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NOVEMBRO/3001

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

O prefeito de joelhos,
O bispo de olhos vermelhos,
E o banqueiro com um milhão...

Chico Buarque de Holanda


in Geni e o Zepelin

Estas anotações poderiam servir a propósito bem delimitado. O registro, porém, colhido
graças a um desses humanos nada propositivos (com quem estive envolvido de forma
delituosa) jazia numa pasta de avulsos que mantenho com desleixo de arqueólogo, hoje,
errante e dispersivo. São fragmentárias, avulsas. Se as coloco sobre uma mesma lâmina
aqui, não terá sido por razões metodológicas, mas por diversão.
E, se diversão tornou-se palavra-de-ordem nesse presentismo que nos escalda
num hedonismo de final de milênio, seria falacioso julgar meu empenho como mero
sintoma de milenarismo. Derrocada de valores, desorientação generalizada e toda a
promiscuidade inaugurada pela era do pós-humano, para além de sintomas típicos, de
pré-determinações típicas, tornam a diversão, aqui, uma estratégia transgressiva.
Dito isto, fodam-se as categorias científicas de análise, os paradigmas ensebados
e presunçosos que teimam em dar conta das representações simbólicas de cavernas e
florestas. Habitamos cavernas de silicone translúcido e as florestas não existem mais;
então, que eu me ocupe da história singular de cada árvore que agoniza, sem teorias e
fiel à minha própria perspectiva dos seres e coisas que me cerqueiam.
Sei que, de fato, a vida dos humanos não é mais precocemente ceifada e a nossa
longevidade aumentou, comparativamente. Mas me ocorre que isso se deva à nossa
condição de dependência prolongada na primeira fase, o que abastece o mercado de
cuidados com a infância - à sua mais absoluta revelia -, e mantida pela medicina
predatória na terceira, o que desautoriza a nossa mais justificada ânsia de morrer.
Sei também que passo dois terços do meu tempo presumido de vida, quase
imune ou refratário às demandas da grande ordem de mercado que configurou o rol das
escolhas desde quando viveu minha bisavó-de-genoma. Mas me ocorre que, se percebo
assim minha ligação com o consumo, se me percebo agindo no mundo material de um
modo meio extemporâneo, isso me custou o preço de uma constante vigília.
Sei, por fim, que choquei as expectativas de meus ascendentes (não gerei
descendentes; sei que soa extemporâneo este vocabulário, depois do fim da família
nuclear) ao mostrar-me espaçofóbico. Extrapolar a órbita da Terra, nas excursões mais
comezinhas no período da tutela educacional, causou-me horror. Optei por fincar raiz
no meu quadrante. E tenho relações ambíguas com pós-humanos; outra linha evolutiva.
É um paradoxo desconfortável isso – parecer aos olhos de humanos e pós-
humanos, ou ser, por eles, interpretado como produto de uma robótica ao avesso, como
um retardado cibernético – o que explica o meu enquadramento na classe dos
Desviantes de Grau II. Fosse de Grau I, teria entrado para o PRP - Programa de
Reabilitação Primária, para ser um agente compulsório da doxa estatal de conduta.
Fosse o que enquadram como ‘Terciário’ seria perseguido pelos contrabandistas
de órgãos, pelas milícias tribais que habitam o litoral ou, uma vez pego, seria designado
para as tropas que trabalham por soldo mínimo, na função de roteador de DSP –
Dispositivos de Segurança Máxima-, ou seja, um morto-vivo, sem qualquer pertença ou
perspectiva de amparo nem inserção estatutária. Sou um limítrofe social, inominável.
Meu perfil é o de um criminoso em potencial, aos olhos do Estado
Mundializado, ou de pária, que pratica delitos na sombra e à margem da delinquência
com alguma pertença institucional, como os mandatários do capital privado ou dos que
possuem privilégios de urbanidade na Polis ou na Polícia. Se é que me compreendem
agora, resta-me alguma dignidade pessoal; algum estilo, até...
Na esteira desse meu perfil, e com a observação que faço de crianças humanas,
de linhagem darwinista clássica, (quanto às de linhagem híbrida, portadoras de
aplicativos cibergenéticos, essas me confundem - focadas demais, nada dispersivas,
‘vacinadas’ no pós-epidêmico surto mundial de TDAH – Transtorno do Distúrbio de
Atenção e Hiperatividade – síndrome forjada, em parte, nos próprios laboratórios que
desenvolveram a vacina) de crianças comuns que escaparam à vigilância sanitária, delas
mimetizo o modus vivendi - ocupadas, sempre, com o que seja divertido em si,
capturadas, livre e intensamente, num constante estar distraído – o que lhes torna
possível escapar aos condicionamentos, tutelados ou subliminares, que as idiotizem e as
tornem adestradas ; dóceis. Delas tiro meu molde, ocupando-me – distraído.
Passo meus ciclos em campo, coletando informações difusas, quanto mais
qualitativas melhor (não as quero transformadas em bits, compartilhadas) e fragmentos
de biografias marginais, periféricas, que não possam ser exportadas para quaisquer
arquivos de sistemas operacionais. São registros manuscritos com pontas de 0,3 mm,
que passam por criterioso sistema codificado de notação. Aprendi a desnaturalizar
minhas sensações mais banalizadas e corriqueiras ao mover-me entre párias e marginais
sem me comover com a precariedade da existência deles. Eles, por sua vez, trombam
comigo como quem anda a esmo, um excêntrico; uma toxina ou um mal necessário com
que contemporizam. Somos a mútua contraface de sobrevivência um para o outro,
clandestinos de pouca fala. Não há julgamentos de lado a lado nem ofensas judiciosas.
Não obstante, não se iludam – não se trata de tolerância, de convívio harmonioso
com o que seja a ‘diferença’. Que não se subestime, pelo caráter fragmentário deste
registro, seu propósito subjacente – o de ser confessional. Pós-humanos, com quem
guardo sentimentos ambíguos, ou representam obstáculos para mim (e são eliminados;
meu perfil de criminoso...) -, ou estabeleço com eles uma relação de comensalismo, ou
seja, nossas existências justificam-se mutuamente. Se me entendem melhor agora, meu
envolvimento delituoso não é brando, apesar dos meus valores extemporâneos –
exterminei a vida de um deles, da falange litorânea dos ‘mortos-vivos’ tão logo que, ao
passar da distração ao ato, percebi meu foco ameaçado. Foi no mercado negro do setor
energético, ou químico, como queiram. Mas esta parte requer algum prelúdio.
Arqueólogo em tempos de arquivos sequestrados, de suportes perecíveis ou
deletados, de sucateamento massivo dos caixilhos 9.0, enfim da mais irresponsável
pulverização de pistas e rastros e sítios na contumácia da digitalização; arqueólogo com
abstinência de massa documental, ao se aproximar do lixo civilizatório todo reciclado
em pós-lixo, de tal modo aos dejetos aspira, que se transforma em dependente químico
de... valores. Outro paradoxo – minha subsistência caótica aproximando-se do limite
acaba por subvertê-lo. Sublime transgressão! Importante registrar a transformação de
fenótipo a que me conduzi. Ou de genótipo, se é que a radioatividade agiu tão logo...
Não raspo as sobrancelhas, por exemplo; protejo-me dos UVs. Ao contrário do que se
pensaria, não é porque cometa delitos nas sombras. Sem nome.
Poderia acrescentar os delitos menores que pratiquei no litoral até que me foi
dado operar o grande salto, mas seria menos importante que narrar as circunstâncias de
submundo que me levaram a conhecer Cleocênio, o pós-humano, quase andróide,
especialista em Física e Química Quântica. Em todo caso, para infiltrar-me no tráfico de
material radioativo precisei cometer delação, ‘queima de arquivo’, felação etc., além de
roubo de água potável, pequenos subornos e grandes quantidades de substâncias ilícitas
que estocava sob o calçamento milenar dos lugarejos litorâneos de alto risco, dada a
incidência de tsunamis etc.. Por debaixo da geometria perfeita destes paralelepípedos
que reluziam ao sol escaldante, quase insuportável - preciosos containers
acondicionando nanocápsulas poliméricas de 250 nanômetros de Qa aguardavam, foto
protegidas, blindadas como a pele dos ‘mulas’.
Um dos ‘mulas’ era justamente Cleocênio – o Cléo- andrógina criatura sobre
cuja competência não pairava a menor suspeita, se um sexívoro apetite o tornasse
portador de uma obsequiada compulsão de cumprir meus comandos mais limítrofes ao
operar a distribuição do Quantônio pela malha metroviária urbana. Refiro-me, ao
mesmo radioisótopo que a ciência recente inscreveu na Tabela Periódica de Elementos,
os mandatários – em suas planilhas de investimentos; os políticos em seus discursos
conspiratório e a Polícia em sua receita não tributável. Foto protegido, o Qa circulava
das reservas estatais para receptadores em plataformas de metrô, iguais àquela em que
Cleocênio, precisou se explodir, face à vigilância implacável do renomado projeto
‘Segmento Dezenove’, o que o tornou um morto-morto.
Se é que me compreendem, por fim, eu – um humano extemporâneo,sem nome,
com seu arquivo truncado ao se perceber visível pelo serviço de inteligência, tão
sofisticado quanto corruptível que investigava o deslocamento de um seu não-
semelhante, explode-se em inflacionada visibilidade. Apaga mais um arquivo pós-
humano e refugia-se no litoral inóspito com o segredo do Quantônio. Constitui-se,
singular como não antropólogo na clandestinidade nos confins da face oposta do espaço
sideral – o oceano - , como uma criança comum; capturado, livre e intensamente pelas
distraídas regularidades, e pelo movimento ondulatório do eterno e inesgotável tornar a
ser constante, tão distraído e agora tão focado no brilho de tão poderoso duplo
radioisótopo, ei-lo ali-mar Quantônio.

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