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Peter Pál Pelbart, O tempo não reconciliado. S. Paulo: Editora Perspectiva, 1998.

[pp. 28-31] [Imagem do Pensamento e Plano de Imanência]

Imagem do Pensamento.
Convém lembrar, inicialmente, que o termo imagem tem na obra de Deleuze uma
utilização variável. Tomemos, para ficar no exemplo maior, o tema da “imagem do
pensamento”, tão recorrente. É em Nietzsche e a filosofia [1962] que a expressão
aparece pela primeira vez, para mostrar em que medida Nietzsche teria subvertido a
imagem do pensamento dogmática. Diferença e Repetição [1968] dedica ao assunto o
extenso capítulo III, intitulado “Imagem do pensamento”, retomando e esmiuçando sua
aplicação. A imagem do pensamento aparece aí como o pressuposto implícito do
pensamento conceitual filosófico, como o conjunto de postulados aos quais a filosofia
obedece. Parece ser constituída pelas regras que comandam implicitamente a filosofia
enquanto representação. A Imagem, portanto, é como que o desenho, o traçado não-
filosófico, pré-filosófico, que molda o terreno em que a filosofia se desenvolve e é
possível. Ao denunciar a suposta boa vontade da filosofia, sua afinação natural com o
Verdadeiro e o Bem, por exemplo, Nietzsche teria revelado o caráter moral dessa
imagem. Com isso, teria empreendido, segundo Deleuze, uma luta contra a Imagem e
seus postulados. Ou seja, um combate contra um modelo de pensamento, contra o
modelo do que seja pensar, do que seja o pensador, do que deva ser o filósofo. Se num
certo sentido Nietzsche e a filosofia anuncia uma nova imagem do pensamento,
Diferença e Repetição vai mais longe e reivindica um pensamento sem imagem. Um
pensamento sem imagem é aquele que não obedece a uma imagem prévia do que seja
pensar, isto é, um Modelo prévio que orienta e formata, que determina de antemão o
que significa pensar ou orientar-se no pensamento. Imagem aqui significa, por
conseguinte, Modelo.
Antes de problematizar um pouco essa primeira acepção de imagem remetida a um
Modelo transcendente, a um Formato subjacente, a regras prévias, seria preciso
acrescentar que o mesmo termo recebe em Lógica do Sentido [1969], num capítulo
intitulado “Imagens dos filósofos”, uma conotação mais topológica. Deleuze faz
menção a uma geografia do pensamento, eixos e orientações segundo os quais o
pensamento se desenvolve, como o movimento ascensional no platonismo, a
profundidade pré-socrática, a reconquista nietzschiana da superfície . Trata-se de uma
1

espécie de geografia mental pré-filosófica em que se move a filosofia. Se não há aqui


uma reivindicação por um pensamento sem imagem, há um elogio claro da conquista da
superfície, e ambas as posições têm um sentido equivalente. As variações
terminológicas que acabamos de mencionar remetem a uma mesma e inequívoca
direção de fundo.
Em Mil Platôs [1980] Deleuze e Guattari dão um passo a mais na explicitação da
imagem do pensamento, quando a associam mais diretamente à forma do Estado.
Acontece de criticarem conteúdos de pensamento julgados
conformistas demais. Mas a questão é primeiramente a da
própria forma. O pensamento já seria por si mesmo conforme a
um modelo emprestado do aparelho de Estado, e que lhe
fixaria objetivos e caminhos, condutos, canais, órgãos, todo um
organon. Haveria portanto uma imagem do pensamento que
recobriria todo o pensamento, que constituiria o objeto
especial de uma "noologia", e que seria como a forma-Estado
desenvolvida no pensamento.2

Os autores vão mostrar que o pensamento, na sua relação com o fora, com a
exterioridade, implica a demolição da imagem.
São os atos de um "pensador privado", por oposição ao
professor público: Kierkegaard, Nietzsche, ou mesmo
Chestov... Onde quer que habitem, é a estepe ou o deserto. Eles
destroem as imagens. Talvez o Schopenhauer educador de
Nietzsche seja a maior crítica que se tenha feito contra a
imagem do pensamento, e sua relação com o Estado. Todavia,
"pensador privado" não é uma expressão satisfatória, visto que
valoriza uma interioridade, quando se trata de um pensamento
do fora. [...] Todo pensamento é já uma tribo, o contrário de
um Estado. E uma tal forma de exterioridade para o
pensamento não é em absoluto simétrica à forma de
interioridade [...] a forma de exterioridade do pensamento — a
força sempre exterior a si ou a última força, a enésima
potência — não é de modo algum uma outra imagem que se
oporia à imagem inspirada no aparelho de Estado. Ao
contrário, é a força que destrói a imagem e suas cópias, o
modelo e suas reproduções, toda possibilidade de subordinar o
pensamento a um modelo do Verdadeiro, do Justo ou do
Direito (o verdadeiro cartesiano, o justo kantiano, o direito
hegeliano, etc.). [...] O pensamento é como o Vampiro, não tem
imagem, nem para constituir modelo, nem para fazer cópia. No
espaço liso do Zen, a flecha já não vai de um ponto a outro,
mas será recolhida num ponto qualquer, para ser relançada a
um ponto qualquer, e tende a permutar com o atirador e o
alvo.3
1
Lógica do Sentido, p. 131 [P. 108 da edição em espanhol disponível no grupo]
2
Mil Platôs, [ed. bras. Volume 5, p. 43] [Platô 12, Problema II, Proposição IV]
3
Mil Platôs, [ed. bras. Volume 5, pp. 46-47] [Platô 12, Problema II, Proposição IV]
Pode-se dizer que o pensamento rizomático, tal como os autores o definem no início de
Mil Platôs, responde perfeitamente a essas exigências. O deserto, o espaço liso, a
geografia plana, a exterioridade pura, apenas aí o pensamento como multiplicidade
(tribo) pode deslocar-se fora das estriagens do “espaço mental” imposto pelas imagens
clássicas do pensamento e seus modelos. 4

Plano de imanência.
Mas eis que a imagem do pensamento recebe de Deleuze [e Guattari], num de seus
últimos livros [O que é a filosofia?, 1991], um nome inusitado: plano de imanência.
O plano de imanência não é um conceito pensado nem
pensável, mas a imagem do pensamento, a imagem que ele se
dá do que significa pensar, fazer uso do pensamento, se
orientar no pensamento...5

Se nos textos citados acima havia uma reivindicação clara por um pensamento evacuado
de seus pressupostos extra-filosóficos e suas estriagens (um “pensamento sem
imagem”), agora já se expõe o mecanismo da instauração do plano não-filosófico
necessário à filosofia. Ora, o que mudou de um texto a outro? Nada. Ao contrário,
assistimos apenas a uma radicalização da mesma idéia. O pensamento sem imagem, no
sentido de sem forma ou modelo prévios, continua sendo reivindicado, mas com outro
nome: o de um plano de imanência realmente “imanente”. Admite-se agora, com mais
clareza, que o pré-filosófico não pode ser abolido, pois faz parte da filosofia,
intrinsecamente:
Pré-filosofia não significa nada que preexista, mas algo que
não existe fora da filosofia, embora esta o suponha.
O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a
própria filosofia.6

Também se admite que o plano deve ser construído ao mesmo tempo que o conceito.
Cada filósofo constrói seu plano, ou se instala num plano de imanência já constituído. O
que se critica, então, não é o plano de imanência em si, mas o plano em que a imanência
não é absoluta:
Cada vez que se interpreta a imanência como imanente a Algo,
pode-se estar certo que este Algo reintroduz o transcendente.7

4
Mil Platôs, [ed. bras. Vol. 5, 49]. [Platô 12, Problema II, Proposição IV]
5
O que é a filosofia, [ed. bras. p. 53] [O plano de imanência]
6
O que é a filosofia, [ed. bras. p. 57.] [O plano de imanência]
7
O que é a filosofia, [ed. bras. p. 63] [O plano de imanência]
[como seria o caso de] Descartes, Kant, Husserl e o campo da consciência em suas
formas diversas, por exemplo a forma do eu.
Já podemos ao menos juntar o que expusemos no início. Se “sem imagem” significa
sem Modelo, sem Forma, é porque significa, mais radicalmente, sem transcendência,
imanência pura. Um pensamento sem imagem é um pensamento da imanência...
Mas é quando uma solução parece impor-se que a questão é relançada. Pois afinal, com
o que será que opera um plano de imanência, se não opera com conceitos?
Recapitulemos. A filosofia necessita dos conceitos e do plano de imanência, “como
duas asas ou duas nadadeiras”. Diz Deleuze:

Precisamente porque o plano de imanência é pré-filosófico, e


já não opera com conceitos, ele implica uma espécie de
experimentação tateante, e seu traçado recorre a meios pouco
confessáveis, pouco racionais e razoáveis. São meios da ordem
do sonho, dos processos patológicos, das experiências
esotéricas, da embriaguez ou do excesso.8

Não podemos dizer que se trate de imagens, obviamente, ainda que isso não esteja de
todo descartado. Mas entre o plano de imanência e os conceitos, Deleuze evoca algo que
tem uma existência “misteriosa”, “fluida, intermediária entre o conceito e o plano pré-
conceitual, indo de uma a outro” . São as personagens conceituais. Distintas das figuras
9

estéticas, que operam com Imagem do Universo, estas operam com Imagem de
Pensamento-Ser . Ora, que Imagem é esta, própria à filosofia, ao Pensamento-Ser, e do
10

qual se nutre a personagem conceitual? Mais próxima da matéria do sonho, da


embriaguez, mais fluida e fluente... Não hesitaríamos em acrescentar: mais próxima à
própria matéria, na sua fluência e vibração. Deixemos apenas indicado que Deleuze diz:
matéria do Ser ou imagem do pensamento [...]. 11

8
O que é a filosofia [ed. bras. p. 58] [O plano de imanência]
9
O que é a filosofia [ed. bras. p. 83] [Os personagens conceituais]
10
O que é a filosofia [ed. bras. p. 88] [Os personagens conceituais]
11
O que é a filosofia [ed. bras. p 62] [O plano de imanência]

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