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Sou o resultado de uma vivência atribulada, sofrida e acima de tudo lutadora. Num
pequeno relato e para que possam entender a batalha de toda uma vida que me levou
a ser a pessoa que hoje sou e a desejar ser cada vez melhor.
Sou filha de pais separados, fui criada com os meus avós paternos, a minha avó faleceu
tinha eu 8 anos e a partir daí e até casar vivi com um avô alcoólico, magoado e
revoltado com as vicissitudes da vida. Nesta altura já o meu Pai tinha refeito a vida
dele, vivia com a sua companheira (numa casa ao lado da do meu avô) e na altura já
tinha uma filha desta 2ª relação. A casa do meu avô era antiga, velha e sem as
condições mínimas de habitabilidade não tinha casa de banho dentro de casa (apenas
uma retrete no pátio) os quartos não tinham porta, não tinha máquina de lavar roupa,
não tinha frigorífico… a do meu Pai que vivia ao meu lado tinha tudo isto, mas eu não
podia usufruir de nada, a vida com a nova companheira era exclusivamente a vida
deles e quando ia a casa do meu Pai e o via comer boas refeições, quando eu comia
bacalhau com batatas ao almoço e o mesmo ao jantar, no dia seguinte massa de
bacalhau ao almoço e o mesmo ao jantar e a seguir arroz de bacalhau ao almoço e o
mesmo ao jantar (como não tinha frigorífico o meu avô cozinhava muito bacalhau, e só
variava no 1º dia do mês que recebia a reforma pois o dinheiro entretanto esvoaçava-
se no consumo do álcool), eu chorava muito junto do meu avô e recordo que ele me
dizia “Guidinha mais vale o pão seco nosso que o queijo dos outros”, mas os outros
neste caso era o meu próprio Pai, que pertencia aos quadros superiores técnicos dos
CTT sempre com um bom ordenado, a viver a vida dele e quase exclusivamente só
para ele, já que hoje eu entendo que apesar de terem tudo mais que eu a companheira
e meus irmãos não foram também muito felizes.
Fiz-me a mim própria, apesar de ter uma vida muito complicada e dormir muitas vezes
num galinheiro a fugir do meu avô quando estava alcoolizado, ainda consegui fazer o
11º ano. Um percurso estudantil muito atribulado com a passagem do 25 de Abril pelo
meio, muita tristeza pela vida que tinha, mas encontrei bons amigos que me ajudaram
e ampararam sempre as minhas angústias e tristezas. Após o 25 de Abril liguei-me de
imediato a movimentos estudantis…resultado: retenção no antigo 4º ano dos liceus,
por excesso de faltas- consequência: uma grande porrada do meu avô - moral: aprendi
a saber gerir o meu tempo com as minhas actividades (e nesta altura já tinha
aprendido muita coisa para uma miúda de 13 anos), já sabia que a vida não era fácil, já
possuía um grande espírito de luta, conhecia muito bem a tristeza e a revolta, não
sabia era muito bem gerir tudo isto em função da vida que tinha.
No meu 10º e 11º ano tive a sorte de encontrar dois bons professores (filosofia e
psicologia) que me fizeram entender que o meu “mundo” era muito mais que aquilo
que eu trazia, uma família desestruturada, ausência de calor humano, ausência de
carinho e amor de mãe, ausência de bens e aconchego material, o meu “mundo” era
também o que eu tinha aprendido com esta experiência de vida, a pessoa que me
tinha tornado e a capacidade adquirida para abraçar desafios, conhecer novas
realidades…tudo isto me fizeram ver estes professores, valorizando-me e apoiando-me
sempre.
Ingressei no mercado do trabalho após concluir o 11º ano, queria finalmente poder ter
tudo o que os meus amigos tinham, vestir como eles, divertir-me como eles, tinha
despertado para a Sociedade de Consumo e só a trabalhar é que poderia consegui-lo.
Casei e enquanto a minha filha foi pequena, estagnei mais uma vez na carreira
profissional. Quando a Joana (este é o nome da minha filhota) entra para a Escola
Primária, regresso de novo à vida social, formo de imediato uma Associação de Pais na
Escola Básica nº 1 de Pedrouços, da qual viria a ser Presidente. Ainda hoje quando lá
passo sinto um enorme orgulho por aquilo se conseguiu nesta escola, desde um bom
refeitório, um bom ginásio, melhoramento das casas de banho, do recreio, e até um
canil com 2 cãezinhos. Já não foi a tempo da minha filha usufruir tudo isto porque
entretanto completou o 4º ano do ensino básico e saiu da escola, nem tão pouco do
meu filho porque quando foi a vez dele de entrar na primária, já eu tinha mudado de
residência e já não pertencia à mesma área geográfica da escola. No entanto tenho a
satisfação de saber que todas estas mudanças fizeram e continuam a fazer a felicidade
de muitas outras crianças.
Participei também no coro da missa das 10h00 (missa das crianças na catequesse),
sempre acompanhei o percurso escolar e formação dos meus filhos.
Procuro novamente inserir-me no mercado de trabalho (de referir que neste percurso
todo, só estive mesmo sem trabalhar, quando os meus filhos eram pequenos).
Entretanto como era “tarefeira” e não sentia segurança, aceitei uma proposta de
emprego como secretária, efectiva e a ganhar substancialmente mais na empresa
“Alfredo Moreira de Silva & Fos”. Foi o pior erro da minha vida, a opção errada, a
empresa ao final de 4 anos procedeu a vários despedimentos por inviabilidade
económica, fiquei sem emprego e os colegas que ficaram no Hospital por esta altura já
pertenciam todos aos quadros.
Nesta altura do campeonato já não quero mais ser vendedora de serviços, ou operador
de telemarketing, quero ser já uma boa Técnica Comercial. E aqui estou neste curso
EFA Técnico Comercial Ns III com toda a vontade de aprender e mais uma vez a tentar
dar uma grande volta à minha vida.
Nestes últimos anos a vida tem sido novamente “uma madrasta” para mim, o meu
marido há 5 anos ficou sem emprego ao fim de 25 anos de trabalho, não lhe foi
liquidado o Subsídio de Natal nem as indemnizações devidas, a empresa deu
insolvência. Um Natal triste para os meus filhotes, sem presentes, mas ainda assim
muito melhor que os meus Natais quando tinha a idade deles. Recordo-me que pelo
Natal via o meu Pai a sair com a companheira e a minha irmã pequenina, cheios de
presentes, para passar o Natal na irmã da companheira. Eu, atrás do postigo da casa
do meu avô, aguardava que ele viesse trazer o meu presente, mas nunca vinha,
metiam-se no carro e lá iam eles todos felizes, e eu ficava com as minhas lágrimas,
atrás do postigo a vê-los a afastarem-se. Ainda assim, ia para a cozinha cozer as
batatas com bacalhau, fazia uma mesa muito bonita dentro daquilo que tinha, e o meu
avô quando chegava, completamente bêbado e revoltado com a atitude do meu Pai,
dava um pontapé na mesa partindo tudo e lá fugia eu para o galinheiro a chorar e com
medo dele, estava passado o meu Natal, ainda hoje me vêem as lágrimas aos olhos
quando penso nestes meus Natais. Os meus filhos não tiveram presentes, mas tiveram
sempre o amor do Pai e da Mãe.
O meu marido volta a trabalhar numa outra empresa, que também entra passados 2
anos em processo de insolvência.
Estava na altura de pegar novamente em toda a minha bagagem e dar mais uma vez
uma grande volta à minha vida. Ninguém (a não ser quem passou também por isto)
sabe dar valor ao viver sem dinheiro e com 2 filhos a tentarem perceber o que estava a
acontecer.
Após todo o processo e tempo para rescisão de contrato por justa causa, o meu
marido lá conseguiu ir para o Fundo de Desemprego, e ainda hoje aguarda pelo
pagamento dos ordenados em atraso. Por esta altura ingresso neste curso financiado e
ministrado pela ANJE, já tenho algum desafogo financeiro e também algumas dívidas.
Foi uma oportunidade de ouro que me apareceu, poder estudar e alargar o meu
conhecimento, tendo certo um ganho mensal.
Hoje, e mais uma vez, vejo novamente uma luz ao fundo do túnel. Os meus filhos
perguntam: - Mãe, como foi o teu dia? Eu respondo: - óptimo, finalmente e já com os
braços cansados de tanto remar contra a maré, sinto que o barco finalmente tomou o
seu rumo, o vento está novamente a favor, sinto-me feliz e acredito que vou
conseguir.
Sendo toda esta dissertação tão extensa e ao mesmo tempo tão limitada em tudo o
que fui fazendo ao longo da minha vida, tanto pessoal como profissional, sinto que
haveria ainda muito mais para dizer. Para equilibrar o orçamento familiar já trabalhei
na VADECA como empregada de limpeza, em restaurantes como empregada de
cozinha, em cafés como empregada de balcão….enfim, nunca tive medo ao trabalho e
sempre fiz o que era preciso ser feito para que os meus filhos, tivessem o essencial e
pudessem ter bons resultados escolares. Tenho dois filhos maravilhosos, a Joana está
no 3º ano na Escola de Enfermagem do H.S.João com óptimos resultados, o meu filho
João está no 11º ano também com boas notas e é o meu Anjo da Guarda, está sempre
tudo bem com ele, dá-me muita força e com 15 anos está um homenzinho.
Neste meu meio século de vivência, dificilmente consigo falar sobre as minhas
competências ou reflectir sobre as mesmas, já que são tantas e todas elas com uma
interligação muito profunda. Também fiz voluntariado numa Instituição de
Solidariedade Social ligada à Junta de Freguesia de Paranhos, dando apoio aos utentes.
Ajudou-me imenso a ultrapassar as minhas “desgraças” pois ocupou o meu tempo de
uma forma útil e agradável, ajudando os outros. A Instituição em 2009 aderiu ao
projecto PCAAC (Projecto Comunitário de apoio alimentar Europeu), fiz mapas de
planeamento, gestão de stock`s, mapas de execução final, reuniões com o Banco
Alimentar, distribuição dos cabazes alimentares, um incansável trabalho que me deu
muito prazer, me ajudou pessoalmente e onde também usufrui de alguns alimentos,
para os quais não tinha dinheiro para os adquirir.
Nunca parei…nunca baixei os braços…procurei ser sempre uma boa pessoa, boa amiga,
boa esposa e mãe e boa dona de casa para além de boa profissional nos empregos que
fui tendo. Depois de toda esta explanação, por favor ajudem-me…quais são as minhas
competências?