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Monografia Graduação
Monografia Graduação
PARANAÍBA
2009
2
PARANAÍBA
2009
3
BANCA EXAMINADORA
Orientador (a):
_____________________________________
Prof. Me. Mário Lúcio Garcez Calil -
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
_____________________________________
Prof. Me. Isael José Santana -
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
_____________________________________
Profª. Me. Ângela Aparecida da Cruz Duran -
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
Paranaíba,____/___/_______/
4
AGRADECIMENTOS
RESUMO
A Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul por meio da Lei Estadual n° 2.605/03
reserva um porcentual de 20% das vagas gerais dos cursos oferecidos para negros. O presente
trabalho intenta analisar a polêmica questão da constitucionalidade ou não desta lei, cuja
apreciação encontra trâmite no Supremo Tribunal Federal, porém sem uma posição definida.
O objetivo do trabalho é contribuir para o aperfeiçoamento do sistema de cotas para negros na
UEMS, sopesando o disposto nas Resoluções n° 430/04 e 889/04 do CEPE/UEMS, e
apontando as deficiências legais no que tange a efetividade de uma igualdade material neste
sistema. Com a abordagem dos direitos fundamentais, inserem-se as ações afirmativas que
tem o condão de oferecer iguais oportunidades de acesso ao Ensino Público Superior a todos
os cidadãos. Neste sentido é permitido ao legislador e o Poder Público discriminar licitamente
os grupos sociais que são desfavorecidos – sejam por critérios históricos, sociais, políticos ou
econômicos. Diante de uma análise dos sistemas de cotas raciais nas Universidades públicas
brasileiras, estabelecem-se comparações com o modelo adotado pela UEMS.
ABSTRACT
The State University of Mato Grosso do Sul through the State Law No. 2.605/03 reserve a
percentage of 20% of the general availability of courses offered to blacks. This work brings to
analyze the controversial question of the constitutionality of this law, the assessment is way
through the Supreme Court, but without a defined position. The objective of this study is to
contribute to improving the system of shares for blacks in the UEMS, balancing the
provisions of Resolution No. 430/04 and 889/04 of CEPE/UEMS, and pointing out the legal
deficiencies with respect to effectiveness of an equal material in this system. With the
approach of fundamental rights, are part of affirmative action that has the power to provide
equal access to public higher education to all citizens. In this sense it is permissible for the
legislature and the Government lawfully discriminate against social groups that are
disadvantaged - whether by historical criteria, social, political or economic. Faced with an
analysis of systems of racial shares in Brazilian public universities, comparisons are made
with the model adopted by the UEMS.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................................10
1 O PRINCÍPIO DA ISONOMIA........................................................................................11
1. 1 Conceito e Abrangência do Princípio............................................................................11
1.2 Histórico............................................................................................................................14
1.3 Igualdade na Lei (Sentido Material)..............................................................................16
1.4 Igualdade Perante a Lei (Sentido Formal)....................................................................18
2 DIREITOS FUNDAMENTAIS.........................................................................................21
2.1 Conceito............................................................................................................................21
2.2 Titularidade dos Direitos Fundamentais.......................................................................23
2.3 A Igualdade como Direito Fundamental........................................................................24
3 AÇÕES AFIRMATIVAS...................................................................................................26
3.1 Conceito............................................................................................................................26
3.2 Histórico das Ações Afirmativas (Discriminação Racial)............................................28
3.3 Sistemas das Ações Afirmativas.....................................................................................30
3.4 O Regime de Cotas Para Negros nas Universidades: Quadro no Brasil....................32
4 POLÍTICA DE COTAS RACIAIS NA UEMS E CONSTITUCIONALIDADE
DIANTE DA ISONOMIA.....................................................................................................35
4.1 Análise das Políticas Raciais ..........................................................................................35
4.2 Critérios de Aferição Racial: Genótipo, Fenótipo ou Histórico..................................36
4.2.1 A Diversidade de Raças no Brasil..................................................................................39
4.3 A Lei Estadual N° 2.605, de 06 de Janeiro de 2003.......................................................40
4.4 Da Necessidade de Critérios Objetivos para o Sistema de Cotas Raciais na UEMS. 42
4.4.1 As Resoluções do CEPE/UEMS Nº 430/2004 e N° 889/2004.......................................44
4.5 Da (In)Constitucionalidade dos Critérios Adotados.....................................................46
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................52
REFERÊNCIAS.....................................................................................................................53
10
INTRODUÇÃO
As ações afirmativas, no que toca ao ingresso dos cidadãos negros nas universidades
públicas, apresentam um debate de grande efervescência. Os negros, nesta toada, tem a sua
participação na vida social brasileira reduzida, conforme os dados estatísticos do IBGE
apontam. O contingente populacional negro não condiz com sua esperada participação nos
empregos melhor remunerados. A imagem do negro por diversas vezes é associada a um
grupo “servente” das etnias de cor branca, a exemplo dos séculos de imposta escravidão.
Visando a redução das desigualdades entre brancos e negros, inserem-se as ações
afirmativas, contribuindo para que o princípio constitucional da isonomia (art.5°, caput, da
Constituição Federal) conquiste a desejada materialidade e efetividade.
Há opiniões trazidas no trabalho que se posicionam pela inviabilidade de tais ações,
por não entenderem que os grupos de etnia negra possam ser discriminados positivamente, de
forma a viabilizar sua inserção nestas políticas públicas.
Existem, entretanto, opiniões contrárias a este entendimento, que pugnam pela
legitimidade dos negros para concorrerem a esta ação afirmativa. Tais entendimentos
entendem que o grupo de etnia negra pode e deve ser discriminados positivamente, para que
seja reduzida a sua marginalização.
Neste sentido, o trabalho é focado no sistema de reserva de cotas para cidadãos negros
na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Por meio da Lei Estadual n° 2.605/03, a
UEMS resguarda 20% de suas vagas gerais para aqueles que apresentem o fenótipo negro. Ou
seja, somente tem possibilidade de concorrer a tais vagas os cidadãos que apresentem a pele
de cor negra, e os traços físicos inerentes à etnia negra.
No primeiro capítulo, tem-se o estudo do princípio da igualdade, apresentado sua
conceituação, a evolução histórica do princípio, e a abordagem e diferenciação entre a
igualdade formal e material.
No segundo capítulo, disserta-se sobre os direitos fundamentais do homem, trazendo
os conceitos, a titularidade destes direitos, relacionando a igualdade como um direito
fundamental.
No terceiro capítulo, apresentam-se as ações afirmativas, seus conceitos estabelecidos,
o histórico destas ações afirmativas com enfoque na discriminação por raças, os sistemas
destas ações afirmativas, e por fim um quadro geral de como se apresenta a reserva de cotas
nas Universidades públicas para os negros.
11
No quarto capítulo faz-se a análise constitucional destas políticas de cotas raciais nas
Universidades públicas, sendo realizada uma análise a nível nacional destas políticas raciais,
os critérios para se aferir a qual cor pertence os grupos sociais, e um panorama sobre a
diversidade de “raças” no Brasil, conceito este ultrapassado na antropologia. Há o enfoque
apenas ao regime de cotas para negros na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul,
observando os dispostos legais na Lei Estadual n° 2.605/03 e nas Resoluções n° 430/2004 e
889/2004 editadas pelo CEPE/UEMS. Também são apontadas as necessidades de critérios
objetivos para a análise dos cidadãos que podem concorrer às vagas reservadas para negros e
a constitucionalidade, ou não, destes critérios adotados pela UEMS.
12
1 O PRINCÍPIO DA ISONOMIA
[...] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]
também não deve ser ponderada, já que é fundamento dos outros princípios; e configura-se
como um valor jurídico, devendo ser, portanto, protegido quando de sua aplicação e
interpretação. (PINHEIRO, 2008, n.p)
Considera-se de fundamental importância a promoção da igualdade como objetivo do
Estado Brasileiro quando pugna o artigo 3°, IV, da Carta Constitucional que constitui objetivo
fundamental da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". (BRASIL,
1988, n.p)
A abordagem do princípio isonômico, frise-se, é de fundamental importância no
presente estudo, no que concerne às políticas afirmativas que o Estado Brasileiro promove
para que a igualdade seja efetivada, construindo verdadeiros atalhos a efetivação de uma
igualdade material.
Segundo Canotilho (1993, p. 173) “tais atalhos são denominados de princípios
constitucionais impositivos, impondo aos órgãos públicos e, principalmente ao legislador, a
realização de fins e a execução de tarefas”. O princípio da isonomia centra-se no que tange ao
princípio da correção das desigualdades na distribuição da riqueza, sendo que toda política
afirmativa, seja étnico, sexual, ou social, busca reduzir as visíveis desigualdades na sociedade
brasileira.
Estas políticas de igualação são promovidas em todas as esferas do Poder Estatal: seja
pelo Poder Executivo através das denominadas Políticas Públicas, pelo Poder Legislativo
através da edição de leis que objetivam a diminuição da desigualdade, e pelo Poder Judiciário,
que, em vários julgados, vêm proporcionando uma igualdade material aos cidadãos que são
desfavorecidos, tanto em razões econômicas, quanto ao aspecto social.
A procuradora da República Luiza Cristina Fonseca Frischeisen (2007, p.31), define o
princípio da igualdade como “o conjunto de bens e direitos aos quais todas as pessoas têm que
ter acesso em condições mínimas de igualdade”.
Analisa Luis Roberto Barroso (1999, p. 165), a respeito do princípio da isonomia que:
tutelados pelo Estado para que se promova a igualdade de condições para que haja a paridade
de direitos.
O mestre Sahid Maluf (1972, p. 283) divide a igualdade em quatro categorias:
O princípio da igualdade deve ser visto como priorado básico do senso comum de
Justiça, uma vez que está arraigado nos costumes das sociedades democráticas. Quando não
se faz presente a legalidade em prol da igualação dos indivíduos, ocorre uma disfunção social;
sendo que a lei dispõe sobre as formas discriminatórias de tratamento dos indivíduos. Moraes
(2006, p.32) melhor elucida a desigualdade legal no que tange ao princípio da igualdade:
São vedadas, por meio deste princípio, todas as formas de discriminação que
confrontam com o animus do legislador em proteger os cidadãos que dispõem de poucos
meios para ascender socialmente e economicamente.
Dessa forma acontece aos deficientes físicos, que tem garantido um determinado
número de vagas para o ingresso em concursos públicos; os de baixa condição financeira, que
tem a isenção nas inscrições dos exames vestibulares das universidades públicas; e agora, com
os cidadãos de cor negra. Assim, cada grupo, em determinada circunstância de desigualação,
tem de preencher os requisitos especificamente demandados para usufruírem das regalias
legais.
Nesse último item, destacam-se os negros que apesar de não serem uma “minoria”
étnica – pois sua composição perfaz grande percentual dos brasileiros – é a parcela menos
abastada economicamente, motivado tal fato por diversos fatores, tais de ordem histórica,
cultural e econômica.
15
Observa-se então, que os negros não são inferiores numericamente no Brasil, mas se
encontram em uma posição “não-dominante”.
Fábio Konder Comparato (apud MORAES, 2006, p.31) analisa que “as chamadas
liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada,
não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação
estatal”.
Todavia, o princípio da igualdade carece de efetividade, apesar de há muito tempo
buscado o fim igualitário na maioria das sociedades conhecidas. Conforme serão tratados nos
itens sobre a igualdade material e formal, a norma constitucional, por vezes, auxilia o desigual
para que, por meio desse auxílio, o mesmo seja impulsionado a ser efetivamente igual aos
outros. Ou seja, quando os casos desiguais são tratados de forma desigual, faz-se presente a
justiça e realiza-se o objetivo do princípio da isonomia.
1.2 Histórico
Segundo confirma o professor Elvis Oliveira (2009, n.p), o princípio da igualdade tem
suas raízes históricas na Grécia Antiga, sendo preocupação dos grandes filósofos como
Péricles, Eurípedes, Heródoto e Aristóteles. A escola helênica objetivou a denominação atual
de princípio da isonomia. Apesar dos postulados filosóficos dos gregos, a própria Grécia
Antiga não seguia a igualdade como princípio norteador (ao menos espelhada nos paradigmas
atuais), já que aceitava a escravidão e primava pela divisão da sociedade em castas, como a
exemplo ocorre com a Índia dos tempos modernos.
Sob a admissão da escravatura, Aristóteles a considerava como conseqüência das
desigualdades que existem entre os homens, sendo que alguns homens possuem a qualidade
de “guiar” outros homens, concluindo que seria vantajosa para ambos a reunião da força
material do escravo com a inteligência de seu Senhor. (ARISTÓTELES, 2002, p.09)
16
Declaração, após as variantes propostas, formula o seguinte conceito sobre a igualdade em seu
artigo 1°: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotados de razão e consciência, e devem agir em razão uns aos outros com espírito de
fraternidade” (ONU, 1948, n.p).
Com o advento do Estado Democrático de Direito, e as garantias fundamentais que
foram asseguradas aos cidadãos por meio das históricas gerações de direitos, observa-se que a
igualdade não assegura a efetividade destes direitos a todos os cidadãos. A predisposição do
homem é a desigualdade em função de suas características e virtudes pessoais intrínsecas,
devendo sempre tratar os cidadãos de maneira igualitária – ao menos no texto legal.
A isonomia, para fins de estudos, pode ser classificada, de acordo com postulados
kelsenianos, em igualdade na lei e igualdade perante a lei. Em relação a esta “personalidade
dupla” deste princípio temos que a igualdade na lei diz respeito à ordem dirigida ao
legislador, ou seja, no momento em que cria a norma, este está obrigado a observar que a
isonomia deve cingir, factualmente, a todos.
A igualdade na lei, material, ou como aponta ilustre Celso Bastos (1999, p.147),
substancial, tem como objetivo a criação de condições mínimas de igualdade no campo da
promoção da redução das desigualdades sociais, econômicas e políticas.
A respeito da igualdade na lei disserta o ilustre jurista (1999, p.145):
[...] as leis não podem – sob pena de anulação por inconstitucionalidade – fundar
uma diferença de tratamento sobre certas distinções muito determinadas, tais como
as que respeitam à raça, à religião, à classe social ou à fortuna. (apud MELLO, 2006,
p. 16).
[...] tratar diferentemente os negros, criando, por meio dos direitos fundamentais,
condições de inclusão social, significa tratá-los de modo juridicamente adequado, o
que é necessário para assegurar a legitimidade, pois, conforme afirmamos, a
legitimação do direito só pode se dar se houver uma igual possibilidade de
participação real nos discursos de formação da opinião e da vontade, o que exige,
muitas vezes, um tratamento diferenciado daqueles que são faticamente excluídos,
implementando-se uma igualdade produtora e produzida pelo Estado Democrático
de Direito [...]
Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2005, p.141) observa com lisura que há a consolidação
desta perspectiva de tratamento aos cidadãos desiguais, ou que dispõem de menores chances
de ascender socialmente e economicamente, quando há um paradigma social destes direitos
que asseguram formas de igualação.
Sobre o princípio da igualdade em sua acepção material, Uadi Lammêgo Bulos
discorre brilhante exposição:
Desta forma, a isonomia abandona seu viés meramente formal para assumir uma
concepção inovadora, atingindo – como conseqüência – a máxima: “tratar desigualmente os
desiguais na medida de sua desigualdade”.
A determinação conceitual da igualdade material (igualdade na lei), e sua devida
compreensão são essenciais no que toca as ações afirmativas, pois almejam o aperfeiçoamento
19
do conteúdo jurídico do princípio da igualdade. Ao prescrever que todos são iguais perante a
lei, o constituinte dirigiu o princípio da igualdade não apenas ao legislador e aos cidadãos,
mas também ao aplicador do Direito. Razão esta que reside na diferenciação entre a igualdade
na lei e igualdade perante a lei.
Sob o prisma da igualdade perante a lei como diretiva dirigida ao aplicador da lei, faz-
se necessário apontar primeiramente o caráter auto-aplicável da mesma, visto que é obvio que
o aplicador da lei (julgador/magistrado) ao cumpri-lá, deve intentá-la com o máximo de
efetividade.
O princípio da igualdade material é trazido por meio de normas programáticas, sendo
que sua essência remonta ao período iluminista francês, no século XIX, permanecendo na
maioria dos ordenamentos jurídicos das democracias atuais. Nesse sentido, calha trazermos o
enunciado por José Afonso da Silva, senão vejamos:
Desta forma, a igualdade perante a lei é a forma com a qual os aplicadores da lei
(magistrados ou juristas de qualquer ordem) estão adstritos ao texto legal. O aplicador da lei
deve, então, se ater, logicamente, à interpretação devida no caso concreto.
Valendo-nos dos postulados da Teoria Pura do Direito, Kelsen defende que a
igualdade perante a lei não possuiria acepção típica alguma se as formas de diferenciação dos
diferentes indivíduos não vierem especificadas legalmente, promovendo, de fato, a igualdade
(MELLO, 2006, p.10).
Nesse ínterim, é justo transcrevermos o explanado (apud MELLO, 2006, p. 16):
Se a Constituição contém uma fórmula que proclama a igualdade dos indivíduos,
mas não precisa que espécies de distinções não devem ser feitas entre estes
indivíduos nas leis, tal igualdade constitucionalmente garantida, não mais poderá
significar outra coisa senão que igualdade perante a lei.
2 DIREITOS FUNDAMENTAIS
2.1 Conceito
[...] O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por
finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o
arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições mínimas de vida e
desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido como direitos
humanos fundamentais (2006, p. 21)
[...] por um lado uma proteção de maneira institucionalizada dos direitos da pessoa
humana contra os excessos do poder cometidos pelos órgãos do Estado, e por outro,
regras para se estabelecerem condições humanas de vida e desenvolvimento da
personalidade humana (apud MORAES, 2006, p. 22) [...]
24
[...] A nós sempre nos pareceu que o verdadeiro sentido da expressão brasileiros e
estrangeiros residentes no País é deixar certo que esta proteção dada aos direitos
individuais é inerente à ordem jurídica brasileira. Em outras palavras, é um rol de
direitos que consagra a limitação da atuação estatal em face de todos aqueles que
entrem em contato com esta mesma ordem jurídica. Já se foi o tempo em que o
direito para os nacionais era um e para os estrangeiros outro, mesmo em matéria
civil. Portanto, a proteção que é dada à vida, à liberdade, à segurança e à
propriedade é extensiva a todos aqueles que estejam sujeitos à ordem jurídica
brasileira. É impensável que uma pessoa qualquer possa ser ferida em um destes
bens jurídicos tutelados sem que as leis brasileiras lhe dêem a devida proteção.
Aliás, curiosamente, a cláusula sob comento vem embutida no próprio artigo que
assegura a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]
Estas garantias apenas trarão exceções nos casos em que a Constituição dispuser
expressamente de forma contrária, como no caso dos direitos políticos e nos direitos sociais
relativos ao trabalho.
Contudo, observa José Afonso da Silva (apud MENDES; COELHO; BRANCO, 1982,
p.165-167) que há normas infraconstitucionais que visam proteger posições subjetivas dos
estrangeiros, sem consideração ao fato dos mesmos não residirem no país.
Hoje, a doutrina é pacífica no sentido de que as pessoas jurídicas também têm a
titularidade dos direitos fundamentais. Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo
Branco asseveram que (2000, p.165):
25
[...] não haveria por que recusar às pessoas jurídicas as conseqüências do princípio
da igualdade, nem o direito de resposta, o direito de propriedade, o sigilo de
correspondência, a inviolabilidade de domicílio, as garantias do direito adquirido, do
fato jurídico perfeito e da coisa julgada. Há mesmo casos de direitos dirigidos
diretamente à própria pessoa jurídica, tal o direito de não interferência estatal no
funcionamento de associações (art.5º, XVIII) e o de não serem elas
compulsoriamente dissolvidas (art.5°, XIX).
3 AÇÕES AFIRMATIVAS
3.1 Conceito
O termo ação afirmativa surgiu nos Estados Unidos da América na década de 60, no
governo do então presidente John Fitzgerald Kennedy, que propunha medidas que visavam
acabar com a discriminação que os negros sofriam, para que estes pudessem concorrer de
forma igual com os brancos no mercado de trabalho (CRUZ, 2005, p.143).
O legislador constituinte deu prioridade de proteção aos grupos que diante de um
histórico de marginalização social, seja por quaisquer fatores, foram negadas iguais
oportunidades de participação política se comparados a outros grupos de pessoas que não
sofreram as mesmas espécies de restrições.
O Ministro Joaquim Barbosa (2001, p. 137) oferece a seguinte definição sobre as
ações afirmativas:
Luiza Cristina Fonseca Frischeisen (2007, p.59) conceitua ação afirmativa da seguinte
forma:
[...] A Ação Afirmativa tem a finalidade justamente de possibilitar, por meios mais
ágeis, a igualação formalmente pretendida pela Constituição. Tratar desigualmente
os desiguais, enquanto durar a desigualdade, é a fórmula para chegar a uma
igualação prática sem para isso ser preciso esperar séculos de desenvolvimento
social e cultural [...]
28
Na mesma linha de consideração, Paulo Lucena de Menezes (2001, p.27) traz o seu
conceito:
[...] Ação afirmativa, nos dias correntes, é um termo de amplo alcance que designa o
conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas que visam favorecer grupos ou
segmentos sociais que se encontram em piores condições de competição em
qualquer sociedade em razão, na maior parte das vezes, da prática de discriminações
negativas, sejam elas presentes ou passadas. Colocando-se de outra forma, pode-se
asseverar que são medidas especiais que buscam eliminar os desequilíbrios
existentes entre determinadas categorias sociais até que eles sejam neutralizados, o
que se realiza por meio de providências efetivas em favor das categorias que se
encontram em posições desvantajosas [...]
Álvaro Ricardo Souza Cruz (2005, p.143) entende as ações afirmativas como sendo
“medidas públicas e privadas, coercitivas ou voluntárias, implementadas na
promoção/integração de indivíduos e grupos sociais tradicionalmente discriminados em
função de sua origem, raça, sexo, opção sexual, idade, religião, patogenia físico-psicológica,
etc”.
Silva (apud SANTOS; LOBATO, 2003, p.72) ressalta, em sua obra:
[...] As Ações Afirmativas e as cotas são apenas dois dos principais meios que
podem ser utilizados como instrumentos capazes de propiciar mobilidade social aos
afro-descendentes, a fim de integrá-los economicamente e socialmente aos demais
membros da sociedade inclusiva, sem olvidar outras formas fecundas de obter
justiça social. Porém, é importante enfatizar que essas propostas deverão vir
acompanhadas de outras medidas de cunho social, universalistas, tais como:
melhorias na qualidade de ensino público; políticas de redistribuição de renda;
aumentos e reajustes reais de salários e vencimentos; reforma tributária, reforma
agrária e etc [...]
Estes grupos socialmente marginalizados que não dispõem de meios suficientes para
ascender socialmente, vêm sendo incluídos socialmente com as ações afirmativas,
demonstrando que a isonomia vem deixando seu caráter formal de lado para efetivamente
oferecer um tratamento diversificado, consagrando, desta forma, a igualdade material.
Porém, há um alerta para que não confundamos os conceitos de ações afirmativas
como de o de cotas raciais:
[...] Atualmente no Brasil existe uma confusão entre o conceito de ações afirmativas
e de cotas raciais ou sociais. Ações afirmativas podem ser compreendidas como
ações públicas ou privadas, ou ainda, como programas que buscam prover
oportunidades ou outros benefícios para pessoas pertencentes a grupos específicos,
alvo de discriminação. Tais ações têm como objetivo garantir o acesso a recursos,
visando remediar uma situação de desigualdade considerada socialmente
indesejável. Para isso, instituem um tratamento preferencial que pode ter diferentes
perfis. A instituição de metas ou cotas é um dos recursos de correção ou
compensação aos mecanismos de discriminação. Nesse sentido, ações afirmativas no
ensino superior correspondem ao estabelecimento de dispositivos que promovam o
acesso e a manutenção, nas universidades, de estudantes pertencentes a grupos
sociais que historicamente têm sido objeto de discriminação. Tais ações têm se
29
No ano de 1968, a ONU sob a ratificação de 157 países – inclusive o Brasil que a
ratificou em 1969 por meio do Decreto-Lei n° 65.810 –, aprovou a Convenção para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Desde então a ONU vem se
esforçado no sentido de abolir qualquer forma de racismo, ou práticas xenófobas – tão
comuns nos países europeus (BRASIL, 1969, n.p).
Na década de 70, ainda na vigência da ditadura militar, o movimento negro que voltou
a se articular, cultural, política e ideologicamente para lutar não apenas contra o “preconceito
racial”, mas também contra qualquer forma de “discriminação racial”, impulsionando o
renascimento de uma imprensa negra. A divulgação destes ideais abriu caminho para nos anos
seguintes pudessem ser criados de Conselhos de Estado, ONGs, e acessorias especializadas
(DOMINGUES, 2009, n.p).
O retorno ao regime democrático em 1985, e a posterior promulgação da Carta
Constitucional em 1988, permitiram uma reestruturação econômica brasileira – seriamente
abalada pela política do crescimento a todo custo. Todavia, tal avanço não se fez acompanhar
nas áreas da educação e acesso ao mercado de trabalho, tendo mais uma vez o Poder Público
renegado a questão da desigualdade racial a segundo plano, e mantendo a margem do avanço
econômico e institucional os grupos menos favorecidos economicamente, que em sua maioria
são compostos pelos negros e pardos (LUZ, 2009, n.p).
O movimento negro percebeu deste ponto em diante que sua luta necessitava
ultrapassar as barreiras de combate aos crimes de racismo. As camadas mais organizadas do
movimento negro se mobilizaram em relação ao governo, exigindo a implementação de
políticas afirmativas em nosso país de forma a concretizar a fama internacional brasileira de
democracia racial (GONZALEZ, 2009, n.p).
Como demonstra GUIMARÃES (2003, p.252), a partir de 1996, no governo do
presidente Fernando Henrique Cardoso, foi organizado um seminário internacional sediado
em Brasília, que discutiu o racismo no Brasil e o papel das ações afirmativas, sendo
convidados pesquisadores brasileiros e norte-americanos, bem como várias lideranças negras
nacionais.
Tudo culminou com a participação brasileira, em 2001, na III Conferência Mundial
contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas, realizada em
Durban na África do Sul. O Brasil participou desta conferência e assinou uma plataforma de
compromissos, e de adoção de políticas de redução das desigualdades perante uma audiência
global (GUIMARÃES, 2003, p.254-256).
31
Assim sendo, como resta demonstrado pelo histórico das ações afirmativas, houveram
várias lutas para que os grupos socialmente marginalizados pudessem de fato ser inseridos no
círculo social a que pertencem. No Brasil, esta luta ainda está em sua fase inicial, sendo que o
Poder Público começa a elaborar políticas de inserção destes grupos – as chamadas ações
afirmativas.
Os sistemas de ações afirmativas dizem respeito aos modos e métodos que o Estado
tem o dever constitucional de desenvolver, sob o prisma do princípio da isonomia, conforme o
exposto no art.3°, e incisos, da Constituição Federal, in verbis:
1
As 48 universidades que aderiram a políticas afirmativas de cotas são estas: Universidade Estadual de Maringá/PR, Escola
Superior de Ciência da Saúde do Distrito Federal, Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, Universidade Estadual
de Goiás, Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR, Universidade Estadual de Santa Cruz/BA, Faculdade de Tecnologia de
São Paulo, Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro, Universidade de Brasília, Universidade
Estadual de Londrina/PR, Universidade Estadual de Minas Gerais, Universidade Federal de São Carlos/SP, Universidade
Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal do ABC Paulista, Universidade Federal do
Espírito Santo, Universidade Federal do Maranhão, Universidade Federal do Pará, Universidade Federal do Paraná,
Universidade Federal do Piauí, Universidade Federal do Recôncavo Baiano, Universidade Estadual de Montes Claros/MG,
Universidade de Campinas, Universidade de Pernambuco, Universidade de São Paulo, Universidade Estadual da Bahia,
Universidade Estadual da Paraíba, Universidade Estadual da Zona Oeste/RJ, Universidade Estadual de Feira de Santana/BA,
Universidade Estadual do Amazonas, Universidade Estadual do Maranhão, Universidade Estadual do Mato Grosso,
Universidade Federal da Bahia, Universidade Federal da Paraíba, Universidade Federal de Alagoas, Universidade Federal de
Juiz de Fora/MG, Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade Federal de Santa Maria/RS, Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Federal do Tocantins, Universidade Federal
Rural do Amazonas/PA e Universidade Federal Tecnológica do Paraná, Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul,
Universidade Estadual do Norte Fluminense, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, Universidade Estadual do Rio Grande do Norte.
35
Apoio aos Cotistas, que tem por objetivo coordenar o Centro de Convivência Negra. Este
último tem a função de sediar encontros e práticas políticas de formação para estes estudantes
negros que ingressaram nesta universidade.
Segundo Maria Clareth Gonçalves Reis, o Programa Políticas da Cor na educação
brasileira da UERJ, na maioria das universidades a auto-declaração é utilizada como forma de
identificação dos candidatos a este sistema (LOPES; BRAGA, 2007, p.274).
No Congresso Nacional há o projeto de lei (n° 73/99) em trâmite que pretende a
obrigatoriedade das cotas para todas as instituições de ensino superior, sendo que conforme
exposto anteriormente, 48 universidades públicas brasileiras adotaram ações afirmativas,
inseridas as de cotas para negros, no ensino superior. Neste ínterim, é visível a tendência do
aumento do número destas universidades aderirem ao sistema de cotas (PACHECO; SILVA,
2007, p.48).
36
Entre os critérios para se definir, de fato, quem é negro ou não, está o critério genético
(genótipo ou fenótipo) e o critério histórico. Tal questão nos remete a uma análise
antropológica para saber quais são os titulares legitimados a concorrer com os benefícios das
políticas afirmativas para os negros, dentre estas a política de reserva de cotas nas
universidades públicas. Na visão de Kabengele Munanga, professor-titular da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP não é fácil definir quem é negro no Brasil:
[...] quando fizemos a pergunta: Usando as categorias do censo do IBGE, qual a sua
cor?, oferecendo como respostas possíveis as cinco alternativas censitárias (branco,
preto, pardo, amarelo e indígena), dos 14.794 alunos de graduação que responderam
ao censo, apenas 0,1% recusou-se a responder ou escolheu mais de uma opção.
Quando selecionamos uma amostra aleatória, independente do censo, composta por
1.509 alunos, o percentual de não-resposta se elevou para 1,7%. Ou seja: está claro
que a população brasileira, em particular a universitária, cultiva identidade de cor.
Serão essas identidades tão fluidas a ponto de impedir políticas de cor? Creio que
não. Mesmo os autores que ressaltam a ambigüidade do sistema de classificação
racial brasileiro, como Peter Fry, reconhecem que este se assenta sobre uma
polaridade básica entre branco e preto. Historicamente, é para esses pólos que
convergem as reivindicações políticas [...]
Da simples observação dos critérios para a admissão dos concorrentes as vagas para
negros, O critério direto para a admissão dos vestibulandos negros – em grande parte das
universidades públicas – no sistema de cotas, inclusive a UEMS, é o fenótipo racial do negro
(FERREIRA; ANDRADE, 2006, p.02). Ou seja, não importa se existe uma forte ascendência
negra na estrutura genética do concorrente à vaga reservada aos cotistas. O que importa
39
[...] A nossa vantagem aqui (na UEMS) é que a lei foi direcionada. No mínimo, 20%
para negros, e não para afrodescendentes [...] [...] Garantimos [vagas] de fato às
pessoas que tinham o fenótipo, ao negro preto. [...] A sociedade discrimina o negro
pela sua cor. Não é pelo gene, não é pelo sangue, mas pelos seus traços físicos [...]
(CORRÊA, 2009, n.p).
[...] O sistema censitário brasileiro opera por meio da autodeclaração para distribuir
a população em grupos segundo a cor da pele. O recurso à autodeclaração decorre
40
Senzala tornou-se a excepcional resposta, não somente para o Brasil, mas para o
mundo que vivenciava os conflitos étnico-raciais. Freyre apresentava um país em
que esse tipo de conflito estava praticamente ausente. No Brasil, imperava a
cordialidade do povo vivenciada numa democracia racial [...]
Porém, a visão de Freyre não estava correta: a democracia racial no Brasil não era real,
e mostrou-se utópica. Com estudos mais aprofundados, como o do pesquisador Florestan
Fernandes, apontou-se para uma desigualdade de oportunidades entre as “raças” (cores branca
e negra), e tendo como principal vilão o aspecto econômico. Nesse ínterim, Fernandes e
Bastide apontam:
[...] De um lado, ela (a cor) permitia distinguir os indivíduos, por meio de caracteres
exteriores, de acordo com sua posição na estrutura social. De outro, funcionava
como um núcleo de condensação e de ativação de uma série de forças sociais, que
mantinham a unidade e a estabilidade da ordem vigente. Pensamos, assim, que não
foi por acaso que a cor foi selecionada cultural e socialmente como marca racial [..].
Passou a indicar mais do que uma diferença física ou uma desigualdade social: a
supremacia das raças brancas, a inferioridade das raças negras e o direito natural dos
membros daquelas de violarem o seu próprio código ético, para explorar outros seres
humanos [...] (apud PACHECO; SILVA, 2007, p.131)
Justamente porque a ciência jurídica tem como função realizar a mediação entre a
política e a moral, entretanto, não se confundindo com ambas, observa-se que esta
problemática permite uma resposta da ciência jurídica.
Em que condições, então, o uso do conceito de raça pode ser juridicamente admitido?
É exatamente porque o direito realiza a mediação entre a moral e a política, mas não se
confunde com elas, que a questão admite uma resposta jurídica.
Jocélio Teles dos Santos, Professor do Departamento de Antropologia da Universidade
Federal da Bahia, disserta em artigo sobre os critérios raciais:
Os formuladores das leis que reservam as cotas para negros nos exames vestibulares
no Brasil têm consciência da problemática de se definir quem é negro ou não no Brasil, tanto
é que não se propuseram a definir o branco ou o negro, a partir de critérios objetivos,
relegando tal definição para o cidadão candidato às vagas.
Art. 1º A Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul deverá reservar uma cota
mínima de 20% de suas vagas nos cursos de graduação destinada ao ingresso de
alunos negros.
Art. 2º O Poder Executivo, por meio da Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul, regulamentará a matéria no prazo de noventa dias a contar da publicação desta
Lei.
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 4º Revogam-se as disposições em contrário. (MATO GROSSO DO SUL, 2003,
n.p)
43
O objetivo almejado, quando da elaboração da lei, foi realmente a busca pela redução
das desigualdades entre negros e brancos, entretanto, os critérios escolhidos no exame da
inscrição do concorrente cotista devem ser aperfeiçoados.
Observa-se que as cotas raciais foram criadas no Mato Grosso do Sul sendo
influenciadas pelos sistemas da UFBA e pela UERJ. Porém, em tais estados, a diferença é
gritante no que toca às disparidades sociais, sendo que os estudantes que ingressam nas
universidades públicas na Bahia e no Rio de Janeiro são em sua grande maioria advindos de
escolas particulares. Flávia Piovesan (2009, n.p) discorre sobre os argumentos que embasam a
necessidade das ações afirmativas para os negros no acesso ao Ensino Superior:
[...] O primeiro deles refere-se à própria exigência de uma educação voltada para
valores e para a promoção da diversidade étnico-racial. Se o objetivo maior do
processo educacional há de ser o pleno desenvolvimento da personalidade humana,
guiado pelo valor da cidadania, do respeito, da pluralidade e da tolerância, afirma-se
como absolutamente legítimo o interesse da Universidade em promover a
diversidade étnico-racial, o que traduziria o benefício de maior qualidade e riqueza
do ensino e da vivência acadêmica, contribuindo, ainda, para a eliminação de
preconceitos e estereótipos raciais.
O segundo argumento é de ordem político-social. Se se pretende uma sociedade
mais democrática, com a transformação de organizações, políticas e instituições, o
título universitário ainda remanesce como um passaporte para ascensão social e para
a democratização das esferas de poder, com o “empoderamento” dos grupos
historicamente excluídos. Para ampliar o número de afro-descendentes juízes(as),
advogados(as), procuradores(as), médicos(as), engenheiros(as), arquitetos(as),
dentre outros, o título universitário mostra-se essencial. Acentua-se, ainda, que os
afro-descendentes constituem menos de 2% dos estudantes nas Universidades
públicas brasileiras, embora sejam 45% da população brasileira, que é a segunda
maior população negra do mundo, com exceção da Nigéria. A pirâmide dos
estudantes universitários brasileiros aponta na sua base os negros(as) provenientes
das escolas públicas, seguidos dos brancos(as) das escolas públicas, por sua vez,
seguidos dos negros(as) de escolas privadas e tendo em seu ápice os brancos(as) de
escolas privadas. As ações afirmativas, enquanto medidas especiais e temporárias,
simbolizariam medidas compensatórias, destinadas a aliviar o peso de um passado
discriminatório, que faz do Brasil um dos últimos países a abolir a escravidão.
Significariam, ainda, uma alternativa para enfrentar a persistência da desigualdade
estrutural que corrói a realidade brasileira, por sucessivas décadas. Além disso,
permitiriam a concretização da justiça em sua dupla dimensão: redistribuição
(mediante a justiça social) e reconhecimento de identidades (mediante o direito à
visibilidade de grupos excluídos).
Por fim, há o argumento jurídico, pois a ordem constitucional, somada aos tratados
internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil (em especial
a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial),
acolhem não apenas o valor da igualdade formal, mas também da igualdade
material. Reconhecem que não basta proibir a discriminação, sendo necessário
também promover a igualdade, por meio de ações afirmativas. Além disso, a
Constituição Federal de 1988 estabelece o princípio do pluralismo no campo do
ensino e consagra, como objetivos fundamentais da República, a construção de uma
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sociedade justa e solidária, com a redução das desigualdades sociais – o que vem a
conferir lastro jurídico aos demais argumentos já expostos [...]
Pela análise das Resoluções n° 430 e 889 do CEPE/UEMS, as mesmas não prescrevem
que o candidato apresente, tanto no ato da inscrição quando na matrícula, a comprovação de
renda. Concluímos nesse aspecto que a simples presunção de pobreza pelo fato do candidato
ser advindo da Escola Pública é por demais simplista e ineficaz, não atingindo o real intuito
da lei que é oportunizar ao negro, hipossuficiente financeiramente, o ingresso na Universidade
Estadual do Mato Grosso do Sul. (MATO GROSSO DO SUL, 2004a, n.p).
De acordo com as justificativas históricas de desigualação entre brancos e negros, o
correto seria submeter tal pessoa a um exame de DNA para perquirir o grau de “negritude”
que esta pessoa tem. Mas, sabiamente, não o fizeram desta forma as Resoluções internas da
UEMS, uma vez que a grande maioria dos brasileiros tem ascendência negra em algum ponto
de sua árvore genealógica.
Citando novamente o antropólogo catedrático da Universidade de São Paulo
Kabengele Munanga, visamos que o problema das cotas tais como a da UEMS incorre na falta
de critérios lógicos para uma verdadeira redução das desigualdades entre brancos e negros. O
professor discorre em entrevista a revista “Estudos Avançados” sobre a reserva de cotas para
negros:
[...] Para mim, as cotas são uma medida transitória, para acelerar o processo. No
entanto, julgo que não somente os negros, mas também os brancos pobres têm o
direito às cotas. Se as cotas forem adotadas, devem ser cruzados critérios
econômicos com critérios étnicos. Porque meus filhos não precisam de cotas, assim
como outros negros da classe média [...] (MUNANGA, 2004, p.53)
[...] Como Maio e Santos, sou contrário às fotos e minha razão por discordar delas
não é “científica”, mas política: as fotos despolitizam o posicionamento do sujeito
ao transferir a responsabilidade de assumir sua condição racial para a comissão. O
que espero da autodeclaração é que ela se generalize especularmente, de modo a
alcançar não somente os candidatos ao vestibular pelas cotas, mas também a nós,
acadêmicos brancos que nunca nos assumimos como tais. No momento em que
aceitarmos, sem subterfúgios, que o Museu Nacional, a Fiocruz, a UFRJ, a USP, a
Unicamp, a UFRGS, a UFMG, a UnB estão entre as instituições acadêmicas mais
segregadas racialmente do mundo (por excluírem quase inteiramente os
representantes do contingente dos negros, que somam 45% da população do nosso
país), talvez possamos refazer nosso olhar acostumado a naturalizar esse escândalo e
passemos a nos sentir menos neutros ao criticar critérios de identificação de negros
para, pela primeira vez em nosso país, beneficiá-los [...]
Art. 8º Ao candidato que optar por concorrer no regime de cotas de 20% (vinte por
cento) para negros, serão exigidos, além dos documentos estabelecidos no art. 7º,
deste Regulamento, os seguintes documentos:
I - fotocópia do histórico escolar do ensino médio ou atestado de matrícula
expedidos por escola da rede pública de ensino;
II - declaração da condição de aluno bolsista, fornecida por instituição privada de
ensino, quando for o caso. (MATO GROSSO DO SUL, 2009, n.p)
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Art. 9º O candidato inscrito no percentual de vagas para negros terá sua inscrição
avaliada por uma Comissão de Análise de Cotas de Negros (CCN), instituída pelo
Reitor e composta por professores, técnicos administrativos ou alunos da UEMS e
por representantes do Movimento Negro.
Observa-se, portanto, que entre os próprios acadêmicos que ingressaram na UEMS por
meio da reserva de cotas há esta distinção de classe e não de raça. Isso evidencia que em Mato
Grosso do Sul, a reserva de cotas raciais não supre efetivamente as desigualdades sociais entre
brancos e negros já que na própria universidade as diferenças refletem justamente um
disparate social-econômico e não racial.
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[...] a questão constitucional apresenta relevância do ponto de vista jurídico, uma vez
que a interpretação a ser firmada por esta Corte poderá autorizar, ou não, o uso de
critérios raciais nos programas de admissão das universidades brasileiras. Evidencia-
se a repercussão social, porquanto a solução da controvérsia em análise poderá
ensejar relevante impacto sobre políticas públicas que objetivam, por meio de ações
afirmativas, a redução de desigualdades para o acesso ao ensino superior [...]
(STF..., 2009, n.p):
[...] Ayres Britto disse que é pelo combate eficaz a situações de desigualdade que se
concretiza a igualdade e que a lei pode ser utilizada como um instrumento de
reequilíbrio social, se não incidir em discriminação. Não se pode criticar uma lei por
fazer distinções. O próprio, o típico da lei é fazer distinções, diferenciações,
desigualações para contrabater renitentes desigualações. Ao citar a máxima de que a
49
inclusive, dispositivo normativo que enaltece o mérito dos cidadãos para o ingresso no ensino
superior. Nesse sentido é válido transcrevermos o art.208, inciso V da Carta Magna:
[...] Art.208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia
de:
V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística,
segundo a capacidade de cada um [...] (BRASIL, 1988, n.p)
2
As ações judiciais citadas que o TJ/MS apreciou o mérito do sistema de cotas raciais na UEMS são:
01 – Apelação Cível em Mandado de Segurança – Lei Especial – N.2009.003055-0/0000-00 – Paranaíba.
02 – Agravo em Ação Cominatória – N.2009.005947-1/0000-00 – Paranaíba.
03 - Apelação Cível em Ação Cominatória – N. 2008.035414-1/0000-00 – Paranaíba.
04 – Agravo Regimental em Apelação Cível – N. 2007.021853-6/0001-00 – Paranaíba.
05 - Apelação Cível em ação anulatória de ato administrativo c.c declaratória de validação de inscrição e
efetivação de matrícula em universidade – N.2005.015719-1/0000-00 – Dourados.
06 – Apelação Cível em Mandado de Segurança - N. 2005.010356-9/0000-00 – Maracaju.
51
negro, seja o candidato possuidor de baixa renda financeira” (MATO GROSSO DO SUL,
2009).
As normas da UEMS que concernem à regulamentação da forma como os cidadãos
negros podem ingressar na Universidade ultrapassou os limites do que um ato normativo pode
dispor legalmente. A função dos atos normativos é especificar o que foi generalizado pela lei.
Apenas a lei por determinar a criação de direitos. Pela omissão legal, no que tange a lei n°
2.605/03, as Resoluções do CEPE/UEMS não cumprem sua função.
Celso Antônio Bandeira de Melo (1993, p.332) dispõe que não deve haver delegação
legislativa para que um regulamento possa dispor o que a lei não fez. Se desta forma fosse, o
princípio da legalidade seria ofendido, pois os dispositivos constitucionais, por exemplo,
teriam suas condições de validade baseadas em disposições legais infraconstitucionais.
Esquecem-se os requerentes que pugnam pela inconstitucionalidade da lei n° 2.605/03
que a mesma Carta Constitucional prevê em seu bojo a discriminação lícita, para os negros
possam ter o acesso a educação superior no Mato Grosso do Sul.
A constituição traz ainda em seu art.206, inciso I, que deve ser observado o princípio
da igualdade de condições para o ensino, como podemos visualizar da transcrição do artigo:
[...] Art.206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I – igualdade de
condições para o acesso e permanência na escola; [...] (BRASIL, 1988, n.p).
O que falta ser feito, diante do apreendido, é que o sistema da UEMS promova de fato
uma justiça social, fazendo com que os negros que realmente não tem condições sociais e
financeiras de ingressar em uma Universidade o tenham. Do modo como as normas estão
dispostas, e pelas resoluções nº 430 e 889 do CEPE/UEMS, o sistema de cotas para negros da
UEMS pode favorecer negros que não são pobres, já que não utiliza o critério renda para a
admissão destes alunos.
Somente com uma avaliação do biótipo “negro”, e da educação obrigatória em escolas
públicas, sendo estes dois critérios utilizados como epicentros que permitam identificar e
justificar licitamente a discriminação positiva realizada é evidente que a lei torna-se
inconstitucional, pois não faz a justiça social e não cumpre com os objetivos para que foi
promulgada pela Casa Legislativa Estadual3. A falta de uma análise da condição social e
econômica destes negros que ingressam na UEMS acaba por viciar uma iniciativa de política
pública afirmativa que em sua essência é condizente com o pluralismo jurídico desejado pelo
3
Neste sentido: Apelação Cível – Ordinário – N. 2005.015719-1/0000-00, 3ª Turma Cível do TJMS. Relator:
Des. Oswaldo Rodrigues de Melo.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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