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Crônica da Semana

LONGO, LONGO INVERNO

Longo, longo inverno. São brancas as janelas, e do que resta de vidro, vejo brincarem gelos
com os ventos. Tampo as frestas e fendas sem sucesso contra os uivos da nevasca.
Deixei de ver o azul da serra ao longe faz tempo. Depois as colinas mais próximas me foram
roubadas pela cortina branca. Agora as minhas árvores queridas e o lago de peixes suculentos. Tudo
é branco.
As rotas da vila não acharia se tentasse a aventura. Seria consumido pelo cansaço de
percorrer os passos que dava largos. Lá teria o que comer e amigos de aguardente. Teria as risadas
de um estômago feliz e das notícias que se espalham sobre a mesa, atraentes como quitanda.
Ah! Como estão longe aqueles dias de pele de bronze. Eu que maldizia as janelas
escancaradas dando chance às muriçocas se fartarem de mim. Estão todas mortas agora, com meu
sangue em seus ventres diminutos. Oxalá que sejam as únicas gotas de mim a congelar.
Longo, longo inverno. Quisera eu imputar aos astros e estações a alvura do meu silêncio.
Culpa minha, eu bem sei.
Um companheiro d’armas abriu-me os olhos diante da magnitude de se enfrentar os
inimigos semanais. Eu, como incauto que sempre fui, nem pensei na dor de se meter os dedos em
gelo tão branco como o dos papéis. Eles aceitam qualquer coisa, isso é fato. O conflito está no
arrependimento. Algo de obtuso é deixar-se levar a abrir caixas de Pandora como se muito serviria
aos leitores. Todos o fazem. Serviço há na promotoria, mas algo de noturno advém desse apontar
as mazelas do homem. O que há de criativo nisso? O que de melhor ao semelhante existe nisso? De
tão pequeno que é gastar assunto duma semana em críticas fazer, que o feitiço ao feiticeiro mais
forte se fez. Esse é o meu castigo. Tenho de amargar o inverno de meus dedos.
Longo, longo inverno. Agora é lenha as linhas que ao mundo não vou mostrar. Pagando cada
letra de acusação, ganho um dia a menos de uivos. Um dia a menos de ar viciado nesta cabana
trancada. Um dia a menos de inverno.
Longo, longo inverno. A verdadeira coragem é ímpar do tribunal literário que se torna
colocar figuras públicas no banco dos réus. Coragem literária é dispor de idéias novas. Novas ligas
para novas espadas.
Das janelas eu vejo o frio, mas meu espírito se aquece ao ver a porta. Talvez atrás dela exista
outra coisa que não vejo. Talvez atrás da porta esteja a primavera querendo entrar e sentar-se à
minha mesa. Levanto-me deste banco deixando cair ao chão o cobertor que cobre meus ombros
encolhidos. Levo minha mão à maçaneta, na franca esperança de ver o sol pondo fim neste longo,
longo inverno.

EDUARDO SIGAUD
Publicitário e Cineasta

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