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finalmente, mas não menos importante, pela quase onipresença da televisão
no dia-a-dia das pessoas 1.
Essa cultura visual, na qual, “através do olhar, comunicamos, julgamos,
classificamos, [...] comemos com os olhos, acreditamos só no que vemos e
nosso desempenho social depende de sermos homens de visão” (Zucolotto,
2002), possui sua origem na formação dos valores modernos, no tratamento
que a imagem passa a receber em um contexto novo, marcado pela
perspectiva e pelo modelo espacial abstrato de representação do real. Entre
esses valores, que, segundo Ben Singer, reconfiguraram a vida social, destaca-
se a concepção de um “bombardeio de estímulos”. Explicando melhor, “a
modernidade implicou um mundo fenomenal – especificamente urbano – que
era marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que
as fases anteriores da cultura humana” (Singer. In: Charney; Schwartz, 2001,
p.116). Tais condições, somadas ao ritmo frenético das invenções tecnológicas
e suas conseqüências, preencheram a vida do homem moderno com
velocidade, tensão e medo, propiciando o surgimento e desenvolvimento do
sensacionalismo, do entretenimento e, junto com eles, do cinema.
Assim, como um produto característico de seu contexto, o cinema logo
traduziu em sua linguagem, seus princípios narrativos e sua estrutura, a
essência da modernidade que nascia. Não é por acaso que os primeiros filmes
a ganharem popularidade significativa se prestam a uma “estética do espanto”
(Singer. In: Charney; Schwartz, 2001, p. 136), para a qual a agitação, as
perseguições, a superabundância visual, o grandioso e o espantoso possuem
uma função primordial, obtendo presença garantida. Tal maneira de fazer
cinema, que responde nos filmes aos anseios do indivíduo submerso em uma
coletividade extremamente ansiosa, impulsionou o enraizamento do cinema na
sociedade urbana, consolidando uma de suas funções sociais mais relevantes.
Função que continua a ser cumprida, como mostra o vínculo psicológico dos
espectadores com os filmes, estudado por Hugo Mauerhofer. Instaurando o
conceito de situação cinema, o psicólogo alemão se refere à maneira como o
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cinema se volta para o inconsciente individual, estabelecendo uma experiência
psicoterapêutica:
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perceber, ao mesmo tempo, como “agentes e produtos da interação social”
(Duarte, 2006, p. 16). Em outras palavras, as relações educativas não se
restringem à reprodução de uma realidade social (um sujeito passivo que
recebe esses valores de um sujeito ativo), mas englobam também a própria
produção dessa realidade (o sujeito que recebe os valores sempre é, ao
mesmo tempo, ativo no seu meio). Realidade essa que se desdobra em
diferentes instâncias, abrangendo as produções artísticas e culturais mais
diversas.
Parece indiscutível que o cinema é um produto contemporâneo que atua na
formação dos indivíduos, e, mesmo fora da educação formal, os filmes
cumprem uma função relevante na educação informal. Ver filmes é conhecer
cinematograficamente identidades e culturas, e, de forma especial,
acompanhar esses componentes da realidade refletidos na tela;
concomitantemente, ver filmes é perceber o próprio cinema como um
componente dessa realidade, tornando-se necessário, para que o indivíduo se
situe como sujeito ativo na cultura, o melhor domínio sobre a linguagem
cinematográfica. Contudo, não é muito rara a aceitação acrítica de que os
filmes são subprodutos em relação a outros bens culturais 3, o que atribui ao
cinema, irrefletidamente, o rótulo de “mero entretenimento”, negando aos
filmes o mesmo valor social dos livros literários, por exemplo.
Ora, se há incontestável valor em apreender as normas que regem o uso da
linguagem escrita, possibilitando a apreciação dos principais autores da
literatura, por que haveria de ser diferente em relação à linguagem
cinematográfica e os principais autores do cinema, sendo a sociedade atual
uma sociedade do “ver”, em que essa linguagem está profundamente
arraigada? “Embora valorizado, o cinema ainda não é visto pelos meios
educacionais como fonte de conhecimento”(Duarte, 2006, p. 87), o que
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impede a sua utilização plena em prol de uma educação mais completa e
coerente com o meio cultural em que se estabelece. Além da resistência que
enfrenta nos modelos tradicionais de educação, que privilegiam certos bens
culturais a outros, como mencionado, o cinema também encontra dificuldades
para se afirmar na própria formação dos educadores, que, fruto dessa mesma
concepção tradicional, prescinde de conhecimentos necessários para a
valorização do cinema.
Cinema e Filosofia
Uma certa aproximação entre cinema e filosofia tem sido explorada nos
últimos anos, motivando publicações de diferentes formatos e intenções,
muitas delas livros de relativo sucesso. A maioria dessas obras, como a série
coordenada pelo professor norte-americano Willian Irwin, abordam temas
4 Sobre esse tema, conferir Ismail Xavier (1984, p. 31 – 35).
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filosóficos usando como pano de fundo obras audiovisuais. É o caso também de
obras como “Lo que Sócrates diría a Woody Allen”, do espanhol Juan Antonio
Rivera, livro de ensaios no qual o autor se dedica a interpretar filmes à luz de
filosofias tradicionais, ou também à luz de conhecimentos teóricos de outras
áreas, como no texto em que disserta sobre “Laranja Mecânica” (Kubrick,
1971) e os experimentos de psicologia comportamental empreendidos por John
B. Watson e Rosalie Rayner. Os filmes figuram, nessas obras, como motes
para a discussão de algo externo a eles, ou seja, a filosofia é levada ao filme
pelo espectador, e o filme, por sua vez, serve de ponto de partida para a
reflexão filosófica, oferecendo conteúdo para que ela se realize.
A orientação dessas obras não deixa de ser coerente com algo que o cinema
pode oferecer, tanto como bem cultural quanto por suas características
definidoras. Se o espectador está habituado a encontrar, nos filmes, a
representação cinematográfica de fatos históricos (nos chamados “filmes
épicos”, notadamente) ou as relações subjetivas que determinam a existência
social dos indivíduos (como a idéia de amor romântico, as noções de certo e
errado, os valores morais), não é algo surpreendente que o cinema possa se
referir, de algum modo, ao conhecimento filosófico que a cultura humana
produziu e produz. Mais precisamente, a interpretação dos filmes, ato sempre
tão aberto a possibilidades, pode levar o intérprete/espectador, a partir dos
dados que a própria obra oferece, a reconhecer nela a “presença” da filosofia.
Essa presença pode estar vinculada ao comportamento de uma certa
personagem, aos conflitos articulados pela trama, ao resultado de uma
meditação sobre o significado da narrativa, ou a qualquer outro elemento
fílmico. Os filmes, nesses casos, não precisam necessariamente tratar da
filosofia como um tema; ela é reflexão sobre um mundo de coisas dado ao
homem, e, mesmo se tratando de abstrações, não perdem a sua relação com
esse mundo. A Lógica, por exemplo, ao estudar o funcionamento do pensar,
prendendo-se à forma, e não ao conteúdo do pensamento, ainda assim se
vincula, de algum modo, a um mundo representável no cinema. Ora, quem
pensa logicamente é o homem, e este pode ser representado em um filme,
ainda que um silogismo ou uma tautologia, obviamente, não possam. Logo,
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nessa leitura, não são as concepções filosóficas que são representadas no
cinema, mas as realidades às quais se referem, de alguma forma, essas
concepções.
Um parênteses deve ser aberto, já que a realização desse ato interpretativo (a
ser analisado melhor, mais a frente) não esgota a questão sobre o tipo de
relação que pode haver entre cinema e filosofia. Uma outra possibilidade, pelo
menos, é indicada pelo filósofo argentino Julio Cabrera, autor do livro “O
Cinema Pensa – Uma Introdução à Filosofia através dos Filmes”. Nessa obra, a
relação entre cinema e filosofia é de tal maneira que o cinema aparece como
um complemento do filosofar. Filosofar, nesse caso, tem um significado
preciso: não é um ato que ocorre plenamente quando pretendido com a
exclusividade da razão, ou, usando termos gregos, quando produto de um
logos organizador de conceitos racionais, separado de qualquer afetividade. A
esse raciocínio lógico deve se somar à sensibilidade, o pathos 5, elemento
responsável por uma experiência emotiva do problema filosófico, tornando o
filosofar mais completo. É esse pathos que o cinema oferece à filosofia, na
experiência do espectador com o filme, originando uma maneira de filosofar
denominada logopática.
As duas dimensões igualmente valorizadas por Cabrera são tidas como opostas
por grande parte da tradição; o pathos é totalmente dispensável no
racionalismo, por exemplo, o qual é absolutamente confiante no poder
cognitivo da razão. Para uma corrente filosófica como a de Descartes, chega a
parecer absurda a pretensão de integrar a emoção ao método do conhecer. A
filosofia logopática, em contraposição a essa tendência, se concretiza na
atuação de um espectador que interpreta logicamente (e filosoficamente) o
filme, assim como interage com ele por outra via, a da emoção, sendo
importante notar que essa via possui, também, uma função cognitiva. Ainda
que seja bastante original o lugar destinado ao cinema em sua proposta,
Cabrera não se apresenta como o primeiro filósofo a considerar a paticidade
como um elemento necessário ao filosofar. Essa é uma tendência que desponta
7
na própria história da filosofia, representada, por exemplo, em autores como
Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger. Na obra deste último, a valorização do
pathos pode ser conferida quando o autor destaca os sentimentos de “alegria
pela existência de um ser querido” e de “profundo tédio” como duas formas de
manifestação “do ente em sua totalidade” (Heidegger, 2000, p. 55 – 57).
Cabrera acrescenta-se à tendência logopática, destacando-se nela ao
encontrar no cinema um instrumento para a realização de sua filosofia.
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estética entre as obras em análise. O próprio Cabrera rejeita a interferência do
valor estético no valor filosófico de um filme; para a logopatia, essas são duas
questões de ordem diversa. Assim, há nesta teoria um significado de cinema
que não se prende efetivamente à linguagem cinematográfica, tampouco ao
que resulta do seu uso na história pelos diversos cinemas existentes, mesmo
que Cabrera reconheça que a linguagem do cinema contribui para a pertinência
dele no tipo de filosofia que anuncia 6.
De um ponto de vista pedagógico, portanto, a necessidade de desenvolvimento
do “olhar”, como visto, exige um contato com os filmes que destaque o uso da
linguagem cinematográfica e a estrutura deles. Nesse sentido, obras como a
de Cabrera ou Rivera, ricas em conteúdo filosófico, podem ser incrementadas
com conhecimentos específicos do cinema, qualificando as interpretações, e,
conseqüentemente, o trabalho pedagógico. Ora, a interpretação do filme é o
ato que fundamenta o desenvolvimento do “olhar”; à medida que se aprimora,
depara-se com o que há de dissimulado na linguagem do cinema, a qual, como
toda linguagem, possui “elementos óbvios, explícitos, de fácil compreensão, e
elementos sutis, semânticos, que são muitas vezes só percebidos pelo
subconsciente” 7. O que se torna problemático, e que deve ser evitado, é que o
cinema seja indiferente na interpretação dos filmes, de forma que o fato de o
filme ser um filme torne-se irrelevante (pois podemos começar a refletir a
partir de qualquer coisa, como de uma música ou da observação das pessoas
na rua, por exemplo).
6 Cabrera justifica a escolha do cinema pela logopatia com dois argumentos: um, pelo
forte impacto emocional que ocasiona a impressão de realidade produzida pelo filme,
o outro, pela particularidade da linguagem cinematográfica. Esse segundo argumento,
no entanto, é apenas comentado brevemente pelo autor, e quase desaparece na obra,
ao passo que a primeira característica predomina nas análises dos filmes. Essa
construção teórica se explica pela ênfase que Cabrera concede, de maneira “natural”,
ao cinema narrativo-clássico, e também pela desimportância do valor estético dos
filmes, assumida pela logopatia.
7 Essa citação foi extraída do texto de apresentação do Cineduc, publicado na internet
(www.cineduc.org.br). O Cineduc é uma instituição não-governamental fundada em
1970, que promove atividades na educação formal focalizando o ensino da linguagem
cinematográfica.
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Uma das primeiras imagens do curta-metragem Ilha das Flores ( Jorge
Furtado, 1989), é a de um agricultor de tomates. À medida que a câmera se
aproxima da personagem, em um movimento de travelling para frente, a voz
off descreve a localização geográfica do local, revelando também que se trata
de uma plantação de tomates, e que o agricultor é um ser humano. Nessa
passagem, são três tipos de informação oferecidas pelo filme, cada uma
significativa, ao seu modo, para o desenvolvimento da trama. A montagem
dispõe as imagens de forma que, se consideradas isoladas, elas se apresentam
desconexas, desprovidas da continuidade clássica; a voz off, porém,
representa o fio condutor que concede essa continuidade ao que é visto,
descrevendo as imagens e atribuindo a elas uma organização lógica. O
resultado é uma narrativa que pode despertar ironia, revolta, ou até mesmo a
impressão de que há ingenuidade demais em seu discurso (afinal, quem não
sabe o que é um ser humano?).
Aristóteles, em sua Metafísica, constata: “foi pela admiração que os homens
começaram a filosofar” (982b, 15). O Estagirita se refere, com isso, não
apenas ao espírito grego que deu origem às especulações filosóficas, mas ao
“olhar” próprio que todo filósofo lança ao mundo, espantado com ele e consigo
mesmo. No processo de socialização, é normal que o homem abandone esse
olhar, que a tudo considera misterioso, inexplicável, e que, por isso, é próprio
da criança 8; retomá-lo é o que origina a filosofia, é o marco inusitado do seu
princípio. Por isso, filosofar, não poucas vezes, é se perguntar sobre as coisas
mais óbvias e banalizadas pelo cotidiano, realidade que oferece as suas
próprias explicações, assumidas pelo senso comum, ou que, simplesmente,
leva os homens a não se preocuparem com essas questões, contentando-os
8 Explorar essa idéia no ensino de filosofia a crianças e jovens parece algo bastante
proveitoso, principalmente se o que se pretende é transmitir uma noção de filosofia
como prática, como postura questionadora, e não como a atividade de comentar as
concepções de autores consagrados, o que é próprio de uma história da filosofia, cuja
importância é inegável, mas não é filosofia. Sobre esse tema, escreve Armijos
Palacios: “Por que não se faz filosofia como se fazia na antiga Grécia? Porque entre os
filósofos e seus problemas ninguém se interpunha. Hoje, em muitos lugares, parece
que é proibido ter problemas filosóficos próprios. Entre o aprendiz de filósofo e a
filosofia se interpõe um número interminável de leituras secundárias, de especialistas,
de comentadores” (2004, p. 18).
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com as atividades normais do dia-a-dia. Essas perguntas são, por exemplo, “o
que é o homem?”, o que nos remete diretamente a Ilha das Flores. Essa
questão fundamental, quase ridícula, é motivadora de séculos de inquietação
filosófica, tanto nas ocasiões em que está presente – como em Sócrates, para
quem perguntar sobre o homem é o ato fundamental de investigação da
psique – quanto nas ocasiões em que é negligenciada, como em Hegel – para
quem o “indivíduo não passa, reduzido a si mesmo, de uma abstração”
(Hyppolite, 1988, p. 17) – o que motivou duras críticas de Kierkegaard ao
filósofo alemão.
Como se vê, a pergunta em que toca Ilhas das Flores, logo de início, acarreta
uma problematicidade enorme quando situada no interior da história da
filosofia, além de constituir, por si só, uma pergunta filosófica das mais
relevantes. Para chegar a essa pergunta, no entanto, assim como para
compreender a maneira como o filme a trabalha, relacionando-a com outras
perguntas fundamentais, o espectador precisa penetrar na sua proposta, na
linguagem pela qual ele apresenta suas respostas, o seu discurso, pois Ilhas
das Flores, como uma narrativa que é, não faz perguntas; em vez disso,
responde a elas. As perguntas devem ser feitas pelo espectador, a partir da
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construção da fábula , processo mental que pode ser associado à
interpretação do filme. A montagem frenética de Ilhas das Flores acentua a
impressão de que há, no filme, muito a ser dito. De fato, a voz off “dialoga”
com as imagens, respondendo, de forma provocadora, as perguntas que uma
interpretação do filme pode formular. Não apenas “o que é o homem?”, mas
também “o que é o lucro?”, “o que é o conhecimento?”, ou, entre outras, “o
que é a liberdade?”.
9O formalismo russo, como recorda Bordwell (In: Ramos, 2005, p.278), usa esse
termo para denominar o constructo da história pelo espectador. A pergunta que
surge, a partir disso, é: Onde está o filme? Como ele ocorre? Da teoria de
Munsterberg, sobre o ato de atenção no cinema, “que se dá dentro da mente” (In:
Xavier, 2003, p. 34) ao debate recente sobre o “imaginar ver” proposto por Walton
(In: Ramos, 2005, p.105 – 125), há uma vasta corrente de pensamento que se ocupa
dos processos mentais pelos quais os filmes ganham existência no interior do
indivíduo. Essa tendência especulativa permite que Paulo Filipe Monteiro (1996)
organize uma “fenomenologia do cinema”, a partir de diversos autores, concentrada
sobre duas perguntas: a) como o filme se relaciona com a realidade?, e b) qual o tipo
de experiência que o espectador tem ao assistir a um filme?
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A obviedade dessas perguntas, e, mais ainda, a estranheza produzida pelas
respostas – igualmente óbvias – organizadas imageticamente e verbalmente
na montagem, parecem intencionar um deslocamento do espectador; o mesmo
deslocamento que Julio Cabrera considera essencial para a compreensão de
um problema filosófico. O espectador é apresentado, assim, a um absurdo: o
absurdo de uma realidade sustentada por frágeis verdades, tão frágeis que
surpreendem o espectador quando a voz off as pronuncia em contraste com a
imagem. Seria essa percepção a abertura de um caminho para outra
percepção, cuja carga ontológica é ainda mais essencial, o conceito sartreano
de náusea? Não se afirma aqui, obviamente, que Ilha das Flores é uma versão
cinematográfica desse conceito, nem que os filmes coincidem com filosofias,
expressando com exatidão os conceitos filosóficos. Porém, quem poderia negar
que a interpretação de um filme, assim como, por exemplo, de um livro ou de
uma peça de teatro, pode colocar o espectador em contato com percepções do
mundo que motivam a reflexão filosófica? Parece aceitável que a interpretação
de Ilha das Flores pode conduzir o espectador, orientado filosoficamente, ao
“sentimento que nos invade quando descobrimos a contingência essencial e o
absurdo do real” (Antiseri; Reale, 1990, p. 606).
É necessário notar, contudo, que cada uma das formas de expressão citadas
possui uma linguagem própria, a qual determina a interpretação de seus
produtos, inclusive sendo parte dessa interpretação o ato de apreender o
próprio uso da linguagem; no caso do cinema, apreender a maneira como o
filme utiliza a linguagem cinematográfica, com o intuito de significar algo. Nas
palavras de Marcel Martin, “tudo o que é mostrado na tela tem um sentido e,
na maioria das vezes, uma segunda significação que só aparecem através da
reflexão” (2003, p. 92). Refletindo, assim, sobre Ilha das Flores, um dos
recursos explorados com certa ênfase na montagem é o efeito Kulechov,
princípio desenvolvido pelo cineasta e teórico russo de mesmo nome. Segundo
ele, a mesma imagem, quando intercalada por imagens diversas, ocasiona
uma reação diferente do espectador, que confere significado à imagem em
questão situando-a no contexto maior, estabelecido pela montagem – teoria
que prova o poder dessa técnica no cinema, o que a justifica como principal
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objeto de estudo da corrente teórica clássica, da qual faz parte Kulechov .
Em Ilha das Flores, esse princípio pode ser observado várias vezes. A própria
imagem inicial, do agricultor na plantação de tomates, se repete momentos
seguintes, quando a definição de japonês (o agricultor é um japonês) é
acrescida de outras informações que vão alterando, pouco a pouco, o
significado desse conceito. Um melhor exemplo, porém, é o que se refere à
imagem da dona de casa e vendedora de perfumes Dona Anete, quando joga
no lixo um tomate que constata impróprio para o consumo de sua família. Essa
imagem se repete seis vezes durante o filme, e, a cada nova aparição, o
significado do que é mostrado no enquadramento está enriquecido pelo trecho
do filme que o sucedeu; assim ocorre com o tomate, o lixo, e também o
comportamento de Dona Anete (o que inclui a sua maquiagem, seus brincos,
seu cabelo, sua roupa, enfim, todos os caracteres que contrastam com as
pessoas miseráveis vistas momentos antes da última vez em que a cena
aparece). De que maneira esse recurso contribui para a eficácia do discurso do
filme? Essa é uma pergunta relativa à interpretação da obra, e pode ser
desdobrada de diversas maneiras, encontrando-se com a filosofia.
O enriquecimento dos conceitos expostos pelo filme, como no exemplo acima,
é uma constante na narrativa. A cada ocasião em que a voz off ou a imagem
de um cérebro humano relembram que o homem se diferencia dos outros
animais por possuir o “telencéfalo altamente desenvolvido”, a ironia trágica
dessa descrição é acentuada, em vista da irracionalidade das situações
mostradas pelo filme (do massacre dos judeus na Segunda Guerra à própria
“Ilha das Flores”, onde homens são tratados como porcos por não terem lucro,
nem donos, apesar de, em tese, não serem menos homens por isso). Em uma
entre várias interpretações possíveis, a irracionalidade do homem, apresentada
ironicamente por Ilha das Flores, condiz com a percepção de realidade que
marcou uma nova tendência na filosofia, desde Nietzsche ou Kierkegaard,
atacando duramente a confiança moderna na razão, o progresso iluminista,
que postula o “brilho” da racionalidade como a pedra de toque da filosofia.
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Essa nova abordagem deixa à mostra, no lugar dessa confiança, uma grande
desconfiança que reformula metodologias e confirma a irracionalidade como
algo constitutivo do homem. Certamente, muitos caminhos filosóficos se
abrem a partir dessa interpretação.
A percepção do irracional também é um mote para pensar questões ligadas ao
próprio cinema, desde a sua origem. Lembrando Ben Singer, a modernidade
criticada pelo existencialismo é a mesma que viu nascer o cinema em meio a
uma explosão de estímulos, e para a qual os filmes possuem o papel social de
“tornar suportável a vida de milhões de pessoas”, como constatou Mauerhofer.
De que maneira essas características do cinema estão relacionadas ao próprio
conteúdo crítico de Ilha das Flores? Essa questão, importante por si só,
permite ainda um encaminhamento para outra questão, essencial para os
alunos: Ilha das Flores é diferente dos filmes que costumam ser exibidos na
televisão? Permanecendo em uma análise da montagem do filme, é possível
encontrar as suas raízes na vanguarda russa, cujo principal expoente foi
Eisenstein. Uma das principais contribuições teóricas deste cineasta e pensador
do cinema foi o desenvolvimento de uma técnica de montagem, a qual
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denominou montagem de atrações , cujo objetivo, mais que iludir, é
expressar; mais que produzir uma impressão de realidade, como no cinema
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clássico que florescia nos EUA com David Griffith , é a criação de um
imaginário.
Com isso, a noção de cinema clássico vem à tona. Obviamente, o tema é tão
extenso quanto essencial para uma maior compreensão do cinema,
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especialmente quando se tem em vista a sua inserção nas salas de aula, já
que o contato com filmes, da maioria dos alunos, obtido no dia-a-dia,
normalmente se restringirá ao cinema derivado dos princípios e normas
narrativas desse cinema hegemônico. Assim, o reconhecimento da linguagem
clássica é um dos principais objetivos a serem visados pelo desenvolvimento
do “olhar”, quiçá o mais importante deles. Em linhas muito gerais, essa
linguagem diz respeito à adoção de princípios que acentuam a impressão de
realidade. Uma “imitação da vida” é proposta, a partir da opção pelo
ilusionismo, o naturalismo e por gêneros narrativos tradicionais, como o
melodrama. Somam-se a essa orientação a prioridade da ação, o
estabelecimento de conflitos por meio do envolvimento das personagens entre
si, e a articulação da trama em relações de causa e efeito, deixando explícita a
problemática do conflito a ser resolvido, distinguindo as fases da narrativa em
um “estágio de equilíbrio, sua perturbação, a luta e a eliminação do elemento
perturbador” (Bordwell. In: Ramos, 2005, p. 279).
As obras que analisam filmes à luz de filosofias, como foram citadas, aqui, as
de Juan Antonio Rivera e Julio Cabrera, tendem a priorizar em suas análises as
produções que se filiam a esses princípios. Porém, quando Cabrera encontra no
cinema de Antonioni a melhor representação do conceito heideggeriano de
angústia por algo indeterminado – o que faz do cineasta italiano um
“Heidegger da imagem” (Cabrera, 2006, p. 315) – essa interpretação não está
acompanhada de uma discussão mais aprofundada sobre os filmes. Em forma
de comentário, Cabrera se refere às narrativas de Antonioni como experiências
aborrecidas, entediantes e fastidiosas para os espectadores que estão
acostumados com os filmes hollywoodianos, repletos de ação. Assim, apesar
de chegar muito perto de uma discussão do próprio cinema, o filósofo deixa de
estudar verdadeiramente as relações de ruptura que os filmes de Antonioni
estabelecem com o cinema clássico, especialmente no que diz respeito à
“estética do espanto” citada por Ben Singer. Caberia ao professor acrescentar
essas noções, numa possível apresentação do filme aos alunos.
Assim, é possível incrementar a interpretação filosófica de um filme com os
conhecimentos específicos da área do cinema, qualificando essa interpretação
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e abrindo caminho para que sejam apresentados aos alunos usos da linguagem
mais complexos, desenvolvendo no aluno uma percepção crítica do
audiovisual, e também a apreciação de obras fundamentais da história do
cinema, as quais, em muitos casos, se contrapõem, de alguma maneira, ao
modelo hegemônico. O próprio curta-metragem Ilha das Flores apresenta
elementos que o distancia desse cinema, assim como, em certa medida,
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também absorve os seus princípios . Vale dizer que a interpretação do filme,
nesse texto, deve ser entendida como um breve exercício de comentador,
ficando muito aquém de uma análise pormenorizada da obra, a qual, com
certeza, muito pode acrescentar às idéias enunciadas.
No entanto, a escolha de Ilha das Flores já aponta alguns aspectos de uma
metodologia possível para o uso dos filmes na sala de aula. Por ser um curta-
metragem, a sua duração não é um problema em vista da duração média de
uma aula (50 minutos), evitando que o filme seja “quebrado” em uma exibição
pausada entre uma aula e outra. Os curta-metragens permitem, também, que
a análise comparada de dois filmes seja realizada na sala de aula, ou que o
mesmo filme possa ser visto mais de uma vez, o que torna a interpretação
mais rica. Assim, a exibição dos filmes, acompanhada de uma abordagem do
professor que atenta para a linguagem cinematográfica – para a maneira como
o filme conta a sua história – somada ao que pode haver de referente à
filosofia no filme (tanto na história quanto na forma), impede que uma falsa
neutralidade seja atribuída ao cinema. Ao contrário dessa visão, bastante
arraigada no espectador comum, o cinema passa a ser reconhecido como uma
representação, uma linguagem que deve ser explicitada, a fim de que a sua
interferência no real não se estabeleça de forma invisível, e nem deixe de ter
reconhecida a potencialidade que tem para expressar temas e problemas
filosóficos à sua maneira.
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