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FÍSTULAS DO TRATO GASTROINTESTINAL

Fístula gastrointestinal (FGI) é a comunicação anormal entre o tubo


digestivo e qualquer víscera oca ou cavidade abdominal (fístula interna) ou, ainda,
com a superfície cutânea (fístula externa), através da qual ocorre a drenagem dos
líquidos digestivos.
As fístulas podem ser classificadas quanto a localização anatômica (gástrica,
pancreática, duodenal, jejunal, ileal ou colônica), débito (alto débito
>500ml/24horas ou, se pancreáticas, >200ml/24horas), origem (congênitas ou
adquiridas) ou ainda como primárias (devido a processos patológicos intestinais,
como por exemplo doença de Crohn ou câncer) ou secundárias (devido à injúria,
especialmente após intervenções cirúrgicas). Fístulas adquiridas podem ter causas
inflamatórias, neoplásicas, infecciosas, ou traumáticas (por cirurgia, radiação, ou
injúria perfurativa)
A morbidade e mortalidade podem aumentar devido perda de líquidos,
desequilíbrio eletrolítico, infecção, sepse, e desnutrição. Fístulas geralmente
resultam na incapacitação do paciente e no aumento de tempo e custo com a
hospitalização. O prognóstico relaciona-se ao estado nutricional e à presença de
infecção.
As fístulas externas são de mais fácil diagnóstico, devido à presença de
secreção purulenta ou extravasamento de conteúdo do trato gastrointestinal (TGI) em
sítios de drenagem ou incisões abdominais, inflamação celulítica e sepse. Fístulas
internas são de mais difícil diagnóstico e requerem exames de imagem para sua
confirmação. Sinais inespecíficos, como diarréia, sepse ou dispnéia, podem estar
presentes.
Uma vez confirmada a fístula, o monitoramento diário consiste na
verificação do volume e aspecto da secreção e do balanço hidroeletrolítico.
Periodicamente, deve ocorrer avaliação bioquímica (amilase, lipase, bilirrubina,
pH), do grau de infecção e do estado metabólico e nutricional do paciente.
Complicações
As FGIs acarretam uma série de complicações de gravidade variável, de
acordo com a etiologia, tipo (drenagem interna ou externa), localização anatômica e
débito da fístula (qualidade e quantidade do líquido perdido). As maiores
complicações das FGIs incluem perda de líquidos e eletrólitos, infecção, sepse e
desnutrição.
Fístulas de alto débito constituem o grupo de maior risco para distúrbios
hidroeletrolíticos. Fístulas altas, de duodeno e jejuno proximal, podem drenar até
4.000ml em 24 horas. A perda de grandes volumes de secreções gastrointestinais
pode determinar desidratação, hiponatremia, hipocalemia e acidose ou alcalose
metabólica ). O quadro 1 resume as diferentes localizações e drenagens das fístulas
e possíveis efeitos clínicos.
As fístulas digestivas altas (aquelas localizadas até o ligamento de Treitz -
gástricas, duodenais e gastrojejunais) são as que mais favorecem o estabelecimento
de processos infecciosos intra-abdominais de alta gravidade, como peritonite
purulenta difusa, abcesso subfrênico e outros abscessos intrabdominais. Essas
circunstâncias, freqüentemente, exigem terapêutica cirúrgica, tal como drenagem do
abscesso e lavagem da cavidade abdominal.
A desnutrição surge em decorrência a uma série de mecanismos inter-
relacionados (Quadro 2). A hipoproteinemia contribui com maiores riscos para
deiscência de sutura, infecção, prejuízo da cicatrização e diminuição da massa
muscular, com conseqüente redução da capacidade funcional. O jejum contribui
para o agravamento do catabolismo imposto pelo estado hipermetabólico
determinado pela doença básica, trauma cirúrgico, infecção e/ou outras
complicações associadas. A ingestão de alimentos pode elevar o débito da fístula,
agravando espoliação de água, eletrólitos e proteínas endógenas. A quantidade de
proteínas produzidas endogenamente e secretadas para o interior do tubo digestivo
diariamente é cerca de duas a três vezes a quantidade recebida de fontes exógenas
com uma dieta normal. Sob condições normais, esse conteúdo protéico é, em sua
maior parte, absorvido. No entanto, em presença de fístula, há perdas destas
proteínas, agravando o estado nutricional do paciente (Quadro 3).
Quadro 1 - Fístulas digestivas: repercussões clínicas

Localização Composição Conseqüências clínicas

Gástrica Perda de ácidos, H+, Na+ e K+ Alcalose metabólica


Hipocloremia
Hipocalemia

Pâncreas, duodeno e Perda de HCO3, Ca++ e Mg++ Acidose metabólica


intestino delgado Intensa ação corrosiva sobre a
proximal pele (tripsina)

Cólon Fezes Infecção


Flora microbiana Septicemia

Quadro 2-Mecanismos de desenvolvimento da desnutrição nas fístulas gastrointestinais2


Restrição alimentar
Catabolismo inerente ao jejum

Estado hipermetabólico
Doença de base
Trauma cirúrgico
Infecção
Outras complicações associadas

Perda protéica intestinal


Quadro 3 - Síntese protéica destinada às secreções digestivas
Tecido Síntese protéica (g/dia) % da síntese protéica corporal diária
Saliva 3a7 1a2
Suco gástrico 5 a 13 2a4
Suco pancreático 8 a 21 3a7
Bile 1 a 2,5 0,3 a 0,8
Suco intestinal 120 38
Regeneração da mucosa 50 16
TOTAL 187 a 214 60 a 68

Manejo
O manejo envolve prevenção e tratamento das principais complicações
associadas (Figuras 1 e 2).
- Manejo hidroeletrolítico:
• Considerar volume drenado na fístula + perdas basais (diurese,perdas
insensíveis
• Repor magnésio, zinco e manganês – fístula alto débito
• Repor eletrólitos conforme níveis séricos e perdas conforme
dosagem no líquido drenado na fístula (alto débito) – Quadro 4
- Manejo infeccioso : diagnóstico e tratamento precoce de sepse e drenagem de
abscesso
- Manejo da pele: uso precoce de curativos com hidrocolóides. Fístulas altas
devido maior quantidade de bile e suco pancreático apresentam com maior
freqüência alterações cutâneas
- Terapia nutricional: depende da localização anatômica e volume drenado em 24
horas.
• NP associada a VO ou dieta enteral em fístulas de baixo débito se aporte
calórico por via enteral insuficiente
• NP exclusiva se TGI não funcionante ou fístula de alto débito
O NPO + NPT diminui o tempo de fechamento espontâneo da fístula e
diminui em 30 a 50% o volume das secreções intestinais.
- Manejo medicamentoso
A somatostatina é um peptídio de efeito inibitório sobre secreções gástrica,
pancreática, biliar e entérica, de ação redutora da motilidade intestinal. Tais
propriedades antisecretórias podem ser úteis na redução do débito da fístula.
Entretanto, o uso de somatostatina tem sido limitado por necessitar administração
intravenosa contínua, possuir meia vida de apenas 1 a 3 minutos e causar um efeito
rebote de hipersecreção de hormônio de crescimento, insulina e glucagon quando a
infusão é imperrompida (4,24). Sugere-se que sua administração seja interrompida
caso o débito da fístula não diminua dentro de 48 horas de tratamento
A octreotida, um análogo da somatostatina, possui meia vida de cerca de 2
horas e ausência de efeito rebote sobre hormônios e pode ter administração
subcutânea ou intra-muscular. Tais vantagens têm expandido sua utilidade clínica.
Suas propriedades são: aumento do tempo de trânsito intestinal, diminuição da
secreção endógena de fluidos e aumento da absorção de água e eletrólitos.
Entretanto, a comprovação de seus benefícios clínicos carece realização de ensaios
clínicos randomizados bem controlados.
O uso desses medicamentos pode diminuir o tempo de fechamento da
fístula, mas não altera de forma significativa a taxa de fechamento espontâneo.
Portanto, podem contribuir na estabilização dos pacientes com fístula no período
anterior à intervenção cirúrgica. O uso de somatostatina e octreotida não é aplicável
a todos os pacientes e não há consenso sobre dose, tempo de infusão e duração do
tratamento. Sua indicação é restrita às fístulas de alto débito, presentes por mais de
7 dias.
Bloqueadores de H2 e antagonistas da bomba de prótons podem contribuir
para a redução do débito da fístula, por exercerem efeito inibitório à secreção
gástrica .
- Manejo cirúrgico: deve ser a opção de tratamento após 6 semanas do surgimento
da fístula sem resolução. Está indicado na presença de obstrução intestinal,
comprometimento patológico do intestino, fístulas múltiplas, infecção perifistular
ou intra-abdominal, abscesso ou corpo estranho, orifício ou trajeto maior de 2cm,
deiscência completa de anastomose, evisceração, ou continuidade mucocutânea
(crescimento da mucosa intestinal em continuidade com a pele). Entretanto, também
existem complicações à intervenção cirúrgica, resultando em maior número de
laparotomias, principalmente enterotomias de repetição, extensa ressecção do
intestino (o que pode levar à síndrome do intestino curto), sepse intra-abdominal e,
ultimamente, morte.

Figura 1 - Fluxo para o manejo de fístulas gastrointestinais de baixo débito

Figura 2 - Fluxo para o manejo de fístulas gastrointestinais de alto débito

Quadro 4 - Composição das secreções gastrointestinais


Tipo de secreção Volume Na K Cl HCO3
(ml/24hs) (mEq/L) (mEq/L) (mEq/L) (mEq/L)

Saliva 500-2000 10 26 10 30
Estômago 100-4000 60 10 130 -
Duodeno 100-2000 140 5 80 -
Íleo 100-9000 140 5 104 30
Cólon - 60 30 40 -
Pâncreas 100-800 140 5 75 115
Bile 50-800 145 5 100 35

Quadro 5 - Associação de NPO à NP no tratamento das fístulas gastrointestinais


Repouso intestinal:
Diminuição da produção das secreções digestivas
Diminuição do débito da fístula
Diminuição da espoliação de água, eletrólitos e proteínas endógenas

Terapia nutricional:
Restauração das proteínas tissulares
Aumento das defesas gerais contra infecção
Cicatrização de tecidos
Aumento da força muscular
Ganho de peso
Melhora do estado geral
Fechamento da fístula

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Somatostatin in the management of gastrointestinal fistulas. A multicenter trial.
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2.
Figura 1 - Fluxo para o manejo de fístulas gastrointestinais de baixo débito

FÍSTULA GASTROINTESTINAL DE BAIXO DÉBITO

Nutrição enteral

Acompanhamento diário
* débito
* complicaç ões metabólicas/infecciosas
* peso

Mantém baixo
S N
débito

Nutriç ão parenteral
Presença de
fatores que
S
perpetuam a
N fístula

Desnutrição
N S
Transição para VO

Mantém NE Mantém NE até


Avaliar recuperação do
nec essidade es tado nutricional e
c irurgia avalia neces sidade NP
Figura 2 - Fluxo para o manejo de fístulas gastrointestinais de alto débito

FÍSTULA GASTROINTESTINAL DE ALTO DÉBITO

Nutrição parenteral

Acompanhamento diário
* débito
* complicações metabólicas/infecciosas
* peso

Fechamento da
N
fístula em 7 dias

Segue NP
Adiciona Octreotida

S
N Persiste fístula S

N Desnutrição Desnutrição
N
S
Transição para VO Considerar
cirurgia

Manter NP até
S recuperação
nutricional

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