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“Wharia Avariada”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

Sempre nos advertia que seu relato não seria nada amigável, mas nada aborrecido, replicávamos.
Pegamos nossos rotores e deslizamos em direção ao solário onde, com tamanha transparência e nitidez
jamais seríamos notados. Despiu-se.

-“Muito bem, por quê está aqui?”

-“Porque me forçaram.”

-“Sem ironias, isso não é um inquérito. Se cooperar, Task e eu seremos breves. O relatório do Softcare
mostra avarias crânio-faciais. Internação voluntária.”

A campânula, toda blindada, reverberou um gemido gutural assustador, depois, silêncio. Tive um pico
de pressão e Task crispou seus dedos trêmulos no cabo.

-“Relaxa, rato branco, eu nem comecei, eu nem comecei ainda.”Ria-se.

-“Wharia, podemos interromper e induzi-la à parada crítica. Seu rosto...

-“Meu nome é M’sharia, inpostor, sou paquistanesa de trinta gerações!”

-“Que substância lançaram no rosto, por quê lesaram se rosto?

- “Porque eu toquei o vergalhão dele com gosto, e ele gostou, ruiu!Ruiu!

Task sussurrou algo, levantou-se e ela o imobilizou com o cabo.Gelei.

-”Agora vou contar tudo, enquanto o rato escuta com todo gosto, não?”

-“Muito bem, não acionei os sensores. Quero escutar sua história, tudo.”

II

Passados uns quatro ciclos, não mais às voltas com pesquisa no Departamento de Cyberantropologia,
reenconto Wharia numa das alas do próprio Softcare. Acenou para mim com alguma leveza até,
aproximou-se: -“Trabalho aqui, que ironia, não? Sub-coordenadora do grupo de Sexualidade e
Robótica de Terceira Geração, cadê seu rato branco?”. Repliquei que fora desativado e se a robótica
que estudava não seria a de trigésima geração. Andei catalogando arquivos criptografados sobre o
trabalho de um tal Bateson, G. Face à provocação (chequei a suposta origem proto-paquistanesa dela;
procedente...) a reação foi inusitada – deu de ombros. Como não me fez advertências desagradáveis,
caminhamos juntos pela ala norte e conversamos sobre interface, etc., o que não foi nada aborrecido: “-
Como anda a libido dos seus ciborgues?” “-Libidinosa, como a sua, talvez mais matizada”. –“Com as
matrizes tão pouco oxidadas que aplicam neles...” – “Está equivocado, muito equivocado, eles referem
desejo. Expandimos a memória original. E isso é confidencial, libidinosamente... confidencial,
compreende?” Sorriu-me, pela primeira vez. Dei de ombros e ela replicou, ácida: “- Mas que gestuária
mais pós-humana, não? Que tal uma bebida gelada? Relaxa, não vai oxidar suas matrizes
retrógradas...”. Aceitei, é claro, e mergulhei, gelado, naquele inusitado virtual.

III

“-Achei curioso perguntar do Task, recordar-se dele...”

“-Ele ficou bem assustado com a minha cena, não?”

“-Talvez viajasse nos contornos de suas belas próteses, excitado, talvez.”

“-Mas que conversa solta para um cético, um desplugado, não?”

“Ora, o solário, o meio líquido do cabo. Desejo e medo, você sabe, não?”

“Não me subestime, impostor. Sei que essas cargas não se anulam, daí...”

“Daí você quer conferir, empiricamente, bem solta. Sorriso e prudência!”

“Equivocado, de novo. Já fiz isso, faria de novo. Excitado, impostor?”

“Há algo de memória num vergalhão? Se houver, suponho que haja m...”

Senti ventosas abruptas deslocando-me no espaço, vertigem e dor. Reagi com golpes marciais e ativei
as câmeras próximas. Mais um equívoco – Wharia tomou-me se assalto no centro exato de um
escotoma – opacidade total, coreografada. Amor..., amortecido pelas fisgadas lancinantes de fratura
exposta somada ao odor vaporizado – a

substância gasosa -, ei-la, agindo em meu rosto como agiu no molestador de Wharia...

“-M’sharia, este é o meu nome pós-humano, impostor! E eis seu desejo!”

“-Por quê estou aqui, não me forçaram? “Pela memória”, replicou-me...

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