino, numerosos kazares negam suas origens e
sua língua, sua religião e seus costumes, e preferem se apresentar como gregos ou árabes,
esperando assim levar uma vida mais agradável. A oeste do Estado kazar estabeleceu-se um
pequeno número de gregos e judeus, vindos de Bizâncio. Os judeus expulsos (do reino grego) são
os mais numerosos, mas somente nessa província. A situação é análoga para os cristãos numa
outra província, onde os kazares são designados como “a população não-cristã”. No Estado
kazar, a relação de forças dos kazares e imigrantes gregos ou judeus é de um para cinco, a favor
dos kazares. Mas esta realidade é ocultada pelo modo de recenseamento da população: os
números são calculados por província, nunca tomando por base o conjunto da população.
Os delegados das províncias à Corte não são escolhidos em função do número de pessoas
que representam, mas por província, o que significa que existe um maior número de delegados
não-kazares, enquanto os kazares são, na realidade, mais numerosos no reino. A promoção na
hierarquia, por causa dessas condições e dessa relação de forças, depende de uma obediência cega
aos representantes não-kazares. O próprio fato de não se proclamar kazar já constitui uma
recomendação, e permite dar o primeiro passo na Corte. Os passos seguintes exigem ataques
virulentos contra os kazares e o abandono dos seus interesses em proveito dos interesses dos
gregos, judeus, turcos, árabes ou godos, como aqui se chamam os eslavos. É bastante difícil
explicar uma tal situação. Um cronista árabe do século IX observa: “Um kazar de minha idade
recentemente me disse uma frase incomum: até nós, os kazares, disse-me ele, só chega uma parte
do futuro, a que é mais dura e impenetrável, a mais difícil de conquistar, de maneira que
abordamos o futuro de viés, como através de um vento violento; e como um pântano que
extravasa, os destroços e os restos do futuro, já gastos e bolorentos, estendem-se aos poucos e
cobrem nossos pés. Só nos chega a parte mais impiedosa do futuro, ou aquela parte já
envelhecida e espezinhada pelo uso. Nessa partilha geral, nessa pilhagem do futuro, ignoramos a
quem cabe a mais bela parte, aquela ainda não usada...”
Compreende-se melhor uma opinião como essa quando se sabe que o kaghan não deixa a
jovem geração aproximar-se do poder antes da idade de cinqüenta e cinco anos. Mas esta medida
vale apenas para os kazares. Os outros progridem mais rapidamente, pois o kaghan, ele próprio
kazar, não os considera perigosos em virtude do seu pequeno número. Os cargos disponíveis na
administração kazar, segundo as recentes medidas tomadas na Corte, vão diminuindo em vez de
aumentar, assim que são deixados por um homem da idade do kaghan ou por um estrangeiro.
Desse modo, em alguns anos, quando uma nova geração de kazares chegar à idade (aos 55 anos)
de assumir cargos importantes no Estado, todos esses postos já terão sido partilhados entre os
outros, ou então terão perdido tanto de sua importância que nem mesmo valerá a pena aceitá-los.
Há um lugar em Itil, a capital kazar, onde duas pessoas (mesmo desconhecidas) que se
cruzam podem trocar, como chapéus, seus nomes e seus destinos, e continuar assim sua vida
num novo papel. Entre aqueles que fazem fila nesse lugar para trocar seu destino com o de
qualquer outra pessoa, os kazares são a maioria.
Na capital estratégica que se encontra no centro do reino, ali onde os kazares são os mais
numerosos, as recompensas e condecorações são divididas igualmente entre os habitantes: toma-
se bastante cuidado para conceder o mesmo número de condecorações aos gregos, aos godos,
aos árabes e aos judeus. Assim também acontece com os russos e os outros, e também com os
kazares, que partilham suas próprias condecorações e recompensas em dinheiro em igualdade
com os outros povos, apesar de serem os mais numerosos. Mas nas capitais provinciais do sul,
onde há gregos, ou nas do oeste, onde se instalaram os judeus, ou nas do leste, onde encontram-
se persas, sarracenos e outros, as condecorações só são concedidas aos representantes desses
outros povos, e nunca aos kazares, pois essas províncias são consideradas como não-kazares,
embora esses últimos sejam tão numerosos quanto os outros. Assim, os kazares, no seu setor do
reino, partilham o bolo com todos, e nas outras partes ninguém lhes dá nem mesmo uma
migalha.
Os kazares, de resto, assumem o essencial das obrigações militares, enquanto povo mais
numeroso, mas os comandantes saem em proporção igual de todos os outros povos. É dito para
os soldados que somente no combate os homens vivem em equilíbrio e em harmonia, e que todo
o resto não merece a mesma atenção. Desse modo, os kazares têm o encargo de defender o
Estado e sua unidade, devem proteger o reino e defendê-lo, enquanto os outros naturalmente –
os judeus, os árabes, os gregos, os godos e os persas instalados na Kazária – puxam cada qual
para seu lado, para o seu país de origem.
Por razões compreensíveis, nos momentos em que há ameaça de guerra as relações
dentro do reino mudam. Então, dá-se aos kazares mais liberdade, fechando-se os olhos para
muitas coisas; celebra-se a lembrança de suas vitórias passadas, pois eles são bons soldados. Eles
sabem atirar a lança ou manejar o sabre com o pé e cortar com as duas mãos ao mesmo tempo –
de fato, nunca são nem destros nem canhotos pois, desde a infância, têm os dois braços
igualmente exercitados para o combate. Todos os outros, assim que a guerra chega,
reaproximam-se dos seus países de origem: os gregos entregam-se à pilhagem em companhia das
tropas bizantinas e pedem a enosis, o reatamento ao seu país cristão. Os árabes passam para o lado
do nosso califa e da sua frota; os persas procuram os não-circuncisos. Em compensação, depois
de cada guerra, esquece-se rapidamente tudo isso; as patentes que os povos estrangeiros
ganharam sob as bandeiras inimigas são reconhecidas pelo exército kazar, mas os próprios
kazares voltam ao pão descolorido.
A questão do pão colorido ilustra bem a condição dos kazares em seu próprio Estado.
São eles que produzem esse pão, pois são os únicos que habitam as regiões do trigo na Kazária.
Nas zonas estéreis, ao redor do maciço montanhoso do Cáucaso, come-se esse pão colorido, que
é vendido a baixo preço. O pão descolorido, também produzido pelos kazares, é pago com ouro.
Os kazares, contudo, só têm o direito de comprar o pão descolorido, o mais caro. Se um kazar
não respeita essa lei e compra pão colorido – o que lhes é proibido com rigor –, isto aparece em
seus excrementos. Existem serviços especiais de alfândega que, de tempos em tempos,
inspecionam as barricas de despejo kazares e punem os contraventores.
KORA, FARABI IBN (séculos VIII – IX) – Delegado à polêmica kazar∇. As notas sobre
ele são raras e contraditórias. Al BekriÂ, o mais importante cronista da polêmica kazar, não
menciona seu nome, mas se acredita que é por respeito ao próprio Ibn Kora. Este, na verdade,
não gostava que pronunciassem nomes em sua presença, nem mesmo o seu. Considerava que um
mundo sem nomes torna-se mais claro e mais puro. O mesmo nome recobre o amor e o ódio, a
vida e a morte. Ele divertia-se repetindo que essa revelação lhe viera no momento em que uma
mosca se afogava no seu olho, enquanto ele olhava um peixe. Desse modo, o peixe tinha-se
alimentado com a mosca. De acordo com certas testemunhas, Ibn Kora nunca chegou até a
capital kazar e, portanto, não participou da célebre polêmica, embora tenha sido convidado.
Segundo Al Bekri, o delegado judeu à polêmica teria enviado um homem ao seu encontro, para
envenená-lo ou esquartejá-lo. Segundo outras fontes, Farabi atrasou-se a caminho e só chegou
depois do final da disputa. O resultado da polêmica mostra, todavia, que um delegado
muçulmano esteve presente – e como! – na corte do kaghan kazar. Os participantes ficaram
surpresos quando viram chegar Ibn Kora, porque alguns dentre eles consideravam-no morto e já
pensavam em preparar os anéis para seu banquete fúnebre. Mas Ibn Kora apenas cruzou as
pernas e, olhando-os com seus olhos que pareciam dois pratos rasos de sopa de cebola, disse:
– Em minha infância, há muito tempo, assisti num prado ao choque de duas borboletas; algumas
escamas multicoloridas de suas asas passaram de uma para outra, depois elas prosseguiram seu vôo, e eu tudo
esqueci desse acontecimento. Ontem à noite, em meu caminho, um homem, confundindo-me com um outro, bateu-me
com seu sabre. Antes de continuar meu caminho, constatei que, em vez de sangue, algumas escamas de borboleta
caíam de minha face...
Um dos principais argumentos que Farabi Ibn Kora teria usado em proveito do islã foi
anotado. O soberano kazar tinha mostrado aos delegados das três religiões – ao judeu, ao árabe e
ao grego – uma moeda. Era triangular, tinha sobre uma das faces a indicação do seu valor: cinco
lágrimas (é com este termo que os kazares designavam sua moeda). Na outra face, a imagem de
um homem em seu leito de morte, estendendo a três jovens perto dele um feixe de gravetos. O
kaghan solicitou ao dervixe, ao rabino e ao monge que lhe explicassem o sentido dessa imagem.
Segundo as fontes islâmicas, o delegado cristão afirmou que se tratava de uma antiga história
grega: um pai, em seu leito de morte, lembra aos filhos que a união faz a força, mostrando-lhes
como um feixe de gravetos permanece inflexível, ao passo que, separados, os gravetos podem ser
quebrados, com facilidade, um a um. O judeu afirmou que os gravetos simbolizavam os
membros do corpo humano que o sustentam por um esforço comum. Farabi Ibn Kora recusou
essas explicações. Declarou que a moeda tricorne tinha sido forjada no inferno e que as
interpretações dos seus adversários não podiam ser exatas. A imagem representava um assassino,
condenado a beber o veneno e que já se encontra deitado em seu cadafalso. Diante dele
encontram-se os três demônios: Asmodeu, o demônio do Guehen judeu, Arimã, o demônio do
Djehenem islâmico, e Satã, o diabo do inferno cristão. O assassino tem três bastões em sua mão,
o que significa que será morto se os três demônios vingarem a vítima e será poupado se
renunciarem à vingança. A mensagem da moeda tricorne é, portanto, clara. O inferno envia-a
para a terra, como uma advertência aos mortais. Uma vítima que não está representada por
nenhum dos três demônios – islâmico, judeu, ou cristão – permanecerá sem vingança e seu
assassino será poupado. A pior das condições, portanto, é não pertencer a nenhum desses três
mundos, como é o caso dos kazares e do seu kaghan. Assim, estais completamente indefesos e
podeis ser mortos por qualquer um, sem que haja uma punição...
Está claro que Farabi Ibn Kora procurava desse modo persuadir o kaghan de que era
indispensável, para ele e para seu povo, renunciar à sua antiga crença e converter-se a uma das
três grandes religiões, aquela cujo delegado lhe explicasse melhor o mundo e desse as respostas
mais justas às suas perguntas. O kaghan achou a interpretação de Farabi Ibn Kora a mais
persuasiva e aceitou seus argumentos. Optou, então, pelo ensinamento islâmico, tirou seu cinto e
elevou uma prece a Alá.
As fontes islâmicas que atestam que Ibn Kora nunca participou da polêmica e nem
mesmo chegou até a Corte kazar, pois foi envenenado durante sua viagem, apoiam-se num texto
que seria a biografia de Farabi Ibn Kora. Este acreditava que, na verdade, toda sua vida já estava
escrita num livro e adaptada de uma história contada há muito, muito tempo. Tinha lido As Mil e
Uma Noites e mil e duas histórias semelhantes, mas em nenhuma encontrou o esboço a partir do
qual se desenrolava sua vida. Montava um cavalo tão rápido que suas orelhas voavam como
pássaros, mesmo quando ele estava parado. Então, um dia, o califa de Samarra enviou-o a Itil
para conquistar o kaghan para o islã. Ibn Kora começou a se preparar para a missão. Procurou,
entre outras coisas, uma coletânea de poemas da princesa Ateh e um deles pareceu-lhe a história
verdadeira que procurava desde sempre, a que orientava a sua própria vida. Nesse texto, a única
coisa que não combinava, e que o surpreendeu, é que se falava de uma mulher e não de um
homem. Todo o resto se ajustava; até a Corte do kaghan era designada pela palavra “escola”. Ibn
Kora traduziu esse texto em árabe, pensando em como a verdade é apenas um truque. Eis a
tradução:
A VIAJANTE E A ESCOLA
A viajante tem um passaporte que é considerado, a leste, como ocidental e, a oeste, como
oriental. Inspira, portanto, a desconfiança tanto no Ocidente quanto no Oriente. A viajante
projeta duas sombras, uma sombra masculina à direita, outra feminina, à esquerda. Ela procura,
no fundo de uma floresta cortada de sendas, a célebre escola onde deve prestar seu exame mais
importante, depois de uma longa viagem. Seu umbigo é como o de um pão fresco, e sua viagem
tão longa que come os anos. Chegando afinal à orla da floresta, encontra dois homens e
pergunta-lhes seu caminho. Eles observam-na, encostados em suas armas, silenciosos, embora já
lhe tivessem dito que sabiam onde se encontrava a escola. Finalmente, um deles declara: vai
sempre em frente, na primeira encruzilhada vira à esquerda, depois à esquerda de novo, e
chegarás diante da escola. A viajante agradeceu, aliviada, que não tivessem verificado seus
documentos. Senão teriam certamente desconfiado dela como de uma estrangeira, e teriam
procurado adivinhar suas segundas intenções. Retoma, então, seu caminho, vira na primeira
senda à esquerda, e de novo à esquerda. Obedecendo às indicações fornecidas, não é nada difícil
arranjar-se. Mas, ao final da segunda senda à esquerda, em vez da escola, encontra um grande
pântano. A beira do lago estão os dois homens armados. Sorridentes, pedem-lhe desculpas:
– Demos a direção errada. No primeiro cruzamento era preciso que fosses para a direita,
e depois de novo para a direita, e lá se encontra a escola. Mas devíamos primeiramente verificar
tuas intenções, saber se não conhecias de fato o caminho, ou se fingias não conhecê-lo. Agora,
ficou tarde, e não chegarás hoje à escola. O que significa: nunca mais, pois, a partir de amanhã, a
escola não existirá mais. Portanto, perdeste o objetivo de toda tua vida, por causa dessa pequena
verificação, mas tu compreendes que ela era indispensável, para proteger os outros das más
intenções dos viajantes que procuram a escola. Todavia não é preciso que te culpes. Se houvesses
virado para a direção oposta à que te indicamos, ou seja, se tivesses ido para a direita, em vez de
ir para a esquerda, o resultado teria sido o mesmo, pois teríamos sabido então que querias
enganar-nos, que conhecias o caminho para a escola, e teríamos sido obrigados a impedir-te de
chegar lá, pois tuas intenções tornar-se-iam claramente duvidosas, já que estavas tentando
escondê-las de nós. Portanto, nunca poderias chegar à escola, fosse qual fosse o caminho.
Entretanto, tua vida não terá sido sacrificada em vão: ela serviu para verificar uma coisa neste
mundo. E isto não é pouca coisa...
Assim falavam os homens, e a viajante tinha um único consolo – não ter mostrado seu
passaporte, de cuja cor os homens perto do lago não podiam nem mesmo suspeitar. Contudo,
com isso ela os havia enganado, subtraindo-o da verificação deles, o que significava que a vida
dela tinha sido realmente sacrificada em vão. Mas essas duas palavras – em vão – tinham
significados diferentes para eles e para ela. O que lhe importava suas verificações, afinal! De
qualquer maneira, o resultado era o mesmo, e o objetivo de sua existência, que não está mais
diante dela, deve inevitavelmente deslocar-se no curso do tempo. Então ela começa a
compreender que o objetivo não era a escola em si, mas estava em alguma parte do caminho para
a escola, por mais que a busca parecesse inútil. No seu espírito, esta busca tornou-se, de repente,
cada vez mais bela, e, depois de tudo, muitas das belezas da viagem tornaram-se visíveis a seus
olhos e ela concluiu que o fato decisivo aconteceu não no final da rota, mas muito antes, durante
o próprio trajeto, e ela jamais teria pensado nisso se a viagem não tivesse se revelado inútil. Ao
reordenar suas lembranças, como um comerciante que refaz o inventário do seu patrimônio, ela
começa a reencontrar os detalhes, só levemente inscritos na sua memória. Desses detalhes, ela vai
anotando os mais importantes, fazendo uma triagem cada vez mais fina, até chegar, através de
uma redução impiedosa e uma seleção cada vez mais severa, a só reter uma única cena em sua
memória:
Uma mesa, e sobre ela um copo de vinho colorido por um outro vinho. A carne de uma galinhola recém-
abatida, assada sobre o esterco de camelo e tornada nutritiva pelo sonho noturno da ave caçada. Um pão quente
com o perfil sombrio de teu pai e o umbigo de tua mãe. E os queijos de uma jovem e velha ovelha nascida na ilha.
Ao lado da refeição, sobre a mesa, uma vela com uma lágrima de fogo em sua ponta; perto, o Livro Santo, através
do qual corre o mês de djemaz-ul-aker.
KU (Dryopteria fili chazarica) – Espécie de fruto das margens do mar Cáspio. Sobre este
fruto, Daubmannus@ deixou a seguinte nota: os kazares cultivam uma espécie de fruto que não
nasce em qualquer outro lugar do mundo. É recoberto por uma casca de escamas semelhantes às
de um peixe, ou às de uma pinha. Cresce numa árvore muito alta, e os frutos nas árvores fazem
lembrar os peixes que estalajadeiros penduram vivos pelas nadadeiras, sobre as portas,
anunciando assim que servem sopa de peixe. Às vezes, esse fruto emite um canto que parece com
o de um passarinho alegre. Tem um gosto muito fresco e um pouco salgado. No outono, seu
caroço bate como um coração e ele cai dos galhos e se revira no ar durante alguns instantes,
como se nadasse nas vagas do vento. Os meninos caçam-no com seus estilingues e, às vezes,
gaviões enganados apanham-no no bico, confundindo-o com um peixe. Donde o ditado kazar:
“Os árabes nos comerão pensando, como o falcão, que somos peixes, quando somos kus”. A
palavra ku – o nome desse fruto – foi a única que o demônio deixou na memória da princesa
Ateh depois que ela esqueceu sua língua.
Às vezes, de noite, ouve-se o som “ku-ku”! É a princesa Ateh que pronuncia a única
palavra que conhece e que chora, tentando lembrar seus poemas perdidos.
A primeira coisa que ele fez foi sentar-se e ler todas as anotações sobre os kazares
reunidas no dicionário que tinha lhe sido dado. Na primeira página desse livro, estava escrito:
“Nesta casa, como em outras, nem todos serão benvindos. E nem todos receberão as
mesmas deferências. Alguns ocuparão à mesa o lugar de honra e lhes serão oferecidos os
melhores pratos. Poderão, antes dos outros, ver o que chega à mesa e escolher. Outros terão um
lugar sujeito às correntes de vento, onde cada porção mastigada tem pelo menos dois sabores e
dois odores. Outros ainda serão colocados em lugares comuns, onde todas as porções têm
sempre o mesmo gosto e o mesmo sabor. Mas haverá os que receberão um lugar atrás da porta e
uma sopa barata, e que terão apenas do jantar o que um contador recebe da história que conta, ou
seja, nada.”
Encontrou a seguir, no Dicionário Kazar, dispostos em ordem alfabética árabe, uma
seqüência de biografias de personagens kazares e outras figuras, sobretudo aquelas que tinham
participado na conversão do povo kazar ao islã. O personagem central, o dervixe e sábio que
conseguiu essa conversão, chamava-se Farabi Ibn Kora e o dicionário falava dele longamente.
Em outras questões, entretanto, o texto apresentava importantes lacunas. O kaghan kazar, que
convidou três religiosos – um árabe, um judeu e um cristão – a virem à sua Corte, pediu-lhes que
interpretassem um dos seus sonhos. Mas as fontes islâmicas sobre a questão kazar, bem como a
tradução árabe do Dicionário Kazar não mencionavam, ao que parece, os três participantes da
polêmica kazar com a mesma precisão. Saltava aos olhos que as fontes islâmicas não citavam os
nomes dos dois outros caçadores de sonhos que participaram da polêmica, o cristão e o judeu, e
os dados relativos a eles eram bem mais sucintos do que sobre Ibn Kora, o delegado árabe que
defendeu o islã. Durante a leitura do Dicionário Kazar (e isto não durou muito), Maçudi fez-se uma
pergunta: mas quem são os dois outros? Entre os cristãos, alguém conhece o nome do delegado
grego que defendeu o cristianismo nesse debate quadripartido na Corte kazar? E entre os rabinos,
alguém saberá alguma coisa sobre o outro delegado que os representava nesta disputa? Não
existiria, então, entre os gregos ou entre os judeus, alguém que se interessasse pelos sábios judeu
e cristão presentes nessa polêmica, como fazia agora Maçudi, e anteriormente seus predecessores,
em relação ao sábio muçulmano? Os argumentos desses estrangeiros – observou e anotou
Maçudi – não pareciam ter sido nem tão fortes nem tão detalhados quanto os de Farabi Ibn
Kora. Seria por que os argumentos de Ibn Kora foram realmente mais persuasivos e
significativos do que os dos estrangeiros, ou seriam estes superiores aos argumentos árabes nos
livros judeus ou cristãos sobre os kazares, se é que esses livros existiam? Terão mantido silêncio a
nosso respeito, como mantivemos silêncio a respeito deles? Seria possível compor, um dia, um
dicionário, ou uma enciclopédia, sobre a questão kazar, no qual as três histórias sobre os três
caçadores de sonhos estivessem reunidas, e obter assim a verdade? Assim, este Dicionário Kazar
incluiria, em ordem alfabética, verbetes relativos aos dois outros delegados à polêmica kazar, o
cristão e o judeu, com seus nomes e suas biografias, bem como informações sobre os cronistas
dessa polêmica entre os judeus e os gregos. Pois, como criar o Adão Ruhani, se faltam partes do
seu corpo?
Refletindo sobre essa perspectiva, Maçudi sentia arrepios. As portas abertas dos armários,
de onde suas roupas encaravam-no, metiam-lhe medo, ele as fechava assim que abria o
dicionário. Começou a procurar manuscritos hebreus e gregos sobre os kazares. Nas dobras do
seu turbante, podia-se ler a palavra Livro Santo; porém, ele corria atrás dos incréus, subornando os
gregos e judeus com quem cruzava em seu caminho, estudando suas línguas como quem olha em
espelhos que refletem o mundo de maneiras distintas. E ele aprendeu a ver-se nesses espelhos.
Seu arquivo kazar crescia, e ele decidiu acrescentar-lhe, certo dia, as biografias de suas caças,
como relatórios do trabalho realizado; seria sua modesta contribuição ao corpo imenso de Adão
Ruhani. Mas, como todo verdadeiro caçador, não sabia de antemão qual caça se apresentaria.
No mês de rabi-al-uker, e no momento da terceira djuma, Maçudi abriu os olhos pela
primeira vez nos sonhos de uma outra pessoa. Chegara, ao cair da noite, num caravançará, e
deitara-se ao lado de um homem cujo rosto não enxergava, mas que ouvia cantarolar.
Inicialmente, não compreendeu do que se tratava, mas seu ouvido foi mais rápido do que seu
pensamento. Ele era como uma chave feminina, de eixo oco, procurando uma fechadura
masculina, com uma haste no fundo de sua abertura. E encontrou-a. O homem na escuridão,
perto dele, não cantava; era uma outra pessoa que cantava nele, alguém com quem esse homem
sonhava... Reinava um tal silêncio no caravançará, que se ouviam os cabelos do sonhador
florescer dentro da escuridão. Então, imperceptivelmente, Maçudi entrou, mal protegido da
chuva e do vento como através de um espelho, num sonho espaçoso, coberto de areia, exposto à
chuva e ao vento, cheio de cães selvagens e camelos sedentos. Compreendeu de imediato que um
perigo de mutilação e ataque o ameaçava pelas costas. Mesmo assim, avançou sobre a areia que
parecia subir e descer ao sabor das marés, seguindo, como podia, a respiração do adormecido.
Num canto do sonho, um homem estava sentado, esculpindo um alaúde numa árvore abatida
dentro de um riacho, com as raízes em direção à jusante. A árvore estava seca, e Maçudi concluiu
que o homem talhava o instrumento de acordo com uma técnica utilizada há trezentos anos e
atualmente esquecida. O sonho era, portanto, mais velho do que o sonhador. De vez em quando,
o homem do sonho interrompia o seu trabalho e comia uma porção de risoto de galinha, e cada
uma das porções o distanciava de Maçudi em pelo menos cem passos. Graças a esse recuo
progressivo do homem, Maçudi pôde perceber o fundo do sonho, de onde se filtrava um pouco
de luz fétida. Atrás dessa luz, via-se um cemitério, onde dois homens estavam enterrando um
cavalo. Um deles era quem cantava. E agora Maçudi não apenas ouvia a canção, como via o
cantor: um jovem cujo bigode era metade prateado. Maçudi sabia que os cães sérvios mordem
antes de ladrar, os cães valáquios mordem sem ladrar, e os cães turcos ladram antes de morder. O
homem do sonho não pertencia, portanto, a nenhuma dessas categorias. Maçudi reteve na
memória a canção; no dia seguinte, a coisa mais importante a fazer seria apanhar o próximo
sonhador cujo sonho seria visitado pelo jovem do bigode de metade prateada. Maçudi soube
imediatamente como proceder. Reuniu alguns alaudistas e cantores, como uma tropa de
batedores de caça, e ensinou-os a tocar e a cantar, segundo suas instruções. Ele usava anéis de
cores diferentes nos dedos, e a cada um correspondia um grau na escala decimal que utilizava. Ele
mostrava aos cantores um ou outro dedo e, de acordo com a cor do anel, eles respondiam com o
tom que ele queria, assim como um animal escolhe com exatidão seu tipo de alimento. E assim
eles cantavam impecavelmente, embora não conhecessem a melodia de antemão. Cantavam nas
praças públicas, diante dos albergues, pelas esquinas, perto das fontes, e a canção tornou-se um
verdadeiro anzol para aqueles passantes que, de noite, carregavam em seu interior a caça de
Maçudi. Estes paravam e, como se o sol lhes tivesse enviado raios de lua, escutavam enfeitiçados.
Seguindo assim na pista da sua caça, ao longo do mar Negro, Maçudi começou a
reconhecer as particularidades dos que sonhavam o sonho que ele procurava. A medida em que
os sonhadores do jovem de bigode de metade prateada tornavam-se mais numerosos, produzia-se
uma modificação estranha: durante a conversação, os verbos ocupavam um lugar mais
importante do que os substantivos, que inclusive eram omitidos sempre que possível. Às vezes,
sonhava-se em grupo, com o jovem. Comerciantes armênios tinham-no visto num sonho em pé,
sob uma forca levantada em cima de uma carroça puxada por bois. Atravessava, dessa maneira,
uma bela cidade de pedra, enquanto um carrasco lhe arrancava a barba. Depois, soldados viram-
no enquanto enterrava cavalos num cemitério bem cuidado, à borda do mar. Haviam-no visto em
companhia de uma mulher cujo rosto não se podia identificar no sonho, a não ser algumas
pequenas partes da face, do tamanho de moedas, onde o jovem do bigode de metade prateada
deixara o sinal de um beijo... Depois disso, de repente, a caça desapareceu, sem deixar sinal. E, no
entanto, Maçudi fizera tudo que estava ao seu alcance nesse momento: anotou todos os detalhes
importantes de sua observação no seu Dicionário Kazar e agora todas essas notas, antigas e novas,
acompanhavam-no nos seus deslocamentos, fechadas num saco verde cada vez mais pesado.
Entretanto, ele tinha o sentimento de que inúmeros sonhos que ocorriam, e bem próximos,
escapavam-lhe, recusando-se a se deixar apanhar e a se distribuir entre os sonhadores
correspondentes. O número de sonhos era maior do que o de sonhadores. Foi então que Maçudi
começou a observar seu camelo. Fixando no sonho do animal, percebeu um jovem com a testa
cheia de calos e um estranho bigode bicolor, como se fosse uma punição no rosto. Sobre ele,
brilhava uma das constelações que nunca mergulha no mar. Ele estava de pé, perto de uma janela,
e lia um livro colocado no chão entre seus pés. O título era Liber Cosri@, mas Maçudi ignorava o
significado dessas palavras, enquanto olhava, com os olhos fechados, no sonho do seu camelo.
Isso aconteceu na época em que a caça ao sonhos tinha-o conduzido até a velha fronteira kazar.
Uma relva negra crescia nos prados.
Agora, havia cada vez mais gente abrigando em seus sonhos o jovem que lia o Liber Cosri.
Maçudi compreendeu que gerações e classes sociais inteiras sonhavam, às vezes, o mesmo sonho
com as mesmas pessoas. Mas também compreendeu que alguns sonhos mudam pouco a pouco e
se desgastam, e que eram mais freqüentes no passado do que no seu tempo. Esses sonhos
coletivos estavam, aparentemente, envelhecendo. Nessa região fronteiriça, a caça de Maçudi
tomou, todavia, uma outra forma. Ele havia observado, há muito, que o jovem do meio bigode
prateado emprestava um punhado de moedas a cada um de seus sonhadores. E em condições
muito vantajosas: um por cento ao ano. Esse dinheiro emprestado em sonho tinha, por vezes,
nessa região distanciada da Ásia Menor, tanto valor quanto as letras de crédito. Considerava-se,
efetivamente, que os sonhadores não podiam enganar-se mutuamente, enquanto o jovem
morasse em seus sonhos: era ele, de fato, quem cuidava, nos sonhos, dos livros de crédito e das
contas. Em outras palavras, havia alguma coisa semelhante a uma dupla contabilidade bastante
acurada, que englobava e reunia o capital da realidade e do sonho, baseada na tácita concordância
geral dos parceiros...
Numa quinta-feira em que havia feira numa pequena aldeia, que para Maçudi não tinha
nome, ele entrou na tenda de um persa que fazia uma representação. Havia tanta gente que um
ovo não poderia cair no chão. No meio, sobre uma pilha de tapetes, onde ardia um braseiro,
estava uma menina completamente nua. Ela gemia suavemente, apertando dois passarinhos nas
mãos. Às vezes, soltava um deles com a mão esquerda e, imediatamente, assim que o passarinho
batia as asas, agarrava-o com uma inacreditável velocidade. Sofria de uma estranha doença: sua
mão esquerda era muito mais rápida do que a direita. Ela afirmava que sua mão esquerda era tão
rápida que morreria antes do que o restante do corpo:
– Nunca serei enterrada com a minha mão esquerda. Já posso vê-la pousando longe de
mim, num pequeno túmulo sem nome e sem marca, como num barco sem popa...
Então, o persa pediu aos espectadores que sonhassem com a menina na noite seguinte,
para que ela se curasse, e explicou-lhes, em pormenores, o sonho que deveriam ter. A multidão
dispersou-se, e Maçudi foi o primeiro a partir, com a sensação de ter um osso na língua, como
aliás escreveu no seu Caderno de Anotações Kazar, com sua pena molhada em café da Etiópia. Nada
havia para ele por aqui. O persa tinha, tudo indicava, o seu próprio caderno de anotações.
Também era caçador de sonhos. Podia-se, então, servir ao Adão Ruhani de diferentes maneiras.
A de Maçudi era a boa?
Chegou então o mês de djemaz-ul-evel e sua segunda djuma. Nas brumas, sobre a areia à
margem de um rio, uma nova cidade erguia-se, nua e quente. A cidade era invisível por causa do
nevoeiro, mas cada um dos seus minaretes refletia-se na água, como se estivesse espetado na
corrente. Atrás das névoas, jazia no chão um profundo silêncio de três dias, e Maçudi sentiu que
esse silêncio, essa cidade e essa água sedenta reavivavam seu desejo masculino. Naquele dia, tinha
fome do pão feminino. Um dos seus batedores, a quem mandara cantar na cidade, veio anunciar-
lhe que tinha encontrado alguma coisa. Desta vez, o sonhador era uma mulher.
– Siga pela rua principal até sentir o cheiro de gengibre. Por este odor reconhecerás a casa
dela, pois ela tempera seus pratos com gengibre.
Maçudi caminhou entre as casas e parou, quando sentiu o cheiro de gengibre. A mulher
estava agachada perto de um fogo onde murmurejava um caldeirãozinho, como se pequenos
furúnculos estourassem na sopa. Crianças com marmitas na mão e rodeadas de cães aguardavam
em fila. A mulher servia com uma concha o conteúdo do caldeirão às crianças e aos animais, e
Maçudi compreendeu imediatamente que ela distribuía sonhos. Seus lábios mudavam de cor, e o
inferior tinha a forma de um banquinho de cabeça para baixo. A mulher estava recostada nos
restos de um peixe semi-devorado, como um cão do deserto sobre os ossos de sua presa.
Quando Maçudi se aproximou, ela ofereceu-lhe uma concha, mas ele recusou sorrindo:
– Não sei mais sonhar – disse ele, e ela recolocou a concha no caldeirãozinho.
Ela parecia uma garça que, em sonho, acredita ser uma mulher. Maçudi deitou-se no chão
perto dela, com as unhas amortecidas e o olhar quebrado, coxo. Estavam a sós, agora, ouviam-se
as vespas selvagens que afiavam seus dardos na casca seca de uma árvore. Quis beijar a mulher,
mas o rosto dela modificou-se, de repente, como se a face de uma outra houvesse recebido o
beijo dele. Quando ele lhe perguntou o que se passara, apenas disse: – Ah, são os dias! Não ligues
para isto: eles passam sobre o meu rosto dez vezes mais depressa do que sobre o teu, ou sobre o
focinho do teu camelo. Mas não te esforces por nada: sob minha saia não há o que procuras. Não
tenho uma gralha negra. Existem almas sem corpos, que os judeus chamam de “dibuks” e os
cristãos “kabalas”, mas também existem corpos sem sexo. As almas não têm sexo, mas os corpos
sempre têm um, exceto quando o diabo os privou dele. Meu caso é este. O demônio Ibn
Hadrach tirou-me o sexo, mas deixou-me viva. Em resumo, o único amante que tenho agora é
Cohen@.
– Quem é Cohen? – perguntou Maçudi.
– O judeu com quem sonho e que tu persegues. Esse jovem com meio bigode prateado.
Ele tem o corpo encerrado em três almas; e eu tenho a minha encerrada na carne, e não posso
partilhá-la com mais ninguém a não ser ele, quando ele entra no meu sonho. É um amante hábil,
e não me queixo. Aliás, é a única pessoa que ainda se lembra de mim e, exceto ele, ninguém mais
visita os meus sonhos...
Foi assim que Maçudi encontrou, pela primeira vez, alguém que conhecia o nome daquele
a quem procurava. O jovem então, chamava-se Cohen.
– Como é que sabes o nome dele? – perguntou Maçudi.
– Escutei o nome. Alguém o chamou, e ele respondeu a esse nome.
– No sonho?
– Sim, no sonho. Aconteceu na noite em que ele partia para Constantinopla. Mas atenção,
em nossos pensamentos essa cidade encontra-se sempre a uma centena de campos mais para
oeste do que a verdadeira Constantinopla.
Então, a mulher tirou de seu vestido um fruto parecido a um peixinho e, dando-o para
Maçudi, disse:
– Aqui está um kuÂ. Queres experimentá-lo? Ou desejas outra coisa?
– Gostaria que sonhasses com Cohen diante de mim – disse Maçudi.
A mulher observou, admirada:
– Teu pedido é bem modesto. Demasiado modesto, em vista das circunstâncias, mas é
evidente que não estás consciente. Vou realizar, entretanto, teu pedido; sonharei esse sonho,
especialmente para ti, e ofereço-te esse sonho de antemão. Mas, de agora em diante, toma muito
cuidado: a mulher que persegue aquele com quem sonhas vai atingir a ti.
Ela então encostou sua cabeça em um cão, e ele viu sua face e suas mãos arranhadas
pelos incontáveis olhares que, através dos séculos, passaram por ela. Já dentro do seu sonho,
recebeu Cohen, que lhe disse:
– Intentio tua grata et accepta est Creatori, sed opera tua non sunt accepta...
A errância de Maçudi tinha terminado. Ele recebera dessa mulher mais do que tudo que
aprendera antes e, muito contente, apressou-se a selar o camelo para voltar para Constantinopla.
Sua caça já o esperava na capital. E então, enquanto Maçudi fazia o balanço do que havia
conquistado nessa última caçada, seu camelo cuspiu-lhe nos olhos. Ele bateu no focinho do
bicho com os arreios molhados, até ele vomitar a água das suas duas bossas, mas nunca soube a
razão do comportamento do animal naquele dia.
O caminho colava-se em seus sapatos e, repetindo as palavras de Cohen como um refrão
musical, mas sem compreender-lhe o sentido, ele pensava que precisava limpar seus sapatos no
primeiro albergue onde chegasse: os caminhos atraíam as solas dos sapatos que passavam por eles
durante o dia, até que elas devolvessem toda a lama que haviam levado.
Um monge cristão, que não conhecia nenhuma outra língua além do grego, informou a
Maçudi que as palavras que memorizara eram em latim e mandou-o encontrar-se com o rabino
da região. Este último traduziu-lhe a frase de Cohen:
– Tua intenção é boa e aceitável para o Criador, mas não teus atos!
E assim, Maçudi compreendeu que seus desejos iriam se realizar e que seu modo de
proceder era o justo. Conhecia bem essa frase. Conhecia, há muito tempo em árabe, pois era a
frase que o anjo dissera ao kaghan kazar, centenas de anos atrás. Maçudi compreendeu que
Cohen era uma das duas pessoas que procurava, pois Cohen estava seguindo a lenda hebraica
para encontrar os kazares, enquanto Maçudi o fazia seguindo a lenda islâmica. Cohen era o
homem cuja vinda Maçudi profetizara, enquanto lia, cuidadosamente, o Dicionário Kazar. O
dicionário e os sonhos formavam um todo natural.
Mas no exato instante em que se encontrava à beira de uma grande descoberta, quando
compreendeu que sua caça era de alguma forma seu duplo à procura das histórias kazares,
Maçudi abandonou completamente seu Dicionário Kazar e nunca mais voltou a ele. Isto se passou,
na verdade, da seguinte forma:
Numa noite em que a escuridão soprava flocos avermelhados, Maçudi chegou em um
caravançará. Deitado em sua esteira, ele respirava profundamente. Seu próprio corpo parecia-lhe
balançar-se como um navio sobre as ondas. No cômodo vizinho, alguém tocava alaúde. Uma
lenda, que conta esta noite e também fala desta música, circulará muito tempo depois entre os
alaudistas da Anatólia. Maçudi notou, de pronto, que se tratava de um alaúde excepcional. A
madeira da qual tinha sido feito não fora cortada com machado, pois o som da árvore não estava
morto. Além disso, provinha do cume de uma montanha, onde as florestas não ouvem o ruído da
água. E, finalmente, o próprio ventre do instrumento não era feito de madeira, mas da carapaça
de um animal. Maçudi sabia estabelecer esta diferença, como os que bebem vinho sabem
distinguir a embriaguez do vinho branco e a do vinho tinto. Maçudi conhecia a rara melodia
tocada pelo desconhecido, e ficou surpreso de ouvi-la nesse rincão perdido. Essa música tinha
uma passagem muito difícil e, na época em que Maçudi tocava música, encontrara para ela um
dedilhado especial que alaudistas utilizavam desde então. Entretanto, o desconhecido não usava o
dedilhado de Maçudi, mas um outro, bem melhor, que Maçudi não conseguia decifrar. Estava
estupefato. Esperou que a passagem se repetisse e, naquele momento, enfim compreendeu. Ao
invés de tocar a difícil passagem com dez dedos, o desconhecido utilizava onze. Maçudi sabia
agora que era o demônio quem estava tocando, pois o diabo usa seus dez dedos e sua cauda para
tocar.
– Qual de nós dois apanhou o outro? – murmurou Maçudi para si mesmo, correndo até o
cômodo vizinho. Encontrou aí um homem de dedos finos, todos do mesmo tamanho. Répteis
prateados ondulavam na sua barba. Ele se chamava Yabir Ibn Akchani e tinha diante de si um
instrumento feito com uma carapaça de tartaruga branca.
– Mostra-me – balbuciou Maçudi. – Mostra-me! O que ouvi é impossível...
Yabir Ibn Akchani bocejou, mexendo lentamente seus lábios abertos, como se parisse por
eles uma criança invisível, formada com sua boca e sua língua.
– Que queres que te mostre? – replicou, gargalhando. – O rabo? Mas há muito tempo não
mais te preocupas com o canto ou com a música. És agora caçador de sonhos. E estás
interessado é em mim! Querias que o demônio te ajudasse. Pois, como está dito no Livro, o
demônio vê Deus, mas os homens, não. Que querias, então, saber sobre mim? Monto uma
avestruz e quando caminho a pé vou acompanhado por um séquito de demônios, de diabretes,
entre os quais se encontra um poeta. Ele escreveu cantos durante séculos, muito antes que Alá
criasse os primeiros seres humanos, Adão e Eva. Seus versos falam de nós, os demônios, e de
nossa semente diabólica. Mas espero que não os leves muito a sério, pois as palavras dos poemas
não são verdadeiras palavras. A verdadeira palavra é sempre como uma maçã numa árvore, com a
serpente ao redor do tronco, as raízes sob a terra e a copa virada para o céu. Vou, agora, revelar-
te uma outra coisa a meu e a teu respeito.
– Partamos de dados bem estabelecidos. Aqueles que todo leitor do Corão conhece.
Como todos os demônios, sou feito de fogo, e tu, de lama. Não tenho outra força senão a que
derramei em ti e que retiro de ti. Pois de uma verdade só se pode retirar o que nela se pôs. Mas
isto absolutamente não é pouco – a verdade tem lugar para tudo. Vós, homens, uma vez
chegados ao paraíso, se conseguirdes, podeis transformar-vos naquilo que desejardes. Mas
enquanto estais sobre a terra, estais condenados a conservar sempre a mesma forma, a forma que
surgiu quando nascestes. Conosco acontece o inverso. Sobre a terra, tomamos a forma que
queremos e modificâmo-la à nossa vontade, mas desde que atravessamos o Kevçer, o rio do
paraíso, somos condenados a permanecer demônios, o que, aliás, nós somos. No entanto, nossa
natureza de fogo permite que nossa memória não se apague por completo, como acontece com a
vossa, feita de argila. Aí está a diferença essencial entre eu, demônio, e tu, homem, Alá criou-te
com as duas mãos; a mim, apenas com uma das mãos, e minha espécie foi criada antes da tua.
Uma importante diferença entre nós reside, portanto, no tempo. Embora nossos sofrimentos
estejam emparelhados, minha espécie chegou antes da tua ao Djehenem, o inferno. E depois de
vós, os homens, uma terceira espécie chegará ao inferno. Teu sofrimento será eternamente mais
breve do que o meu. Pois Alá já ouviu os da terceira espécie que vão ser criados contra nós e
contra vós, clamando: “Que os primeiros sejam punidos duplamente para diminuir os nossos
sofrimentos!” Isto quer dizer que o sofrimento não é inesgotável. Nisto está o nó, nisto começa o
que não está escrito em livro algum e é nisto que posso ser útil. Escuta com atenção: nossa morte
é mais antiga do que a vossa. Minha espécie, a dos demônios, tem uma experiência mais longa da
morte do que a espécie humana, e memorizamos melhor essa experiência. Por isto sei mais e
posso contar-te sobre a morte um pouco mais do que qualquer um dos teus, mesmo sábio e
experiente. Vivemos com a morte há mais tempo do que vós. Aqui está uma história, e se tens
uma argola de ouro na orelha, ouve bem e aproveita a ocasião. Porque aquele que conta hoje
pode ainda fazê-lo amanhã, porém aquele que escuta só pode fazê-lo uma única vez, no
momento em que se conta para ele a história.
E Akchani contou para Maçudi:
A morte de um filho serve sempre de modelo para a morte dos pais. A mãe dá à luz para
dar a vida ao seu filho. O filho morre para dar uma forma à morte de seu pai. Quando o filho
morre antes do pai, a morte do pai fica viúva, mutilada e sem modelo. E por isto que nós, os
demônios, morremos tão facilmente; nós não temos descendentes e não existe nenhum modelo
para nossa morte. Os homens que não têm filhos também morrem facilmente, pois toda a sua
atividade no além é uma única extinção em um único instante. Em suma, as mortes futuras dos
filhos refletem-se como num espelho na morte dos pais, como sob efeito de uma lei reflexiva. A
morte é a única coisa que herdamos ao inverso, na contracorrente do tempo, e que passa dos
jovens para os velhos, do filho ao pai – os ancestrais herdam a morte de seus descendentes, como
uma aristocracia. A célula da morte – o selo da destruição – caminha em direção ao montante do
tempo, do futuro para o passado, ligando assim a morte ao nascimento, o tempo com a
eternidade, Adão Ruhani com ele mesmo. A morte, desse modo, faz parte dos fenômenos de
caráter familiar e hereditário. Mas não se pense aqui na hereditariedade dos cílios negros ou das
marcas de varíola. Trata-se da maneira como o indivíduo vive sua morte, e, não da causa desta
morte. O homem morre pela espada, de doença ou de velhice, mas sempre experimenta sua
morte através de um outro. Nunca vive a sua, mas a de um outro, uma morte futura. A de seus
filhos, como dizíamos há pouco. Assim, o homem transforma a morte em uma experiência
coletiva, em um bem familiar, se assim podemos dizer. Aquele que não tem descendentes terá
apenas sua morte. Uma única. E vice-versa, aquele que tem filhos não terá sua morte, mas as de
todos eles, múltiplas. As mortes das pessoas dotadas de uma numerosa descendência são terríveis,
pois elas se multiplicam, não estando a vida e a morte obrigadas a permanecerem em proporções
iguais. Vou dar-te um exemplo. Num mosteiro kazar, vivia, há muitos séculos, um monge
chamado Mokadaça Al SaferÂ. Suas devoções, durante toda sua vida nesse mosteiro, onde, além
dele, viviam dez mil virgens, constituíam-se em fecundar todas essas religiosas. E delas teve igual
quantidade de filhos. Sabes do que morreu? Engoliu uma abelha! Sabes como morreu? Dez mil
maneiras de uma só vez, pois sua morte foi multiplicada por dez mil. Morreu uma vez para cada
um dos seus filhos. Não foi necessário enterrá-lo. Suas mortes dispersaram-no em pedacinhos tão
pequenos que dele restou apenas esta história.
Assim também se passa nessa outra história sobre o feixe de gravetos que vós, os
homens, compreendeis tão mal. O pai, no leito de morte, que chama os filhos e mostra-lhes com
que facilidade se quebra um graveto isolado, ensina-lhes, na verdade, como a morte é fácil para
aquele que tem apenas um filho. Quando lhes mostra como é difícil quebrar um feixe de
gravetos, lembra-lhes na verdade que a morte será para ele um trabalho duro e árduo. Mostra
como é doloroso morrer quando se tem muitos filhos, pois as mortes destes somam-se, e o pai
vive todas as suas agonias adiantadamente. Portanto, quanto mais gravetos houver no feixe, mais
estás ameaçado, e não o inverso. Em relação à morte das mulheres e à descendência feminina,
não falemos por ora – constituem uma espécie completamente à parte, não tendo a morte delas
nada a ver com a morte dos homens, e suas leis são de uma outra natureza.
Eis aí como vemos o segredo dos segredos, nós, os demônios, que temos um pouco mais
de experiência da morte que vós, os homens. Não te esqueças, pois és caçador de sonhos e, se és
atento, terás ocasião de verificá-lo.
– Que queres dizer? – perguntou Maçudi.
– O objetivo da tua caçada, como um caçador de sonhos chapinhando nesse monte de
refugo, é encontrar dois homens que se sonham mutuamente. O adormecido sonha sempre a
realidade do desperto. Não é exatamente isto?
– Sim.
– Imagina agora que o desperto esteja morrendo, pois não há realidade mais dura do que
a morte. Aquele que sonha sua realidade de fato sonha sua morte, pois a realidade do outro, nesse
instante, é a morte. Vê, portanto, como na palma de sua mão, as maneiras pelas quais se morre,
sem morrer, ele próprio. Mas nunca mais despertará, pois o outro, que morre, não mais poderá
sonhar a realidade daquele que está vivo, nem será o bicho-da-seda que tece o fio da sua
realidade. Portanto, aquele que sonha a morte do desperto não se despertará nunca mais, nunca
mais nos poderá contar o que viu em sonho, e como é a morte através da experiência do
moribundo, embora tenha tido acesso direto a tal experiência. Tu, como leitor de sonhos, tens o
poder de ler o sonho dele, de nele encontrar e aprender tudo sobre a morte, de verificar e
completar a experiência da minha espécie. Todo mundo pode fazer música ou escrever um
dicionário. Deixa isso para os outros, pois somente os seres raros e excepcionais como tu podem
ver, através da fenda aberta entre dois olhares, o reino da morte. Aproveita teu talento de caçador
de sonhos para apanhar alguma caça importante. És tu quem comanda; cuidado, portanto, com o
que vais decidir – disse Yabir Ibn Akchani, concluindo sua história com uma citação do Livro
Santo.
Lá fora a noite sangrava e o dia aparecia. Ouvia-se o ruído da fonte diante do caravançará.
A água chegava por um cano de bronze com a forma de um sexo masculino, com dois ovos de
metal recobertos com pêlos de ferro, e a extremidade que se punha na boca era muito lisa.
Maçudi bebeu um gole e, uma vez mais, mudou de profissão. Parou de escrever o Dicionário Kazar
e de tomar notas para a biografia do seu judeu errante. Teria de bom grado jogado fora seu saco
com as folhas que enegrecera com sua escrita, com a pena molhada de café, se não fosse precisar
delas como de um manual para caçar a verdade da morte. Desse modo, continuou a caçar sua
antiga presa com um novo objetivo.
Era a primeira djuma erteçi do mês de safer, e os pensamentos de Maçudi eram como as
folhas que caem: soltavam-se das suas hastes uns depois dos outros e caíam; com o olhar, Maçudi
seguia-os, volteando diante dele, até que desapareciam no fundo do seu outono, para sempre.
Pagara e despedira seus alaudistas e cantores e, com os olhos fechados, permanecia sentado,
encostado numa palmeira, enquanto suas botas queimavam-lhe a planta dos pés, e um suor
gelado e amargo corria entre ele e o vento. Molhou um ovo cozido nesse suor, para salgá-lo. O
sábado que se aproximava era, para ele, tão bom quanto uma sexta-feira, e sentiu claramente o
que deveria realizar. Sabia que Cohen iria para Constantinopla. Não tinha, então, necessidade de
correr atrás dele e de persegui-lo nas sendas dos sonhos alheios, onde ele próprio já fora violado,
martirizado e mijado como se fosse gado. O importante agora era saber como encontrar Cohen
em Constantinopla, a cidade das cidades. Mas nela Maçudi não seria obrigado a procurá-lo; uma
outra pessoa encontrá-lo-ia para ele. Não, o que ele teria a fazer era encontrar a pessoa com quem
Cohen sonhava. E este terceiro, se se refletisse bem, só podia ser um único homem. Aquele que
Maçudi já pressentia.
– Como o perfume do mel de tília no chá de rosas impede que se sinta o perfume do
próprio chá, alguma coisa me impede – pensava Maçudi – de ver claramente e compreender os
sonhos que as pessoas ao meu redor têm com Cohen. Alguém está aí, um intruso que me
perturba...
Há muito tempo Maçudi supunha que existiam no mundo pelo menos duas outras
pessoas que, como ele próprio com as fontes árabes, se interessavam pela questão kazar. Um,
Cohen, ocupava-se das fontes hebraicas sobre a conversão kazar, e o outro, desconhecido até o
momento, estudava, sem dúvida, as fontes cristãs. Era preciso agora partir em busca desse
homem, talvez um grego ou apenas um cristão que se interessava pelos kazares. Aquele, sem
dúvida, que Cohen também procuraria em Constantinopla. Era preciso, portanto, encontrá-lo. E
Maçudi soube imediatamente como iria proceder. Mas, na hora de partir, quando tudo estava
pronto, Maçudi caiu de novo num sonho alheio, agora caçando contra sua vontade. Desta vez
não havia por perto nem homem nem animal. Apenas areia, um espaço sem água, vasto como o
céu e, atrás dele, a cidade das cidades. Poderosas águas murmuravam no sonho, profundas,
suaves e mortais. Maçudi memorizou-as bem, por causa do murmúrio que penetrava em todas as
dobras do seu turbante, enrolado de modo a formar uma palavra do quinto capítulo do Corão.
Percebeu que a estação não era a mesma na realidade e no sonho. Compreendeu, então, que era a
palmeira onde estava encostado que sonhava. Sonhava com água. E nada mais. Nada além do
murmurar da água, habilmente enrolado, como um turbante muito branco...
Maçudi entrou em Constantinopla sob o calor do mês de chaban e, no mercado principal,
começou a vender um dos rolos do Dicionário Kazar. O único comprador a se apresentar foi um
monge de rito grego chamado Teoktist Nikólski, e que o conduziu até seu senhor. Este último,
sem pechinchar, comprou o manuscrito e apressou-se a perguntar-lhe se tinha outros. Maçudi
compreendeu que se aproximava do objetivo e que o homem diante dele era o terceiro sonhador
que procurava, aquele com quem Cohen sonhava e que serviria de anzol para Maçudi apanhá-lo.
Pois ele era, sem dúvida, a razão da vinda de Cohen a Constantinopla. O rico comprador do rolo
kazar tirado do saco de Maçudi era um diplomata mercenário em Constantinopla, trabalhando
para o embaixador da Inglaterra junto à Sublime Porta, e se chamava Avram Bránkovitchg. Era
cristão, originário de Transilvânia, na Valáquia; era um homem muito respeitado e elegantemente
vestido, grande como um poço. Maçudi pediu um emprego em sua casa e foi contratado como
criado de quarto. Como Avram-efendi trabalhava durante toda a noite em sua biblioteca e dormia
de dia, Maçudi pôde aproveitar a própria manhã de sua chegada para penetrar no sonho de
Bránkovitch. No sonho de Avram Bránkovitch, Cohen cavalgava alternadamente um cavalo e um
camelo, falava espanhol e aproximava-se de Constantinopla. Era a primeira vez que alguém
sonhava com Cohen em pleno dia. Era evidente que Bránkovitch e Cohen sonhavam-se mútua e
alternadamente. Desse modo, o círculo fechava-se, e aproximava-se a hora da decisão.
– Está bem – concluiu Maçudi. – Quando tiveres amarrado o camelo fêmea, ordenha-o
até o fim, pois não sabes a quem ele servirá amanhã!
E tratou de informar-se sobre os filhos do seu patrão. Soube, desse modo, que Avram-
efendi tinha na Transilvânia dois filhos; o mais novo sofria de uma doença dos cabelos e morreria
no dia em que perdesse o último fio. O outro filho de Avram já usava espada. Chamava-se Grgur
Bránkovitchg e montava numa sela coberta de cabelos turcos... Isto foi tudo, mas foi o bastante
para Maçudi. O resto é uma questão de tempo e paciência, pensava, e começou a passar o tempo,
exercitando-se para esquecer a música, sua primeira arte. Não esquecia as canções umas após as
outras, mas pedaço por pedaço, os tons mais baixos deixando a memória em primeiro lugar, e a
vaga de esquecimento subindo como uma maré em direção aos tons mais altos. Depois, a carne
das canções desaparecia, não deixando em Maçudi senão seu ritmo, como se fosse um esqueleto.
Depois, ele começou a esquecer o conteúdo do seu caderno kazar, palavra após palavra, e sentiu
apenas uma ligeira tristeza quando, certa noite, um dos servidores de Bránkovitch jogou seu
dicionário no fogo...
Foi então que se deu um acontecimento imprevisto. Como um pica-pau que sabe voar
para trás, da cabeça para a cauda, Avram-efendi deixou Constantinopla por ocasião da última
djuma do mês de chawwal. Abandonou seu posto de diplomata e; com todo seu séquito de
servidores, partiu para a guerra no Danúbio. Em 1689 depois de Iça, chegaram a Kládovo, no
campo do príncipe de Baden, e Bránkovitch pôs-se a seu serviço. Maçudi não sabia mais o que
pensar, nem o que fazer, pois seu judeu continuava indo em direção a Constantinopla e não em
direção a Kládovo, o que transformava seu projeto. Estava sentado à beira do Danúbio e
enrolava seu turbante, quando ouviu o murmurar do rio. A água era muito funda, mas
reconheceu o ruído que se encaixava perfeitamente nas dobras do seu turbante, onde estava
escrita uma palavra do quinto capítulo do Corão. Era a mesma água com a qual sonhara, alguns
meses antes, a palmeira na areia perto de Constantinopla, e por este sinal Maçudi compreendeu
que tudo ia bem e que sua viagem terminaria ali, à beira do Danúbio. Durante dias inteiros ficou
sentado nas trincheiras e jogou dados com um dos escribas de Bránkovitch. O escriba perdia sem
parar, mas não queria abandonar o jogo, esperando ganhar de volta o que perdera, e continuou
mesmo quando os canhões turcos arrasaram as valetas. Maçudi, por seu lado, não queria deixar
Bránkovitch que, às suas costas, sonhava de novo com Cohen. Este agora montava a cavalo
através do murmúrio de um rio que corria no sonho de Bránkovitch, e Maçudi já sabia que este
murmúrio era o das águas do Danúbio, o mesmo que se podia escutar na realidade. Então uma
brisa molhou-o com lama e ele sentiu que o momento tinha chegado. Enquanto jogava dados,
uma tropa de cavaleiros turcos, que cheiravam a mijo, entrou na trincheira. E, enquanto os
janízaros matavam o torto e a direito, Maçudi procurava entre eles, cornos olhos arregalados, um
jovem com meio bigode prateado. E viu-o. Maçudi encontrou Cohen, tal como o tinha caçado
nos sonhos alheios – ruivo, com um sorriso estreito sob o meio bigode prateado, avançando com
passos miúdos, com um saco nas costas. Neste instante, os soldados partiram o escriba em dois,
transpassaram com uma lança Avram Bránkovitch, que dormia, e avançaram sobre Maçudi. Foi
Cohen quem o salvou. Percebendo Bránkovitch, Cohen caiu no chão e os papéis de seu saco
espalharam-se ao seu redor. Maçudi sabia que Cohen tinha caído no sono mais profundo, aquele
do qual jamais despertaria.
– O intérprete está morto? – perguntou quase com alegria o paxá turco aos seus soldados,
e Maçudi respondeu-lhe em árabe:
– Não, ele adormeceu! – e isto prolongou a vida de Maçudi por mais um dia. Pois o paxá
ficou surpreso com esta resposta e perguntou a Maçudi como é que ele sabia. Maçudi respondeu-
lhe conforme Yabir Ibn Akchani lhe tinha prescrito. Declarou que ele, Maçudi, fazia parte
daqueles que atam e desatam os sonhos alheios, que era, de profissão, caçador de sonhos, que
acompanhara até aqui seu intermediário, uma espécie de isca para a caça, que aliás estava
morrendo transpassado por uma lança, e pedia que o deixassem viver até de manhã, a fim de
poder seguir o sonho de Cohen, pois Cohen estava agora sonhando a morte de Bránkovitch.
– Deixem-no viver até que o outro desperte! – disse o paxá, e os soldados colocaram o
corpo adormecido de Cohen nas costas de Maçudi. Desse modo, Maçudi seguiu os soldados
turcos carregando sua presa. Cohen de fato sonhava com Bránkovitch, o que deu a Maçudi o
sentimento de carregar nas costas duas pessoas. O jovem em suas costas via em sonho Avram-
efendi, como usualmente ele era quando estava acordado, pois seu sonho era ainda a realidade de
Bránkovitch. E se Bránkovitch alguma vez esteve desperto, era exatamente agora, transpassado
por um lança, pois não há sono na morte. Para Maçudi, esta era a ocasião de que lhe falara Yabir
Ibn Akchani. Caçava o sonho de Cohen enquanto este sonhava a morte de Bránkovitch, do
mesmo modo que até então sonhara a vida de Bránkovitch.
E assim aconteceu. Maçudi passou todo o dia e a noite perseguindo os sonhos de Cohen,
como se fossem constelações no céu de sua boca. E viu, diz-se, a morte de Bránkovitch, da
maneira como o próprio Bránkovitch a viu. De manhãzinha, suas sobrancelhas tinham ficado
brancas, suas orelhas tremiam e suas unhas demasiado longas cheiravam mal. Pensava tão
depressa que nem notou o homem que o cortou em dois, na altura da cintura, com um só golpe,
de tal modo certeiro que seu cinto caiu sem se desenrolar. O sabre deixou um corte serpenteante
e uma terrível incisão escancarada, como uma boca que pronuncia uma palavra incompreensível,
o grito da carne. Diz-se que os que viram o terrível corte feito pelo sabre jamais o esqueceram, e
os que se lembram dele dizem tê-lo reconhecido no livro intitulado As Mais Belas Assinaturas com
Espada, escrito por um certo Averkiye Skilag, que recolheu e apresentou os mais célebres
movimentos de esgrima. Nesta obra, publicada em 1702, em Veneza, esse golpe levava o nome
de uma estrela da constelação do Carneiro. Se essa morte atroz foi proveitosa para Maçudi, e o
que ele disse ao paxá antes de morrer, ninguém sabe. Se ele pôde atravessar a ponte de Cirat, mais
fina que um cabelo e mais afiada que o fio de uma espada, e que conduz do inferno ao paraíso,
somente sabem os que não falam mais. De acordo com um lenda, a música de Maçudi subiu ao
paraíso, mas ele próprio foi lançado ao inferno, dizendo: “Teria feito melhor se jamais tivesse
cantado uma canção; assim estaria no paraíso com outros vagabundos e a canalha! A música me
extraviou quando eu tinha a verdade ao alcance da mão”. Sobre a tumba de Maçudi, onde
murmura o Danúbio, está escrito:
‘‘‘‘Tudo o que ganhei e aprendi perdeu-se ao tilintar da colher nos meus dentes.”
MOKADAÇA AL SAFER@ (Séculos IX, X e XI) – Religioso kazar que viveu num
convento de mulheres. Numa segunda vida jogou xadrez, sem tabuleiro nem peças, com um
monge de um outro mosteiro. Jogavam, cada um, um movimento por ano, no espaço imenso que
vai do mar Negro ao mar Cáspio, e se revezavam para lançar o falcão ao ataque dos animais que
usavam como peças. Levavam em consideração tanto o local onde o animal era capturado quanto
a altitude do terreno de caça. Mokadaça Al Safer foi um dos melhores caçadores de sonhos entre
os kazares. Acredita-se que ele reconstituiu um cabelo do Adão Ruhani no seu dicionário dos
sonhos (ver Maçudi YuçufÂ).
Sua maneira de rezar e a regra do convento ao qual pertencia levaram-no a engravidar, no
curso da sua vida, dez mil religiosas virgens. A princesa Ateh∇ foi a última entre todas a enviar-lhe
a chave dos seus aposentos: uma pequena chave feminina, com uma moeda de ouro à guisa de
aro. Esta chave custou a vida ao padre, pois provocou a inveja do kaghan. Morreu prisioneiro
numa gaiola suspensa sobre a água.
Desse modo, o doutor Muaviya encontrava-se de novo no ponto de partida, onde estava
quando partiu para a guerra. Foi mais uma vez à Taberna da Cadela, acendeu seu cachimbo, olhou
em torno de si, apagou-o, depois voltou para o Cairo para retomar seu antigo trabalho na
Universidade. Uma pilha de correspondência esperava-o em seu escritório, bem como inúmeros
convites para congressos científicos. Escolheu um deles e pôs-se a preparar um relatório para o
encontro científico previsto para Istambul, em outubro de 1982, sobre o tema: “A civilização às
margens do mar Negro na Idade Média”. Releu Yehuda Halevi, sobretudo seu livro sobre os
kazares, escreveu seu relatório e partiu para Istambul, com a idéia de que encontraria alguém que
saberia um pouco mais do que ele sobre a questão kazar. O homem que assassinou o doutor
Muaviya em Istambul ordenou-lhe, ao lhe apontar o revólver:
– Abre tua boca, não quero estragar teus dentes!
O doutor Muaviya abriu a boca e o outro matou-o. Mirara tão bem que os dentes do
doutor Muaviya ficaram intactos.
POLÊMICA KAZAR∇ – Dimaski escreve que uma grande agitação reinou no país
durante a polêmica da qual dependia a escolha de uma religião pelos kazares. Desde o começo da
disputa, que ocorreu na riquíssima Corte do kaghan∇, o povo kazar se pôs a deambular. Tornou-
se o próprio movimento. Não se podia encontrar ninguém duas vezes no mesmo lugar. Uma
testemunha viu um grupo de pessoas que carregavam enormes pedras, perguntando: “Onde
devemos depositá-las?” Eram as marcas fronteiriças do império kazar. Pois a princesa Ateh∇
havia ordenado que as marcas fossem mantidas suspensas no ar, em vez de permanecerem no
chão, até que os kazares tivessem escolhido sua religião. A data exata desse acontecimento não é
conhecida, mas Al Bekri afirma que os kazares tinham optado pela islã, preferindo-o às outras
religiões, a partir de 737 depois de Iça. A conversão ao islamismo e a polêmica ocorreram
simultaneamente? É outra questão. Mas isso parece pouco provável. Desse modo, não se
conhece a data da polêmica, mas sua essência é absolutamente clara. Depois de ter sofrido
múltiplas pressões, visando fazê-lo adotar uma das três grandes religiões – o islã, o cristianismo
ou o judaísmo –, o kaghan pediu que lhe enviassem três doutores: um judeu entre os que tinham
fugido do califado, um teólogo grego da Universidade de Constantinopla e um dos intérpretes
árabes do Corão. Este chamava-se Farabi Ibn KoraÂ. Foi o último a chegar à polêmica, porque
foram numerosos os que quiseram impedi-lo de participar. Assim, a disputa começou com os
delegados cristão e judeu, apenas. O grego falava tão bem que começou a seduzir o kaghan. Com
os olhos úmidos como uma sopa e os cabelos manchados, ele sentou-se à mesa do kaghan e
disse:
– Num túnel, o buraco é o mais importante. Num cântaro, o que não é o cântaro; na
alma, o que não é o homem, na cabeça o que não é a cabeça, ou seja, a palavra... Escutai, então,
vós que não vos alimentais do silêncio. Oferecendo-vos a Cruz, nós, os gregos, não tomamos
vossa palavra em hipoteca, como o fazem os sarracenos e os judeus. Não vos pedimos que
adoteis nossa língua grega ao mesmo tempo que a Cruz. Pelo contrário, conservai vossa língua
kazar. Mas atenção, se escolherdes o judaísmo ou a lei de Maomé, isso não será possível. Sereis
obrigados a tomar sua fé e sua língua ao mesmo tempo.
Diante dessas palavras, o kaghan se inclinou a aceitar os argumentos do grego. Foi então
que a princesa Ateh entrou na polêmica. Ela disse:
Ouvi um criador de pássaros contar que numa cidade à beira do mar Cáspio vivem dois artistas de
grande renome – um pai e seu filho. 0 pai é pintor, disse-me o passarinheiro, e vais reconhecê-lo pelo tom do seu
azul, o mais azul de todas as cores azuis jamais vistas. 0 filho é poeta e vais reconhecer seus poemas pelo
sentimento de já tê-los ouvidos, não da boca de um ser humano, mas de uma planta ou de um animal...
Coloquei meus anéis de viagem e fui até as margens do mar Cáspio. Na cidade indicada, informei-me e
encontrei os dois artistas. Reconheci-os imediatamente de acordo com os conselhos do passarinheiro: o pai pintava
imagens divinas e o filho escrevia poemas sublimes numa língua desconhecida. Agradaram-me, também os agradei,
e pediram-me: qual de nós dois tomaras?
Escolho o filho, respondi, pois não necessita de intérprete.
O grego não se deixou, entretanto, seduzir pelos ouvidos e respondeu que os homens
ficam em pé porque são feitos da união de dois homens mancos, e que as mulheres vêem porque
são feitas de duas mulheres caolhas. Para ilustrar suas palavras, citou este acontecimento de sua
vida:
Quando moço, apaixonei-me por uma jovem. Ela não me notava, mas fui perseverante e, certa noite, pude
falar com Sofia (era seu nome) de meu amor com um tal ardor que ela me beijou, e senti-lhe as lágrimas em minha
face. Pelo sabor das lágrimas, logo compreendi que era cega, mas isto em nada me perturbou. Permanecemos lá,
enlaçados, quando ouvimos chegar do bosque próximo um galope de cavalo.
– É um cavalo branco cujo galope atravessa nossos beijos? – perguntou ela.
– Não sabemos – respondi – e saberemos somente quando ele sair do bosque.
– Nada compreendeste – disse Sofia, e no mesmo instante um cavalo branco saiu do bosque.
– Sim, sim, compreendi tudo – repliquei, e perguntei-lhe de que cor eram meus olhos.
– Verdes – disse ela.
– Ora, observai, tenho os olhos azuis...
Esta história do delegado grego impressionou o kaghan, e ele estava prestes a adotar o
deus dos cristãos. Compreendendo a situação, a princesa Ateh decidiu deixar a sala mas, antes de
partir, disse ao kaghan:
Meu senhor perguntou-me nesta manhã se meu coração encerrava a mesma coisa que o dele. Eu tinha
unhas longas e anéis de prata que assobiavam, e fumava o narguilé, fazendo volutas verdes.
À pergunta do senhor, respondi: “Não!” – e o cachimbo caiu-me dos lábios.
Meu senhor partiu, contrariado, porque não sabia que eu pensava, enquanto ele se afastava: o cachimbo
teria caído do mesmo modo se eu tivesse dito sim!
Diante dessas palavras o kaghan tremeu, compreendendo que embora o grego usasse a
voz de um anjo no lugar dos sapatos, a verdade estava alhures. Então, por fim, ele deu a palavra
ao homem do califa, Farabi Ibn Kora. Pediu-lhe, primeiramente, que interpretasse o sonho que
tivera durante uma das noites precedentes. Nesse sonho, um anjo viera, trazendo uma mensagem
segundo a qual o Criador aprovava suas intenções, mas não seus atos. Então, Farabi Ibn Kora
perguntou ao kaghan:
– O anjo de teu sonho era o anjo do conhecimento ou o anjo da revelação? Apareceu sob
a forma de uma macieira ou sob outra forma?
Quando o kaghan respondeu que o anjo não era nem um nem outro, Ibn Kora
acrescentou:
– Naturalmente, não era nem um nem outro, pois era um terceiro. Este terceiro anjo é
Adão Ruhani, e tu e teus religiosos tentais elevar-vos até ele. Estas são vossas intenções e são
boas. Entretanto, vós vos esforçais considerando que Adão é como um livro escrito por vossos
sonhos e vossos caçadores de sonhos. Estes são vossos atos e são equivocados, pois criais vosso
próprio livro na ausência do Livro Santo. Já que o Livro Santo nos foi dado, aceitai-o de nossa
parte, partilhêmo-lo, e rejeitai o vosso...
Diante dessas palavras, o kaghan abraçou Farabi Ibn Kora e isto encerrou a questão.
Converteu-se ao islã, descalçou-se, dirigiu uma prece a Alá e ordenou que fosse queimado o
nome que recebera, segundo o costume kazar, antes do seu nascimento.
O LIVRO AMARELO
FONTES HEBRAICAS SOBRE A QUESTÃO KAZAR
ATEH∇ (século VIII) – Princesa dos kazares∇, que viveu à época da judaização desse
povo. Daubmannus@ dá a versão hebraica de seu nome, assim como a significação das letras da
palavra At’h:
4
Fontes: um retrato de Cohen, habitante do gueto de Dúbrovnik, pôde ser estabelecido a partir dos relatórios da
polícia dessa cidade, escritos em italiano, no estilo precário das pessoas que não possuem língua materna;
recorreu-se igualmente às minutas de um julgamento e aos testemunhos de dois atores, Nikola Rigui e Antun
Krivonóssovitch, assim como ao inventário dos bens encontrados no apartamento de Cohen, estabelecido em sua
ausência, para atender às necessidades da comunidade judia de Dúbrovnik, e cuja cópia foi reencontrada nos
arquivos dessa cidade na série Processi politici e criminali 1680-1689. Os últimos dias da vida de Cohen são
conhecidos por algumas informações enviadas a Dúbrovnik, pelo abkeham dos sefardins de Belgrado,
acompanhados de um anel no qual Cohen inscrevera, em 1688, o ano de sua morte: 1689. A fim de completar o
retrato, é preciso comparar essas informações com os relatórios dos delegados de Dúbrovnik, enviados por
Matiya Marin Búnitch, embaixador em Viena da República de São Brás, para observar o conflito austro-turco
próximo de Kládovo, em 1689. Eles fizeram apenas umas poucas anotações sobre Cohen, sublinhando que nesta
missão tinham encontrado “mais palha do que cavalos”.
do que na realidade. Chegou a tal conclusão procedendo à sua meticulosa maneira. Viu-se em
sonho: em pé, sob uma macieira, com o sabre desembainhado. Era outono e ele esperava, desse
modo, com o sabre na mão, que o vento começasse a soprar. Assim que o vento se ergueu, as
maçãs começaram a cair, com um ruído comparável ao dos cascos de um cavalo. Cohen cortou
em duas a primeira maçã que caía. E quando acordou era outono, como no sonho. Apanhou um
sabre, passou pela porta de Pile e desceu sob a ponte. Ali crescia uma macieira, e ele esperou que
o vento soprasse. O vento soprou, as maçãs começaram a cair, mas ele não pôde cortar nenhuma.
Assim, Cohen compreendeu que era mais rápido com o sabre em sonho do que na realidade.
Talvez porque se exercitasse constantemente em sonho, o que não ocorria na realidade. Sonhava
muitas vezes que empunhava com a mão direita um sabre, na escuridão, e que, com a mão
esquerda, segurava uma correia de conduzir camelos, cuja outra extremidade era segura por um
desconhecido. Seus ouvidos estão cheios dessa escuridão espessa, através da qual escuta o outro
puxar o sabre e avançar contra ele, o aço roçando seu rosto. Mas ele sente-se seguro de si mesmo
e defende-se do golpe, colocando sua arma atravessada na trajetória silvante da lâmina invisível
que resvala, rangendo, em seu próprio sabre.
A desconfiança que Samuel Cohen suscitou e as punições que se sucederam, ao mesmo
tempo e de vários lados, tinham razões diversas. Foi acusado de ter provocado uma polêmica
religiosa com os jesuítas de Dúbrovnik, o que era proibido. Foi também censurado por manter
relações íntimas com uma aristocrata cristã e por se interessar pela doutrina herética dos essênios,
sem esquecer o testemunho de um monge segundo o qual Cohen teria, diante dos olhos da
multidão de Stradun, engolido com seu olho esquerdo um pássaro em pleno vôo.
Tudo começou com a visita completamente insólita que Cohen fez ao convento dos
jesuítas de Dúbrovnik, em 23 de abril de 1689, visita que o levou à prisão. Naquela manhã,
Cohen foi visto ao subir os degraus do convento, enfiando o cachimbo entre os dentes através do
seu sorriso, pois vira em sonho como se fuma cachimbo, e começara a fumar na realidade. Bateu
à porta, os religiosos abriram, e ele procurou obter informações sobre um evangelizador e
missionário cristão, aproximadamente oito séculos mais velho do que ele, cujo nome ignorava,
mas cuja vida sabia de cor: que tinha feito seus estudos em Salônica e em Constantinopla, que
odiava os ícones, que aprendera hebraico na Criméia e tentara converter os pecadores de Kazária
ao cristianismo, acompanhado por seu irmão, que o ajudara nessa tarefa. “Morreu em Roma, em
869”, acrescentou Cohen. Pedia aos religiosos que lhe dissessem, se soubessem, o nome desse
evangelizador, e que eles lhe indicassem outras fontes de informação sobre sua vida. Mas os
jesuítas não o deixaram nem mesmo entrar. Ouviram o que ele tinha a dizer, benzendo as bocas
sem descanso, depois pediram que o metessem na prisão. Pois, desde o sínodo de 1606, na igreja
de Nossa Senhora, onde tinha sido votado um decreto contra os judeus, toda discussão sobre a
religião cristã estava proibida para os habitantes do gueto. E aquele que não respeitasse esta
interdição era condenado a trinta dias de prisão. Enquanto Cohen purgava sua pena, dedicando-
se a gastar os bancos com suas orelhas, produziram-se dois acontecimentos que merecem ser
relatados. A comunidade judia decidiu fazer o inventário dos documentos que se encontravam no
alojamento de Cohen, e, ao mesmo tempo, uma mulher começou a se interessar muitíssimo por
seu destino.
A cada dia, às cinco horas da tarde, quando a sombra da torre Mintcheta caía do outro
lado da parede, a senhora Efrosínia Lukárevitch@, aristocrata bastante conhecida da rua
Lutcháritza, pegava seu cachimbo de porcelana, enchia-o com o tabaco tostado que passara o
inverno dentro de passas de uva, e o acendia com uma bola de incenso ou com um palito de
pinho da ilha de Lástovo. Depois, dava uma moeda de prata a um jovem de Stradun para que
levasse o cachimbo para Samuel Cohen na prisão. O jovem entregava o cachimbo aceso a Cohen
e, depois que este o fumava, trazia-o de volta para a senhora Efrosínia.
Essa senhora Efrosínia, saída da família aristocrática dos Guetálditch-Kruhoráditch,
tinha-se aliado pelo casamento à casa dos senhores Luccari, de Dúbrovnik. Era conhecida pela
sua extraordinária beleza e pelo fato de que ninguém jamais vira suas mãos. Contava-se que
possuía dois polegares de cada lado, ou seja, um segundo polegar no lugar do dedo mindinho, de
modo que cada uma de suas mãos podia ser esquerda ou direita. Isto era bem visível, dizia-se, no
retrato completado à sua revelia, onde figurava segurando um livro sobre o peito com sua mão de
dois polegares. Desprezando os boatos, a senhora Efrosínia vivia como todos os de sua classe e
não tinha, como se costuma dizer, uma orelha mais pesada do que a outra. Somente às vezes,
como que enfeitiçada, permitia-se ir às mascaradas interpretadas pelos judeus, no gueto. Nessa
época, essas representações teatrais judias ainda não eram proibidas pelas autoridades de
Dúbrovnik, e a senhora Efrosínia até mesmo dera, certa vez, um de seus vestidos para os
comediantes e atores mascarados do gueto, um vestido ‘‘azul com fitas amarelas e vermelhas”,
para o papel principal, interpretado por um homem. Em fevereiro de 1687, Samuel Cohen,
usando o vestido da senhora Lukárevitch, desempenhou um papel feminino numa “pastoral”.
Notificou-se, nos relatórios destinados às autoridades, que o “judeu Cohen” tinha se comportado
de maneira estranha “como se não se tratasse de uma comédia”. “Vestido de pastora, com um
vestido azul com fitas e laços amarelos e vermelhos, e com uma maquiagem que o tornava
irreconhecível, Cohen devia fazer uma declaração de amor, em versos cantados, a um pastor”.
Em vez disto, e no meio da cena, tinha-se virado para a senhora Efrosínia (cujo vestido usava) e,
para espanto de todos, ofereceu-lhe um espelho e dirigiu-lhe estas “palavras de amor”.
Em vão me envias este espelho da sorte,
Pois nele não vi teu rosto;
No lugar do teu, encontrei o meu,
Que de verão em verão vai bem longe e volta...
Toma de volta teu presente, pois não mais tenho sonho,
Desde que nele vejo meu rosto e não o teu.
A senhora Efrosínia recebeu calmamente esta homenagem e ofereceu muitas laranjas aos
intérpretes. Na primavera seguinte, quando a senhora Luccari levou sua filha à igreja para sua
Confirmação, também levava a dama, nos braços, à vista de todos, uma boneca vestida com um
vestido azul com fitas amarelas e vermelhas, cortado no mesmo tecido que aquele do “judeu
durante a mascarada no gueto”. Diante dessa visão, e apontando a boneca, Cohen gritou que
aquela era a sua própria filha sendo levada à Confirmação, que levavam o “filho do seu amor” ao
templo, embora esse templo fosse cristão. Naquela noite, a senhora Efrosínia encontrou Samuel
Cohen diante da igreja de Nossa Senhora, no mesmo instante em que o gueto fechava. Ela
estendeu-lhe a ponta de seu cinto, para que o beijasse, puxou-o por ele, como se fosse uma
correia de conduzir cavalos, para o primeiro recanto sombrio, e entregou-lhe uma chave,
designando uma casa da rua Prieko, onde o esperaria na noite seguinte.
Na hora combinada, Cohen viu-se diante de uma porta, cuja fechadura estava situada
acima da maçaneta, de maneira que foi obrigado a introduzir a chave com os dentes virados para
cima e levantar a maçaneta. Penetrou num corredor estreito onde a parede da direita era normal,
enquanto o lado esquerdo era composto de pequenas colunas quadradas de pedra, e que se
afastavam, em cascata, para a esquerda. Cohen olhou através das pequenas colunas e, tendo
alargado seu campo de visão, notou ao longe um espaço vazio, no fundo do qual o mar
sussurrava sob a lua. Este mar, todavia, não estava deitado no horizonte, permanecia em pé,
caindo como uma cortina cuja borda inferior franzia-se, agitava-se e debruava-se de espuma. Na
beira das pequenas colunas estava fixada uma espécie de grade de ferro que impedia a
aproximação; Cohen concluiu que toda a parede da esquerda era, de fato, uma escadaria, deitada
de lado embora fosse inutilizável, com seus degraus verticais colocados à esquerda dos pés, e não
sob eles. Caminhou ao longo dessa parede-escadaria, afastando-se cada vez mais do lado direito
do corredor e, em alguma parte no meio do caminho, perdeu pé, subitamente. Caiu sobre uma
das colunas-degraus e, como tentava levantar-se, compreendeu que não podia mais usar o chão
como suporte, pois este tinha-se tornado uma parede, sem por isto mudar de aspecto. Do mesmo
modo, a parede-escadaria tinha-se transformado numa escadaria normal, continuando, porém,
idêntica. Mas a luz que Cohen tinha percebido, no fundo do corredor, encontrava-se, agora,
acima dele. Sem dificuldade, subiu a escadaria até a luz e chegou diante de um quarto no andar
superior. Antes de entrar, olhou por sobre o parapeito e percebeu o mar embaixo, tal como tinha
costume de ver: murmurando no fundo do abismo sob seus pés. Quando entrou, a senhora
Efrosínia estava sentada, descalça, e chorava em seus cabelos. Diante dela, sobre uma mesinha
baixa de três pernas, havia um sapato: um sapato de bico revirado que tinha dentro um pãozinho,
e no bico uma vela. Sob os cabelos, viam-se os seios desnudos da senhora Efrosínia que, como
olhos, tinham cílios e sobrancelhas. Um leite escuro gotejava deles como de um olhar negro.
Com suas mãos de dois polegares, partiu o pãozinho e colocou os pedaços sobre os joelhos.
Assim que ficaram encharcados com suas lágrimas, jogou-os no chão diante dos pés que, no lugar
das unhas, tinham dentes. Com as plantas dos pés encurvadas, mastigou esse alimento com
aqueles dentes, mas, como não tinha nenhuma possibilidade de engoli-lo dessa maneira, os
pedaços mastigados rolaram na poeira ao seu redor...
Quando percebeu Cohen, puxou-o para junto de si e conduziu-o para o quarto de dormir.
Naquela noite, fez dele seu amante, saciou-o com seu leite negro e disse-lhe:
– Não mames demais, se não queres envelhecer, porque é o tempo que escorre de mim.
Só dá forças até um certo ponto; depois disso, ele enfraquece...
Depois da noite passada com ela, Cohen decidiu converter-se à religião dela, dos cristãos.
Anunciou sua intenção publicamente, como em êxtase, e a notícia espalhou-se. Mas nada
aconteceu. Quando confiou sua intenção à senhora Efrosínia, ela lhe disse:
– Não faça isto pois, se queres saber realmente, eu não sou cristã, ou, melhor dizendo, só
o sou provisoriamente, por meu marido. De fato, de certa maneira, precisa mas complexa,
pertenço ao mundo judeu, assim como tu. Talvez já observaste que se vê, às vezes, no Stradun,
um manto bem conhecido usado por alguém completamente desconhecido. Nós todos usamos
capas dessa espécie, e eu, como os outros. Pois eu sou o diabo, chamo-me sonho. Venho do
inferno judeu, do Guehen, meu assento encontra-se no lado esquerdo do Templo, entre os
espíritos do mal, sou o filho de Geburá que carrega a inscrição: “atque’hinc in illo creata est
Gehenna”•. Sou a primeira Eva, chamo-me Lilith, conheci o nome de Jeová e desentendi-me com
Ele. Desde então, flutuo em Sua sombra, entre as significações dos sete sentidos da Tora. Nesta
forma que aqui está, e que amas, sou o resultado da mistura da Verdade e da Terra; tenho três
pais, mas não tenho mãe. E não tenho o direito de caminhar para trás. Se me beijares na testa,
morrerei. Se te converteres ao cristianismo, para mim morrerás. Cairás entre as mãos dos diabos
do Hades cristão, que se ocuparão de ti, e não entre as minhas. Estarás completamente perdido
para mim, fora do meu alcance. Não somente neste mundo, mas também em todas as outras
vidas futuras...
Assim, o sefardim de Dúbrovnik, Samuel Cohen, continuou sendo o que era. No entanto,
continuaram correndo rumores a seu respeito. Seu nome era mais rápido do que ele, de modo
que este nome vivia adiantadamente as aventuras que lhe iam acontecer. Uma gota fez
transbordar o copo, em 1689, no domingo, dia dos Santos Apóstolos. Logo após o carnaval, um
comediante de Dúbrovnik, Nikola Rigui, foi levado diante do tribunal em razão das infrações
cometidas por sua trupe naquela ocasião. Era acusado de ter ridicularizado em suas
representações um notável de Dúbrovnik, o judeu Papo-Samuel, bem como outros judeus, e de
ter maltratado Samuel Cohen diante de toda a cidade. O ator defendeu-se, dizendo que ignorava
que Cohen tinha-se dissimulado com uma máscara de carnaval. Todos os anos, no momento em
que o vento muda de cor, e como todos os jovens da região, Rigui preparava, em companhia do
ator Krivonóssovitch, a “judiaria”, uma farsa de carnaval que colocava em cena um judeu. Mas
naquele ano, Bôjo Popov-Saraka e sua companhia de jovens fidalgos, desistiram de participar, e
assim os jovens burgueses decidiram preparar eles mesmos as máscaras. Alugaram um carro de
boi, montaram nele uma forca, e Krivonóssovitch, que já tivera ocasião de interpretar o papel de
judeu, conseguiu uma camisa feita com vela de barco e um chapéu feito com rede de pescador e
•
“Assim como daqui Ghehen foi criado para ele.”
confeccionou uma barba ruiva em cânhamo e escreveu o testamento que o Judeu habitualmente
lê nas “judiarias”, antes de morrer. Encontraram-se todos, à hora combinada, mascarados. E
Rigui acreditava – e jurou isto diante do tribunal – que sob a máscara do judeu transportado no
carro, como em todos os carnavais, encontrava-se o comediante Krivonóssovitch e que era ele
que tinha sido colocado sob a forca para receber as pancadas, as cusparadas e outras
humilhações, como a peça exigia. Todos os comediantes, inclusive o carrasco e o “judeu”,
subiram na carroça e começaram seu percurso pela cidade, desde os Padres Negros até os Padres
Brancos, representando a peça. Deram a volta na praça, depois dirigiram-se para as ruas Nossa
Senhora e Lutcháritza. A caminho, Rigui, que desempenhava o papel de carrasco, arrancou o
nariz da máscara do pretenso judeu (interpretado, ele acreditava, pelo ator Krivonóssovitch); em
Tabor tinha-lhe arrancado a barba; próximo da pequena fonte, tinha deixado a multidão cuspir
nele; na praça diante do Palácio (Ante Palatium), tinha-lhe arrancado um braço (um braço feito
de palha) e nada tinha observado, exceto os pequenos assobios que saíam, involuntariamente, da
boca do judeu em cada sacudidela da carroça. Quando chegaram à rua Lutcháritza, diante da casa
do senhor Lukárevitch, no momento em que o “judeu” devia ser enforcado, segundo o enredo
habitual, Rigui pôs a corda ao redor do seu pescoço, sempre persuadido que sob a máscara se
encontrava Krivonóssovitch, ator da sua companhia. Foi então que, em vez do testamento
esperado, o homem mascarado leu um poema, ou sabe lá Deus que outra coisa, virado, com a
corda no pescoço, para a senhora Efrosínia Lukárevitch que, com os cabelos lavados com ovo de
pica-pau negro, estava no balcão de seu palácio. O texto não parecia nada com o testamento do
judeu da “judiaria”, longe disto:
0 outono ê tua veste, o colar no teu pescoço,
0 inverno éa cinta que cinge tuas ancas,
A primavera é o hábito que cobre teu corpo,
0 verão te calça depois da primavera;
Mais passa o tempo, mais te cobres.
Cada vestimenta é um ano a mais,
Joga fora tuas vestimentas e todos os teus anos
Antes que minha chama se apague.
Foi somente então, porque essas palavras de amor pareciam mais com uma mascarada do
que com uma “judiaria”, e de forma alguma com um testamento judeu, que os atores e os
espectadores compreenderam que um acontecimento imprevisto se produzia, e Rigui teve a idéia
de tirar a máscara daquele que lia. Para a estupefação geral, apareceu, sob a máscara, em vez do
ator Krivonóssovitch, um verdadeiro judeu do gueto, Samuel Cohen. Este judeu suportara
voluntariamente todas as pancadas, humilhações e cusparadas no lugar de Krivonóssovitch, e
Nikola Rigui não podia, portanto, em caso algum, ser considerado responsável. Ele ignorava que
a máscara dissimulava Cohen; que havia subornado Krivonóssovitch para que este lhe cedesse o
lugar e guardasse silêncio. Para surpresa de todos, o tribunal concluiu que Rigui não era culpado
das injúrias e maus-tratos infligidos a Samuel Cohen, mas que, pelo contrário, Samuel Cohen
tinha transgredido a lei segundo a qual judeus e cristãos não têm o direito de se visitarem durante
o carnaval. Cohen havia deixado há pouco a prisão, aonde o levara a visita aos jesuítas, e a nova
condenação pesou como um dedo no prato da balança: este judeu de “cabelos pesados” que
mantinha, em algum lugar na Hertzegóvina, cemitérios de cavalos turcos, devia abandonar a
cidade. Mas ignorava-se se a comunidade judia ia tomar partido por Cohen, o que podia atrasar a
sentença ou mesmo modificá-la. Esperava-se, portanto, estando Cohen de novo na prisão, que o
gueto se manifestasse.
No gueto, considerou-se que não se devia demorar, como se demorava para acender a
lareira no inverno. Na segunda lua do mês de iyar do mesmo ano, os rabinos Abraão Papo e Isaac
Nehama decidiram fazer o inventário dos documentos e livros no domicílio de Cohen. Pois a
notícia de sua visita aos padres não tinha inquietado apenas os jesuítas, mas todo o gueto.
Quando chegaram ao alojamento de Cohen, não havia ninguém. Chamaram à porta e,
pelo som do sino, compreenderam que a chave estava escondida lá dentro. Efetivamente, ela
estava pendurada no badalo do sino. Uma vela queimava no cômodo, embora a mãe de Cohen
estivesse ausente. Encontraram um almofariz de canela, uma rede suspensa tão alto que, quem
deitasse nela, poderia ler um livro que estivesse pregado no teto, uma ampulheta cuja areia era
perfumada a lavanda, uma lâmpada de óleo com três braços e os nomes das três almas do homem
inscritos em cada braço: nefech, ruah e necham. No peitoril da janela havia plantas e, examinando as
espécies a que pertenciam, os visitantes concluíram que eram do signo de Câncer. Na estante
encostada à parede encontravam-se um alaúde, um sabre e cento e trinta e duas bolsinhas em
tecido vermelho, azul, negro e branco, que continham os manuscritos de Cohen ou as
transcrições de manuscritos escritos por outros. Em um prato, uma inscrição feita com a pena
encharcada de cera de lacre explicava como se despertar rápida e facilmente: “Para se acordar
completamente basta escrever qualquer palavra, pois a escrita é, em si mesma, um ato
sobrenatural e divino, não-humano.” No teto, acima da rede de dormir, muitas palavras tinham
sido assim traçadas ao despertar. A atenção dos visitantes foi particularmente chamada pelos
livros jogados no chão, perto da janela onde Cohen tinha o hábito de ler. Era evidente que os lia
de modo alternado, e esta leitura parecia uma espécie de poligamia. Encontraram no chão a
edição de Cracóvia do livro de um poeta de Dúbrovnik, o doutor Didak Isaías Cohen (morto em
1559), apelidado Didak Pir – De illustribus familiis (1585); ao lado, o livro de Aron Cohen, Zekan
Aron (A barba de Aron), publicado em Veneza em 1637, com uma cópia do hino de Aron
dedicado a Isaac Yuchurun (morto nas prisões de Dúbrovnik), e, um pouco mais afastado, 0 bom
óleo (Sêmen Atov), de Schalamun Oef, o avô de Aron Cohen. Os livros eram, evidentemente,
escolhidos segundo um mesmo critério familiar, mas não foi possível tirar nenhuma conclusão
desta observação. Foi então que o rabino Abraão Papo abriu a janela. O vento do sul, que
começava naquele instante a soprar, enfiou-se no quarto. O rabino abriu um dos livros, ouviu por
um instante o tremor das folhas na corrente de ar e disse a Isaac Nehama:
– Ouça! Pode-se pensar que ouvimos a palavra: nefech, nefech, nefech.
Depois o rabino deixou falar o livro seguinte. As páginas mexidas pelo vento sussurravam
claramente: ruah, ruah,ruah.
– Se o terceiro livro pronunciar a palavra nechama – observou Papo – saberemos que os
livros chamam as almas de Cohen.
Assim que Abraão Papo abriu o terceiro livro, ambos ouviram: nechama, nechama, nechama!
– Os livros discutem entre si, sobre alguma coisa que se encontra neste cômodo –
concluiu o rabino Papo. – Certos objetos aqui querem destruir outros.
Sentaram-se, com os olhares parados. De repente, na lâmpada de três braços, apareceram
chamas, como se os livros as convocassem com seus sussurros. Uma chama separou-se então da
lâmpada e começou a chorar com duas vozes. O rabino Papo disse:
– É a primeira, a mais jovem das almas de Cohen que chora por seu corpo, e seu corpo
chora por sua alma.
Depois, a alma aproximou-se do alaúde na estante e tocou as cordas, acompanhando suas
lágrimas com música.
– Algumas vezes, no começo da noite – chorava a alma de Cohen –, se o último raio do
sol apanha teus olhos, terás a impressão de ver na borboleta que passa um pássaro distante, ou
numa pequena alegria uma grande tristeza...
Neste instante, uma segunda chama alongou-se, tomando a forma de um ser humano,
pôs-se diante do espelho e começou a vestir-se e empoar-se. A aparição aproximava os bálsamos,
os ruges e as pomadas perfumadas do espelho, como se só pudesse ver suas cores através dele, e
empoava-se, entretanto, sem se mirar, como se tivesse medo de ser ferida. Continuou assim até
que tomou a forma de Cohen, com seus olhos vermelhos e seu meio bigode prateado. Depois, a
aparição apanhou o sabre na estante e juntou-se à primeira alma. A terceira alma de Cohen, a
mais velha, planava durante esse tempo no teto, sob a forma de uma chama ou de uma lucíola.
Enquanto as duas primeiras se apertavam contra a estante onde se encontravam os manuscritos, a
terceira permanecia distanciada, protegendo seu canto sob o teto, arranhando estas letras,
inscritas acima da rede:
Nos sonhos humanos, os kazares viam letras através das quais procuravam o homem
primordial, o Adão Kadmon original, que era ao mesmo tempo homem e mulher e nasceu antes
da eternidade. Acreditavam que a cada homem corresponde uma letra do alfabeto, que cada uma
dessas letras representa uma parte do corpo do Adão Kadmon sobre a terra, e que as letras se
combinam nos sonhos dos humanos para dar vida ao corpo de Adão. Entretanto, essas letras e a
língua que elas simbolizam não são as que utilizamos. Os kazares acreditavam saber onde se
encontra o limite entre as duas línguas e os dois alfabetos, entre as palavras de Deus – davar – e
nossas palavras humanas. O limite, afirmavam, situa-se entre o verbo e o substantivo! Quer dizer
que o tetragrama – o nome secreto de Deus – que a septena alexandrina já esconde sob o termo
ingênuo de Kyrios, não é de maneira alguma um substantivo, mas um verbo. É preciso não se
esquecer que Abraão levou em conta os verbos dos quais Deus se serviu para criar o mundo, e
não os substantivos. A língua que utilizamos compõe-se, portanto, de duas forças desiguais, de
origens diferentes. Pois o verbo, o logos, a lei, a regra, garantia de boa conduta e de um
comportamento correto e útil, precedeu ao próprio ato de criação do mundo, ou seja, a tudo que
é suscetível de agir e de estabelecer relações. Ao contrário, os substantivos foram criados depois
dos objetos deste mundo, para designá-los. Desse modo, os substantivos chegam como guizos no
chapéu, depois de Adão, que diz no 139º salmo: “Ainda não há palavras em minha língua, e Tu,
Senhor, já sabes tudo”. O fato de que os substantivos sejam destinados a corresponder aos
nomes humanos é só uma prova a mais de que não pertencem à categoria das palavras das quais
procede o nome de Deus. Pois o nome de Deus (na Tora) é um verbo, e não um substantivo, e
este verbo começa por Alef. Deus olhava a Tora no momento em que criou o mundo, e assim a
palavra com a qual o mundo começou é um verbo. Nossa língua tem, portanto, dois estratos –
um é divino, outro é de origem duvidosa e certamente ligada ao Guehen, ao espaço situado ao
norte de Deus. Assim, o paraíso e o inferno, o passado e o futuro, já estão na língua e nas letras
da língua.
Nas letras da língua! Aí repousa o fundo da sombra. O alfabeto terrestre espelha-se no
alfabeto celeste e partilha o destino da língua. Empregamos em conjunto os substantivos e os
verbos, embora os verbos estejam infinitamente acima dos substantivos. De idade e origem
diferentes, os verbos foram criados antes da Criação e os substantivos depois. E tudo isto
também é válido para o alfabeto. As letras que representam os substantivos e as que simbolizam
os verbos não podem, portanto, ser da mesma natureza, e estão reagrupadas desde sempre em
duas categorias de signos. Mas hoje, estão misturadas em nossos olhos, pois o esquecimento
reside no olho. Cada uma das letras do alfabeto terrestre corresponde a uma parte do corpo
humano, do mesmo modo que cada letra do alfabeto celeste corresponde a uma parte do corpo
de Adão Kadmon. Os espaços entre as letras denotam o ritmo dos movimentos do corpo. Mas,
como a simultaneidade entre o alfabeto divino e o alfabeto humano não é permitida, um dos dois
retira-se sempre para deixar lugar ao outro. Inversamente, quando um se desenvolve, outro
regride. O que também é válido para as letras da Bíblia – a Bíblia respira sem parar. Por instantes,
são os verbos que brilham nela; depois, assim que se retiram, são os substantivos que negrejam,
mas não podemos ver tudo isso, do mesmo modo que não podemos ver o que uma chama negra
escreve sobre uma chama branca. Da mesma maneira, o corpo de Adão Kadmon entra em nosso
corpo ou então se retira, como o fluxo e o refluxo, conforme o alfabeto celeste avança ou recua.
As letras do nosso alfabeto são visíveis na realidade, enquanto as do alfabeto celeste só aparecem
em nossos sonhos, jorrando espalhadas como a luz e a areia nas águas terrestres, e expulsando de
nosso olho adormecido as letras humanas. Em sonho, pensamos com os olhos e as orelhas, a
língua do sonho não possui substantivos, ela emprega somente verbos. É somente em sonhos
que todo homem é zaddik, jamais um assassino... Eu, Samuel Cohen, autor dessas linhas,
mergulho, como os caçadores de sonho kazares, nas regiões situadas na face obscura do mundo,
para tentar retirar as faíscas divinas que aí estão aprisionadas. Mas pode acontecer que minha
alma fique aí também encerrada. Com as letras que vou colecionando, e aquelas reunidas por
outros homens antes de mim, preparo um livro que, como diziam os caçadores de sonhos
kazares, constituirá o corpo de Adão Kadmon sobre a terra...
•
O homem dos sonhos! (em hebraico)
Assim foi selado o destino de Samuel Cohen. Foi banido de Dúbrovnik e, como é
confirmado pelos relatórios de polícia, despediu-se de seus amigos “no dia do apóstolo São
Tomás, em 1689, num calor que poderia fazer cair os pêlos da cauda do gado e cobrir o Stradun
de penas de pássaros”. Naquela noite, a senhora Efrosínia vestiu-se de homem como fazem as
mulheres públicas, e saiu. Também naquela noite, Cohen andou pela ultima vez, da farmácia até o
palácio Sponza. Quando ele caminhava ao longo do arco de Gárichte, ela jogou diante dele uma
moeda de prata. Ele recolheu-a e aproximou-se dela na escuridão. Inicialmente, teve um
sobressalto, confundindo-a com um homem, mas logo a reconheceu, assim que tocou os seus
dedos.
– Não partas – disse ela. – Pode-se arranjar tudo com os juizes. Basta que me digas. Não
existe exílio que não possa ser substituído por alguns dias de prisão marinha. Enfiarei algumas
moedas de ouro sob as barbas de quem for preciso, e não seremos obrigados a separar-nos.
– Não parto porque fui exilado – respondeu Cohen. – Para mim, as decisões deles valem
tanto quanto o que o gavião vomita quando voa. De fato, devo partir porque soou a hora. Desde
criança sonho que me bato com uma espada, mancando, na escuridão. Sonho em uma língua que
não compreendo quando acordo. Vinte e dois anos passaram-se e já é para mim o tempo de o
sonho tornar-se verdade e de eu compreendê-lo. É agora ou nunca. Vai realizar-se ali, onde eu o
sonho – em Constantinopla. Pois não é coincidência que eu veja em sonho suas ruas
serpenteando para melhor matar o vento, aquelas torres e a água debaixo delas...
– Se não nos virmos mais nesta vida – disse então a senhora Efrosínia –, vamos nos ver
numa vida futura. Somos, talvez, apenas as raízes das almas que sairão um dia de nós. Tua alma
talvez esteja grávida e porá um dia minha alma no mundo, mas antes ambas devem percorrer um
certo caminho...
– Mesmo que fosse assim, nessa outra vida não nos reconheceríamos. Pois tua alma não é
a de Adão, uma alma exilada por todas as gerações futuras, condenada a morrer com cada um de
nós.
– Iremos reencontrar-nos, de uma maneira ou de outra. Vou dizer-te como reconhecer-
me. Serei um macho, mas terei as mesmas mãos de hoje, cada uma delas com dois polegares, de
modo que podem ser, uma e outra, esquerda e direita...
Com estas palavras, a senhora Efrosínia beijou o anel de Cohen e eles separaram-se para
sempre. A morte da senhora Lukárevitch, que aconteceu logo depois, foi tão atroz que passou a
ser tema de canções populares. Cohen não pode ser considerado suspeito por ela, pois, no
momento da morte da senhora Efrosínia, já tinha caído em coma, num sono sem retorno nem
despertar.
A princípio, acreditou-se que Cohen iria reunir-se à noiva Lidíssiya, em Salônica, e que se
casariam, como a comunidade judia de Dúbrovnik tinha aconselhado. Mas ele agiu de modo
diferente. Naquela noite, encheu um cachimbo que fumou na manhã seguinte, no campo de
Sábliak-paxá de Trébinie. Este preparava-se então para sua expedição à Valáquia. Desse modo,
apesar de tudo, Cohen foi mesmo em direção a Constantinopla. Mas nunca chegou lá. Homens
do séquito do paxá, que os judeus de Dúbrovnik subornaram com tinturas vegetais para o linho,
com o objetivo de conhecerem o fim de Cohen, contam isto:
Naquele ano, o paxá dirigia-se com seu séquito para o norte, enquanto as nuvens sobre
eles deslizavam para o sul, como se levassem suas lembranças. Já era mau agouro. Os homens
olhavam suas cadelas saltitarem entre os aromas das florestas da Bósnia, como se corressem
através das estações, e, numa noite de eclipse lunar, chegaram a um caravançará em Chabatz. Um
dos potros, então, quebrou as pernas, às margens do Sava, e o paxá chamou em socorro seu
guardião do cemitério de cavalos. Mas Cohen dormia tão profundamente que não ouviu o
chamado do seu senhor. O paxá chicoteou-o entre os olhos, tomando impulso como se retirasse
o braço do fundo de um poço, e com tal força que o bracelete de seu punho quebrou. Cohen
sobressaltou-se e partiu correndo para executar seu trabalho. Depois deste fato perde-se um
pouco sua pista, pois deixou o campo para ir a Belgrado, que tinha caído nas mãos das tropas
austríacas. Sabe-se que foi até uma enorme mansão de dois andares, pertencente a sefardins
turcos, uma mansão judia cheia de correntes de ar que urravam pelos corredores – um abheham
com mais de cem quartos, cinqüenta cozinhas e trinta porões. Nas ruas da cidade construída
entre os dois rios, viu os combates das crianças que se dilaceravam, como galos, por dinheiro,
enquanto ao redor delas a multidão fazia apostas. Morava num dos quarenta e sete quartos de um
velho caravançará cujos proprietários eram judeus alemães, achkenazim, e aí descobriu um livro
sobre a interpretação dos sonhos escrito em ladino. No crepúsculo, olhava as torres das igrejas
lavrando as nuvens sobre Belgrado.
– Quando elas chegam ao final do horizonte – anotou ele – elas viram e fazem o caminho
de volta com nuvens frescas...
Quando o destacamento de Sábliak-paxá chegou às margens do Danúbio, um dos quatro
rios do Éden – o que simboliza a camada alegórica na Bíblia –, Cohen juntou-se a ele. Foi quando
se produziu um acontecimento que aumentou a benevolência do paxá em relação a Cohen. O
paxá trouxera em sua expedição um fundidor de canhões bem pago, um grego. Este permanecia
na retaguarda das tropas, a um dia de marcha, com suas fôrmas e suas ferramentas. Assim que
aconteceram os primeiros embates com os sérvios e os austríacos, o paxá ordenou que fosse
fundido, em Djerdap, um canhão de um alcance de três mil côvados e balas de dois pesos
egípcios cada. “Este canhão matará os pássaros no ovo”, dizia o paxá, “fará as raposas abortarem
e tornará amargo o mel nas colméias”. O paxá mandou Cohen buscar o grego. Mas como era o
sabá, ao invés de saltar sobre seu cavalo, Cohen foi deitar-se...
Na manhã seguinte, ele escolheu um camelo, cruzamento de um macho de duas bossas e
de uma fêmea de uma bossa, que havia passado o verão coberto de alcatrão e achava-se agora
pronto para a viagem. Levou também um cavalo “alegre”, um desses que se solta sobre as éguas
para lhes estimular o apetite, antes de confiá-las ao garanhão para que as cubra. Cavalgando
alternadamente o cavalo e o camelo, Cohen percorreu em um só dia a distância correspondente a
dois dias de cavalo e cumpriu sua tarefa. Estupefato, o paxá perguntou onde e com quem
aprendera a montar; mas Cohen respondeu que se tinha exercitado em sonho. O paxá gostou
muito desta resposta e ofereceu a Cohen um anel que se coloca na narina. Assim que o canhão
ficou pronto, puseram-se a bombardear as posições austríacas. Depois, Sábliak ordenou o assalto
e seus soldados avançaram sobre as posições sérvias, inclusive Cohen, que, no lugar de um sabre,
levava um saco que, no entanto, nada continha de importante, apenas velhas folhas de papel
cobertas com uma escrita diminuta e classificadas em bolsas brancas.
– Sob um céu tão espesso quanto uma sopa – conta uma testemunha, – chegamos até
uma trincheira onde estavam três homens, tendo os outros fugido. Dois soldados jogavam dados,
sem nos dar atenção. Perto deles, diante de uma tenda, dormia com um sono agitado um
cavaleiro ricamente vestido, cujos cães lançaram-se sobre nós. Num piscar de olhos, os nossos
partiram em dois um dos jogadores e transpassaram com uma lança o cavaleiro adormecido. Este
se ergueu, apoiando-se nos cotovelos, e olhou Cohen que, no mesmo instante, caiu, atingido por
esse olhar como por uma bala, deixando cair seu saco, cujo conteúdo se espalhou no chão. O
paxá perguntou se Cohen tinha morrido, mas a resposta veio do segundo jogador, que disse em
árabe:
– Se ele se chama Cohen, então não foi uma bala que o atingiu, mas o sono...
Foi confirmado: o que dizia era verdadeiro, e essas palavras insólitas salvaram-lhe a vida
por um dia ainda. Pois a palavra humana é como a fome – nem sempre tem a mesma força...
Bibliografia selecionada: Anônimo, Lexicon Cosri, Contines Colloquium seu disputationem de religione, Regiemonti
Borussiae escudebat tipographus Ioannes Daubmannus, Anno 1691, passim; sobre os ancestrais de Cohen
ver: M. Pántitch, “0 filho noivo de uma mãe”... Anais do Instituto de História da Academia Iugoslava de Ciências e
Artes em Dúbrovnik, 1953, II, p. 209-216.
Bibliografia: John Buxtorf, Praefacio da versão latina do livro de Halevi (Liber Cosri, Basilae 1660); Lexicon
Cosri, continens colloquium seu disputationem de religione, Regiemonti Borussiae excudebat typographus Ioannes
Daubmannus, Anno 1691 (edição destruída); A Enciclopédia Judia, Petersburgo, 1906-1913, 1-16, no tomo I
figura um grande artigo e outras fontes sobre Halevi; encontrar-se-á uma bibliografia selecionada na
edição Y. Halevi, The Kuzari (Kitab al Khazari), Nova York, 1968, pp. 311-313; a mais recente, edição
bilíngüe dos seus poemas apareceu nas edições Arno Press, Nova York, 1973; Enciclopédia Judaica,
Jerusalém, 1971.
KAGHAN – Título do soberano kazar; vem da palavra judia cohen, que significa príncipe.
O primeiro kaghan depois da conversão do reino kazar ao judaísmo chamava-se Savriel, e sua
mulher, Sara. O nome do kaghan que organizou a polêmica kazar∇, convidando à sua Corte
judeus, gregos e árabes, para interpretarem seus sonhos, é desconhecido. Segundo fontes
judaicas, citadas por Daubmannus@, a conversão dos kazares ao judaísmo foi precedida por um
sonho do kaghan. Ele contou-o à filha, ou irmã, a princesa Ateh∇, nestes termos:
– Sonhei que caminhava, mergulhado na água até a cintura, lendo um livro. A água, a do
rio Kura, é turva e cheia de algas, como a que bebemos através dos nossos cabelos ou da nossa
barba. Quando chegava uma onda, eu levantava o livro mais alto, para protegê-lo, e continuava
lendo. Mas a profundidade aumenta, e preciso terminar minha leitura para ir adiante. De repente,
vejo um anjo, com um pássaro na mão, que me diz: “O Senhor ama tuas intenções, mas não ama
teus atos”. Desperto neste exato instante. Também na realidade estou mergulhado na água até a
cintura, no mesmo rio Kura cheio de algas, seguro o mesmo livro e o anjo ainda está ali, diante de
mim. O mesmo do sonho, com um pássaro na mão. Fecho depressa os olhos, mas o rio, o anjo,
o pássaro e todo o resto continuam lá. Abro os olhos – continua tudo igual. Horror! E leio:
“Quem se calça não deve vangloriar-se...”, fecho os olhos nesta passagem, mas ainda vejo a
continuação e, com os olhos fechados, acabo a leitura da frase começada: “... como quem se
descalça.” Neste momento, o pássaro ergueu vôo e levantei as pálpebras. Segui com os olhos seu
vôo. E então compreendi: de nada serve fechar os olhos diante da verdade, isto não traz a
salvação, porque sonho, realidade, despertar e sono não existem. Tudo é apenas um dia eterno,
um mundo enrolando-se em nós como uma serpente. Então, a grande felicidade distante
pareceu-me pequena, porém próxima; a grande causa pareceu-me vazia e na pequena percebi meu
amor... E fiz o que fiz.
•
“Um povo dos hunos, chamado de kazar.”
dos kazares ao judaísmo.
Essa polêmica foi igualmente relatada numa outra fonte que não foi conservada. No
verbete “kazares” do seu Dicionário, Daubmannus@ refere-se ao documento Das questões kazares
(provavelmente uma versão em latim). As últimas palavras do documento mostram que se trata
de um relatório utilizado, sem dúvida, pelo representante judeu, o rabino Isaac Sangari@, para
preparar sua participação na famosa polêmica. As partes conservadas do documento relatam o
que se segue:
SOBRE 0 NOME DOS KAZARES – O Estado kazar chama-se atualmente império do
kaghan ou kaghanato. O nome do primeiro reino kazar, o que precedeu ao kaghanato, criado pela
força da espada, desapareceu. Evita-se designar os kazares por seu nome, em seu próprio Estado.
Usa-se sempre uma outra palavra, para evitar a palavra “kazar”. Nas regiões situadas perto da
Criméia, onde vivem igualmente gregos, os kazares são chamados “não gregos”, ou “gregos não
convertidos ao cristianismo”; ao sul, onde há judeus, são chamados de “população não judia”; a
leste do Estado kazar, região em parte habitada pelos árabes, os kazares são chamados
“habitantes não islamizados”. E aqueles que já se converteram a uma crença estrangeira (judia,
grega ou árabe) não são mais chamados kazares, mas simplesmente judeus, gregos ou árabes,
enquanto os raros súditos convertidos à religião kazar não são considerados kazares, mas
permanecem o que eram antes: gregos, judeus ou árabes. Recentemente um grego, em vez de
dizer a um homem que ele era kazar, exprimiu-se da seguinte maneira: “No kaghanato, chamam-
se ‘futuros judeus’ os que não são da religião grega e falam a língua kazar”. No Estado kazar
podem ser encontrados judeus, gregos e árabes eruditos que conhecem bem o passado kazar, os
livros e os monumentos kazares, dos quais falam detalhadamente e com admiração. Alguns
dentre eles inclusive escrevem a história kazar, mas isso não é permitido aos kazares. Eles não
têm direito de falar do seu próprio passado, nem de escrever livros sobre tal tema.
A LÍNGUA KAZAR é musical; todos os versos que ouvi pronunciados nesta língua
soam bem, mas não pude guardá-los na memória; diz-se que foram escritos por uma princesa
kazar. Esta língua possui sete gêneros. Além do masculino, do feminino e do neutro, há um
gênero para os eunucos, um para as mulheres sem sexo (aquelas cujo sexo foi roubado por um
demônio árabe), um para aqueles que mudam de sexo, os homem que se tornam mulheres, ou ao
contrário; e também um gênero para os leprosos que são obrigados a adotarem uma nova
maneira de falar para que, assim que abram a boca, revelem a seus interlocutores a sua doença. As
meninas têm um sotaque diferente dos meninos, assim como os homens das mulheres. Os
meninos aprendem árabe, hebreu ou grego, segundo vivam onde haja gregos, onde judeus se
misturem aos kazares, ou então onde morem sarracenos e persas. Assim, quando os meninos
falam kazar, ouvem-se os kamech, holem e churek judeus, o “u” maiúsculo, médio e minúsculo e o
“a” médio. As meninas, por sua vez, não aprendem hebreu, nem grego, nem árabe, e seu sotaque
é diferente e mais puro. Sabe-se que, quando um povo desaparece, são primeiramente as classes
nobres e a literatura que desaparecem. Subsistem somente os livros de leis que o povo conhece
de cor. Assim acontece com os kazares. Em sua capital, o preço dos sermões em língua kazar é
elevado, enquanto os em hebreu, árabe ou grego são baratos ou gratuitos. É curioso constatar
que os kazares que se encontram no estrangeiro evitam confessar mutuamente que são kazares e
preferem, ao se cruzarem, esconder sua origem, fingindo não falar nem compreender a língua
kazar, e entre eles ainda mais do que diante dos estrangeiros. Entre eles, nos serviços públicos e
administrativos, apreciam-se de preferência os que conhecem mal o kazar, embora seja a língua
oficial. Desse modo, mesmo os que dominam bem essa língua esforçam-se para falá-la mal e com
sotaque estrangeiro, com o que obtêm uma vantagem evidente. Os tradutores, por exemplo, do
kazar em hebreu, ou do grego em kazar, que cometem – intencionalmente ou não – erros na
língua kazar, são os mais procurados.
A JUSTIÇA – Segundo as leis kazares, a sentença para certos delitos na região onde
vivem também judeus, pode ser de um ou dois anos de galera; na região onde vivem os árabes, e
para o mesmo delito – seis meses de galera, somente; onde vivem os gregos, a mesma infração
permanece impune; e no centro do reino, a única que se chama província kazar (embora os
kazares sejam majoritários em todas as regiões), para um delito idêntico, corta-se a cabeça.
O SAL E O SONHO – As letras do alfabeto kazar levam nomes de iguarias salgadas, e
os números levam os das diferentes espécies de sal; os kazares distinguem sete tipos de sal. Os
kazares acreditam no envelhecimento pela ação do olhar, seja o nosso olhar que recai em nosso
próprio corpo, seja o olhar dos outros, pois os olhares lavram e rasgam os corpos com as mais
diversas armas e as mais mortíferas, criadas por suas paixões, ódios, intenções e desejos. Só o
olhar salgado de Deus não faz envelhecer. Chorar é a maneira de rezar dos kazares, pois as
lágrimas pertencem a Deus, porque, como a concha abriga a pérola, as lágrimas encerram sempre
um pouco de sal no fundo. Algumas vezes, as mulheres pegam um lenço que dobram tantas
vezes quantas for possível: esta é uma prece. Os kazares têm igualmente o culto do sonho.
Acreditam que quem perde seu sal não poderá mais dormir. Daí a atenção que se dá ao sono.
Mas isto não é tudo; há ainda um ponto que não consegui esclarecer, tal como não se entende a
estrada através do ruído da carroça. Os kazares acreditam que os que habitam no passado de um
homem estão como que aprisionados ou condenados em sua memória; não podem fazer nada
diferente do que já fizeram, só podem encontrar com as pessoas que já encontraram, e nem
mesmo podem envelhecer. A única liberdade concedida aos ancestrais, a povos inteiros de pais e
mães desaparecidos e guardados na memória, é a trégua temporária dos sonhos. Ali, nos nossos
sonhos, esses personagens da memória ganham de novo uma parcela de liberdade, agitam-se um
pouco, encontram novos rostos, trocam de parceiros para a raiva e para o amor, voltando a
assumir assim alguma aparência de vida. Por isso o sono ocupa um lugar importante na religião
kazar, pois o passado, aprisionado para sempre em si mesmo, ganha liberdade e novas
possibilidades nos sonhos.
MIGRAÇÕES – Acredita-se que as antigas tribos kazares emigravam a cada dez gerações
e com cada migração esse povo guerreiro transformava-se, cada vez mais, num povo de
comerciantes. Sua habilidade no manejo da espada e da lança dava lugar, de repente, à faculdade
de estimar o valor de um barco, de uma casa ou de um campo, segundo o som dos ducados ou o
tilintar do dinheiro. Existem explicações variadas para essa mudança, mas a mais plausível parece-
me ser a de que os kazares tornavam-se estéreis no término de um ciclo e, para prolongar sua
raça e renovar sua fertilidade, viam-se obrigados a emigrarem. Assim que lhes voltasse a
fecundidade, voltariam à sua terra e retomariam suas lanças.
COSTUMES RELIGIOSOS – O kaghan kazar não permite que a religião interfira nos
negócios militares ou do Estado. Diz: “Se o sabre tivesse duas pontas, seria chamado picareta”.
Sua atitude é, aliás, a mesma em relação às três religiões: judia, grega e islâmica... Mas quando
muitos comem juntos na mesma gamela, sempre há os que ficam saciados, enquanto outros
ficam famintos. Enquanto a nossa religião judaica, como a grega ou a árabe têm, todas as três,
raízes em outros países, o que vale a seus adeptos uma grande proteção do estrangeiro, a religião
kazar é a única que não tem apoio fora das fronteiras. De maneira que, diante do mesmo desafio,
sofre mais, o que quer dizer que as três outras florescem às suas custas. Citemos, por exemplo, a
tentativa recente do kaghan em restringir os domínios monásticos e reduzir em dez o número dos
templos concedidos a cada uma das religiões. Como os templos kazares sempre foram menos
numerosos, também neste caso a Igreja kazar é a mais afetada. Constata-se isto a cada passo.
Assim, os cemitérios kazares estão desaparecendo. Nas regiões onde há gregos, como na Criméia,
ou judeus, como em Tamatarha, ou ainda árabes e persas, como acontece na fronteira persa,
colocam-se cada vez mais freqüentemente cadeados nas portas dos cemitérios kazares, proíbem-
se enterros segundo o rito kazar e as estradas são invadidas por kazares agonizantes que vão
morrer na região que cerca a capital, Itil, onde os cemitérios kazares ainda não estão fechados. A
alma grita-lhes na garganta, enquanto eles tomam a estrada. “O passado não é bastante profundo
atrás de nós” – queixam-se os religiosos kazares que, naturalmente, observam o que está
acontecendo –. “Nosso povo precisa esperar a maioridade, o momento em que o passado terá
acumulado suficiente material e criado uma base bastante larga para nela se construir com sucesso
o futuro.”
É interessante observar que no reino kazar encontram-se gregos e armênios que possuem
a mesma religião, mas que não param de divergir. A conseqüência de suas querelas, entretanto, é
sempre a mesma, e mostra a sabedoria dos contendores: após cada conflito, gregos e armênios
pedem templos separados. Como o Estado kazar concede-lhes tais vantagens, saem reforçados de
cada um dos seus embates e duplicam o número dos seus templos, em detrimento, é claro, dos
kazares e da sua religião.
DICIONÁRIO KAZAR – Reúne os cadernos dos caçadores de sonhos, uma seita
religiosa muito poderosa entre os kazares. Esse dicionário é para eles uma espécie de Livro Santo –
uma Bíblia. Feito com biografias de vários homens e mulheres, o Dicionário Kazar constitui o
retrato-mosaico de um único ser – aquele que denominamos Adão Kadmon. Cito dois extratos
deste dicionário:
“A verdade é transparente e não a notamos, mas a mentira é opaca e não deixa passar
nem a luz nem o olhar. Existe um terceiro estado, onde as duas estão misturadas e é o mais
freqüente. Com um olho olhamos através da verdade, e este olhar se perde para sempre no
infinito; com o outro não vemos nem mesmo um dedo através da mentira, e este olhar não pode
ir mais longe, permanece sobre a terra e completamente nosso; assim, de soslaio, vamos abrindo
um caminho na vida. Por causa disto, a verdade não pode ser compreendida de modo direto,
como a mentira; apenas, pela comparação entre a verdade e a mentira e pela comparação entre os
espaços em branco e as letras do nosso Livro. Pois os espaços em branco do Dicionário Kazar
correspondem às janelas transparentes da verdade e do nome divino (do Adão Kadmon), e as
letras negras entre os espaços em branco são os lugares onde nosso olhar tropeça na superfície...
As letras podem igualmente ser comparadas às diversas peças do teu vestuário. No
inverno, tu te cobres com lã e peles, colocas um cachecol, uma touca forrada e agasalhas-te bem;
no verão, tu te vestes com linho, abres as roupas e rejeitas tudo o que é pesado; mas entre o
verão e o inverno acrescentas ou retiras partes do teu vestuário – assim também se dá com a
leitura. Nas diferentes estações de tua vida, o conteúdo dos teus livros parecer-te-á diferente, pois
combinarás tuas roupas de diferentes maneiras. No momento, o Dicionário Kazar é apenas um
amontoado de letras, de nomes e pseudônimos do Adão Kadmon, em desordem. Mas com o
tempo tu te vestirás e obterás mais coisas... O sonho é uma sexta-feira para o que, na realidade, é
chamado de sábado. Conduz a Ele e torna-se um com esse dia, e é preciso proceder do mesmo
modo com os outros dias (quinta para domingo, segunda para quarta, etc). Aquele que souber ler
os sonhos em conjunto os possuirá e terá uma parte do corpo (de Adão Kadmon)...”
Esperando que minhas palavras possam ajudar o rabino Isaac, isto é tudo que posso
dizer, eu, que na sexta-feira chamo-me Iabel, no domingo, Tubalcaim, e apenas no sábado Iubal.
Depois deste esforço, vou repousar, porque o uso da memória é uma permanente circuncisão...
LIBER COSRI – Título da tradução latina do livro de Yehuda Halevi@ sobre os kazares,
publicado em 1660. O tradutor, John Buxtorf (1599-1664) forneceu sua tradução latina com uma
versão paralela em hebreu. Buxtorf usava o mesmo nome e sobrenome que seu pai, e desde a
mais tenra idade foi iniciado na língua hebraica bíblica, rabínica e medieval. Traduziu Maimonide
para o latim (Basiléia, 1629) e tomou parte de uma longa polêmica pública com Louis Cappela
sobre os sinais e letras bíblicas que designam as vogais. Publicou a tradução do livro de Halevi,
em Basiléia, em 1660, acrescentando-lhe um prefácio que mostra que se serviu das edições
venezianas da tradução em hebreu de Ibn Tibon@. Como Halevi, considerava que as vogais são as
almas do alfabeto e, conseqüentemente, que cada uma das vinte e duas consoantes têm direito a
três vogais. Ler é lançar uma pedra em pleno vôo, sendo as consoantes as pedras e as vogais sua
velocidade. Em sua opinião, na ocasião do Dilúvio foram embarcados os sete números na Arca
de Noé, sob a aparência de um pombo, porque o pombo sabe contar até sete. Mas esses números
levavam o sinal das vogais, e não o das consoantes.
PÁGINA DE ROSTO DO LIVRO DE
HALEVI SOBRE OS KAZARES (EDITADO
EM BASILÉIA, NO SÉCULO XVII)
Embora a Correspondência Kazar tenha sido conhecida desde 1577, somente se tornou
acessível ao grande público depois da publicação da tradução de Buxtorf do livro de Halevi, em
1660, que incluiu como apêndice a carta de Hasdai Ibn Chaprut, bem como a resposta do rei
kazar Joseph.
SANGARI, ISAAC (século VIII) – Rabino, delegado judeu à polêmica kazar∇ . É citado
somente a partir do século XII, como especialista na cabala e responsável pela conversão dos
kazares∇ ao judaísmo. Ele insistia em defender os méritos da língua hebraica, mas conhecia
muitas outras. Afirmava que a diferença entre as diversas línguas resumia-se a um ponto
particular: todas as línguas, exceto a de Deus, seriam línguas de sofrimento, dicionários de dores.
“Percebi – declarou ele – que os sofrimentos escoam do tempo ou de meu corpo através de uma
fissura, senão seriam bem mais numerosos atualmente. O mesmo acontece com as línguas.” R.
Guedaliah (por volta de 1587) revelou que as respostas de Isaac Sangari na Corte kazar eram
dadas em kazar. Segundo Halevi@, Sangari aplicou o ensinamento de seu mestre, o rabino
Nahum, o Escriba, que anotara como os sábios aprendiam dos profetas. “Aprendi do rabino
Maiach – escreveu o rabino Nahum, mestre de Sangari, e Sangari, por seu turno, transmitiu ao
kaghan, segundo conta Halevi – aprendi do rabino Maiach, que aprendeu ele próprio dos pares
pregadores, que aprenderam dos profetas os preceitos revelados a Moisés no monte Sinai. Eles
cuidavam em não transmitir os ensinamentos de apenas um indivíduo, como se vê no conselho
dado por um velho agonizante a seu filho:
– Meu filho, no futuro submeterás tua opinião, a que te ensinei, aos quatro homens que te
indiquei.
– Por que – perguntou o filho – não submeteste tu mesmo tua opinião a eles?
– Porque – respondeu o velho – recebi minha opinião de muitos, que também haviam
aprendido de muitos. Desse modo, conservei minha própria tradição, enquanto eles conservavam
a deles. Tu, em compensação, recebeste-a de uma só pessoa, de mim. E vale mais deixar de lado
o ensinamento de uma só pessoa, para seguir o do maior número de pessoas...”
Diz-se que Sangari frustrou o papel do delegado árabe à polêmica da Corte kazar,
conseguindo que esta se desenrolasse no momento em que os cometas não eram favoráveis ao
delegado muçulmano, num dia em que toda sua religião podia estar contida num cântaro cheio de
água. Aliás o próprio Sangari teve grande dificuldade para chegar ao palco da polêmica.
Daubmannus@ conta a seguinte história a esse respeito:
Isaac Sangari partiu de barco para a capital kazar. Mas esse barco foi atacado por sarracenos, que
começaram a matar tudo o que se mexia. Para escapar, os judeus jogaram-se na água, mas os piratas
massacraram-nos com golpes de remo. Somente Isaac Sangari permaneceu tranqüilo sobre o convés. Isto espantou os
sarracenos que lhe perguntaram por que não tinha saltado nas ondas como os outros:
– Não sei nadar – mentiu Sangari e assim salvou sua cabeça. Pois, ao invés de decapitá-lo, os piratas
jogaram-no na água e se foram.
– O coração na alma é como um rei em guerra – concluiu Isaac Sangari – mas o homem deve, às vezes,
mesmo na guerra, comportar-se como o coração na alma.
Uma vez que Sangari chegou, assim, à Corte do kaghan, no decorrer da polêmica com os
representantes cristão e islâmico, ele interpretou um sonho do kaghan e o persuadiu a converter-
se, com todo o seu povo, à religião judia, aquela que espera mais do futuro do que do passado. O
anjo dissera ao kaghan, no sonho: “O Criador acha que tuas intenções são boas, mas não tuas
obras”. Sangari explicou esta frase, relacionando-a à história de Set, o filho de Adão.
– Há uma grande diferença – disse Isaac Sangari ao kaghan –, entre Adão, criado por
Jeová, e seu filho Set, criado por Adão. Set e todos os homens depois dele são a conseqüência de
uma intenção divina, mas são obra do homem. É preciso, portanto, fazer a diferença entre a
intenção e a obra. A intenção permaneceu pura no homem, ela é divina, ela é o verbo, ou logos,
que precede a obra como o conceito precede a obra; mas a obra é terrestre e carrega o nome de
Set. No homem, as qualidades e os defeitos são como bonecas que se embutem uma dentro da
outra. A única maneira de descobrir um homem consiste, então, em abrir, uma após outra, essas
bonecas ocas, a redoma maior antes da menor. Assim, não se deve crer – concluiu Sangari – que
o anjo te tenha repreendido; pelo contrário, não haveria pior erro do que tal interpretação. Ele
queria simplesmente relembrar-te tua verdadeira natureza...
Querida Doroteiazinha,
Tenho a impressão aqui de banquetear-me com o pão alheio e de jejuar com o meu.
Enquanto lhe escrevo estas linhas, sei que você já se tornou mais jovem do que eu, lá em sua
Cracóvia, em nosso quarto onde é sempre sexta-feira, e onde nos entulhavam de canela, como se
fôssemos maçãs. Se receber um dia esta carta, no momento em que a ler você se tornará mais
velha do que eu.
Isaac está melhor, está num hospital em algum lugar no campo de batalha, mas sua saúde
melhora rapidamente e isso se percebe pelas letras de suas cartas. Escreve que sonha “com o
silêncio de três dias de Cracóvia, requentado duas vezes, um pouco queimado no fundo”. Vamos
reencontrar-nos logo e isto me causa apreensão, não somente por causa de seu ferimento, sobre o
qual ainda ignoro tudo, mas porque somos todos árvores escondidas em nossa própria sombra.
Fico feliz por você, que não ama Isaac, ter ficado aí, longe de nós. Podemos agora, nós
duas, amar-nos mais facilmente.
Doroteiazinha,
Algumas linhas apenas: lembre-se disto para sempre – você trabalha porque não sabe
viver. Se soubesse viver, não trabalharia, e nenhuma ciência existiria para você. Sempre nos
ensinaram como trabalhar, mas não como viver. Eu também não sei como viver. Caminhei
acompanhada pelos meus cães, ao longo de uma trilha desconhecida numa grande floresta. Os
galhos se juntavam sobre a senda. Inclinando-se em direção à sua comida – em direção à luz –, as
árvores construíam a beleza. A partir de minha comida, sei apenas construir recordações. Minha
fome não me tornará bela. O que me liga às árvores é algo que elas sabem fazer, e eu não. E tudo
que liga essas árvores a mim são os meus cães, que me amam nesta noite mais do que em outras
noites. Pois a fome deles é mais bela quando têm fome das árvores do que quando têm fome de
mim. Onde entra a sua ciência em tudo isto? Para avançar mais na ciência, basta conhecer as
últimas descobertas em sua especialidade. Com a beleza é diferente.
Isaac voltou. Quando está vestido não se vêem suas cicatrizes, é bonito como
antigamente e parece-se a um cão que aprendeu a cantar o krakowiak. Ama meu seio direito mais
do que meu seio esquerdo, e dormimos de um modo insolente. Continua com aquelas longas
pernas com as quais saltava os degraus de Wawel e que aperta alternadamente em volta dos
joelhos, quando está sentado. Ele pronuncia meu nome da maneira como era no princípio, antes
de todo uso, antes que tivesse sido gasto, passando de boca em boca... Vamos fazer um acordo:
vamos repartir entre nós nossos papéis? Você, em Cracóvia, continua a ocupar-se com a ciência,
e eu, aqui, aprenderei a viver.
Querida Doroteiazinha,
Leio que os eslavos desciam em direção ao mar com suas lanças fixadas nas botas. E
sonho com Cracóvia, que muda sob uma chuva de erros da nova ortografia e da linguagem,
irmãos da evolução das palavras. Imagino como você permanece imutável, enquanto Isaac e eu
perdêmo-nos cada vez mais. Não ouso dizer-lhe. Quando fazemos amor, apesar do prazer sinto
sobre o peito e sobre o ventre a marca dessa baioneta. Sinto-a adiantadamente, ela está fincada
em nossa cama, entre Isaac e meu corpo. Será possível que um homem possa deixar sua
assinatura, em alguns segundos, com o auxílio de uma baioneta, no corpo de um outro homem
inscrevendo para sempre seu retrato na carne de um outro? Sou obrigada a apanhar,
incessantemente, meu próprio pensamento. Ele não é meu quando nasce, apenas quando o
apanho, se consigo fazê-lo antes que alce vôo. Esse ferimento parece uma boca, e cada vez que
Isaac e eu fazemos amor, assim que nos tocamos, a ponta do meu seio afunda-se nessa cicatriz,
como entre mandíbulas desdentadas. Estou deitada, perto de Isaac, olhando na escuridão o lugar
onde ele dorme. O cheiro dos trevos esconde o dos estábulos. Espero que se mexa; o sono torna-
se mais leve quando o adormecido mexe e, então, posso acordá-lo pois não se lamentará. Há
sonhos preciosos, e outros que são apenas tolices. Acordo-o e pergunto:
– Ele era canhoto?
– Acho que sim – responde sonolento, mas solícito, e vejo que sabe o que penso. –
Capturaram-no e trouxeram-no, pela manhã, à minha tenda para mostrá-lo a mim. Tinha barba,
olhos verdes e um ferimento na cabeça. Na verdade, é o ferimento que eles queriam mostrar-me.
Fui eu que o fiz. Com a coronha do meu rifle.
Doroteiazinha,
Você nem sabe o quanto é feliz vivendo em seu Wawel, e quanto se poupa deste terror
que sofro. Imagine que, no leito do seu marido, um outro qualquer lhe morda e beije, enquanto
você faz amor com seu amado. Imagine que sente em seu ventre, enquanto está com aquele que
você ama, a espessura de um ferimento que, como um membro estranho, se introduziu entre
você e seu amor. Um sarraceno barbudo, de olhos verdes, está deitado entre Isaac e eu e aí ficará
para sempre. Vai responder a cada um dos meus movimentos antes de Isaac, porque está mais
perto de mim do que o corpo de Isaac. E esse sarraceno não é fruto de minha imaginação! Esse
animal é canhoto e prefere meu seio esquerdo ao direito! Que horror, minha Dorotéia! Você não
ama Isaac como eu amo, então, diga-me como lhe explicar tudo isso? Deixei você e a Polônia
para seguir Isaac até aqui e, de repente, encontro entre seus braços um monstro de olhos verdes
que acorda de noite e me morde com sua boca desdentada, em ereção, mesmo quando Isaac não
está. Isaac me faz, às vezes, gozar com esse árabe. Se você tiver necessidade, chame-o! – ele virá,
está sempre pronto...
Neste outono, Doroteiazinha, nosso relógio de parede adianta, e vai atrasar na
primavera...
Outubro de 78
Dorotéia,
No começo dos dias bonitos, Isaac analisa com atenção a qualidade do ar. Observa se
contém umidade, fareja o vento, nota se fará frio ao meio-dia. Quando sente que o momento é
favorável, enche seus pulmões com um ar escolhido com cuidado e, de noite, expira-o como se
fosse uma canção. Diz que nem sempre se pode cantar direito. A canção é como uma estação.
Chega no seu momento exato... Isaac, querida Dorotéia, não consegue cair, é como uma aranha.
Está retido por um fio fixado num local que só ele conhece. Mas eu naufrago cada vez mais. O
árabe me viola nos braços de meu marido e não sei com qual deles gozo mais. Atrás desse
sarraceno, meu marido parece-me diferente, comecei a olhá-lo e a analisá-lo sob uma luz nova e
insuportável. O passado subitamente mudou; quanto mais avançamos para o futuro, mais o
passado modifica-se, enche-se de perigos e torna-se mais imprevisível do que o amanhã, cheio de
quartos fechados de onde saem, cada vez mais, feras vivas. E cada uma dessas feras tem um
nome. A que nos vai destroçar um dia, a Isaac e a mim, tem um nome muito comprido e sedento
de sangue. Imagine, Doroteiazinha, que fiz a pergunta a Isaac e ele me respondeu. Sabia o nome
esse tempo todo. O árabe chama-se Abu Kabir MuaviyaÂ. E já começou seu trabalho numa
noite, na areia perto de um bebedouro. Como todas as feras.
Pequena Dorotéia,
Aconteceu uma coisa incrível! De volta da América, encontrei na minha correspondência
a lista dos participantes no colóquio sobre as culturas das margens do mar Negro. Imagina só
quem encontrei nessa lista? Ou você já sabia antes de mim, com sua alma de profeta que não
precisa de cabeleireiro para anelar os cabelos? O árabe, em carne e osso, o de olhos verdes que
me expulsou da cama do meu marido. Ele vai para o congresso de Istambul. Mas não quero mais
mentir. Ele não vai lá para me ver. Sou eu que vou a Istambul para vê-lo, afinal. Há muito
compreendi que nossas profissões se cruzavam e que, se começasse a freqüentar os encontros
científicos, nossos caminhos se cruzariam também. Tenho em minha bolsa o relatório sobre a
missão kazar de Cirilo e Metódio e, escondido sob o relatório, um Smith & Wesson modelo 36,
calibre 38. Obrigado por seus vãos esforços para se ocupar do doutor Abu Kabir Muaviya.
Tomo-o agora sob minha responsabilidade. Ame-me tanto quanto você detesta Isaac. Tenho
mais do que nunca necessidade disso. Nosso pai comum me ajudará...
10
Querida Dorotéia,
Nosso pai comum me ajudará, escrevi-lhe da última vez. Pobre maluquinha! Que sabe
você de nosso pai comum? Quando eu tinha sua idade, também não sabia nada. Mas novos anos
deram-me tempo para refletir. Você sabe quem é seu verdadeiro pai, queridinha? Esse polonês,
que tinha uma barba como uma relva, que lhe deu o nome de Kwaszniewska e que se casou
corajosamente com sua mãe, Anna Cholem? Penso que não. Recorda-se daquele homem de
quem não nos podíamos lembrar? Recorda-se de um certo Achkenaze Cholen, aquele jovem das
fotografias que usava óculos no nariz e tinha outros no colete? Aquele que em vez de tabaco
fumava folhas de chá, e tinha belos cabelos que lhe mordiam as orelhas fotografadas. Que, como
nos contaram, dizia que “seríamos salvas por nossa falsa vítima”. Recorda-se do irmão e primeiro
marido de sua mãe, que dizia ter nascido Zakiewicz, ter Cholem como nome de casada, depois
Kwaszniewska do segundo casamento? E sabe quem é o pai verdadeiro das filhas dela, isto é,
você e eu? Depois de tantos anos, você se lembrou! Seu tio, o irmão de sua mãe, poderia
perfeitamente ser nosso pai, não é? Por que, aliás, não seria ele o marido de sua mãe? Que pensa
disso, meu bem? Talvez a senhora Cholem não tivesse conhecido nenhum homem antes do
casamento, e ela não podia, podia?, casar-se de novo como virgem? Talvez seja por essa razão
que ela nos aparece por caminhos inusitados, trazendo-nos o horror, a fim de não se deixar
esquecer. De todas maneiras, sua velhice não foi desperdiçada e penso que minha mãe, se assim
agiu, teve mil vezes razão e, se eu pudesse escolher meu pai, escolheria muito mais o irmão de
minha mãe do que qualquer outro. A desgraça, minha querida Dorotéia, a desgraça nos ensina a
ler nossa vida ao contrário...
Aqui, em Istambul, já conheci muita gente. Não quero parecer estranha e bato papo com
todo mundo, como se estivesse abrindo a boca para a chuva. Um dos meus colegas que, como
eu, veio para este colóquio, chama-se Isailo Sukg. É um arqueólogo, especialista em Idade Média,
fala bem árabe, conversamos em inglês e brincamos em polonês, pois ele fala sérvio e diz que é a
traça de suas próprias roupas. Sua família carrega, há já cem anos, um fogareiro de cerâmica de
uma casa para outra, e ele acha que o século XXI será diferente do nosso, pois as pessoas vão
revoltar-se em conjunto contra o tédio que atualmente as sufoca como água estagnada.
Carregamos a pedra do tédio em nossas costas, como Sísifo – diz o doutor Suk – e subimos uma
enorme montanha. Esperemos que os homens do futuro despertem e rebelem-se contra essa
praga, contra as escolas tediosas, os livros tediosos, a música tediosa, a ciência tediosa, as reuniões
tediosas, e tirem esse tédio de suas vidas e de seus trabalhos, como exige nosso pai original Adão.
Meu colega diz tudo isso um pouco na galhofa; bebe vinho mas não permite que lhe sirvam mais
antes de esvaziar a taça, declarando que uma taça não é a lâmpada de óleo de um ícone, que é
preciso manter sempre cheia. Seus livros são usados como manuais no mundo inteiro, mas ele
próprio não consegue servir-se deles para suas aulas. É obrigado a ensinar outra coisa na
Universidade! É extraordinariamente competente em sua especialidade, mas curiosamente goza
de pouco prestígio no meio científico. Quando lhe disse isso, sorriu e me explicou:
– Aí está exatamente a questão. Só se pode ser um grande cientista ou um grande
violinista (sabe que todos os grandes violinistas, com exceção de Paganini, sempre foram judeus?)
quando se é apoiado por uma das grandes internacionais do nosso mundo. Internacional judaica,
islâmica ou católica. Você pertence a uma delas. Eu não pertenço a nenhuma. Não estou,
portanto, em lugar nenhum. Entre meus dedos, todos os peixes escorregaram, há muito tempo.
– De que é que está falando? – perguntei, estupefata.
– É a paráfrase de um texto kazar de mais de mil anos de idade. Você já ouviu com
certeza falar dos kazares, a julgar pelo tema da sua exposição. Então, por que se admirar? Será
que conhece a edição de Daubmannus?
Devo admitir que ele me perturbou. Sobretudo com esta história sobre o Dicionário Kazar
de Daubmannus. Se tal dicionário realmente existiu, nenhum exemplar, ao que eu saiba, foi
conservado.
Querida Dorotéia, vejo a neve na Polônia, vejo os flocos transformarem-se em lágrimas
nos seus olhos. Vejo o pão pendurado na trave com uma coroa de alho, e os pássaros que se
aquecem na fumaça sobre as casas. O dr. Suk diz que o tempo vem do sul e atravessa o Danúbio
sobre a ponte de Trajano. Não há neve aqui, e as nuvens são como ondas paradas que vomitam
seus peixes. O doutor Suk chamou-me a atenção ainda para uma outra coisa. Há em nosso hotel
uma família belga – os Van der Spaak. Uma bela família, como não tivemos igual, como jamais
terei. Um pai, uma mãe e seu filho. O doutor Suk chama-os de a “Sagrada Família”. Observo-os
todas as manhãs, fazendo seu desjejum; têm uma aparência saudável, e o senhor Spaak diz,
brincando – como eu própria escutei –, que as pulgas não gostam dos gatos gordos. Ele toca
maravilhosamente um instrumento feito com uma carapaça de tartaruga branca, e sua mulher faz
pinturas. Pinta com a mão esquerda, com muita habilidade, em cima de qualquer coisa:
guardanapos, copos, facas e as luvas do seu filho. O filho tem, no máximo, quatro anos. Tem os
cabelos cortados curtinhos, chama-se Manuel e está começando a falar. Assim que acaba de
comer seu pãozinho, aproxima-se de minha mesa e encara-me sem piscar, como se estivesse
apaixonado. Seus olhos são salpicados de manchas coloridas, como meu caminho é de pedras, e
me pergunta a cada vez: “Reconheceste-me?” Acaricio seus cabelos, como se agradasse um
pássaro, e ele beija meus dedos. Ele traz-me o cachimbo do pai, que se parece com um zaddik, e
propõe que eu fume. Gosta de tudo que é vermelho, azul e amarelo. E adora os alimentos que
têm essas cores. Fiquei horrorizada ao constatar que sofre de uma deformação: em cada mão tem
dois polegares. Nunca sei qual é a esquerda ou a direita. Mas ele ainda não tem consciência disso
e não dissimula suas mãos diante de mim, embora seus pais façam-no usar luvas. Por momentos
– você não vai acreditar em mim –, elas parecem-me perfeitamente normais e não me
incomodam.
Aliás, por que ficaria perturbada com alguma coisa se, nessa manhã, ao desjejum, soube
da chegada do doutor Abu Kabir Muaviya. “Sim, os lábios da mulher estrangeira destilam mel e a
sua boca é mais macia do que o óleo. Mas, ao final, ela é amarga como o absinto, aguçada como
uma espada de fio duplo. Seus pés descem em direção à morte. É o Mundo – de baixo – que seus
pés atingem.” Eis o que está escrito na Bíblia.
11
Foi assim que o doutor Abu Kabir Muaviya terminou sua exposição e, repentinamente, os
fios em meu cérebro ataram-se. Se você se esquece em que direção corre o tempo, o amor servir-
lhe-á de bússola. Pois o tempo sempre abandona o amor. Depois de tantos anos, fui novamente
devorada por essa sua maldita sede de saber e traí Isaac. Ao invés de atirar em Muaviya, corri à
procura do doutor Suk, abandonando os papéis e a pistola escondida sob eles. Não havia
ninguém na entrada do hotel; na cozinha, alguém torrava um pedaço de pão no fogo, antes de
comê-lo. Vi Van der Spaak saindo de um quarto e compreendi que era o do doutor Suk. Bati,
mas ninguém respondeu. Em algum lugar às minhas costas ouvi o ruído de passos rápidos e
sentia-se entre eles o calor de uma carne feminina. Bati de novo e, com a pressão, a porta
entreabriu-se. Não estava fechada. Percebi, primeiramente, uma mesinha de cabeceira e, sobre
ela, um ovo e uma chave num pires. Abri completamente a porta e chamei. O doutor Suk estava
deitado na cama, sufocado com seu travesseiro. Jazia com os bigodes mordidos, como se corresse
contra o vento. Corri para fora, gritando, quando ouvi uma detonação que vinha do jardim. Uma
única detonação, mas ouvi-a com cada uma das minhas orelhas separadamente. Reconheci, de
imediato, o barulho de minha pistola. Corri até o jardim e vi o doutor Muaviya deitado no
cascalho; com a cabeça arrebentada... Na mesa vizinha, o garotinho de luvas bebia tranqüilamente
seu chocolate, como se nada tivesse acontecido... Não havia mais ninguém no jardim.
Fui presa imediatamente. O Smith & Wesson, no qual encontraram minhas impressões,
serviu como evidência e fui acusada de ter matado o doutor Abu Kabir Muaviya, com
premeditação. Escrevo-lhe esta carta da prisão, onde estou em detenção preventiva, e ainda não
compreendi nada. Tenho na boca uma fonte de água doce e uma espada de fio duplo... Quem
matou o doutor Muaviya? Imagine, se a acusação disser: uma judia matou um árabe por vingança!
Toda a internacional islâmica, toda a opinião pública egípcia e turca levantar-se-ão contra mim.
“O senhor teu Deus abandonar-te-á aos teus inimigos para que te maltratem; chegarás até eles
por um caminho, e por sete outros caminhos fugirás deles...” Como provar que você não
cometeu algo que efetivamente se preparou para fazer? É preciso encontrar uma mentira
tonitruante como o pai da chuva, uma mentira terrível e forte para provar a verdade. Aquele que
precisa inventar tal mentira deve ter cornos no lugar dos olhos. Se conseguir encontrá-lo, viverei
e levarei você da Cracóvia para Israel, e voltarei à ciência de nossa juventude. “Seremos salvas por
nossa falsa vítima” – como dizia um dos nossos pais... Se já é difícil suportar Sua piedade, como
enfrentar Sua cólera?
P.S.: Junto a esta você encontrará a réplica do texto do Filósofo, tirada do livro de Halevi
sobre os kazares (Liber Cosri@), que o doutor Muaviya afirmava ser, de fato, extratos dos Discursos
Kazares perdidos de Constantino, o Filósofo, ou São Cirilo:
•
•
Primeira Parte
A respeito dos judeus, conhecidos por sua vileza e por seu reduzido número, repudiados por todos, chamou o
sábio dos sábios do Edom e perguntou-lhe sobre sua sabedoria, sobre seus feitos, e disse-lhe: “Eu creio na
renovação das criaturas e, antes de mais nada, no Criador, n’Aquele que criou o Mundo todo em seis dias; creio
que todos os seres racionais descendem de Adão e de sua família; creio que o Criador tem Providência sobre
todas as coisas criadas, sobre as perseguições no deserto, os discursos, as demonstrações e revelações aos seus
profetas e aos homens justos; e Ele está entre os que necessitam Dele em toda parte – a espécie humana, em toda
parte. Eu creio em tudo o que vem da Tora (Pentateuco) e dos Livros dos Filhos de Israel; que inexiste dúvida
quanto à veracidade desses Escritos, na passagem de suas publicações, propagação delas e revelação para todos
os povos; creio, finalmente, no estabelecimento do princípio da Divindade, que passou pelo útero da virgem
entre as mulheres de Israel, que O deu à luz, homem visível, Deus oculto, profeta enviado às ocultas; Ele é o
Messias, o chamado Filho de Deus e Ele é o Pai e o Filho e Ele é o Espírito Santo, e nós cremos em Um, em Sua
verdade e, segundo a nossa língua, a Trindade é vista como Única... E de Sua convivência com os Filhos de
Israel, para honrá-los quando o Ser Divino foi perseguido entre eles, até que se rebelaram contra este Messias e o
crucificaram, e voltou-se a Suprema Ira Divina sobre os poucos; e o desejo dos únicos que seguiram o Messias, e
depois disso nações seguiram esses únicos, e nós dentre eles. E se não fôssemos dos Filhos de Israel, seríamos
merecedores da alcunha de “Filhos de Israel”, porque nós seguimos as palavras do Messias e de Seus discípulos,
que eram Filhos de Israel, que eram doze, no lugar das, tribos, e depois disso grande parte dos Filhos de Israel
seguiu esses doze, e eles foram a semente do Cristianismo. E fomos nós os merecedores da dignidade dos Filhos
de Israel, e foi nossa a bravura e o vigor, nas terras e em todas as nações, por sermos chamados por essa fé, e
perseguidos constantemente por causa dela, por elevar e exaltar o Messias e exortar sua linhagem, que foi
crucificado. Nosso julgamento e nossas leis vêm do preceito do apóstolo Simão e das leis da Tora, que nós
estudamos e a respeito de cuja veracidade não há dúvida, pois ela é de Deus. E nela já vieram exemplos das
palavras do Messias: Não vim para destruir qualquer preceito dos Filhos de Israel e de Moisés e dos Profetas;
vim para fortalecê-los e confirmá-los.
TIBON, YEHUDA IBN (Século XII) – Tradutor do árabe para o hebraico do Livro sobre
os Kazares de Yehuda Halevi@. A tradução apareceu em 1167, é de qualidade desigual e para isto
são dadas duas explicações: primeiro, que as versões impressas posteriormente foram censuradas
pela inquisição cristã; segundo, que a qualidade da tradução, dependia não só de Tibon, mas
também das circunstâncias.
A tradução era fiel quando Ibn Tibon estava apaixonado por sua noiva; boa quando
estava zangado; relaxada quando os ventos sopravam; profunda no inverno; se chovia, ele
introduzia seus comentários e lavava o texto original; e cometia contra-sensos quando estava
feliz.
Quando terminava um capítulo, Tibon procedia como os antigos tradutores alexandrinos
da Bíblia – pedia que alguém lhe lesse a tradução, caminhando e afastando-se dele, enquanto
Tibon permanecia parado. Com a distância, o texto perdia algumas passagens no vento e nas
cantoneiras ou paredes, aliviava-se dos seus substantivos e vogais, quebrava-se nos degraus das
escadas e, enfim, tendo partido como uma voz masculina, terminava sua rota como voz feminina,
com apenas os verbos e os números sendo escutados ao longe. Depois, quando o leitor
regressava, todo o processo se revertia, e Tibon corrigia sua tradução, baseando-se nas sensações
experimentadas durante essa leitura andante.
APÊNDICE I
Em algum lugar na Polônia, o padre Teoktist Nikólski escreveu, antes de morrer, sua
derradeira confissão ao patriarca de Pêtch, Arsenie Tchárnoievitch, numa escuridão total com
pólvora misturada à sua saliva, em cirílico cursivo, enquanto a mulher do seu senhorio o
destratava e maldizia, através da porta fechada.
“Vossa Santidade já sabe – escrevia Teoktist ao patriarca – que estou condenado a possuir
uma boa memória, que meu futuro enche infindavelmente e meu passado jamais esvazia. Nasci
em 1641, num vilarejo pertencente ao monastério de Iovánie, no dia de Santo Esperidião,
protetor dos oleiros, numa família que sempre tinha à mesa tigelas com dois cabos e, dentro
delas, alimento para a alma e alimento para o coração. Como meu irmão, que continuava
segurando sua colher de pau enquanto dormia, guardo em minha memória todos os olhos que
me olharam desde que nasci. No momento em que observei que, a cada cinco anos, as nuvens
voltavam à mesma posição, sobre a montanha de Óvtchar, e reconheci as nuvens que vira cinco
outonos antes, agora voltando no céu, fui dominado pelo medo e comecei a dissimular este meu
defeito, pois uma tal memória é punição. Neste entremeio, aprendi turco nas moedas de
Constantinopla, hebraico com os comerciantes de Dúbrovnik e também a ler nos ícones. Nesse
frenesi de memorização, eu era impulsionado por uma espécie de sede, não da sede que se sente
pela água, pois a água não a pode saciar, mas uma sede diferente, que só pode ser acalmada pela
fome. Esta fome não é a que se sente pelo alimento, mas uma fome diferente, e tentei em vão,
como o carneiro à procura de um muro de sal, descobrir esta fome que poderia me salvar da
sede. Porque eu tinha medo da minha memória. Sabia que nossa memória e nossas lembranças
são como icebergs. Só vemos a parte que emerge, que passa diante de nossos olhos, enquanto
imensas terras imersas passam não-vistas e inacessíveis. Não sentimos seu enorme peso porque
estão submersas tanto no tempo quanto na água. Mas, se nos encontramos em seu caminho,
encalharemos em nosso próprio passado, e o naufrágio será inevitável. É por isto que nunca
sequer toquei nessa fartura que caía em mim, como a neve tomba sobre o Morava. Certo dia, para
minha grande estupefação, aconteceu que perdi a memória, durante um breve instante, é verdade.
Naquele momento, fiquei muito feliz; mas, quando percebi aonde isto levava, lamentei-me
amargamente. Isto se passou assim.
Quando completei dezoito anos, meu pai confiou-me aos monges de Iovánie, e disse-me
ao partir: “Durante o jejum, não mete uma só palavra na tua boca, para que sua boca, pelo
menos, fique purificada das palavras, já que teus ouvidos não podem ficar. Pois as palavras não
vêm da cabeça ou da alma, mas do mundo, de línguas viscosas e gargantas fétidas; há muito estão
roídas, escarradas e cobertas de gordura, permanentemente mastigadas. Há muito já não estão
mais inteiras, transmitidas por inumeráveis bocas, de um dente para outro...” Os monges de
Iovánie acolheram-me, disseram-me que eu tinha ossos demais numa alma estreita e confiaram-
me a caligrafia dos livros. Eu ficava sentado numa cela cheia de livros marcados com fitas negras
nas páginas em que os monges, antes de morrerem, tinham parado sua leitura. E trabalhava.
Então, correu o rumor de que, no monastério vizinho de Níkolie, chegara um novo calígrafo.
O caminho para Níkolie serpenteia ao longo do Morava, entre a margem escarpada e a
água. É o único meio de chegar até esse monastério, de maneira que pelo menos uma das botas
ou dois cascos do cavalo, os da direita ou os da esquerda, acabam se sujando antes da chegada.
Olhando a bota coberta de lama, os monges do monastério de Níkolie sabiam de onde vinham os
viajantes: se da beira-mar ou de Rúdnik, a oeste, chapinhavam a água da corrente do Morava com
o pé direito; se vinham do leste, com o pé esquerdo. Num domingo, dia de São Tomás, em 1661,
soube-se que um homem encorpado e belo, que tinha os olhos em forma de ovo, uma barba tão
longa que poderia queimar por toda uma noite e cabelos que cobriam sua cabeça até os olhos,
como se fossem um gorro, chegara a Níkolie, com a bota esquerda úmida e enlameada. O
homem chamava-se Nikon Sevastg e, rapidamente, tornou-se o melhor calígrafo de Níkolie, pois
havia adquirido habilidade em outra parte. Era armeiro, mas seu trabalho não oferecia nenhum
perigo: pintava bandeiras, alvos e escudos, criando imagens de antemão condenadas a serem
destruídas pelas balas, flechas e espadas. Dizia que estava a caminho de Constantinopla e apenas
de passagem por Níkolie.
No dia de São Kiriak, o eremita, três ventos outonais quentes, do dia de São Miguel,
sopraram, cada qual cheio de seus próprios pássaros – um, de estorninhos, outro, das últimas
andorinhas, e o terceiro, de gaviões; odores frios e quentes misturavam-se, e correu o rumor, em
Iovánie, de que o novo calígrafo do monastério de Níkolie pintara um ícone que todos os
habitantes da garganta do Óvtchar corriam para contemplar. Fui eu também admirar, na parede
do monastério, a imagem do Deus do Universo, que tinha o pequeno Jesus em seus joelhos.
Entrei com os outros e olhei atentamente a pintura. Depois, durante a refeição, observei pela
primeira vez Nikon Sevast, e seu belo rosto recordava-me alguém que eu conhecia bem, mas não
conseguia identificar. Nem mesmo em minha memória, onde via todos os rostos como cartas
abertas diante de mim, nem ainda nos meus sonhos, onde ficavam como num baralho cujas
cartas eu podia virar, à vontade, uma a uma. Em nenhum lugar aparecia tal rosto.
Ouviu-se na montanha o ruído de um machado batendo em uma faia, pois o ruído é
distinto se o machado bate em uma faia ou num olmo, e nessa época do ano cortavam-se tanto
faias como olmos. Lembrava-me perfeitamente desses ruídos, desde a primeira vez que os ouvira,
dez anos atrás, durante uma tempestade de neve. Lembrava-me dos pássaros, há muito mortos,
que voavam levados por essa tempestade e depois caíam pesadamente sobre a neve molhada.
Mas não podia, de modo algum, lembrar-me do que há pouco vira no rosto de Sevast. Não podia
me lembrar de nenhum dos seus traços, nenhuma cor, nem mesmo lembrava se usava barba. Era,
de fato, a primeira e única vez em minha vida que minha memória me traía. Mas o fenômeno era
tão excepcional e inacreditável que descobri rapidamente a causa. Só havia uma única causa
possível: o que não pertence a este mundo não pode ser memorizado e não permanece na
lembrança mais do que um peixe no ventre de uma pata. Antes de partir, procurei de novo Nikon
e encarei-o fixamente na boca. Então, o medo me invadiu, como se ele fosse morder-me o olhar.
E na verdade, foi isto exatamente o que aconteceu, e seus dentes morderam rapidamente, como
se abocanhassem um pedaço de comida. Assim, com o olhar mordido, voltei para Iovánie.
Pus-me de novo a copiar livros, como antes. Mas, certo dia, senti que tinha mais palavras
em minha saliva do que aquele que escrevera o livro. Então, comecei a acrescentar ao texto que
copiava uma palavra aqui, uma outra ali; depois, frases inteiras. Estávamos numa terça-feira e
minhas palavras, nessa primeira tarde, estavam um pouco ácidas e duras entre meus dentes. Mas,
nas tardes seguintes, observei que, quanto mais avançava o outono, mais as palavras
amadureciam, dia após dia, como um fruto, tornando-se mais suculentas, mais carnudas e
açucaradas, cheias de uma polpa tão energética quanto agradável. E no sétimo dia, impaciente,
como se tivesse medo de ver meus frutos amadurecerem demais, caírem e apodrecerem,
acrescentei à biografia de São Parascévio uma página inteira que não figurava em nenhum dos
textos que eu estava copiando. Não somente meu delito não foi descoberto, como os monges me
pediam cada vez mais seguidamente para fazer as transcrições, preferindo os livros com minhas
interpolações aos de todos os outros calígrafos, aliás numerosos, na garganta do Óvtchar.
Encorajado, decidi ir até o fim. Não somente acrescentei historietas nas biografias dos santos,
como pus-me a inventar novos eremitas; imaginava novos milagres, e minhas caligrafias
começaram a ser vendidas mais caro do que os livros que eu copiava. Pouco a pouco, tive
consciência do terrível poder que possuía no tinteiro e que soltava no mundo, segundo minha
vontade. Então, concluí: qualquer escritor pode, sem se cansar, matar seu herói em duas linhas.
Para matar o leitor, um ser humano em carne e osso, basta metamorfoseá-lo durante um instante
em personagem do livro, em herói da biografia. Depois, é fácil...
Nessa época, no monastério de Sretenie, vivia um jovem monge chamado Lónguin.
Levava uma vida de eremita e sentia-se como o cisne que espera, com as asas cobertas, o sopro
do vento que vai fazê-lo deslizar sobre a água. Nem Adão, que nomeou os dias, tinha o ouvido
tão apurado quanto o dele. E seus olhos eram como duas vespas que propagam as epidemias
santas: um olho macho, um outro fêmea, e cada um deles armado de um aguilhão tão predisposto
a se lançar sobre o bem, como o gavião sobre um pintinho. Dizia, quase sempre: “Cada um de
nós pode facilmente escolher como exemplo alguém melhor. Assim, poderíamos construir uma
escada com os espíritos, como a de Jacó, que sobe da terra ao céu, e tudo seria ligado e
regulamentado com facilidade e na alegria, pois não é difícil ao homem seguir e escutar alguém
melhor do que ele próprio. Todo o mal provém de que somos, neste mundo, tentados, o tempo
todo, a escutar os que são piores do que nós e a seguir-lhes o exemplo...” Quando ele me pediu
que lhe copiasse a biografia de São Pedro Kórichki, que depois de cinco dias de jejum viu a luz
que não envelhece, era quase de noite, e os pássaros, como raios negros, caíam em seus ninhos,
no meio da ramagem. Meus pensamentos começaram a voar com igual velocidade, e senti que
não tinha bastante energia para me opor à sensação de poder que despertava dentro de mim. Pus-
me a copiar a biografia de São Pedro Kórichki e, assim que cheguei à passagem sobre os dias de
jejum, no lugar de cinco escrevi cinqüenta e entreguei desta maneira minha cópia ao jovem
monge. Ele recolheu-a, cantando, leu-a naquela mesma noite e, no dia seguinte, correu o rumor,
em toda a garganta, de que o monge Lónguin começara um longo jejum...
Dizia-se, no meio do povo, sobre Bránkovitch: “Ele não está sozinho”. Garantia-se que,
quando jovem, ele não se tinha lavado por quarenta dias, tinha pisado dentro do caldeirão do
diabo e se tornara uma espécie de duende. Em cada um dos seus ombros crescia um tufo de
pêlos; tornava-se sonolento no mês de março, e sortudo. Suas pernas permitiam que saltasse
longe, e seu espírito mais longe ainda. Enquanto seu corpo dormia, a alma voava como numa
nuvem de pombas, dirigia os ventos, expulsava as nuvens, provocava ou suspendia as geadas e
lutava com os gênios d’além-mar para defender as colheitas e o gado, o leite e o trigo, impedindo-
os de pilhar as riquezas do seu país. O povo também acreditava que Bránkovitch visitava os anjos
e dizia dele: “Onde há menos duendes, há menos pão”. Ele pertencia, dizia-se, aos duendes do
segundo acampamento, como os vizires de Skadar e os beis de Plávogussiny. Num combate com
os duendes de Trébinie, expulsara o paxá Mustai-Beg SábliakÂ, que pertencia ao terceiro
acampamento. Durante esse assalto, no qual areia, pena e um balde serviram-lhe como armas,
Bránkovitch foi ferido na perna. Depois disso, sempre montou um cavalo negro – sultão de
todos os cavalos, que relinchava quando dormia e que era, ele próprio, um duende. A caminho de
seus combates celestiais, Bránkovitch, agora manco, cavalgava a alma de seu cavalo, transformada
em palha. Diz-se também que ele se confessara em Constantinopla, admitindo ser um duende, e
que desde então perdera seu poder e que o gado da Transilvânia não caminhava mais para trás
quando ele passava diante dos cercados...
Esse homem, de sono tão profundo que era preciso vigiá-lo, para que ninguém colocasse
sua cabeça no lugar dos pés (porque assim ele não se despeitaria nunca mais), um desses homens
que se enterram de bruços, e que amam mesmo depois da morte, contratou-nos, então, como
escribas e instalou-nos em sua biblioteca que fora também a de seu tio, o conde Djordje
Bránkovitch. E perdêmo-nos entre os livros como em uma rua constelada de ruelas sem saída e
escadas em espiral. Percorríamos os mercados e porões de Viena, comprando manuscritos em
árabe, em hebreu e em grego para Kyr Avram e, observando as casas de Viena, notei que estavam
arrumadas como numa prateleira, como os livros na biblioteca de Bránkovitch. Concluí que as
casas são como os livros: existem tantas ao teu redor mas só podes dar uma olhada em algumas
delas, e o número das que visitarás um pouco mais demoradamente, ou habitarás, é ainda mais
reduzido. Geralmente, entras numa estalagem, num albergue, numa tenda alugada por uma noite,
ou num porão. Mais raramente, muito mais raramente, pode suceder que, surpreendido pelo mau
tempo, entres de novo na casa onde viveste antigamente, e aí passes a noite, lembrando-te do
lugar onde dormias, constatando como tudo é, ao mesmo tempo, igual e diferente, recordando-te
por qual janela chegava a primavera e por qual porta saía o outono...
Na véspera do dia de São Pedro e São Paulo, em 1685, durante a quarta semana depois
do dia de Todos os Santos, nosso senhor Avram Bránkovitch entrou ao serviço do embaixador
inglês na Turquia, como diplomata mercenário, e mudamo-nos para Constantinopla. Fomos
instalados numa torre que dominava o Bósforo, onde nosso senhor arrumou suas espadas, suas
selas para camelos, seus tapetes e seus armários altos como igrejas, sempre com seus olhos
magros, da cor da areia molhada. Nessa torre, mandou construir sobre um genuflexório um
templo dedicado a Santa Angelina, a déspota e bisavó dele e de seu tio, o conde Djordje.
Contratou como lacaio um anatólio que manejava sua cabeleira como se fosse um chicote e que,
na extremidade de sua esteira, guardava chumbo grosso. Este novo serviçal chamava-se Yuçuf
MaçudiÂ, ensinava árabe ao nosso patrão e velava seus sonhos. Tinha trazido um saco cheio de
páginas cobertas de palavras e dizia-se que era leitor de sonhos ou caçador de sombras, como são
chamados os que se fustigam uns aos outros com sonhos humanos. Nikon e eu passamos todo o
primeiro ano organizando, nas estantes e nos armários, os livros e os manuscritos de nosso
patrão, que ainda exalavam o cheiro dos camelos e cavalos que os transportaram desde Viena.
Certo dia, enquanto o lacaio Maçudi velava no quarto de dormir de Kyr Avram, apoderei-me do
saco. Li e retive cada letra e cada palavra do manuscrito, sem nada compreender, pois estava
escrito em árabe. Tudo que sei é que se apresentava como um dicionário, ou um glossário, na
ordem alfabética árabe, quer dizer, que avançava como um caranguejo, e que devia ser lido como
voa o tordo, para trás...
A cidade em si e suas pontes não me surpreenderam. Desde que chegamos a
Constantinopla, reconheci os rostos nas ruas, os ódios, as mulheres e as nuvens, os animais, os
amores de que fujo há tanto tempo, os olhos que cruzei só uma vez e que lembrei para sempre.
Concluí que nada mudava no correr do tempo, que o mundo permanecia imutável, apesar dos
anos, e, no entanto, modificava-se em si mesmo e no espaço, criando inumeráveis formas,
embaralhando-as como cartas e dando, como se fosse uma lição, o passado de uns como futuro
ou presente aos outros. Aqui, todas as memórias, todas as lembranças e todo o presente de um
homem concretizam-se ao mesmo tempo, no mesmo instante, em lugares diferentes e em
pessoas diferentes. Assim, é preciso que não consideremos todas essas noites ao nosso redor –
pensava eu – como se fossem uma só noite, pois elas são milhares, centenas de milhares de noites
que, em vez de seguirem-se como pássaros, uma atrás da outra através do tempo, calendários e
relógios, realizam-se simultaneamente. Minha noite e a tua não são a mesma noite, nem mesmo
no calendário. Pois hoje, para os papistas, em Roma e aqui, é a festa de Maria, enquanto para os
cristãos ortodoxos, os gregos, os do ritual autônomo, é o Dia da Transladação das Relíquias do
Santo Arquidiácono Estevão, o imberbe. Para alguns, este ano de 1688 terminará quinze dias
mais cedo, para os judeus nos seus mahalas transcorre já o ano 5446, enquanto os árabes estão em
905 da Hégira. Toda uma semana de noites transcorrerá, de agora até a aurora, para nós, os sete
servidores de Kyr Avram. Colheremos todo um setembro de noites, caminhando daqui até
Topkapi Sarayi, e de Santa Sofia aos Blanchernes consumiremos todo um outubro. Os sonhos do
nosso Kyr Avram realizam-se alhures, em outra vida, enquanto um outro sonha a vida de Kyr
Avram. Quem sabe, talvez nosso Kyr Bránkovitch tenha vindo a Constantinopla, para encontrar
aquele de quem sonha a vida, aquele que em seus próprios sonhos gasta a vida de Kyr Avram, e
não para servir de intérprete ao embaixador inglês junto à Sublime Porta. Pois não há nesta noite,
ao nosso redor, uma única vida de homem que não seja sonhada por um outro homem, em
algum lugar do oceano humano, e não existe nenhum sonho humano que não está se realizando
como a vida de um outro. Caminhando daqui até o Bósforo, de rua em rua, poder-se-ia
reconhecer, dia a dia, todas as estações do ano; a primavera e o outono e todas as estações não
chegam ao mesmo tempo para todos, pois ninguém é jovem e velho no mesmo dia, e toda uma
vida poderia ser reunida, como as chamas de um castiçal, e se você a sopra, nem mesmo um
soluço permanece entre o nascimento e a morte.
Se soubesses exatamente onde procurar, encontradas nesta mesma noite alguém que já
vive teus dias e noites futuros, alguém que come teu pão de amanhã, um outro que chora teus
lutos de há oito anos, ou beija tua futura mulher, e um terceiro que está morrendo exatamente a
mesma morte que morrerás. Se o homem caminhasse mais depressa e escavasse com maior
largura e profundidade, veria que todas as noites da eternidade estão se realizando, nesta noite,
em um espaço imenso. O tempo já transcorrido numa cidade apenas começa a correr numa
outra, de maneira que entre essas duas cidades o homem pode viajar através do tempo, em
direção ao futuro ou em direção ao passado. Numa cidade-macho pode encontrar uma mulher
viva que já morreu em outra cidade-fêmea, ou vice-versa. E isto não é verdadeiro apenas para as
pequenas vidas individuais. Todos os tempos futuros e passados, todos os braços da eternidade já
estão aqui, retalhados cm bocadinhos e partilhados entre os homens e seus sonhos. O imenso
corpo do homem primordial, Adão, mexe-se e respira no sonho. A humanidade morde seu
tempo com uma única dentada e não espera o amanhã. O tempo, portanto, não existe aqui. Ele
chega e lambe este mundo, vindo de algum lugar do além...
– De onde? – perguntou Nikon, que ouvia meus pensamentos, mas não lhe respondi.
Pois eu sabia bem de onde vinha. O tempo não nasce na terra, mas nos subterrâneos. Pertence a
Satã, que o guarda como um novelo de fio no seu bolso e desenrola-o ao sabor de sua fantasia. É
preciso arrancá-lo dele. Pois, se podemos pedir a eternidade a Deus, e obtê-la, então o contrário
da eternidade – o tempo – só podemos tomar de Satã...
No dia de São Judas Apóstolo, irmão do Senhor, Kyr Avram nos reuniu e disse-nos que
iríamos deixar Constantinopla. Tudo estava arranjado e as ordens para a viagem já estavam dadas
quando uma breve mas violenta discussão opôs Nikon e o anatólio Maçudi, e Nikon pôs-se a
piscar as pálpebras inferiores, como um pássaro. Furioso, lançou-se sobre o saco de Maçudi, já
completamente preparado para a partida (este saco continha o glossário em árabe que eu já lera e
decorara), e arremessou-o ao fogo. Maçudi não pareceu demasiadamente irritado; simplesmente
virou-se para Kyr Avram e disse-lhe:
– Olhe-o, meu Senhor: esse aí fode com sua cauda, virado de costas, sem ver aquele ou
aquela que vai fecundar. E entre suas narinas não há septo.
Neste instante, todos os olhares convergiram sobre Nikon. Kyr Avram retirou da parede
um espelho e colocou-o sob o seu nariz, como se faz com os mortos. Todos nos aproximamos e,
efetivamente, constatamos que Nikon não tinha septo nasal. Assim, todos souberam o que eu já
sabia há muito tempo – que meu companheiro, o protocalígrafo Nikon Sevast era o próprio Satã.
Aliás, nem ele mesmo negava-o, agora. Quanto a mim, não tinha examinado o interior do seu
nariz, como os outros. Simplesmente olhara no espelho e descobrira aí o que os outros já
deveriam saber há muito. O rosto de Nikon Sevast, que me lembrava tanto um rosto outrora
visto, era quase idêntico ao meu. Caminhávamos através do mundo como gêmeos, amassando o
pão de Deus com a lágrima do Diabo.
Naquela noite, eu pensei: é agora ou nunca! Quando um homem passa sua vida
dormitando, ninguém ao seu redor imagina que vai despertar um dia. Era assim com Nikon. É
preciso dizer que não sou dos que acordam angustiados quando o braço escorrega para fora da
cama e bate no chão, mas eu tinha medo de Sevast. Seus dentes conheciam a disposição exata dos
meus ossos. Apesar de tudo, eu acompanhara-o. Como eu sabia que o diabo caminha sempre um
passo atrás do homem, caminhava em suas pegadas e ele não me notava. Há muito tempo eu já
tinha percebido que, entre todos os livros da biblioteca de Kyr Avram Bránkovitch, ele dava uma
atenção particular ao glossário kazar. Era uma espécie de abecedário no qual trabalhávamos, os
escribas, pesquisando e classificando todos os dados sobre a origem e o aniquilamento, os
costumes e as guerras de um povo desaparecido. Avram Bránkovitch interessava-se muito por
este Povo; comprava, sem regatear, os velhos documentos e subornava homens para capturar as
“línguas” daqueles que sabiam alguma coisa sobre os kazares∇ – ou enviava mensageiros atrás dos
caçadores de sonhos, cuja arte procede de antigos magos kazares. Minha atenção foi atraída por
esse abecedário porque entre os milhares de rolos de papel da biblioteca de Bránkovitch, era este
livro que interessava Nikon. Decorei o Dicionário Kazar de Bránkovitch e pus-me a espionar
Nikon. Até a noite mencionada, ele nada fez de inusitado. Mas agora, depois do episódio do
espelho, subiu sozinho ao andar superior da torre, apanhou o papagaio, colocou-o sobre um
lampadário e sentou-se para escutá-lo. Pois o Papagaio de Kyr Avram freqüentemente recitava
poemas, que Kyr Avram acreditava tivessem sido escritos pela princesa Ateh∇, e nós, os escribas,
tínhamos a obrigação de anotar para o glossário kazar de nosso mestre tudo o que esse papagaio
contava. Mas naquela noite, Sevast não anotou nada. Apenas escutava o que o pássaro dizia:
Algumas vezes, antigas primavera cheias de calor e perfumes, reflorescem em nós. Carregamo-las através
do inverno, protegendo-as sob nosso peito. Depois, um dia, quando atravessamos para o outro lado da janela, lá
onde o gelo não é mais somente uma imagem, essas antigas primaveras protegem, por sua vez, nosso peito. Uma tal
primavera floresceu em mim, há nove invernos, e ainda me aquece. Imagine agora, neste inverno, duas dessas
primaveras juntando-se como os perfumes de dois prados. Eis, exatamente, o que precisamos à guisa de casaco...
Quando o papagaio se calou, experimentei um terrível sentimento de solidão, assim
escondido e sem Primavera na alma. Somente a lembrança de nossa juventude comum, de Sevast
e minha, brilhava como uma luzinha na minha memória. Bela luz, pensei, enquanto Nikon pegava
o pássaro e cortava sua língua em duas com uma faca. Depois, aproximou-se do Dicionário Kazar
de Avram Bránkovitch e jogou suas páginas no fogo, uma a uma. Inclusive a última página, na
qual Avram Bránkovitch anotara do próprio punho:
Os kazares acreditavam que o primeiro e último homem, Adão, irmão mais velho de
Cristo e irmão mais jovem de Satã, era composto de sete partes. Tinha sido criado por Satã: sua
carne era feita de terra, seus ossos de pedra, seus olhos maléficos de água, seu sangue de orvalho,
seu fôlego de ventos, seu pensamento de nuvens e seu espírito da velocidade dos anjos.
Entretanto, não se pôde mover até que seu segundo e verdadeiro pai, Deus, lhe tivesse insuflado
uma alma. Assim que a alma entrou nele, Adão esfregou seu polegar direito, feminino, no seu
polegar esquerdo, masculino, e ganhou vida. Nos dois mundos – o invisível, o espiritual, que foi
criado por Deus, e o visível, o material, criado pelo ecônomo infiel Satã –, apenas Adão é obra
comum dos dois criadores e pertence a estes dois mundos. No seu corpo, Satã encerrou dois
anjos caídos, tomados por tal avidez que não poderão acalmar nem satisfazer sua fome antes do
fim do mundo. O primeiro anjo chamava-se Adão, o segundo Eva. À guisa de olhar, Eva possuía
redes; à guisa de língua, uma corda. Esta tinha a forma do Grande Anel ou de elos. Adão
começou imediatamente a envelhecer, pois sua alma era um pássaro migrador que se dividia e
viajava por tempos diferentes. No início, Adão era feito de duas espécies de tempo, apenas:
macho e fêmea. Depois, houve quatro (que pertenciam a Eva e a seus filhos Caim, Abel e Set). A
seguir, o número de partículas de tempo encerradas em forma humana multiplicou-se sem parar,
e o corpo de Adão cresceu até se tornar um enorme império, semelhante ao da natureza, mas de
composição diferente. O último mortal passará toda sua vida rodando no interior da cabeça de
Adão, procurando uma saída, mas não a descobrirá, pois o Cristo foi o único a encontrar a
entrada e a saída do corpo de Adão. Este imenso corpo de Adão não jaz no espaço, mas no
tempo. Ora, não é fácil calçar-se com milagres, nem construir uma pá com palavras. É por isto
que não apenas a alma de Adão migra para as gerações seguintes (esta migração de almas é, afinal,
apenas a migração de uma única alma, a de Adão), mas todas as mortes dos descendentes de
Adão migram também e retornam à morte de Adão, construindo deste modo, grão a grão, uma
imensa morte, proporcional ao corpo e à vida de Adão. Como se pássaros migradores brancos
voltassem transformados em pássaros negros, quando seu último descendente morrer, Adão
morrerá também, pois as mortes de todos os seus filhos repetir-se-ão nele. E então, como na
fábula do corvo enfeitado com plumas de pavão, Terra, Pedra, Água, Orvalho, Vento, Nuvem e
Anjo virão tomar uma parte de Adão e o esquartejarão. Então, pobres daqueles que desertarem
do corpo de Adão, do corpo do pai ancestral do homem, porque não poderão morrer com ele e
como ele. Tornar-se-ão alguma outra coisa, mas não homens.
É por tal razão que os caçadores de sonhos kazares procuram Adão, o homem original, e
compõem seus dicionários, glossários ou abecedários. Contudo, é preciso saber que os kazares
dão o nome de sonho a uma coisa diferente do que nós entendemos por sonho. Dos nossos
sonhos podemos lembrar-nos enquanto não olharmos pela janela; assim que olhamos, eles
fogem, voando para sempre. Entre os kazares não é assim.
Eles acreditam que na vida dos homens existem pontos nodosos, parcelas de tempo que
são como chaves. Cada kazar conservava, portanto, um bastão no qual, no decorrer de toda sua
existência, inscrevia, como em uma tábula, os dias de clarividência ou os instantes de suprema
plenitude de sua vida. Cada uma destas marcas no bastão recebia o nome de um animal ou de
uma pedra preciosa. E era chamada sonho. Para os kazares, o sonho não era, portanto, somente o
dia de nossas noites, mas também a noite estrelada e misteriosa de nossos dias. Os caçadores ou
leitores de sonhos eram religiosos que interpretavam os sinais desses bastões e, a partir deles,
confeccionavam dicionários de biografias, mas não no sentido antigo da palavra, como
empregado por Plutarco ou Cornelius Nepos. Era, de fato, uma seqüência de vidas anônimas,
reduzidas a esses instantes de iluminação nos quais o homem se torna uma parte do corpo de
Adão. Pois todo homem, pelo menos uma vez na vida, torna-se parte de Adão. E se se reúnem
todos esses instantes, obtém-se o corpo de Adão na terra, não na forma, mas no tempo, porque
apenas uma parte do tempo é clarificada, penetrável e utilizável. O pedaço do tempo de Adão. O
resto, para nós, encontra-se na escuridão e serve a outro. Nosso futuro é como os chifres do
caramujo; retraem-se, quando tocam alguma coisa dura, e só conseguem ver quando estão
completamente esticados. Adão enxerga assim sempre, porque aquele que conhece todas as
mortes de todos os homens, de antemão e até o fim do mundo, conhece também o futuro deste
mundo. É por isto que, reunindo-nos ao corpo de Adão, nos tornamos, também nós,
clarividentes e coproprietários do nosso futuro. Aí reside a principal diferença entre Satã e Adão,
pois o diabo não vê o futuro. Eis porque os kazares procuravam o corpo de Adão, e também
porque os livros femininos e os livros masculinos dos caçadores de sonhos kazares formavam
uma espécie de ícone de Adão, os femininos sendo o corpo, e os masculinos o sangue. Os
kazares sabiam, é claro, que seus magos não podiam aproximar-se do corpo de Adão por inteiro,
nem representá-lo nos seus dicionários-ícones. Pintavam inclusive, às vezes, ícones sem rosto,
mas com dois polegares – esquerdo e direito, o polegar masculino e o polegar feminino de Adão.
Pois cada parte capturada nos dicionários só podia ser animada e viver juntando-se os dois
polegares, o masculino e o feminino. Os kazares estavam, portanto, particularmente atentos para
conquistarem essas duas partes do corpo de Adão. Acredita-se que eles foram bem sucedidos,
mas não tiveram tempo suficiente para o resto. Adão, no entanto, tem tempo e espera. Assim
como sua alma migra para seus filhos e retorna a seu corpo no momento da morte desses filhos,
uma parte de seu imenso corpo-reino pode, a cada instante, e em cada um de nós, ser destruída
ou renascer. Basta o toque profético dos polegares masculino e feminino, desde que exista pelo
menos uma parte do corpo de Adão por trás desses dedos. Que tenhamos nos tornado uma parte
dele...
Istambul
18 de outubro de 1982
Virgínia Ateh, garçonete do hotel Kingston, testemunha no caso Dorotéia Schultz,
apresentou-se diante do Tribunal e fez a seguinte declaração:
“No dia em questão (2 de outubro de 1982), o tempo estava ensolarado e eu estava muito
inquieta. Filamentos de ar salgado vinham do Bósforo, acompanhados de pensamentos rápidos
que se insinuavam como pequenas serpentes entre os meus pensamentos enlanguescidos. O
jardim do hotel Kingston, onde é servido o desjejum quando faz bom tempo, tem uma forma
quadrada. Um canto é ensolarado, um outro, florido, o terceiro, ventoso, e no quarto canto há
um poço e um pilar erguido ao lado. Tenho o costume de ficar atrás desse pilar, pois sei que os
hóspedes não gostam de ser observados enquanto comem. O que não é surpreendente. Eu, por
exemplo, ao olhar um hóspede que toma seu desjejum, sei que o ovo cozido vai sustentá-lo para
que se banhe antes do meio-dia, o peixe, para ir de tarde a Topkapi Sarayi, e que o copo de vinho
vai lhe dar forças para esboçar um sorriso antes de dormir, um sorriso que nunca chegará até os
espelhos míopes dos quartos do hotel. Desse lugar, perto do poço, pode-se ver a escada que leva
ao jardim e, assim, todos os que chegam ou que partem. Esse lugar apresenta ainda uma outra
vantagem. Assim como todas as águas das calhas ao redor deságuam juntas no poço, todas as
vozes do jardim também convergem para lá e, se a gente se inclina sobre a borda do poço, ouve
claramente cada palavra pronunciada no jardim. Ouve-se o pássaro apanhar uma mosca ou o ovo
duro que é quebrado; distingue-se a voz dos garfos, sempre a mesma, e a dos copos, sempre
diferente... Como os hóspedes, antes de chamar a garçonete, anunciam sempre, em sua conversa,
o motivo da chamada, sou capaz de satisfazer seus pedidos antes até que os formulem, pois já os
ouvi através do poço. Saber uma coisa alguns instantes antes dos outros é sempre uma vantagem.
Na manhã em questão, os primeiros que desceram para o jardim foram os hóspedes do quarto
18, os que tinham um passaporte belga, a família Van der Spaak, o pai, a mãe, e o filho. O pai tem
uma certa idade, toca lindamente um instrumento feito com a carapaça de uma tartaruga branca,
e podia-se ouvi-lo de noite. Ele é um pouco estranho e come sempre com seu próprio garfo de
dois dentes, que guarda no bolso. A mãe é jovem e bela, razão pela qual eu a tinha observado de
perto. Percebi que tinha um defeito – não havia septo no seu nariz. Ela ia todos os dias à Santa
Sofia para copiar ícones, aliás, muito bem. Perguntei-lhe se essas imagens serviam como partitura
para as canções de seu marido, mas ela não compreendeu a minha pergunta. Seu filhinho, que
tem menos de quatro anos, padece também de uma deformação, sem dúvida. De fato, sempre
usava luvas, mesmo durante as refeições. Outra coisa, porém, me deixou intrigada. Aquela manhã
estava ensolarada, e eu seguia com o olhar a família belga que descia a escada para ir ao jardim
quando, subitamente, constatei que o rosto do senhor não era como os outros rostos.
Ouviu-se a seguir a família belga. O senhor e a senhora Van der Spaak sublinharam, de
modo coerente, três pontos. Primeiro, era insensato acreditar que um menino de três anos
pudesse cometer tal crime. Segundo: a investigação demonstrara que o doutor Muaviya tinha sido
morto por uma arma na qual foram encontradas impressões digitais de uma única pessoa – a
doutora Dorotéia Schultz. E a investigação confirmara que essa arma (de marca S. & W., modelo
36, calibre 38), com a qual o doutor Muaviya fora morto, pertencia à senhora Schultz. Terceiro, a
senhora Van der Spaak, como principal testemunha da acusação, afirmou que a doutora Schultz
tinha um motivo para matar o doutor Muaviya, que a jovem mulher viera a Istambul com a
intenção de matá-lo, e que o havia feito. E, efetivamente, a investigação comprovou que o doutor
Muaviya tinha ferido gravemente, durante a guerra israelo-egípcia, o marido da doutora Dorotéia
Schultz. O motivo era claro: vingança. O testemunho da garçonete do hotel Kingston não podia,
portanto, ser levado em consideração. Era tudo.
Apoiando-se no que tinha sido exposto, o promotor pediu a condenação da doutora
Dorotéia Schultz por assassinato com premeditação, e também com motivos políticos. Depois,
foi pedido à acusada que comparecesse perante o Tribunal. A doutora Schultz fez uma curta
declaração. Ela não era culpada do assassinato do doutor Muaviya. Como sustentação do que
dizia, tinha um álibi. Quando o juiz lhe perguntou qual era, respondeu:
– No momento em que o doutor Muaviya foi assassinado, eu estava matando uma outra
pessoa, o doutor Isailo Suk. Eu sufoquei-o com um travesseiro no seu quarto.
Durante a investigação, ficou comprovado que o senhor Van der Spaak tinha sido visto,
naquela manhã, no quarto do doutor Suk, na hora da sua morte, mas a confissão da doutora
Schultz livrou-o de toda responsabilidade nesse assunto.
1689
+ 293
= 1982
Um livro pode ser uma vinha regada pela chuva ou uma vinha regada pelo vinho. Este,
como todos os dicionários, pertence à segunda categoria. Um dicionário é um livro que pede
pouco tempo a cada dia, mas que toma muito no decorrer dos anos. Não se deve subestimar tal
perda. Sobretudo se admitirmos que a leitura é, de maneira geral, uma ocupação duvidosa. Pela
leitura, um livro pode ser curado ou ser morto. Pode ser transformado, engordado ou violado.
Seu fio condutor pode mudar de sentido, há sempre alguma coisa que nos escapa, perdemos
letras entre as linhas, páginas entre os dedos, enquanto outras crescem entre nossos olhos, como
repolhos. Se o deixamos de lado, arriscamo-nos a encontrá-lo no dia seguinte como um fogão
apagado sobre o qual nenhum jantar quente nos espera mais. Além do mais, hoje em dia, os
homens não dispõem de tanta solidão para que possam ler, sem prejuízo, livros e também
dicionários. Mas tudo tem um fim – o livro é como uma balança: pende primeiro para a direita,
depois para a esquerda para sempre. Seu peso passa, desse modo, da mão direita para a mão
esquerda, e um movimento semelhante produz-se na cabeça do leitor – do domínio da esperança,
os pensamentos deslocam-se para o da lembrança, e tudo se acaba. Na orelha do leitor talvez
permaneça, um pouco da saliva do escritor, trazida pelo vento das palavras com um grão de areia
no fundo. Ao redor desse grão, como numa ostra, vozes serão depositadas durante anos, e um
belo dia elas se transformarão em pérola, em queijo de cabra negra ou ainda em bolha vazia,
quando as orelhas se fecham como uma concha. Mas isto não depende da areia!
Em qualquer dos casos, ler um livro tão grosso quanto este significa permanecer muito
tempo sozinho. Sem a presença de quem te é indispensável, pois a leitura a quatro mãos não é
ainda comum. O escritor sente remorsos por isso e vai tentar redimir-se. Que a bela mulher, de
olhos rápidos e cabelos lânguidos, que se sentir sozinha lendo este dicionário, correndo através
do seu medo como através de um quarto, proceda da seguinte maneira: vá, então, com o
dicionário sob o braço, na primeira quarta-feira do mês, ao meio-dia, diante da confeitaria da
praça principal de sua cidade. Ali, esperando por ela estará um jovem homem que, como ela,
sentiu a solidão, gastando seu tempo enquanto lia este mesmo livro. Que eles se sentem juntos,
diante de uma xícara de café, e comparem os exemplares masculino e feminino de seu livro. Eles
são diferentes. Quando compararem a breve passagem da última carta da dra. Dorotéia Schultz,
impressa em itálico, em um e outro exemplar, o livro formará para eles um todo, como um jogo
de dominós, e já não será mais necessário. Então, repreendam como se deve o lexicógrafo, mas
que se apressem, pois o que vai lhes acontecer a seguir só a eles dois diz respeito e vale mais do
que qualquer leitura.
Vejo-os, numa rua, a colocar o lanche da tarde sobre uma caixa do correio e a comer,
enlaçados, sentados em suas bicicletas.