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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU - HISTÓRIA DO BRASIL

TRABALHO PARCIAL 3 - MÓDULO REPÚBLICA - LIVRO 1

UMA REPÚBLICA ENTRE MITOS, EXPECTATIVAS E REALIDADES

por Cláudio de Almeida

Turma C

Niterói

2007

Resenha crítica sobre CARVALHO, José Murilo de “A formação das almas - O Imaginário

da República no Brasil”. Companhia das Letras, 15ª reimpressão, 2005, São Paulo. 1990.
José Murilo de Carvalho consolidou sua fama, muito justa por sinal, ao produzir obras

marcantes no cenário da historiografia nacional, e que se de imediato não foram alçadas à

condição de clássicos, o são hoje. Tal é o caso deste A Formação das Almas - o imaginário

da República no Brasil, ou seu trabalho anterior, hoje uma obra de referência, A Construção

da Ordem e O teatro das Sombras, onde ele procede um mergulho na formação da elite

imperial, conduzindo seus leitores até a porta do “clube” de cavalheiros que com fraques,

cartolas e bengalas - leia-se conexões, prestígio e poder - distinguiam-se em relação ao

“populacho” em geral.

Já neste estudo, revisitando a República então recém instalada ele analisa a construção

das suas estruturas culturais, o seu universo imaginário nascente, os objetivos das diversas

correntes republicanas - tais como os jacobinistas, federalistas ou positivistas (aí incluindo

diferentes matizes nestas classificações) -, em meio a ausência de uma efetiva participação

popular. Noutro viés, as considerações sobre a Democracia, o ideário positivista, se

Rousseau ou Comte, etc, transcorrendo em círculos restritos e apartados da população como

um todo - ocorria uma acertada convergência da geometria com a realidade social brasileira

naquele final do século XIX .

São 6 capítulos reunidos à partir de ensaios, palestras, publicações especializadas ou

assemelhados, revistos no sentido da originalidade do texto, e que incluem abordagens acerca

de estatuarias, simbolismos republicanos e/ou positivistas, o manejo de fontes chargistas e

memoriais onde o autor se debruça sobre os meandros das diferentes utopias republicanas,

seus dilemas iniciais ou na busca do personagem heroicizado que encarnasse as aspirações

coletivas pela criação de um outro contexto simbólico, legitimador do novo regime e capaz

de prover os elementos compensatórios à uma “revolução sem povo”.

No 1º capítulo, intitulado Utopias Republicanas, José Murilo inicia sua análise

ponderando sobre como o dilema acerca da liberdade do homem, se pública ou privada/


patrimonial, repercutiam sobre a delegação de poderes e as liberdades civis. Dilema fundador

de tantos outros dilemas no contexto em que as relações de domínio social e econômico,

abriam-se à redefinição de um novo pacto político.

Nele, distintas concepções de governabilidade e das práticas de poder no sentido de

superar o legado imperial, alicerçado por exemplo no constitucionalismo britânico ou no

centralismo franco-lusitano, decorriam das diferentes visões sobre o que era afinal a

República almejada. Assim, a centrifugação das idéias e possibilidades republicanas faziam

divergir os projetos que as facções acalentavam entre si para esta República, simultaneamente

à perpetuação das desigualdades sociais, das negociatas e prevaricações, do paternalismo

estatal ou do patriarcalismo, que transmutavam a virginal República numa licenciosa

marafona.

No capítulo seguinte, As Proclamações da República, ele trabalha a conflituosa

definição de uma versão oficial dos episódios e personagens. E nesta construção de um

“marco zero” recriador, as versões lançavam tanto luz como sombra sobre as pessoas e suas

atuações nos eventos.

Ao lado de uma irônica “guerra dos vivas”, temos também o embate entre os

deodoristas e os partidários de Benjamin Constant, estes pretendendo que a nascente

República fosse mais uma mudança de governo que uma mera quartelada. Já na atuação dos

ortodoxos civis, ele desenvolve um estudo acerca de uma atuação “bolchevique” para uma

parcela da classe média.

No 3º capítulo, Tiradentes: um herói para a República ele debruça sua análise na

ausência de uma autêntica mobilização popular, quiçá uma adesão mais explícita, o que

implicou a necessidade de prover estímulos simbólicos compensatórios. Por sinal, tais

estímulos foram sujeitos à manipulações, reinterpretações ou recriação, como se exemplifica

na análise ao monumento à Floriano Peixoto. Neste, o segundo presidente republicano vêm


associado a elementos positivistas dos quais ele era distante, ou seja, estava positivista, já que

não o tinha sido na prática.

Foi dentro deste contexto de adaptação da memória e de seu contexto simbólico,

vertebrando o imaginário popular, que emergiu então a necessidade de buscar-se um

personagem que encarnasse valores almejados, um herói que sintetizasse o novo tempo, o

novo regime ou a nova ordem.

Na balança de prós e contras foram pesados, e dispensados, Deodoro da Fonseca

(muito idoso e quase moribundo), Floriano Peixoto (despótico), Benjamin Constant (um

quase desconhecido), os líderes farrapos (regionais demais, típicos demais) e até Frei

Caneca. Este por sinal, possuidor de méritos como o martírio pessoal n a luta contra a

opressão, acabou descartado por sua pouca ou nenhuma expressão supra regional.

Neste debate insinuou-se, não sem percalços, a figura de Tiradentes. Se por um lado

ele possuía apelo e apego populares, sua atuação libertária fora esmaecida pelo tempo de

cativeiro e sua submissão aos seus confessores franciscanos. Nesta época, ele teria abraçado

o misticismo e o fervor religioso, em detrimento das causas inicialmente a ele associadas.

Para Joaquim Norberto de Souza Silva, “Prenderam um patriota; executaram um frade”.

Definido o herói, o autor lembra que o seu esquartejamento foi reatualizado, posto

que até monarquistas arvoraram-se em herdeiros de seu legado - neste caso a Independência

concretizada sob a Casa de Bragança.

Tal e qual, a figura feminina também foi objeto de associações e reinterpretações

libertadoras ou revolucionárias, conforme vê-se em A República-mulher: entre Maria e

Marienne.

De virgem-mãe, mulher idealizada e apologética - a ponto de Augusto Comte almejar

incorporar as feições de sua amante em todas (por que não?) bandeiras ocidentais, foi sendo

substituída por seu oposto: a mulher desregrada, meretriz, precocemente envelhecida - tal
qual as aspirações e esperanças suscitadas pelo advento republicano frustraram-se e se

esmaeceram.

Em situação de fina ironia, consolidou-se a imagem de N. S. Aparecida e a afirmação

do culto mariano oriundos do legado da Igreja Católica e foco de resistência anti-republicana.

Assim, a laica Marienne, com ou sem barrete frígio, acabou num segundo plano ante o ícone

místico representado pela devoção à Nossa Senhora Aparecida - vitória do símbolo feminino,

ainda que não o esperado.

No 5º capítulo ele nos mostra como a Bandeira e Hino: o peso da tradição também

expuseram uma disputa simbólica compartilhada. Se por um lado a bandeira nacional e o seu

lema eram apontados como sinais do novo tempo, a tradição também teve seu quinhão de

vitória: o hino nacional - autêntica vitória popular - e as cores do pavilhão [embora estes

fossem relidos].

Analisando a questão da bandeira nacional, ele nos assinala que a mesma foi logo

objeto de regulamentação e legislação, destacando-se sua importância como símbolo. No

entanto isso não evitou que o mesmo pavilhão servisse de canal de crítica e contestação.

Num episódio, Agostini substitui o lema da bandeira por “desordem e retrocesso”; noutro, até

a representação do céu em 15 de novembro de 1889 é objeto de ressalvas quanto à sua

veracidade.

No 6º capitulo intitulado como Os positivistas e a manipulação do imaginário ele

expôe as divergências dentro do movimento positivista (antes e depois de Clotilde de Vaux, a

amante de Comte) com a “Filosofia da História” derivando para uma “religião da

humanidade”, paródia do catolicismo com um sentido cada vez mais afirmativo de “culto”,

hierarquia e orientação dos templos positivistas em relação à França - espécie de Meca para

onde se voltavam as construções positivistas.

Retomando um tema de A construção da Ordem, qual seja o da formação de uma


contra-elite, ainda nos tempos de Pedro II, ele destaca que esta, em sua trajetória

profissional, por sua formação acadêmica tecnicista e racional, contraditoriamente, ao invés

de reafirmar o primado da razão acabou dependente de uma certa religiosidade. Devido a

necessidade de ampliar suas bases sociais, esta elite viu-se premida em buscar na simbologia

religiosa aquilo que faltava em adesão espontânea. Ou seja, uma fração da classe média, em

meio a sacralização cientificista do final do XIX viu na apropriação de ritos e símbolos

místicos um instrumento de mobilização social. Depender da religião e não da razão, era a

contradição na qual eles inseríam-se, ou aprisionavam-se.

Além disso, ante os impasses, as urgências, as definições acerca do relacionamento

com o Estado e com outras classes sociais, com as mulheres e católicos em geral, também

contribuíram para delimitar uma definição esboçada anteriormente: a bolchevização da

classe média - termo de uso restrito e evocativo de uma parcela (ou vanguarda) que atuava

coesa, homogênea e militantemente.

Encerrando o trabalho ele recupera e destaca alguns dos temas anteriores, como: por

que o novo simbolismo republicano pouca ou nenhuma repercussão conseguiu no meio

popular; as divergências entre as diversas facetas republicanas; e a questão da necessidade de

um mito fundador e celebrativo da “nova ordem”.

Num texto que equilibra erudição e fluidez, temas e conclusões em proporções

simétricas, o trabalho chega à conclusão fornecendo subsídios relevantes para um tema que

no geral, por seu caráter especulativo - análise de simbologias e os imaginários coletivos e/ou

individuais -, suscita ao debate, à revisitação das fontes e o teste das suas conclusões.

Formar almas, tal como formar cidadãos - ou uma cidadania coletiva - era trabalho

exigente no sentido de cristalizar uma empatia, um sentido de adesão ou pertencimento, sem

que se desprezasse o fato primordial: aquele povo era espectador, e não ator em primeiro

plano.
Poucos textos são tão apropriadamente atuais!

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