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P rojeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESEISTTAQÁO
DA EDIQÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razio da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
;•" visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.
Eis o que neste site Pergunte e
Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.
Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.
Pe. EstevSo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
DOGMÁTICA

L
HKtÓ'RíA DO

OVEMBRO 1967 a Mr» viii


ÍNDICE

L FILOSOFÍA E RELIGIAO

1) "A crenga na imortalidade da alma parece ser vestigio


da antiga mitología e projecño fantástica de um váo desejo dos
homens.

Como se pode provar racionalmente que tudo nao se acaba com


a morte ?" 4SS

n. SAGRADA ESCRITURA

Z) "Falencia do diabo I Pobre diabo I

O demonio morreu. Era produto de imaginacáo. Diz-se que


sutniu até mesmo do Catecismo Francés" 461

DI. DOGMÁTICA

S) "A crenca na virgindade de María é muito estramha A


mentalidade moderna. Será realmente um dogma de fé ?

Que sentido pode ter a expressáo 'sempre virgem María' ?" . 472

i) "Existe o pecado na Igreja, e a Igreja precisa de reno-


vaeáo e purificaíáo. Como entáo se pode dizer que Ela é a Esposa
de Cristo, sem mancha nem ruga ?" 48$

IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

S) "Qual o significado da recente visita do Papa Paulo VI


á Turquía f

Porque teve essa viagem menor repercussáo do que as ante


riores no plano internacional ?" ÍS7

Apéndice: Quadro religioso da humanidade 498

CORRESPONDENCIA MIÚDA (Cuernavaca e psicanálise).. 499

CÍOM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUMTE E RESPONDEREMOS»

Ano VIII — N> 95 — Novembro de 1967

I. FILOSOFÍA E RELIGIAO

MÉDICO (Sao Paulo) :

1) «A crenca na imortalidade da alma parece ser vesti


gio da antíga mitología e projecao fantástica de um vao desejo
dos homeiis.
Como se pode provar racionalmente que tudo nao se acaba
com a morte ?»

O ser humano consta de corpo (materia) e ^etetovttal


(alma espiritual), que anima o corpo; cf. «P.R.» 87/lSbí,
qu 1 Enquanto o corpo conserva íntegras sua estrutura e sua
organizacáo, a alma exerce por ele as funcóes da vida. Desde,
porém, que se desgaste, a ponto de nao poder ser mais sede
da vida, a alma se separa déle.
O corpo entáo se reduz a poeira.
E a alma ? Perece ? Ou sobrevive imortalmente ?
Esta questáo é de importancia capital para a orientagáo
da vida humana, como bem notava o filósofo Pascal (t 1662) :
«A imortalidade da alma é algo que nos importa e aleta profun
damente. É preciso que alguém tenha perdido todo o senso das coisas
pira se deixar ficar na indiferenca a ésse propósito. Todos «nonos
atos e pensamentos tomam rumos muito diferentes conforme naja ou
nao bens eternos a esperar. Só nos é possível empreender algo com
consciéncia e juizo senos deixamos guiar por ésse tema, que deve
se? o nosso supremo motivo de orlentacao. Por conseguinte. nosso
ii interesse e nosso primeiro dever consistem em que nos es-
sobre tal assunto, donde depende todo o nosso compor-

Em^motaíírmalao mesmo Pascal: «Importa, para a vida


inteira, sabermos se a alma é mortal ou imortal».

Nao sómente o rumo de nossa vida pessoal, mas também


as relagóes com o próximo dependem da crenca ou nao na
imortalidade da alma. O filósofo existencialista Gabriel Marcel,
em urna de suas pegas de teatro, introduz.um personagem que

— 453 —
2 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 1

faz a seguinte confidencia: «Amar alguém é dizer-lhe: 'Tu


nao has de morrer !'»
Ñas páginas que se seguem, em continuagáo do que foi
dito em «P.R.» 2/1957, qu. 5, seráo apresentados alguns ar
gumentos de razáo filosófica para provar que a vida humana
So termina com a separagáo de alma e corpo; a alma sobre
vive sem fim por sua própria natureza, nao por pnvileg o
nem por um dom sobrenatural, e sobrevive conservando sua
individualidade e lúcida consdéncia de si mesma; o «eu» se
recSce após a morte, guardando sua idenüdade pessoal,
continuando a conhecer e amar.

Afirmando isto, distanciamo-nos do


a) panteísmo, segundo o qual a alma, após a morte
se perde na substancia do Grande Todo ou do Absoluto. É o
que professam certas crencas hinduistas, assim como o filó
sofo Baruch Spinoza (t 1677) ;
b) positivismo, que só reconhece urna sobrevivencia me
tafórica; o homem se perpetuaría apenas na memoria e no amor
do* seus descendentes. Para cultuar essa imortahdade, Augusto
Comte (j^1857) lundou a religiáo da Humanidade, que venera
os grandes homens do passado.
Tres sao os principáis argumentos filosóficos em favor
da imortalidade da alma.

1. Deus o deve a Si mesmo

1 A experiencia ensina que um ser morre


re ou
ou deixa
deixa de
existir quando se desintegra ou desagrega ou decompoe. AA
morte é sempre conseqüéncia da decomposigao.
2. Ora a alma humana é destituida de partes compo
nentes ou integrantes, de quantidade, de extensao. É sim
ples, porque é espiritual; cf. «P.R.» 87/19b7, qu. i.
3 Em conseqüéncia, vé-se que a alma humana nao está
«niieitk a se decompor; ela nao traz em si principio algum de
ñS? ou desSSáo. É, pois, imortal em virtude da sua
própria natureza.
Mesmo que o corpo se destrua, ela nao se destrói (como
se desS o Principio ^tal do animal irracional), porquero
é parte do corpo. O espirito é de natureza diversa do corpo
e subsiste independentemente da materia.

— 454 —
TMORTALIDADE DA ALMA

4. Mas como se poderia provar que dentro do ser humano


existe algo de náo-material ou espiritual ?
O assunto já foi amplamente abordado em «P.R.» 5/1958,
qu. 1 e 2.
Aqui a título de complemento, seráo propostas algumas
observacóes, assaz significativas, feitas em torno de pessoas
surdas, mudas e cegas.

a) Marie Heurtta nasceu em 1885, surda, muda ecega. Eradfr


sesttéro de causa, seu pai entregou-a com dez anos de idade (l/m/1895)
á Ifcola de Sa^ dirigida por Irmas educadoras, A mesma menina
á Drimeira vista parecía ladada a levar vida mais infeliz do que a
dos* SaisTrracionais, pois, «para penetrar pelas Inúmeras, portas
do mundo fechado que a cercava, so tinha o molhe de chaves formado
pelos seus dez dedos», (Lucien Descaves).
Urna das Religiosas — a Irma Santa Margarida — encarregou-se
de empreender a educacáo da jovem.
A principio teve que lutar contra os íreqüentes acessos ff cólera
de Marie. Um belo día, tendo observado que a menina se deleitava em
brincar ¿om um cañivete, retirou-lhe da mao éste objeto; Marie se
enfureceu. Entao a Religiosa lho devolveu por um momento; a se
guir colocou-lhe urna das maos sobre a outraem sentido perpendi
cular como se a íósse cortar (tal é o slnal para designar a faca entre
os surdo-mudos). A menina de novo mostrou-se irritada; mas: lem-
brou-se de fazer por si mesma o slnal convencional que acabava de
atender ¡avista disso, a Irma Ihe restituiu definitivamente o cañivete.
Marie mostrou assim que compreendia haver urna relacáo mis
teriosa entre o canivete e o sinal de maos. Tendo concebido a ídéia
de relacáo Marie pdde aos poucos aprender outros sinais convencio.
^ispaVa'designar outros objetos A Irma Ihe «>«no»o aUabeo
dactilóEico (as letras expressas pelos dedos); a Religiosa ihe lazia
sent r na ponta dos dedos a equivalencia existente entre sinais novos
e dwompostos e o sinal sumario e simples que a jovem ]á aprenderá
PosSrmente Marie aprendeu a equivalencia de todos fses sinais
dos dedos e de conjuntos de furos feitos sobre papel segundo o método

di mSedas ém sua bolsa; fez também que passasse as maos sobre¡o


semblante lizo fresco e juvenil de urna Irma e, a seguir, por contraste
Ssl a cabe'ca trémula, a pele rugada e o dorso encurvado de Urna
pessoa octogenaria.
Por ésses meios rudimentares, Marie penetrou no mundo dos con-
ceitos absSatos, como sao misérU e riqueza, juventude e velhice, gran-
dt^ e peqWei; isolou os predicados percebidos (veUio, jovem, rico
TObre grande e pequeño) das condigñes concretas de espaco e de
fempo Si que os havia conhecido, e concebeu as noC5es perenes de
jwentude e velhice, pobreza e riqueza, pequenez e grandeza. — Per-

— 455 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 1

cebeu a pobreza e a velhice como realidades que amecarn todos os


homens em todos os terapos e que a ela mesma ameacavam a tal
ponto que Marie se mostrou instintivamente revolta contra tais rea
lidades durante horas.
Marie Heurtin pdde assim granjear cultura e tornar-se útil para
a sociedade. Faleceu em 1921.
Vé-se que a idéia de relacáo ou proporcáo foi, para Marie Heurtin,
a chave da aprendizagem. Tendo essa idéia, a jovem conseguiu asso-
ciar sinais sensíveis e conceitos abstratos, universais: tal ou tal con-
íieuracáo dos dedos, das máos ou dos furos de papel com as nocoes
eerais de instrumento cortante, velhice, juventude, riqueza, pobreza,
pal mae, irmao. Ora a idéia de relacáo ou proporcao nao pode ser o
produto de órgáos sensiveis, materiais, pois estes só apreendem as
coisas concretas. A idéia de relagáo e a capacidade de refletir e gene
ralizar escapam ás possibilidades do conhecimento sensivel. Donde se
conclui que havia em Marie Heurtin, como há de resto em todos os
demais seres humanos, urna íaculdade de agir imaterial ou espiritual,
b) Antes do caso de Marie Heurtin, já se registrara o de Marta
Obrecht, também surda, muda e cega. Confiada k mesma Escola de
Larnay foi educada pela Irma Branca, que lhe aplicou processos
semelhantes aos do caso Heurtin. De modo especial fez que Marta
voltasse sua atencáo para o conceito de mSé: a menina aprendeu
a discernir o que é essencial na figura da genitora; concebeu assim
a nocáo geral ou universal de máe, dlstinguindo-a de notas contingen
tes que se podem encontrar nesta ou naquela mae. No fim do apren-
dizado, Marta, percebendo o papel materno de sua preceptora, escre-
via : «A Irma Branca é mae para Marta».
A Irma Branca procurou também sugerir a Marta a idéia de
futuro: em dado momento, a menina se levantou bruscamente, e,
estendendo os bracos para a frente, p6s-se a caminhar rápidamente
diante da Irma; acabara de conceber a clássica comparacao da vida .
com urna estrada.
A educadora conseguiu outrossim despertar na jovem a nocao de
seres imateriais, como alma e Deus; Marta assimilou também pro-
posicSes de fé e moral. Em 1910, entregava-se aos afazeres de dona
de casa, á datilografia, á costura (a máquina) e a outros misteres
técnicos.
c) Ana María Poyet tornou-se cega e surda com a idade de tres
meses. Nao obstante, seu pal íoi-lhe educando o tato, de modo que
pdde conhecer e exprimir muitas noc8es. Um sópro sobre a mao signl-
ficava pal, dois sopros mae, tres sopros avó. Aos sábados, quando
o pal, simples trabalhador, voltava á casa, trazendo o salarlo da se
mana, a menina palpava as moedas respectivas e, reconhecendo-lhes
o valor, manifestava a sua alegría.
A íespeito dos tres casos citados, vejase Amould, «Ames en
prison».

Urna reflexáo sobre as tres jovens que acabam de ser


mencionadas, permite concluir que, no ser humano, mesmo
destituido dos melhores de seus sentidos externos, existe um
principio de atividade capaz de distinguir ñas criaturas o que
há de concreto, material e contingente, e o que há de perene,

— 456 —
IMORTALIDADE DA ALMA

imaterial e universal; ésse principio de atividade, que trans-


cende o concreto e percebe relacóes ou proporgóes, ha de ser
imaterial, pois a toda atívidade corresponde ura principio ade-
quado; tal principio é o que se chama «a alma humana»
espiritual e, por conseguinte, imortal.
5 Pergunta-se, porém: dado que o homem tenha urna
alma' imortal, nao se pode conjeturar que Deus a queira
aniquilar? , . ._
A rieor Deus, que tirou as criaturas do nada, pode
tamblm reS-iaí^'nida. Todavia o Senhor rege cada ser
seCdo as leis da sua própria natureza; a justiga e a sabe-
dS de Deus o exigem ; o Senhor nao derroga aos seus dons,
nem contradiz arbitrariamente as suas obras.
Ora a imortalidade é urna propriedade de todo serespi-
ritua? fof o prSio Criador quem a instituto. Consequente-
merte É e a reípeita e nao lhe contradiz; o Criador deve a
Z jus£a e sabedoria a conservagáo dessa alma mortal.
Na verdade, Deus pode nao querer - e, por isto, pode
nao criar — urna alma espiritual. Dado, porém, que a queira.
Se a quer com tudo que naturalmente lhe compete; por
conseguinte, .. .com a imortahdade.

2. A sede de vida

O raciocinio se desenvolve em tres etapas.


1. Todo homem aspira naturalmente a viver, e a vi-
! asniracáo é táo espontánea que ela é neoessária;
quuf£»
£ alguní coisa, a criatura humana a quer em
a feíiddade a que o homem tende, é a
lta a qual inclui em seu conceito a
AtiicSe tempó^riamente limitaa ^^
limitada «^^
bens finitos sao,
sao para nos,
nos o reflexo de ^^p^^Jf
fundo e duradouro; agugam em nos o desejo de Plemtudé
Eternidade, que se encontra latente em todo homem.
Verdade é que nem todos concebem do mesmo modo a
felicidade irrestrita: alguns a procuram ñas riquezas;^outi-os,
na ciencia; outros. na virtude. Como quer que seja, todosi sem
excecáo, crentes e ateus, aspiram invenavelmente a ser felizes
sem limites.
liites

— 457 —
6 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 1

Pascal observava:

«Todos os homens procuram a felicidade; neste ponto, nao há


excecSo Por mais diversos que sejam os meios utilizados, todos ten-
dem a ésse objetivo. O que faz que uns váo para a guerra e outros
nao, é ésse mesmo desejo, que está em uns e outros, colocado dentro
de perspectivas diversas. A nossa vontade nao toma a mínima de
suas iniciativas a nao ser em vista de tal íim. A felicidade é o
motivo de todas as ac8es, de todos os homens, até mesmo daqueles
que se enforcam» (Pensées n* 425).
Sim; mesmo aqueles que se suicidam, procuram ser felizes
Julgando que sua vida na térra é de todo insustentáyel, procuram
melhor sorte no repouso que lhes parece provir do suicidio.
Iludem-se ; mas, mesmo iludidos, estáo procurando algo que, para
éles, tem a semelhanca de íelicidade.

Em outros termos: Deus, que é o Autor da natureza


humana, deve ser também, em virtude de sua sabedoria e
perfeicáo, o Consumador das aspiragóes espontáneas dessa na
tureza. As virtualidades naturais do homem sao também pro-
messas do Criador. Observe-se o mundo que cerca o homem:
há correspondencia harmoniosa entre as faculdades e as fun-
cóes entre os meios e os fins: a existencia do ólho implica
em existencia da luz; a existencia do pulmáo, em existencia
de urna atmosfera respirável; a existencia do ouvido, em
existencia de vibracóes sonoras. Mais ainda: quando, ñas pro
ximidades do invernó, o instinto leva as andorinhas a pro
curar um clima mais ameno, o observador pode estar certo
de que elas o encontraráo.
Pergunta-se, pois: a correspondencia existente entre os
instintos ou as virtualidades naturais das criaturas e seus res
pectivos objetivos há de ser contraditada apenas no homem,
no homem que aspira á felicidade infinita ? Tal aspira-
¿áo nada teria que lhe correspondesse na realidade ? Sena
dirigida para o vazio ou para o logro ?
Parece que, ao contrario, em lógica sadia se deve dizer:
o profundo desejo de sobrevivér que todo homem experimenta,
supóe necessáriamente urna sobrevivencia real. A sá razao
recusa-se a aceitar que a obra-prima da criaeáo, o homem,
tenha o monopolio das aspiracóes sem objeto. A felicidade sem
fim que nos atrai e atormenta, nao pode ser mera ideía ou
quimera...
3. Destas consideracóes conclui-se que o homem possui
urna alma que, por sua natureza, é imortal ou destinada a
apreender a felicidade sem fim a que ela espontáneamente
aspira. A dissolucáo do corpo humano, pela morte física, nao

— 458 —
TMORTALIDADE DA ALMA

extingue a vida da alma, mas, ao contrario, fá-l& entrar no


seu estado definitivo.
4 Mas, dirá alguém, deve-se entáo crer que todos, os
desejos dos homens, pelo fato de serem veementes, encontram
aceitacáo da parte de Deus e, cedo ou tarde, se realizam ?
Os homens nao aspiram a tantas coisas utópicas e impossiveis?
— Por certo, nao se pode esperar que todo e qualquer
desejo livremente concebido pelo homem seja preenchido;
almejamos muitas coisas fantasistas, que Deus em sua. sabe-
doria nao nos pode prometer. Todavía as aspiracoes que con
cebemos anteriormente a qualquer deliberacáo ou ¡seja, de
maneira espontanea e natural, nao podem ser frustradas. Se
nos sao incutidas pela natureza, vém do propno Deus, o qual,
conseqüentemente, se empenha por lhes dar a resposta .ade
cuada O Criador nao teria excitado em nos a sede de viver,
e viver em plenitude, se nao nos quisesse saciar na proporcao
mesma da nossa sede.

3. A justa retribuido

1 Deve haver justa sangáo para o bem e o mal: re


compensa para a virtude, castigo para o vicio. Essa sangao
há dVser universal (destinada a todos os homens) e propor
cional ás responsabilidades de cada um.
Exige-o de um lado, a consciénda moral, voz mistenosa
que fala espontáneamente dentro do homem.
Exigem-no, de outro lado, a justiga e a providencia de
Deus. O Senhor nao se pode mostrar indiferente ao bem e ao
mal Deus nao seria Deus se a generosidade, a justiga, a cas-
tidade, fóssem para sempre tratadas do mesmo "modo que o
crime, o deboche, o egoísmo...
2 Ora a experiencia demonstra que as sang5es nesta
vida sao imperfeitas ou, por vézes, nulas. Nao ha proporgáo
entre o bonVcomportamento dos homens e a felicidade; as
nessoas honestas sao, por vézes, desgragadas, ao passo que
as libertinas obtém éxito. Os códigos penáis so ateigemjuna
minoría de culpados e reprimem apenas as faltas que preju-
dicam a ordem pública. As leis sao impotentes para recom
pensar o bem oculto e a dedicagáo ignorada. Por_ sua vez, a
sodedade nem sempre é justa ao atribuir admiragao, estima e
honra a determinadas pessoas. Nota-se mesmo que o ser
humano pode sufocar a sangáo da sua própria consciencia :

— 459 —
g «PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 95/1967, qu. 1

embota-a de tal modo que os remóreos freqüentemente dimi-


nuem na medida em que a culpabilidade aumenta.
3 De tais fatos deve-se concluir que há necessáriamente
urna ¿ida futura, em que cada um receberá a sangáo prepa-
rada por sua própria ¿onduta. A exigencia dessa restaurado
da ordern está gravada no íntimo do coracao de todos os
homens.

Vítor Hugo dizia que. «se tudo terminasse no túmulo, Deus nao
poderla ser comparado" nem mesmo a um homem honesto».

No séc IV a C , um autor judeu dava, do seu modo,


testemunho" das proposigóes ácima observando o aparente
«escándalo» das sancóes neste mundo :

«¿-.tras
«orno o p^d», „ o p.rj«o «»o

assaw ss
(Ecle 9,11).
O autor sagrado mostrava-se perplexo e amargurava-se
ao fazer tais observagSes, porque nao sabia que a alma^ Humana
está destinada a continuar a sua vida consciente apos a sepa
rare, do corpo. Os judeus admitíam, sim, a sobrevivenciaida
a?ma para todo o sempre; julgavam, porem, que, ao deixar o
corpo a alma entrava num estado de torpor, que a tornaya
fnSáz de qualquer sangáo. Somente aos poucos, no Antigo
Testamento mesmo, os judeus, sob o influxo da Revelagao

cap. XII (ed. AGIR, Rio de

4. Conculsáo

Os tres argumentos apresentados em favor da imortalidade


da alma se corroboram mutuamente.

— 460 —
«FALENCIA DO PIABO»

Vé-se que recusar a sobrevivencia pessoal e consciente


do ser humano equivale a fazer do homem urna simples peca
da máquina do mundo e reduzir a historia a um jógo de con-
corréncias movidas pela esperteza e a brutalidade. Consequen-
temente, como diz Blondel, o problema da imortalidade «torna-
-se a pedra de toque que manifesta o valor das doutrinas, a
chave que abre o misterio da vida» («Supplément de la Vie
Spirituelle», oct. 1939, pág. [11]).
Nao há dúvida, a alma, separando-se do corpo, entra em
novas condicóes de existencia: deixa de exercer as fungóes da
vida vegetativa e sensitiva, que dependem de órgaos corpóreos.
Mas nem por isto é destituida de suas atividades mais elevadas,
que sao as da vida intelectiva; ela continua a gozar das facui
dades de pensar e amar. Por conseguinte, conhece, pensa e
ama e, segundo S. Tomás, ... de maneira muito mais desim-
pedida, muito mais profunda e pura, do que quamdo unida ao
corpo, que a sujeita á opacidade da materia e as paixoes da
concupiscencia (cf. Suma Teológica I qu. 89).
A rcspeito da vida postuma, veja-se E. Bettencourt, «A vida que
comeca com a marte» (ed. AGIR 1958).
A propósito da teoría da reencarnacao, cf. «P.R.» 29/1960, qu. 3-

II. SAGRADA ESCRITURA

JOAQUDI (Río de Janeiro):

2) «Falencia do diabo! Pobre diabo !


O demonio morreu. Era produto de imaginaeáo. Diz-se
que sumiu até mesmo do Catecismo Francés».

A revista REALIDADE, em seu número 17, de agosto de


1967 (pág. 90-98), publicou mais um artigo que toca a Religiáo.
Á semelhanca dos anteriores, também ésse comentario se res-
sente de falta de criterio: apresenta dados lendários juntamente
com proposigóes verídicas, informando erróneamente os leitores.
Ñas páginas que se seguem, procuraremos analisar a tese
geral e algumas das principáis afirmacóes do artigo citado.

— 461 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 2

1. O teor do artigo

Chama a atengáo, antes do mais, o estilo do articulista:


estilo de ironía e deDoene, que de certo modo lembra o Cama-
val (notem-se as figuras «fantastadas» que üustram o texto).
O autor colheu e publicou estórias e lendas da Idade Media
referentes ao demonio, de modo a ridicularizar a crenga no
Maligno; nao citou, porém, um só documento ou fonte biblio
gráfica para comprovar suas afirmagóes ou para indicar se
se trata de doutnnas da Igreja ou nao. Isto já evidencia que
«Pobre Diabo» de Narciso Kalili (REALIDADE n* 17) nao
é estudo serio; nao é trabalho apto a esclarecer os leitores a
respeito do que se pensa oficialmente na Igreja sobre o demonio.
Por via do ridiculo, o autor incute a conclusáo de que o
demonio nao existe; foi a fantasía popular- dos antigos que o
concebeu e lhe deu vulto. Nem os sacerdotes e teólogos acre-
ditariam néle; acreditariam, porém, firmemente em doengas
mentáis- os padres teriam deixado de usar exorcismos ou preces
para expulsar os demonios, preferindo enviar os pretensos
possessos do Maligno aos psiquiatras.
Quanto ao inferno, seria simplesmente a «ausencia de
Deus» (pág. 93), expressáo muito vaga. O autor aprésente
mesmo o inferno como tema de urna anedota, com a qual ele
encerra o seu artigo.

2. Dentre as lendas, a verdade

a) Lendas

Por certo, a fantasía popular através dos tempos se entre-


gou com exuberancia a divagacóes em torno do demonio, us
Intigos, tendo mentalidade pouco critica, atribuiam ao demo
nio certos fenómenos que, na falta de conhecimentos de psico
logía medicina ou ciencias naturais, lhes pareciam mexplica-
veis: doengas pessoais, calamidades públicas...
Na Idade Media principalmente, multiplicaram-sc as historietas

SSSSsaSHS
T2S 5{SB
meio a orgias e ceieoracoes nuiuma» *«=*"«"•;-"•"-"•—•* :'., -ol_
sexta-feira para sábado ; donde o nome de sabbat dado a tais cele-
bragoes).

— 462 —
¡FALENCIA DO DIABO»

Js-ssrt ssrESr-? era?


dSTopS^fi ¿uto Media; teólogos e canonistas medievais
¿^reenSaS freqüentemente tais devánelos da fantasía e da
reügiosidade populares, embora fóssem finados a admiür
Sisa participagáo do demonio na vida dos homens.

pecado, estimulando-se conseqüentemente a evitar o mal e


praticar o bem.

. Por certo, tais «pinturas» populares ou literarias nao


devem ser consideradas como tratados teológicos ou como ex-
pressóes do magisterio da Igreja.
natural portante, e mesmo necessário, que em nossos

recursos explicativos.

b) Verdade
1 As afirmagóes da critica sadia no decorrer dos séculos
di^inaram numerosas lendas ou estórias relativas ao demonio.
Sfmodo neXum porém, significam que éste nao exista ou
que a Igreja negué a realidade do diabo.
A existencia do demonio é sobejamente atestada pela Escritura
Sagrada desde o Génesis até o Apocahpse ; cf. Gen 3,1, Sab 2,24,

— 463 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 2

Apc 12, 7.9 ; Mt 12, 25-41; Jo 8, 44; 2 Pdr 2, 4. Sobre estes e outros
argumentos em prol da existencia do demonio, cf. «P.R.» 6/1958, qu. 5.

2. Dirá, porém, alguém :

«As alusSes ao Maligno na Biblia sao figuras de estilo ou metá


foras, que nao devem ser tomadas ao pé da letra. Sabe-se que os
livros sagrados exprimem o pensamento simbolista dos antigos, pen--
samento que em nossos dias deve ser 'desmitizado'. O demonio,
portante, nao é senao um mito ou um artificio de estilo, que devemos
traduzir para linguagem própria, clara e adulta (destituida de ima-
gens); o Maligno nao será senáo a expressao literaria do complexo
de culpa que assalta freqüentemente os homens».

A tal proposicáo deve-se responder que, na verdade, há


na Biblia numerosas metáforas próprias do estilo oriental anti-
go. Déste fato, porém, nao é lícito deduzir que todo e qualquer
trago portentoso ou maravilhoso da Biblia Sagrada (como,
por exemplo, as alusóes a espíritos maus ou diabólicos) é
mero artificio literario, devendo por isto ser interpretado meta
fóricamente. Em outros termos: o gósto ou a aversáo que
alguém tem por portentos ou maravilhas (o senso místico ou
a tendencia racionalista do leitor da Biblia) nao sao criterios
para se afirmar que tal ou tal passagem bíblica há de ser
entendida ao pé da letra ou figuradamente.
Há um criterio objetivo de interpretacáo da S. Escritura,
a saber: o género literario, isto é, o estilo, as regras de expres-
sáo, o vocabulario, a mentalidade próprios de cada um dos
livros sagrados. Por conseguinte, antes de se asseverar que
determinado texto bíblico há de ser entendido metafóricamente,
é preciso que se faga um exame literario e lingüístico de tal
texto; sómente após ésse estudo é que se pode definir o sentido
do trecho sagrado. Nao é, pois, qualquer pessoa, utilizando
quaisquer criterios (seu modo pessoal de pensar ou categorías
de filosofía moderna), que está em condicóes de interpretar
auténticamente a tEscritura Sagrada. Quem nao tem meios
de estudar a lingüística do texto bíblico, pode recorrer a co
mentadores abalizados.

Voltando agora aos textos do Novo Testamento que tra-


tam do Maligno, verifica-se o seguinte: a existencia real do
demonio está táo associada á vida e á missáo de Cristo que
nao se entenderían! as intensóes e as palavras de Jesús no
Evangelho se nao houvesse em verdade um Ser Maligno que
o Senhor chamou «o Príncipe déste mundo» (cf. Jo 12, 31;
14,30). Toda a obra de Jesús consistiu precisamente em libertar

— 464 —
«FALENCIA DO DIABO» ? 13

os homens de um ser mais astuto, que iludiu a humanidade e


desencadeou a desordem neste mundo.
Nao nos deteremos aqui em citar os respectivos textos da Escri
tura Sagrada, pois isto já íoi feito em «P.R.» 88/1967, qu. 2. Insis-
timos apenas na conclusáo: nao se poderia arrancar do Evangeijio
ou do Antigo Testamento a figura do demonio real e atuante sem
cancelar o fundo de cena da missao de Jesús Cristo.

3 Quer isto dizer que o demonio é um anti-Deus ?...


Ou um principio quase igual a Deus e, á risca, vencido pelo
■ Senhor Jesús ?
— Nao. Justamente a imaginacáo popular, insinuando e
adotando tal concepgáo, desfigura a genuina doutrina crista. .
Os demonios (faz-se mister falar de muitos, embora nao se
possa precisar quantos) sao espirites sem corpo ou anjos, que
Deus criou como expressóes de sua bondade e perfeipáo; Deus
nao é (nem pode ser) o Autor do mal. Todavia. o Criador quis
que os anjos, sendo criaturas livres, se encaminhassem livre-
mente para o seu Fim Supremo (Deus). Propós-lhes entao
um exemplar ou urna norma 4e vida, que daría ocasiáo a que
comprovassem sua fidelidade ao Senhor Deus. Nem todos, ,
porém, aceitaram o designio de Deus; abusaram da sua über-
dade de arbitrio para dizer-Lhe «Nao». Em consequencia, afa*-
taram-se voluntariamente do Criador, e permanecem até hoje >
em tal estado, como criaturas que se fixaram na aversao a
Deus- se pedissem perdáo, Deus por certo Ihos concedería;
éles, porém, nao o querem, nem o Criador lhes impóe a sua
graca, violentando-lhes a vontade.
Os espíritos destituidos de corpo apreendem num só ato, plena
mente perspicaz, os objetos que éles conhecem. Por isto as suas de-
cisoes sao tomadas com exato conhecimento de_causa e cano»
penho lúcido e consciente de suas facuidades; sao consequentemente
definitivas e irrevogáveis. As decis6es dos homens. ao contrario, de-
pendem de conhecimento parcial e progressivo da realidade; por
isto, sao precarias e sujeitas a ser reformadas. .
Os espíritos sem corpo ou anjos, no inicio de sua existencia,
foram por Deus solicitados a escolher o seu Fftn Supremo. Houve
os que escolheram o próprio Deus; houve também os que optaram
contra Deus, par um bem criado; optaram, porém. com toda a lucidez
^perspicacia de sua inteligencia. Em conseqüéncia, aderen» irrevoga-
velmente a ésse bem criado contrario a Deus; tudo que éles desejam
e fazem, dese1am-no e íazemno em vista désse fim criado; n&o
podem deixar de querer contra Deus tudo que eles querem. Por isto
nao pedem perdao a Deus, nem querem ser perdoados.

Certos teólogos, a partir de Suarez (t 1617), julgam que


o pecado dos anjos consistíu no seguinte: Deus Pai lhes mostrou

— 465 — '
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 2

o seu designio de realizar o misterio da Encarnaste em Jesús


Cristo; a segunda Pessoa da SS. Trindade se unma a natureza
humana. Numerosos anjos, porém, recusaram-se a adorar a
Deus feito homem. Mais ainda: conceberam inveja dos homens,
desejaram para a natureza angélica a umao corn o Filho de
Deus que coube á natureza humana. Pecaram, portante, por
soberba e por inveja (únicos pecados de que e capaz um espi
rito destituido de corpo).
Tal sentenga tem verossimilhanga, embora nao passe de
conjetura, a respeito da qual a Revelagáo Divina nada ensina.
A revista REALIDADE, no artigo citado, apresenta-a em tom
de romance e gracejo, acrescentando-lhe pormenores imagina
rios e teatrais (cf. pág. 91).
Adós aludir á rebeliáo dos anjos, o articulista dá a entender
aue no céu houve urna luta entre espíritos bons e maus; o
arcanjo Sao Gabriel teña expulso do céu Lucifer e seus segui
dores atirando-os ao inferno. O articulista assim pretendía
reproduzir o conteúdo de um texto bíblico (Apocahpse 12,7-12).
Note-se, porém, que Apc 12 aprésente Miguel como principe
da milicia celeste, ao passo que o articulista de REALIDADE
cita Gabriel! Na verdade, tal texto do Apocalipse nao se refe
re á queda dos anjos nem a sua expulsao do paraíso celeste,
descreve, sim, de maneira figurada a derrote que Cristo me
diante a sua Paixáo e Ressurreicáo, obteve sobre o Maligno,
que se tornara o «Príncipe déste mundo» (cf. Jo 12,31).
Após fazer a fusáo romanceada da sentenca de Suarez com
o texto de Apocalise 12 (erróneamente mterpretedo), acres-
cent? o articulista Narciso Kalili: «Esta é urna das dezenas
de interprételes que os teólogos e estudiosos dos textos bíblicos
dio da queda de Lucifer e sua transformagao em demomo»
|pág. 91).
Na verdade, os teólogos e estudiosos da Biblia nao_ perde-
ram seu tempo em imaginar «dezenas de interpretagoes* do
Meado dos anjos. Ao fazer táo relevante afirma-ao, sena mte-
ressante qu^Kalili citasse as fontes donde colheu suas infor-
mSS Os teólogos sabem que a Biblia Sagrada nao descreve
o modo como os anjos pecaram, embora os aprésente sim
como espíritos decaídos. Nem o texto de Apc 12 quer^ dizer
que tenha havido alguma luto entre os anjos em consequencia
da infedelidade dos demonios. .

O Senhar Deus permite que os anjos maus tentem os^h^ens_ao


pecad» a íim de que se comprove a íidelidade dos homens a Deus.
£acfto diabSica é estritamente dependente da vontade de Deus, que

— 466 —
15
rVALÉNCIA DO DIABO»

do demonio neste mundo em vista de maior


s ssJna&rss
Principio Bom.

3. «Na Franca sumiu do Catecismo»

Eis ainda o que refere o artigo em apreso:


«Na Franca, há pouco tempo, foram eliminadas dos livros de
catecismo as nogóes de céu, inferno e diabo» (pág. 91).

Que consta a respeito ?


— Em verdade, nada se mudou até hoje no Catecismo
oficial publicado pelo episcopado francés. Em urna palavra:
aínda nao existe o «Novo Catecismo Francés» que o articulista
pressupóe (e que, de resto, a imprensa ja anunciou).
A novidade que se verifica na Franca, é a seguinte:
após* a Primeira Comunháo solene, duas dentre tres enancas nao
íreqüentam mais a igreja;
tres dentre quatro nao seguem mais ura curso de instrucao reli
giosa após a Primeira Comunháo.

Estes fatos levaram os catequistas e pastores da Igreja


a refletir: a mensagem crista nao estará sendo /presentada
aos pequenkios de maneira pouco persuasiva ou de »»*>*»
náolhes penetra no ánimo, nem lhes imprime urna sólida es-
tartuS?criSaTNa base destas consideracóes os bispos e sacer-
dSes de Franga resolveram adotar novas formas de comuni-
¿ar aos pepinos e jovens a doutrina da fé catolaca^ guar-
dSido porém, incólumes os artigos do Credo; nao compete
á Igreja retocar as verdades religiosas, mas, sim, as maneiras
contingentes de exprimir tais verdades.

Os alunos de Religiáo na Franca seráo distribuidos em


trésnelos, correspondentes as tres etapas do ensino oficial ,
francés:
1? ciclo, elementar, comprendendo duas classes de alunos
(10» e 9») ;
2* ciclo, medio, compreendendo duas classes (8» e 7») ;

— 467 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 2

3* ciclo, dito «de observáoslo», compreendendo mais duas


classes (6' e 50.

Até agora foi elaborado o programa de ensino religioso (e, con-


seqüentemente, o projeto de Catecismo) apenas para o 2' ciclo, ou
seja, para o nivel intelectual, cultural e humano dos jovens de 9, 10
e 11 anos. A apresentacáo das verdades da fé íoi concebida estrita-
mente levandc-se em conta a psicología de tais idades, o seu desen-
volvimento intelectual, a sua memoria e a sua maneira de encarar
o mundo. Compreende-se que urna crianga de dez anos está longe
de poder assimilar todos os pormenores e o ampio alcance da dou-
trlna religiosa católica ; um compendio de Religiao para jovens em
geral ou para adultos seria vazado em estilo e método diferentes.

O novo Catecismo para o ensino religioso dos 9 aos 11


anos deverá constar de

1) um «Fundo comum obligatorio», isto é, um conjunto


de verdades de fé que háo de ser necessáriamente ensinadas
aos discípulos.
Ésse «Fundo comum» se encontra em um volume de 126
páginas mimeografadas, volume no qual estáo incluidos textos
e documentos importantes sobre cada assunto, orientacóes pe
dagógicas, diretrizes catequéticas, etc.;
2) sete manuais que apresentam a doutrina do «Fundo
comum» de sete diversos modos, de acordó com os ambientes
e as circunstancias em que se possam encontrar os alunos de
9 a 11 anos de idade. Haverá, pois,
um manual para o ambiente urbano cristianizado, e outro
para o ambiente urbano descristianizado ;
um manual para o ambiente rural cristianizado, e outro
para o ambiente rural descristianizado;
um manual para meninos que ja tenham recebido inicia-
cao religiosa, e outro para os que ainda nao a tenham ;
um manual para as criancas debéis mentáis e retardadas
nos estudos.
Cada manual de aluno será acompanhado de um livro
do mestre e de documentos para os genitores de cada aluno,
de sorte que estes seráo envolvidos no processo de formacáo
religiosa de seus filhos ; os pais seráo assim solicitados, a
colaborar na catequese dos pequeninos.
De maneira geral, o novo Catecismo procurará apresentar
a Religiao como mansagem do Amor de Deus aos homens e
como valor atraente, capaz de despertar toda a grandeza de
alma de um cidadáo do sáculo XX. Os aspectos positivos da

— 468 —
«FALENCIA DO DIABO» ? 17

Religiáo seráo realgados de tal modo que os cristáos a vivam


por amor e nao simplesmente por temor. O novo Catecismo
ensinará, sem dúvida, a existencia do inferno, já que é ates
tada pelo Evangelho (cf. Mt 25,46 ; 22,13) e pertence ás
verdades da fé; o inferno, porém, será apresentado como o
definitivo afastamento de Deus, afastamento onde se colocam
os homens que recusem viver com Deus... Na verdade, o
inferno é um estado de alma que comega na térra, logo que
alguém se oponha gravemente a Deus, e que se torna irrevo-
gável após a vida presente (dado que a pessoa nao se volte
contrita para Deus antes de morrer). O «fogo» do inferno
vem a ser um estímulo físico que completa o quadro do inferno,
mas que náp pode ser comparado ao fogo (ou ás cenas de
tanques fumegantes) déste mundo ; é necessário também que
nao se faga a «topografía do Além», descreyendo o inferno
como regiáo colocada no centro da térra. Assim concebido, o
inferno nada tem de infantil; tal conceito se pode perfeita-
mente concatenar com os conceitos de filosofía e cultura geral
que o adolescente costuma adquirir ao progredir em anos e
estudos.
Eis como os mestres responsáveis pelo projeto do Novo
Catecismo formulam seu pensamento a respeito:

«Certos conceitos aterradores do inferno marcaram muitas pes-


soas por todo o resto de sua vida, apresentando-lhes a religiáo num
clima de temar e nao num clima de amor. A vida crista corre assim
o risco de ser falsamente entendida» («La Vie Cathollque Illustrée»
7/II/67, pág. 8).

Mais precisamente, a respeito da elaboragáo do novo Ca


tecismo, podem-se acrescentar os seguintes dados :

Há dez anos que urna equipe de peritos em catequese («Comité


des Sages») vem estudando o plano d&sse novo livro de enslno reli
gioso ; o projoto já foi vinte vézes desfeito e reelaborbdo. Para
chegarem á formulacáo hoje tida como definitiva dd «Fundo comum
obrígatório», realizaram oito rcdacoes sucessivas. Os componentes da
equipe se entregaram a trabalho lento, árido e consciencioso, pro
curando auscultar e pesquisar a .realidade da catequese na Franca.
Preferiram comecar pelo 2» ciclo, ou seja, pela idade dos nove aos
onze anos, porque éste Ihes pareceu ser o periodo mais estável da
infancia; entre sete e nove anos, as criancas ainda estáo muito pró
ximas da sua fase de irresponsabilidade infantil. A fase dos onze
aos treze anos apresenta problemas próprios, que sao os da pré-
-adolescéncia. Ademáis, o periodo de nove, dez e onze anos é o que
mais tem sido observado e estudado na pedagogía do Catecismo.

Os livros para o primeiro e o terceiro ciclo do Catecismo fran


cés estáo sendo elaborados paulatinamente, enquanto se dá primazia
ao segundo ciclo.

— 469 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 2

Os sete manuais adaptados aos diversos ambientes de criancas


catequizandas estáo a cargo de grupos especializados, compostos de
catequistas, leigos e padres, que trabalham conjuntamente com outros
leigos (genitores) e padres. Todas as vézes que urna equipe acaba
de elaborar o texto destinado a certo tipo de alunos, p5eno á prova,
aplicando-o em aulas ; o resultado de tais aulas vem a ser criterio
para o aperfeicoamento do projeto.

Deve-se frisar que os peritos ainda nao chegaram a urna


conclusáo unánime a respeito de cada urna das partes do
novo Catecismo; é por isto que ele nao foi publicado até hoje,
nem se pode prever com seguranca quando vira a lume (em-
bora o anunciem para junho de 1968).
Em conseqüéncia, vé-se quáo leviana é a afirmacáo de
que o demonio sumiu do Catecismo francés! O Novo Cate
cismo, assim subentendido, ainda nao existe; seus pormeno
res estáo sendo estudados ; é certo, porém, que' ele .nao dei-
xará de propor o céu e a antítese do céu que é o eterno afas-
tamento de Deus ou o inferno.

Eis como a revista «Vie Catholique Illustrée» de 7/II/67,


no artigo «Le .nouveau catéchisme» de Francois Dominique,
apresenta o futuro Catecismo francés :

«A intencáo principal dos colaboradores do novo Catecismo é


evidentemente fazer que o Cristianismo seia vivido do meihor modo
possivel pelas criancas. Insistem no essencial : Dcus é Amor, e o
Cristianismo é urna mensagem de amor. Cristo, o Filho de Deus feito
homem, salva o mundo. Com Ele, os homens podem viver como filhos
de Deus e construir um mundo fraternal.
O novo Catecismo condiz com a visáo e a mensagem do Concilio.
Durante muito tempo. os homens associavam o Cristianismo com
urna serie de regras, de coisas a eer realizadas e outras coisas a ser
evitadas. Há trinta anos, o Catecismo era naturalmente influenciado
por essa concepcáo. Todas as pesquisas e experiencias, porém, efe-
tuadas desde alguns anos mostram a necessidade de suscitar urna
íé vivida, a descoberta de Cristo personalidade viva.
Já há alguns anos, os genitores observam certas modificacóes no
ensino catequético dado a seus filhos. O novo Catecismo nacional
aparecerá como urna conelusáo, urna especie de ramalhete final de
todas as experiencias e pesquisas recentes.
Será muito diferente do Catecismo da nossa infancia? Sem dúvida,
e nos acabamos de explicar por qué. Mas — cuidado ! — isto nao
significa que as verdades fundamentáis do Cristianismo estáo mu
dadas ; elas jorram e jorraráo sempre da vida de Cristo e do seu
Evangelho.
Podem-se anunciar as mesmas verdades essenciais de maneiras
diferentes. Nao se ensina mais a historia como se ensinava há trinta
anos ñas escolas. Isto nao quer dizer que as batalhas de Marignan
e de Austerlitz tenham mudado» (pág. 7).

— 470 —
«FALENCIA DO DIABO» ? 19

4. Possessáo diabólica

A respeito já foi publicada urna resposta em «P.R.» 23/1959,


qu. 1. Limitamo-nos, por isto, a apresentar aqui apenas os seguintes
tópicos :

Por «possessáo diabólica» entende-se a presenca do demo


nio em determinado corpo, presenga em virtude da qual o
Maligno domina ésse corpo e, mediante o corpo, a alma da
vitima. O demonio nao se une ao corpo como a alma se une
a éste, ou seja (segundo a linguagem técnica), em uniáo subs
tancial. Em relacáo á alma, ele é apenas um movente extrín
seco ; só age sobre a alma na medida em que ela depende do
corpo. Age, porém, diretamente sobre os membros désse corpo,
movendo-os a seu capricho, provocando convulsóes, clamores,
linguagem estranha, ímpetos de furor, etc.

Da possessáo distingue-se a «obsessáo diabólica», que consiste em


ataques mais brandos de Satanaz, o qual, no caso, nSo chega a íixar
mansáo no corpo da vitima; íoi o que se veriíicou na vida de
S. Joáo Vianney, o cura d'Ars.

Na base de textos bíblicos (cf., por exemplo, Me 1,23-28 ;


5,1-20; 7,24-30 ; 9,14-29 ; At 16,16-18) e de experiencias de-
vidamente estudadas por sacerdotes e médicos, a Igreja admite
casos reais de possessáo diabólica. Muitas vézes ocorreram, na
historia do Cristianismo, associados a doengas nervosas mais
ou menos declaradas. Em épocas passadas, os homens apela-
vam com demasiada facilidade para intervencoes diabólicas a
fim de explicar fenómenos extraordinarios (tenham-se em vista
principalmente as «historias de bruxas», muito em voga nos
fins da Idade Media). Ainda em nossos días as pessoas sim
ples tendem a crer em possessáo diabólica quando se véem
em presenga de fenómenos nervosos e molestias que elas nao
sabem diagnosticar. A Igreja recomenda aos cristáos, nao acre-
ditem, sem motivos serios (teológicos e científicos), em fenó
menos de possessáo diabólica; esta há de ser a última das
explicagóes para casos extraordinarios. Nao obstante, a Igreja
tem consciéncia de que o demonio nao é menos ativo no mundo
de hoje do que no mundo de outrora ; sómente sua agáo é
mais dissimulada... Um de seus maiores triunfos é justamente
o de fazer os homens crer que ele nao existe; em conseqüéncia,
ele age de maneira mais livre e mais natural!

— 471 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS»- 95/1967, qu. 3 _

III. DOGMÁTICA

JAIME (Vitoria):

3) «A crenca na virgindade de María é muito estranha


á mentalidade moderna. Será realmente um dogma de fé ?
Que sentido pode ter a exprossáo 'sempre virgem Maria'?»

A questáo ácima toca realmente um dos mais delicados


temas de estudo de nossos dias. Abaixo veremos os funda
mentos e o sentido da crenga na perpetua virgindade de Maria;
a seguir, examinaremos as 'objecóes que se lhe fazem.

1. «Sempre Virgem Maria»

A fé crista através dos séculos afirmou a virgindade de


Maria tal como se acha expressa na fórmula «antes do parto,
no parto, depois do parto».

1) Antes do parto

Os Evangelhos asseveram repetidamente que María Vir


gem concebeu o Filho de Deus sem a intervengáo de sementé
humana. Tenham-se em vista os textos de

Mt 1,18-20 : «Deu-se assim a concepgáo de Jesús Cristo. Maria,


sua máe, estava desposada com José. Antes, porém, de habitaran
juntos, achou-se grávida pelo poder do Espirito Santo.
José, seu esposo — que era homem justo e nao a quería difamar —
deliberou repudiá-la secretamente. Estava ele neste pensamento, quan-
do lhe apareceu em sonho um anjo do Senhor e lhe disse: 'José, filho
de Davi, nao tenhas médo de receber em tua casa Maria tua esposa,
pois foi pelo poder do Espirito Santo que ela concebeu'».

Le 1, 26s. 30s. 34-36 : «O anjo Gahriel foi enviado por Deus a


urna cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a urna virgem desposada
com um homem, de nome José, da casa de Davi. A virgem chama-
va-se Maria...
Disse-lhe o anjo : 'Nao tenhas receio, Maria, pois achaste graca
diante de Deus. Conceberás e darás á luz um filho e lhe poras o
nome de Jesús'. ... Maria, porém, perguntou ao anjo: 'Como se
íará isto, pois nao conheco varáo ?'
Respondeu-lhe o anjo': 'O Espirito Santo descera sobre ti e a
virtude do Altíssimo te cohrirá com sua sombra. É por isto qud o
Santo, que vai nascer, será chamado Filho de Deus. Eis que Isabel,
tua parenta, também ela concebeu um filho em sua velhice e éste
é o sexto mes daquela que era chamada estéril'».

— 472 —
V1RGINDADE DE MARÍA 21

Comentando esta última passagem, os exegetas católicos


nao raro julgam que Maria havia feito o voto de virgindade
consagrada a Deus ; por tal motivo, ter-se-á perturbado ao
ouvir do Anjo a noticia de que se tornaría máe ; o Anjo,
porém, tranqüilizou-a, predizendo-lhe a sua maternidade vir
ginal. — a hipótese de voto, 'porém, nao é unánimemente
aceita; cf. «P.R.» 75/1964, qu. 3.

Merece atengáo também a profecía de Is 7,14, que, lite


ralmente traduzida do hebraico, apresenta o seguinte teor :

«Eis a jovem donzela (nltnah) concebe


E dará á luz um íilho,
Que ela chamará Emnnuel»

A palavra hebraica almah significa simpiesmente a jovem


na flor de seus anos, sem alusáo direta á virgindade. — Veri-
fica-se, porém, que o mesmo termo na S. Escritura designa a
donzela virgem; cf. Gen 24, 43 ; Éx 2,8 ; Ct 6,7 ; SI 67, 26.
Além disto, a tradigáo judaica entendeu almah, em Is 7,14,
no sentido de virgem, de modo que os tradutores da Biblia
para o grego no séc. III a.C. usaram o termo parthenos (vir
gem) por almah. Sao Mateus, no Evangelho, citou a profecía
de Isaías em sua forma grega, dando-lhe a interpretagáo au
téntica : a parthenos ou virgem é Maria, e seu filho Emanuel
(Deus conosco) é o Cristo Jesús. — Assim a própria Escritura
explica a Escritura.

É também digno de nota o fato de que no Antigo Testa


mento há, sim, alusóes á Máe do Messias, nunca, porém, se
encentra mengáo de seu pai; cf. Gen 3,15 ; SI 21,10; Is 49,
1.5; Jer 31,22; Miq 5,3.

Objeta-se a passagem de Le 2, 48, em que José é dito «pai


de Jesús». — Nao se deve, porém, esquecer que o mesmo Evan
gelista explica exatamente o seu pensamento quando mais
adiante (3, 22) afirma ter sido Sao José o pai «putativo» de
Jesús : «Jesús era tído como filho de José». A Providencia
Divina quis que Maria fósse verdadeiramente casada com José,
homem justo, a fim de que seu lar tivesse a tutela que o varáo
pode e deve dar a máe e filho ; quis outrossim que a materni
dade virginal de Maria fósse ignorada pelo público; Maria
só a terá revelado após a Ascensáo do Senhor, de sorte que
o povo tinha Jesús na conta de filho de José.
Na Tradigáo, desde o séc. II os escritores cristáos profes-
saram a sua fé na maternidade virginal de Maria.

— 473 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 3

S. Inácio de Anlioquhi (t 110 aproximadamente) atestava : «O


Filho de Deus... verdaderamente nasceu de urna virgem» (Aos
Esmirnenses 1,1).
S. Justino (t 165 aproximadamente) diz claramente ao comentar
Is 7,14: «'A Virgem há de conceber', nao do varao... A fórga de
Deus, sohrevindo a ela, recobriu-a e fez que, embora virgem, se
tornasse grávida» (Apol. I 33).

S. Ireneu (t 202 aproximadamente), referindose ao sinal pro


metido por Is 7,14, observa : «Que haveria de grande ou que sinal
se produziria, se urna jovem desse á luz após ter concebido do varao?
É justamente isto o que acontece com todas as mulheres que dáo
á luz » (Adv. haer. III 21,6).

Para nao multiplicar os testemunhos, notamos, sem mais,


que também o magisterio da Igreja sempre ensinou a concei-jáo
virginal de María. Assim o Credo dito «apostólico» professa:
«(Jesús Cristo) foi concebido do Espirito Santo, nasceu de
María Virgem». O Símbolo niceno-constantinopolitano reza:
«Encarnou-se de María VLrgem por obra do Espirito Santo».
Em 649, o Concilio regional do LatrSo declarou : «Maria, a Santa
Máe de Deus e imaculdada Virgem,... concebeu do Espirito Santo
sem sementé viril o próprio Deus Verbo; deu O á luz sem perder
a sua integridade, e também depois do parto conservou inalterada
a sua virgindade» (DenzingerTSchonmetzer 503).

Em 1555, o Papa Paulo IV, tendo em vista certos erros


de sua época, reafirmou : «Maria persistiu sempre na integri
dade da virgindade, antes do parto, no parto, e perpetuamente
após o parto» (ib. 1880).

Os dizeres de Paulo IV foram repetidos mais tarde (1603) por Cle


mente VIII na bula «Dominici Gregis».

Até mesmo entre os reformadores protestantes se encon-


tram profissSes de fé na virgindade de Maria, de tal modo
estava esta (¡renca integrada no patrimonio da Revelagáo.

Assim reza, por exemplo, a ProflssSo de fé de Augsburg («Con-


fessio Augustana») redigida por Filipe Melanchton, aprovada por
Lutero e ratiíicada pelos príncipes protestantes em 1530 :
«Um só Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. nascido da
Virgem María» («Die Bekenntnisschriften der evangelisch-lutherischen
Kirche» 54).
Os «Artigos da Doutrina Crista» elaborados por Lutero em 1537
professam:

«O Filho de Deus fez-se homem, de modo a ser concebido do


Espirito Santo sem o concurso de varáo e a nascer de Maria pura,
santa e sempre vlrgem» (ib. 414 ; Artigos de Schmalkalde I).

— 474 —
' VIRGINDADE DE MARÍA 23

Joao Calvino (t 1564) publicou cm 1542 o «Catecismo da Igreja


de Goncbra», onde se lé :

«O Filho de Deus íoi formado no seio da Virgem Maria... Isto


aconteceu por acáo milagrosa do Espirito Santo sem consorcio de
varaos (ed. Niesel 8).

Ulrico Zwingli (t 1531), por sua vez, escreveu :

«Firmemente creio, segundo as palavras do Evangelho, que Maria,


como virgem pura, nos gerou o Filho de Deus, e que no imrto eapós
o parto para sempre permaneceu virgem pura e íntegra» (Corpus
Reíormatorum, Zwinglii Opera I 424).

Pode-se ainda observar que até mesmo o Coráo de Maomé, o quai


reproduz certas proposicoes do Cristianismo, professa a virgindade
de Maria (cf. Sura 19).

Estes testemunhos, aos quais outros se poderiam acres-


centar, dáo suficientemente a ver como a crenga na virgindade
de Maria ocupa lugar eminente no conjunto das verdades que
a fé crista sempre professou.
Passemos agora á virgindade

2) No parto

Também esta proposigáo foi desde cedo afirmada na


Igreja.
Alguns exegetas julgam poder depreendé-la diretamente
do Evangelho. Com efeito, o texto de Jo 1, 12s, além da forma
comumente aceita, apresenta a seguinte variante, que abali
zados críticos consideram mais fidedigna :

«A todos os que O receberam


Deu o poder de Fe tornarem filhos de Deus,
Aos que créem em seu nome,
Ele (o Verbo) que nao nasceu do sangue,
Nem da vontade da carne,
Nem da vontade do homem,
Mas nasceu de Deus».

Veia-se, por exemplo, a traducjio francesa da chamada «Bible de


Jérusalém».

Os teólogos citam também o texto de Le 2, 7 : «Maria


gerou seu filho primogénito, envolveu-o em panos e deitou-o
no presepio». Tais dizeres insinuam a ausencia das dores e
da prostra^áo que costumam acompanhar todo parto. A tra-
digáo, alias, repetiu freqüentemente que Maria «deu á luz sem
dor» (peperit sine dolore), intencionando assim professar a
maternidade virginal de Maria SS.

— 475 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 3

A virgindade de María no parto foi especialmente subli-


nhada por urna seita de herejes dos dois primeiros sáculos :
os docetas. Afirmavam que o Senhor nao uvera senáo um
corpo aparente ; e, para dar verossimilhanea á sua tese, com-
praziam-se em dizer que Jesús .nao nascera como os outros
homens e que, conseqüentemente, Maria permanecerá virgem.
Á vista diste'.- alguns escritores cristáos do século III, como
Tertuliano e Orígenes, negaram a virgindade de Maria no
parto.
Passada, porcm, a controversia docetista, prcvalcceu cla
ramente a crenga inicial da Igreja, a qual se afirmou em
numerosos testemunhos. Déstes sejam apenas dois citados :
S. Leáo Magno, Papa (t 461) : «O Filho de Deus foi concebido
do Espirito Santo no seio da Virgem Maria, que O deu a. luz, conser
vando a sua virgindade (salva virgüütate) como o concebeu conser
vando a sua virgindade (salva virgínltate)» (ep. a Flaviano 2).
S. Gregorio Maguió, Papa (t 604): «O corpo do Senhor, após a
ressurreicáo, entrou onde se achavam os discípulos, passando por
portas fechadas, ésse mesmo corpo que, ao nascer, saiu do seio fe
chado, manifestándose aos olhos dos homens. Nao é para admirar
que o Senhor, .ressuscitado para viver eternamente, tenha atravessado
portas fechadas, visto que, para morrer, Ele vcio a nos atraves do
seio fechado da Virgem* (Sobre os Evangelhos hom. 26,1).

A respeito da virgindade de Maria no parto e certas expli-


cacóes modernas'encontra-se um artigo em «P.'R.» 75/1964,
qu. 4. Entre outras coisas, ésse estudo mostra como a filosofía,
com as luzes da razáo apenas, explica que um corpo penetre
e atravesse outro corpo sem o dilacerar. Verifica-se assim que
a fé na virgindade maternal de Maria nao é algo de absurdo.

3) Virgindade após o parto

A Tradigáo crista sempre ensinou que Maria foi virgem


perpetuamente: em grego, aeiparthenos, sempre virgem. Esta
verdade, embora nao seja diretamente expressa pela S. Escri
tura, parece insinuada por certas passagens da mesma :
a) em Le 1,34, Maria manifesta o propósito de se manter sem
pre virgem;
b) em Jo 19,26, Jesús, ao morrer na cruz, quis confiar sua
MSe SS. a Joáo, filho de Zebedeu ; donde se depreende que Mana
nao tinh'a outro íilho, irmáo de Jesús ;
c) os irmáos c irmüs de Jesús, de que fala o S. Evangelho
(cí Mt 12,46; 13,55 ; Me 6,3 ; Le 8,19s ; Jo 2,12), nunca sao ditos
«filhos de Maria». Na verdade, devem ser tidos como primos ao
Senhor, como se demonstrará adiante.

— 476 —
VIRGINDADE DE MARÍA 25

Todavía contra a virgindade perpetua de María costumam


ser citados alguns textos do Novo Testamento :

a) Le 2, 7 ; Mt 1, 25. Jesús é chamado primogénito.

«Primogénito» segundo a mentalidade dos semitas, podia


significar «o bem-amado» ou aquéle em quem se concentra
todo o amor dos genitores ; tenha-se em vista o texto de Hebr
1, 6, em que o Filho unigénito do Pai Eterno é dito «primo
génito». — «Primogénito» era também aquéle antes do qual
nenhum outro nascera; o vocábulo nao quería necessáriamente
dizer que outros após ele haviam nascido do mesmo seio.
Ulteriores explicagóes se encontram em «P.R.» 6/1957, qu. 6.

b) Mt 1, 25 : «José nao a conheceu até que María deu á


luz o seu primogénito».
Mt 1,18: «Antes gue tivessem estado juntos, María con-
cebeu por virtude do Espirito Santo».

Nestas duas passagens, ocorre mais um semitismo. Os


judeus, usando as partículas «até que» ou «antes que», inten-
cionavam muitas vézes indicar apenas o que acontecerá ate
determinado período, sem querer dizer o que se dera após tal
periodo; nao se interessavam pelos fatos posteriores ao limite
indicado Tenham-se em vista os textos semelhantes de
Gen 8,7; 2 Sam 6,2»; Mt 28,20; 1 Cor 15,25.

c) os «¡rmáos de Jesús» Tiago, José, Judas, Simáo sao


mencionados em Mt 12,46 ; 13,55 ; Me 6,3 ; Le 8,19 ; Jo 2,12 ;
At 1,14 ; 1 Cor 9,5 ; Gal 1,19.

Note-se, como foi observado atrás, que a Escritura nunca


os chama «filhos de María»; ao contrario, Jesús com érifase
é dito «Filho de María» (cf. Mt 12,47 ; Jo 2,12).
Tendo-se em vista o conjunto da historia narrada pelos
Evangelistas, julga-se, com bom direito, que eram primos de
Jesús. As línguas semitas costumavam designar familiares e
consanguíneos pelo nome genérico de «irmáos»; cf. Gen 13,8 ;
14, 12, em que Abraáo e seu sobrinho Lote sao ditos «irmáos»;
em Gen 29,12.15, Labá chama «irmáo» seu sobrinho Jaco.
Segundo a sentejiga mais provável, os primos (irmáos) de
Jesús eram filhos de Cleofas ou Alfeu, irmáo de S. José, casado
também ele (Cleofas) com urna mulher chamada María (cf.
Mt 27,56 e Jo 19, 25).

— 477 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 95/1967. qu. 3

2. O sentido da maternidadc virginal de Mana

1. Os numerosos testemunhos da Tradiqáo crista e do


Magisterio da Igreja, interpretando as citadas passagens da
S. Escritura, levam a concluir que a virgindade perpetua de
María SS. é uma verdade da fe crista. Por certo, nao foi de
finida em pronunciamento solene e extraordinario do Magis
terio da Igreja. Todavía isto nao é necessário para que alguma
proposigáo possa ser tida como pertencente ao depósito sa
grado. Bastam para tanto a consciéncia dos fiéis e o ensina-
mento ordinario dos pastores- Na verdade, pode-se dizer que
uma das afirmagóes mais constantes da Igreja desde as suas
origens é a da virgindade de María (entendida em toda a am-
plidáo da palavra, sem restrigóes).

«Os testemunhos da Tradicáo nos levam a uma conclusáo ine-


lutável. Ó parto virginal, a virgindade no parto, compreendida pre
cisamente no sentido de um parto com a integridade total do claustnim
pudorls, é uma verdade de fé professada como tal pela Igreia e pro
posta pelo Magisterio aos fiéis durante numerosos séculos» (J. A.
de Aldama, «La matcrnité virginale de Notre-Dame» em «María»
VII 1964, pág. 135).

Nao há dúvida, a maternidade virginal de María é algo


de portentoso. Nao pode ser provada pela razáo, como também
nao poder ser contraditada por esta. A razáo pode mesmo
demonstrar que tal proposicjio de fé nao implica em absurdo
ou contradigáo (veja-se a argumentagáo em «P.R.» 75/1964,
qu. 4).
A fé crista ensina que Deus pode fazer portentos, e que
realmente os faz quando há razóes proporcionáis que os justi-
fiquem. Portentos e prodigios nao devem ser removidos da
mensagem do Cristianismo pelo simples fato de ultrapassarem
o curso natural das coisas. Por conseguinte, o cristáo nao se
surpreende de que a sua fé lhe aprésente determinado por
tento a crer, desde que esteja fundamentado na autoridade de
Deus que se revela pelos seus meios auténticos.
Diante da proposigáo da maternidade virginal de María
o cristáo se inclina reverente; aceita-a com sobriedade, re
nunciando a fazer consideragóes minuciosas sobre o assunto.
Trata-se de um tema que sómente a fé transmite e que so-
mente na fé pode ser aceito ; os argumentos de filosofía e
ciencia nao podem nem comprovar nem desvirtuar essa pro
posigáo da fé ; Deus Pai quis que seu Filho se fizesse homem
pela via que Lhe aprouve em sua infinita sabedoria, via que,
sem dúvida, foi «a mais divina».

— 478 —
VIRGINDADE DE MARÍA 27

É nestes termos que se exprimem os antigos escritores


cristáos, intencionando sublinhar que a maternidade virginal
de María constituí uma proposicáo do livre e soberano bene
plácito divino.

Para ilustrar o designio de Deus Pai, o cristüo se recordará de


que o corpo de Cristo, em sua pereg.rinacáo terrestre, mais de uma
vez mostrou nao estar sujeito ás mesmas leis que o nosso, mesmo
antes da ressur,reicáo: ele se transíigurou, caminhou sobre as
aguas... Dir-se-á conseqüentemente: assim como ele pode penetrar
no Cenáculo, estando as portas fechadas, pode tambóm passar pelo
seio da Virgem sem lhe violar a integridade.

Alguns teólogos lembram igualmente que certos corpos, como


o cristal, sao penetrados e atravesados pela luz sem perder sua
estrutura. Recordam outrossim que a mente humana ccwieebe suas
idéias sem dilaceracao de si mesma («conceber» é verbo que se
aplica tanto á ordem corpórea como á ordem incorpórea ou espiri
tual : a mulher concebe um filho segundo a carne, assim como o
pensador concebe uma nocSo segundo a mente ; há, portanto, con-
ceicSes ou concepcóes que nSo dilaceram o sujeito que concebe).

2. Mais precisamente, deve-se dizer que a maternidade


virginal de María está em plena consonancia com outras ver
dades da fé ; é quase o eco harmonioso dessas verdades.
Com efeito. O nascimento do Filho de Deus a partir de
María SS., para ser devidamente entendido, deve ser conside
rado á luz de duas outras natividades:

a) a geracüo do Filho na eternidade. O Filho procede do Pai


sem sucessao cronológica nem divisáo da infinita períeicáo divina.
Éste nascimento eterno do Filho de Deus se prolonga, por assim dizer,
no nascimento do Filho na plenitude dos tempos ;

b) a natividade do Filho de Deus em cada alma crista mediante


a agua batismal. Esta outra natividade, por sua vez, prolonga a ante
rior ; nao é meramente metafórica, mas dá realmente inicio A vida
de Cristo ou á vida trinitaria em cada cristáo, depositando néle uma
sementé de vida sobrenatural.

O mesmo Filho de Deus nasce eternamente do seio do Pai


(«ex sinu Patris»), nasce temporalmente para o mundo do
seio de María («ex sinu Mariae») e nasce temporalmente para
cada cristáo do seio da Igreja («ex sinu Ecclesiae»). Nesta
terceira natividade, Cristo faz de cada cristáo verdadeiramente
um filho de Deus, filho no Filho, participante da corrente de
vida que jorra da Primeira Fante da vida ou do seio do Pai
Eterno.
Estas tres natividades do Filho de Deus estáo relacionadas
entre si por lagos de continuidade e surpreendente harmonía.

— 479 —
2:8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 3

Tais relagóes' nos ajudam a penetrar mais profundamente no


conhecimento de cada urna délas.
Ora verifica-se que a primeira e a terceira geragóes do
Filho sao espirituais, transcendendo o plano meramente ma
terial. Na eternidade, o Filho procede do Pai sem concurso
de materia ; no Batismo, o Filho renasce em cada cristáo,
superando as leis da geragáo biológica ; a agua batismal fe
cundada pelo Espirito Santo vem a ser o seio espiritual pelo
qual passa a vida do Filho de Deus para se comunicar a cada
cristáo. Em consoqüáncia — semprc afirmou a Tradiqáo
crista — a segunda natividade do Filho de Dcus deve partici
par, do seu modo, da transcendencia sobre a materia e a bio
logía que caracteriza as duas outras natividades. Islo nao quer
dizer que o Filho de Deus nao tenha nascido em verdadeiro
corpo humano, nem haja participado das condigoes da nossa
natureza (excetuado apenas o pecado); significa apenas que
a sua natividade na carne está na linha das suas outras duas
natividades, da qual ela é sinal ; Jesús nasceu verdaderamente
de María, sem lhe dilacerar a carne nem lhe diminuir a inte-
gridade física, como Ele nasce na eternidade e em cada alma
crista sem divisáo nem dilaceragáo física ou material.
Tais consideragóes mostram que a maternidade virginal
de María nao é um elemento isolado ou avulso dentro da men-
sagem crista; ao contrario, ela constituí urna proposigáo que
se enquadra perfeitamente no conjunto de artigos do Credo ;
é como que o eco dos dogmas da SS. Trindade e da habitagáo
de Deus ñas almas dos justos ; em María, Máe e Virgem, estas
duas verdades tém seu sinal e sua ilustragáo.
Apesar do valor de tais ponderagóes, a mentalidade mo
derna tem levantado suas objegóes contra a virgindade de
María.

3. Dúvidas e respostas

Podem-se reduzir a duas principáis as dificuldades que


hoje em día se propóem contra a tradicional crenga crista.
1) «Os textos bíblicos que insinuam a virgindade de Maria, sao
pecas poéticas... O Novo Testamento, em seu conjunto, dá a impres-
sáo de que o parto virginal é urna expressáo metafórica que significa
ser Jesús o Filho Unigénito de Deus» (assim pensa Piet Schoonenberg,
segundo «Herder Correspondence» may 1967, pág. i5S).

Em resposta, dir-se-á : os textos do Novo Testamento,


sugerindo o nascimento milagroso de Jesús neste mundo, talvez

— 480 —
VIRGINDADE DE MARÍA 29

pudessem ser tidos como expressóes de poesia. A poesia recorre,


sim, freqüentemente a figuras e metáforas de sabor maravi-
lhoso, as quais nao háo de ser tomadas ao pé da letra.
Contudo nao basta que um texto bíblico descreva porten
tos para que se afirme ser poesia, ou para que se lhe denegué
genuino valor histórico e se lhe atribua sentido metafórico.
Como foi dito, a fé crista admite que Deus faga milagres.
Os criterios auténticos para se julgar se determinada pas-
sagem bíblica há de ser entendida ou nao ao pé da letra, sao
o género literario da mesma e
a analogía da fe.
O género literario. .. Nao há indicios de vocabulario ou
estilo que obriguem o intérprete a se afastar do sentido literal
das passagens do Novo Testamento concernentes á virgindade
de María (Le 1, 34s ; Mt 1,16.18-23). Sao passagens sobrias
em seus dizeres, destituidas dos pormenores numerosos e fan-
tasistas que caracterizam as lendas. Diferem profundamente,
por sua mentalidade, das tradigóes mitológicas dos antigos gre-
gos, persas, babilonios... que falam de nascimento virginal de
certo Ser Divino, acumulando prodigios e portentos em suas
narrativas. Os Evangelhos sao também perpassados de reve
rencia perante o misterio da natividade de Jesús. Descrevem o
nascimento e a infancia de Cristo em cenas de elevado nivel
moral, ao passo que as narrativas poéticas das mitologías an
tigás propóem o amor erótico ou apaixonado dos deuses.
Ademáis deve-se notar que tanto os judeus como os antigos
cristáos faziam questáo de guardar puras as suas crengas, pre
servando-as de qualquer contaminagáo paganizante; os cristáos
foram perseguidos durante tres sáculos justamente porque nao
queriam tomar parte ñas instituigóes de seu tempo que tivessem
o mínimo sabor de paganismo. Sendo assim, nao se enten
dería que já na sua primeira geragáo tenham aceito dos pagaos
um mito : o mito da «Virgem-Máe».
Ulteriores consideraeñes sobre o assunto se encontram em «P.R.»
8/1959, qu. 7.

A analogía da fé. Os textos bíblicos nao podem ser inter


pretados independentemente da Tradigáo oral; ao contrario,
o seu genuino sentido só se patenteia quando colocados sob a
luz dos dizeres teológicos dos escritores cristáos através dos
séculos. A Tradigáo oral tem suas expressóes particularmente
abalizadas nos pronunciamentos do magisterio oficial da Igreja.
Ora é moralmente unánime o acordó da Tradigáo através de
seus vinte séculos em relagáo a virgindade de María; esta é

— 481 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS,» 95/1967, gu. 3

afirmada sem restribo, como algo que a Máe de Deus nunca


perdeu; de modo especial, a Liturgia sempre encareceu éste
privilegio mariano.

O leitor compreenderá que nestas páginas nao é possível


acumular citagóes além das que atrás apresentamos, a fim de
corroborar os dizeres ácima. Seja, porém, lícito reproduzir a
última declaragáo do Magisterio a propósito, isto é, os dizeres
do Concilio do Vaticano II:

«A uniáo da Mae com o Filho na obra da Redeneiio manifestase


desdo o momento em qu« Jesús Cristo ó coneobido vi vnt nal mentó ale
a sua morte:... no nascimento, quando a Mae de Deus, encía de
alegría, mostrou aos pastores e aos magos o seu Fiiho primogénito,
que nao dimlnuiu, mas eonsagrou, a sua ¡ntegridade virginal» (Const.
«Lumen Gentium» n' 57).

Objeta-se outrossim o seguinte :

2) «Quem admite a virgindade perpetua de María, deprecia a


maternidade. O ato de dar á luz segundo as circunstancias naturais
da biologia nao é pecaminoso. Por que entao nao o atribuir a Mana?
Justamente em nossos dias, quando tanto se quer valorizar a san-
tidade da vida conjugal, está fora de propósito dizer que Mana nao
foi mae como as outras máes».

Por certo, a fé crista rejeita qualquer concepgáo dua


lista que aprésente as fungóes da maternidade como algo de
impuro ou indigno dos santos. A vida matrimonial é santa, desde
que vivida segundo a vocagáo divina; Sao Paulo observa que
a mulher se salva pela geragáo dos filhos (cf. 1 Tim 2,15).
O Concilio do Vaticano II empenhou-se por colocar tais ver
dades em plena luz, dissipando nocóes pejorativas que tenham
outrora pairado sobre o matrimonio. Nao se creia, pois, que
a doutrina da virgindade de María se prende a urna concepeáo
pejorativa de sexo e vida sexual; os atos de conceber e dar
á luz dentro das lei da natureza nada tém que ofenda a Deus
e redunde em desdouro dos genitores. — É muito importante
frisar estes principios.
Todavía a énfase sobre a santidade conjugal nao implica
em derrogagáo á verdade enunciada por Sao Paulo (1 Cor 7):
a virgindade constituí um estado ainda mais nobre do que o
casamento. Ela é a vida una, indivisa, que adere ao Esposo
Divino sem intermediario; o símbolo desta adesáo total a Cristo
é a integridade física ou a virgindade corpórea. Ora foi certa-
mente para dar pleno realce ao valor da vida virginal que
Deus Pai quis conservar a virgindade de Maria. Tambént no
séc. XX a proposicáo de 1 Cor 7 conserva toda a sua autori-

— 482 —
PECADO E SANTIDADE NA IGREJA 31

dade, embora parega severa demais ou alheia as correntes do


pensamento contemporáneo.

O Filho de Maria Virgem é verdadeiro homem; seu nas-


cimento virginal nao lhe mutila a natureza humana: Mas...
nao é apenas verdadeiro homem: Ele também é verdadeiro
Deus e, como tal, assinalado pelo seu modo de nascer... modo
portentoso.

4. Consideracóes fináis

Em última análiso, nem a filosofía ncm a ciencia sao


aptas a afirmar ou negar que Maria tenha sido Virgem per
petua. É sómeínte a fé que o afirma ; e é sómente na fé que
se professa tal verdade,... fé, sem dúvida, baseada no teste-
munho da Palavra de Deus oral e escrita.

Verifica-se, pois, o seguinte : em última análise, o que leva


tantos homens de hoje a por em dúvida (explícita ou implícita
mente) a matennidade virginal de Maria nao é o «absurdo»
desta proposigáo nem sao os documentos literarios, mas é sim-
plesmente a aversáo ao milagre ou aos feitos portentosos que
caracteriza a mentalidade racionalista ou naturalista contem
poránea. Éste racionalismo, porém, pretendendo ser alheio a
todo dogmatismo, nao deixa de estar baseado em um dogma,
a saber: «Nao pode haver fenómenos que transcendam a or-
dem natural das coisas ; tudo que seja extraordinario, é sim-
plesmente impossivel». Tal premissa nao é provada, mas sim-
plesmente afirmada.
Ora o cristáo coerente com seus principios nao pode com-
partilhar tal especie de dogmatismo. Quem eré que Deus existe,
admite conseqüentemente que Deus possa fazer milagres ; em
conseqüáncia, o cristáo eré nos milagres devidamente autenti
cados. — Tal posigáo é muito mais lógica do que o dogma
tismo daqueles que, embora se digam cristáos, tendem a negar
a maternidade virginal de Maria pelo simples fato de ser um
portento sem igual.

ROSA (Rio de Janeiro) :

4) «Existe o pecado na Igreja, e a Igneja precisa de


renovacáo e purificacao. Gomo enfcao se pode dizer que Ela é
a Esposa de Cristo, sem mancha nem ruga ?»

Na resposta abaixo seráo primeiramente propostos os ter


mos do problema, para melhor se evidenciar a sua solugáo.

— 483 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 4

1. O problema

É Sao Paulo quem ensina que Cristo ama a sua Igreja e


se entregou por Ela, a fim de torná-la sua Esposa sem mancha
nem ruga (cf. Ef 5,25-27). Em conseqüéncia, o Concilio do
Vaticano II, retomando o pensamento da Tradigáo crista, asse-
vera que a Igreja é «indefectivelmente santa» (cf. Const. «Lu
men Gentium» 39).
Nao obstante, o mesmo Concilio declara :

«A Igroja, reunindo cm seu próprio seio os pecadores, ao mesmo


tempo santa e sempre na necetlsldade de se purificar, busca sem ees-
sar a penitencia e a renovacáo» (ib. 8).
«Compete á Igreja tornar presente e como que visível Deus Pai
e seu Filho Encarnado, renovando-se e purificando-se imcessantemente»
(Const. «Gaudium et Spes» 21).

A própria Igreja, alias, em sua Liturgia, acusa-se do pe


cado, lamenta suas faltas, e pede a graga da purificacáo. Te-
nham-se em vista, por exemplo, algumas oragóes do Missal:
«ó Deus, que purificáis a vossa Igreja com a anual observancia
da Quaresma...» (1* domingo da Quaresma).
«Vossa continua misericordia, Senhor, purifique e fortaleca a
vossa Igreja...» (15' domingo após Pentecostés).

Que dizer da aparente contradigáo ?

2. A solugao

Conforme Sao Paulo, a Igreja nao é apenas a soma de


seus membros, mas é o Corpo de Cristo prolongado na térra,
ou é Cristo que continua a viver, a padecer e a morrer em
seus membros :

«Vos sois o corpo de Cristo e seus membros, cada qual de per si»
(1 Cor 12,27).

«Vivo eu ; já nao eu, mas é Cristo quem vive em mim» (Gal 2,20).
«Regozijo-me pelos sofrimentos que padeco por vos, e completo
em minha carne o que falta aos padecimentos de Cristo, em prol do
seu Corpo, que é a Igreja» (Col 1, 24).
«Sempre e em toda parte trazemos em nosso carpo os soírimen-
tos de morte de Jesús, a íim de que a vida de Jesús seja manifestada
em nosso corpo... Somos incessantemente entregues á morte po»*
causa de Jesús, a íim de que a vida de Jesús seja manifestada em
nossa carne mortal» (2 Cor 4,10s).

— 484 —
PECADO E SANT1DADE NA IGREJA 33

Vé-se, pois, que a Igreja possui algo que transcende o seu


aspecto humano ou visível. Nela se prolonga, sim, a vida divina
do próprio Cristo; os membros da Igreja. constituem como
que o involucro dessa vida, involucro que é ora mais transpa
rente, ora menos transparente ou mesmo totalmente opaco.

Sendo o Cristo prolongado, a Igreja pode e deve ser dita


isenta de mancha ou ruga. As suas fronteiras passam por den
tro de cada um de seus membros, pois em cada qual se encontra
algo de puro e santo, como também algo de impuro e peca
minoso.

«As írontciras da Igreja e do mundo, da luz e das trevas passam


através dos nossos próprios caracSes» (Ch. Journet, em «Nova et
Vetera» 1963, pág. 302).
«É em nosso próprio comportamento, em nossa próprla vida, em
nosso próprio corac&o que se defrontam a Igreja e o mundo, Cristo
e Belial, a luz e as trevas» (Ch. Journet, «Théologie de l'Église» 244).

Em termos mais explícitos, dir-se-ia :

Todo homem, por descender do primeiro Adáo, é sujeito


a pecar e, de fato, peca, ainda que, pelo Batismo, tenha sido
transferido para a Igreja ou enxertado no Corpo Místico do
Segundo Adáo (Cristo). Ao pecar, o homem age nao por efeito
dos dons ou dos mandamentos de Cristo e da Igreja, mas em
virtude da heranga recebida do primeiro Adáo ; todo pecado
é sempre urna desobediencia ou mesmo urna traigáo á Igreja.
E justamente o programa de vida do cristáo consiste em pro
curar diminuir progressivamente essas desobediencias ou trai-
góes, a fim de que ele se identifique mais e mais com a Santa
Igreja, Esposa sem mancha nem ruga. Por isto se diz que
dentro de cada cristáo passam os limites da S. Igreja; em
cada ser humano batizado há algo de náo-evangelizado, algo
de pagáo ou «urna térra de missáo», que a Igreja tem que
iluminar e transformar paulatinamente com a vida de Cristo.

Compreende-se entáo que a Igreja nao seja sem pecadores,


mas seja sem pecado. Quando, portante, Ela pede perdáo e
suplica a graca da purificacáo, toma sobre si algo que nao
lhe pertence, ou seja, os pecados de seus membros ; essas fal
tas nao sao da Igreja, mas estáo na Igreja como um corpo
estranho. De maneira análoga, o Cristo Jesús «santo, inocente
e sem mácula» («Lumen Gentium» 8) quis revestir-se dos pe
cados do mundo e por éles prestar a expiacáo devida a Deus
Pai, a fim de nos salvar : «Aquéle que nao conhecera o pecado,
(Deus Pai) o tornou pecado em nosso favor, a fim de que
n'Éle nos tornemos justiga de Deus» (2 Cor 5,17).

— 485 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 4

«Na Igreja nao há trevas, embora infelizmente os pecados da-


queles que lhe pertencem cubram com um véu a sua beleza aos olhos
do mundo, acarretandolhe censuras e injurias e fazendo-a sofrer
diante de Deus. Se ela pede perdáo, fá-lo porque reconhece como
seus, diante de Deus e dos homens, aqueles que cometem pecados,
mas nSo os pecados mesmos, pecados, alias, que os seus membros só
cometem distanciándose déla» («La Plume et la Pourpre», em «La
Liberté». Fribourg 27/2811-1965, pág. 6).

A Santa Igreja Máe nao rejeita seus filhos pecadores, mas,


ao contrario, trata de obter para éles a purificado e o perdáo.
É Ch. Journet quem desenvolve o pensamento :

«A Igreja como pessoa assume a responsabiUdade da penitencia.


NSo assume a resporisabilidade do pecado... Sao os seus membros,
leigos, clérigos, presbíteros, bispos ou Papas que, desobedecendo lhe,
assumem a responsabilidade do pecado ; nao é a Igreja como pessoa.
Os homens caem em grande ilusáo... quando convidam a Igreja como
pessoa a reconhecer e proclamar os seus pecados. Esquecem que a
Igreja como pessoa é a Esposa de Cristo, que file 'adquiriu com seu
próprio sangue" (At 20.28); que Ele a purificou, para que íósse
diante d'Éle 'toda resplandescente, sem mancha nem ruga nem algo
de semelhante, mas santa e imaculada' (Ef 5.27); epquecem aue
Ela é a 'casa de Deus, coluna e suporte da verdade' (1 Tim 3,15)»
(«Théologie de l'Église» 241).

O Concilio do Vaticano II, tendo em vista as relacóes da


Igreja com os náo-cristáos e com a humanidade em geral, quis
realcar que as rixas e divisóes verificadas no decorrer dos
sáculos foram nao raro devidas a atitudes e comportamftntos
falhos dos membros (mesmo da hierarquía) da Iereia Católica.
Esta afirmacáo sincera impunha-se, a fim de facilitar a anro-
ximacáo e a conjugacáo de esforcos de católicos e náo-católicos.
Mais do que nunca, o momento presente exisre uniáo fraterna
entre os homens, uniáo que só pode ser obtida >na base da
lealdade humilde e da verdade.
O mesmo Concilio também houve por bem admoestar so-
lenemente os católicos acerca da necess'dade de se purificarem
constantemente de qualquer desvio da Lei de Deus ou de qual-
quer infidelidade a Cristo. Em verdade, a fraaueza humana
está sempre pronta a solapar os melhores propósitos e exige
cont'íiua vigilancia da parte dos filhos da Igreja, a fim de
que mesmo os mais agraciados por Cristo nao se deixem es-
tagnar pela rotina ou abater pela covardia.
É o que justifica textos do seguinte teor :

«A Igreja pereerrlna é chamada por Cristo a essa reforma perene,


da qual, como instituicao humana e terrena, necessita perpetuamente»
(Decreto sobre o Ecumenismo 6).

— 486 —
PAULO VI NA TURQUÍA 35

«(Os católicos) devem empenhar-se para que a Igreja... de


dia para dia se purifique e se renové» (ib. 4).

Merecem atencáo, nos dizeres ácima, as expressóes «Igreja


peregrina... como instituigáo humana e terrena», pois real-
gam o fato de que o pecado se encontra nos elementos huma
nos e mortais da Igreja, elementos que contingentemente cons-
tituem a face terrestre da Esposa de Cristo, mas nao definem
o seu ámago ou a sua realidade íntima e perene.
De resto, o pensamento do Concilio é exposto com plena
clareza na seguinte passagem :

«Ainda que a Igreja, por virtude do Espirito Santo, tenha perma


necido fiel Esposa do seu Senhor e jamáis haja cessado de ser um
sinal de salvacáo para o mundo, contudo de modo algum ignora que
nao faltaram entre os seus membros, clérigos e leigos, na serie min-
terrupta de tantos séculos, os que foram Infléis ao Espirito de Deus.
Também em nossos tempos nao ignora a Igreja quanto se distanciam
entre si a mensagem que Ela proíere e a fraqueza humana daqueles
aos quais o Evangelho foi confiado» (Const. «Gaudium et Spes» 43).

É nestes termos que se resolve a aparente antinomia entre


«Igreja sem mancha nem ruga» e «Igreja de pecadores».

IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

ABAÚJO (Belo Horizonte) :

5) «Qual o significado da recente visita do Papa Paulo VI


a Turquía ? Porque tove essa viagem menor repercussáo do
que as anteriores no plano internacional ?»

Antes do mais, interessa indagar as razóes da ida de Sua


Santidade á Asia Menor. Feito isto, procuraremos por em realce
os principáis episodios e documentos da visita, assim como a
mensagem que ela transmite ao mundo de hoje.

1. Os «porqués» da visita

1. O próprio Santo Padre, em sua alocucjio ao Corpo


Diplomático acreditado em Istambul, na noite de 26/VIJ./67,
expós os motivos de sua viagem 'á Turquia:

— 487 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 5

«Quem somos Nos ? E a que titulo tomamos a palavra diantc


de auditorio táo distinto?
Somos antes do mais, senhores, vos o sabéis, um chefe religioso.
Nossa missáo nao se volta para os interésses de ordem política ou
económica que unem ou dividera os homens e as nagóes. As yiagens
que empreendemos, tém objetivo e caráter essencialmente religiosos.
E, por muito diversos que sejam os auditorios aos quais acontece que
Nos dirijamos, Nossa palavra será sempre e necessáriamente orien
tada para o plano espiritual .
Se viemos á Asia Menor logo após as celebracóes romanas do
décimo nono centenario do martirio de S. Pedro e S. Paulo e no inicio
do 'Ano da Fé' inaugurado em tal ocasiáo, íoi primelramcnte para
venerar os lugares em aue ossa Í6 se exprimiu eom brilho nos pri-
meiros sáculos do Cristianismo. Esta térra íoi percorrida e evange
lizada por Sao Paulo. Urna antiqüíssima tradicáo lhe associa a me
moria da Virgem Maria e de Sao Joño Evangelista. A Igreja aqui
realizou seos primeiros grandes Concilios.
Mas o principal objetivo que demos á presente viagem, entra ñas
finalidades ecuménicas da Igreja, colocadas em táo viva luz pelo
Segundo Concilio do Vaticano recém-celebrado. Desejamos contribuir,
tanto quanto depende de Nos, para a reconstrucSo da unidade crista.
E na via aberta por Nosso primeiro encontró de Jerusalém com o
Patriarca ecuménico de Constantinopla, damos hoje um ndvo passo,
que atesta os sentimentos profundos que Nos animam, assim como
a Nossa vontade de explorar todos os caminhos capazes de acelerar
a marcha para a táo desejada uniáo» («L'Osservatore Romano»
2G/VII/1967, pág. 2).

Como se vé, o motivo principal da visita de Paulo VI a


Istambul é de índole ecuménica ou unionista. Seu fundo de
cena é o seguinte :

Existem no mundo 143.402.000 de cristáos orientáis sepa


rados da Igreja Católica. Sao ditos «ortodoxos», porque nos
séc. V/Vn seguiam a reta fé (a «ortodoxia»), á diferenga dos
nestorianos, manofisitas e monotelitas, que destoavam da ver-
dade crista. Constituem hoje igrejas nacionais autocéfalas, re
gidas cada qual por um Patriarca, arcebispo ou sínodo próprio.
— O principal dos Patriarcas ortodoxos do Oriente é o de Cons
tantinopla (hoje Istambul), atualmente Atenágoras I (dito
«Patriarca ecuménico», isto é, universal). Nao exerce jurisdi-
qáo sobre os demais bispos do Oriente, mas frente a éles goza
de um primado honorífico.

Os orientáis ortodoxos estáo, sem dúvida, muito próximos


da Igreja Católica. Separam-se desta nao por motivos dogmáti
cos (náó por heresia), mas por razóes meramente disciplinares;
a diversidade de idiomas, culturas e interésses políticos foram
mais e mais distanciando uns dos outros os cristáos orientáis
e ocidentais, de sorte que em 1054, após serias tensóes, o Pa-

— 488 —
PAULO VI NA TURQUÍA 37

triarca Miguel Cerulário, de Constantínopla, declarou a ruptura


frente a Roma. Cf. a propósito «P.R.» 10/1958, qu. 11.
Os orientáis, além de conservaren! a mesma fé que os
cristáos ocidentais (com pequeñas divergencias introduzidas nos
últimos séculos), possuem a sucessáo apostólica, o que quer
dizer: seus bispos sao verdadeiros sucessores dos Apostólos ;
ordenam verdadeiros presbíteros, que válidamente consagram
a Eucaristía e administram os sacramentos aos fiéis.

Por duas vézes na Idade Media, ou seja, em 1276 e 1439,


verificaram-se tentativas de uniáo entre orientáis e ocidentais.
Já que eram sugeridas principalmente por motivos políticos
(Constantinopla se achava sob a ameaga dos turcos), foram
efémeras ; a segunda tentativa foi totalmente dissolvida em
1450, e Constantinopla caiu sob o poder turco em 1453.
É notorio que, por obra do Vaticano n, muito se aproxi-
maram católicos e ortodoxos. — Desejando, pois, favorecer ao
máximo a almejada uniáo, o S. Padre Paulo VI julgou opor
tuno, logo na inicio do Ano da Fé (29/VI/67 a 29/VE/68),
manifestar em Istambul aos cristáos orientáis as aspiragóes
dos católicos em favor da uniáo.
Segundo noticias da imprensa internacional, o Patriarca
Atenágoras pretendia nos últimos tempos ir a Roma em visita
ao Papa Paulo VI. Nao o fez, porém, em atengáo aos prelados
ortodoxos que se mostraram pouco de acordó com tal projeto.
2. Além de ser sede do Patriarcado de Constantinopla,
a Asia Menor apresenta outro título muito sugestivo para a
uniáo dos cristáos. Com efeito, após a Palestina ela pode ser
dita o «segundo bergo do Cristianismo». É a térra que os
grandes Apostólos evangelizaram:

Sao Pedro, que escreveu aos cristáos do Ponto, da Galácia, da


Capadócia, da Asia, da Bitínia (cí. 1 Pdr 1,1) ;
Sao Paulo, que permaneceu tres anos em Éfeso, donde irradiou
o Evangelho para as cidades vizinhas (cf. At 19,1-20,1) ;
Sao Joño, que teve sua sede episcopal em Éfeso, onde escreveu
o quarto Evangelho.

Diz urna tradigáo que María SS., por Jesús confiada a


S. Joáo, acompanhou para Éfeso o discípulo bem-amado. Apon-
tam-se mesmo vestigios de urna «casa de María» («Panagia
Kapulu» ou «Meryem Ana») nessa cidade; as visóes da Re
ligiosa Catarina Emmerich (1774-1824), segundo alguns histo
riadores, corroboram as indicagóes dos arqueólogos. Nada,
'porém, se pode assegurar a tal propósito, visto que em Jeru-

— 489 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 5

salém se mostram vestigios da mansáo e do sepulcro de


Maria SS.
Deve-se outrossim assinalar que na Asia Menor tiveram
lugar os quatro primeiros Concilios Ecuménicos :
o de Nicéia (325), que definiu a «consubstancialidade» (homoousia)
do Filho; o que quer dizer : proclamou que Pai e Filho sao pessoas
subsistentes na mesma esséncia ou natureza divina (Ario asseverava
que o Filho é criatura do Pai);
o de Constantinopla I (381), que afirmou definitivamente a Di-
vindade do Espirito Santo ;
o de Éfeso (431), que proclamou ser Maria a Máe de Deus, o
que equivalía a dizer, contra Nes torio, que em Cristo há urna só
Pessoa (divina) ; .
o de Calcedonia (451), que completou a doutnna do anterior,
proclamando haver em Cristo duas naturezas (a divina e a humana)
realmente distintas.

Como se vé, as grandes verdades da fé crista (os misterios


da SS. Trindade e da Encarnacáo) forana definitivamente for
muladas na Asia Menor, para onde convergiram padres con
ciliares do Oriente e do Ocidente. A Asia Menor lembra, pois,
aos cristáos a unidade e a pureza da fé, assim como a uniáo
dos discípulos de Cristo na base do mesmo Credo. A visita
de Paulo VI a tal regiáo (a primeira que um Papa lá fez após
doze sáculos) concorreu, sem dúvida, para reavivar e incutir
a mensagem da antiga Asia Menor ao mundo cristáo de hoje.
3. Por misterioso designio da Providencia Divina, essa
regiáo, desde que foi ocupada pelos turcos em 1453, é quase
totalmente mugulmana. Lá se contam apenas 18.000 fiéis cató
licos, isto é, 0,09 % da populacáo da Turquía e 12 % dos cris
táos do país (os outros 88 % de cristáos sao ortodoxos e, em
exigua proporgáo, protestantes).

O próprio Patriarca Atenágoras nao é pessoa muito bem vista


pela opiniüo pública turca, porque de certo modo representa a reli-
giáo ortodoxa e a cultura greco-bizantina, que caracterizavam a
Asia Menor antes do advento do islamismo no séc. XV. Ademáis
Atenágoras está em eomúnháo com o Patriarca ortodoxo Macario III
de Chipre, térra esta que se tornou motivo de discordia entre a
Turquía e a Grecia.

Alguns jomáis turcos chegaram a classiíicar Atenágoras como


«inimigo número 1 do pais».
Sabe-se também que na Turquía urna lei proibe que as igrejas
sejam construidas com o frontispicio voltado para a respectiva rúa.
A catedral católica de Istambul, tendo sido edificada recentemente,
é pequeña e quase oculta. A maior igreja católica da cidade é a de
S. Antonio, dos Franciscanos Conventuais, existente desde 1913 ; está,
porém, sujeita á mencionada lei.

— 490 —
PAULO VI NA TURQUÍA 39

4. Nao se pode deixar de mencionar que a ida do Sumo


Pontífice á Turquía visou também maior entandimento dos
católicos com todos os homens e maior compreensáo mutua dos
povos entre si. O Papa tem sido nos últimos tempos o pro-
pugnador da paz e o arauto do convivio fraternal de todos os
homens e povos sobre a térra.
De resto, em sinal de benevolencia, a Santa Sé recente-
mente devolveu á Turquía a bandeira que os cristáos arreba-
taram aos turcos na batalha de Lepante em 1571.

2. Os pontos salientes da visita

1. Na terga-feira 25 de julho de 1967, festa do Apostólo


Sao Tiago, Sua Santidade Paulo VI deixou Roma as 7 h 55 min
em aviáo Boeing 707 da «Pan-American», chegando a Istambul
as 9 h 55 min.
No aeroporto foi recebido pelo Presidente da República
Turca Cevdet Sunay, pelo Primeiro-Ministro Suleyman Demirel
e outros membros do govérno. Acolheu-o outrossim o Patriarca
Atenágoras, acompanhado de prelados da Igreja ortodoxa, assim
como o Gráo-Mufti Fikri Yavuz, chefe espiritual dos mugul-
manos de Istambul, e o Rabino Dr. David Aseo, chefe da
comunidade judaica da capital turca.

2. Sua Santidade dirigiu-se logo para a catedral católica


de Istambul, onde proferiu paterna alocugáo em francés aos
fiéis reunidos ; após ter homenageado os Papas Bento XV e
Joáo XXIII, que deixaram seus vestigios em Istambul, exaltou
a fidelidade religiosa dos católicos da cidade:
«Admiramos vosso espirito de íé, vossa dedicacáo, vossa energía...
Pensamos especialmente nos padres Assuncionistas e em suas magni
ficas realizacócs no campo da cultura ; nos Capuchinhos, que já há
tantos anos se dedicam ao Seminario Menor; nos Lazaristas, nos
Irmáos das Escolas Cristas, nos Salesianos, táo beneméritos no setor
da Educacáo crista. E poderiamos esquecer os íilhos de S. Francisco,
S. Domingos, S. Inácio, sua colaboracáo no apostolado e no bom
andamento do Vicariato ? E que diremos das táo devotadas Congre-
■cdes lemininas ? A sua acao discreta e eficaz a servico dos jovens,
dos pobres e dos deserdados merece Nosso elogio e toda a Nossa
gratidáo. Sede todos e todas, caros Filhos e Filhas, felicitados e esti
mulados. E prossegui vossas atividades onde a obediencia vos colocou,
em espirito de compreensáo, respeito e colaboracáo fraterna. Tal será
vosso modo de dar testemunho a Cristo e á sua Igreja...
Ajudai-nos, ajudai-nos todos, Pastores e ovelhas, na grande tarefa
que empreendemos e que foi um dos motivos determinantes desta

— 491 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 5

viagem : a .restauragáo da unidade crista. Aqui experimentáis, mais


do que outros, quanto é necessária ; vedes também, melhor do que
outros, os seus progressos.

O recente Concilio do Vaticano lembrou que estes progressos se


baseiam, antes do mais, sobre a renovagao da Igreja e a conversáo
do coracao. Isto quer dizer que contribuiréis para a marcha em prol
da unidade na medida em que entrardes no espirito do Concilio. A
cada um de nos pedese um esíórco para rever seu habitual modo
de pensar e agir, a fim de os tornar mais conformes ao Evangelho
e ás exigencias da ve.rdadei.ra Iraternidade crista. Fagamo-lo genero
samente, tendo a confianca de que a hora de Deus vira e de que
podemos acelerar a sua vinda por nossas oragóes e nossos esf argos...

Oremos juntos para obter a graca de urna resposta generosa ao


apelo da Igreja e do Concilio assim como a graca da unidade plena
de todos os que créem em Cristo e proíessam de coragüo e de boca
a una e indivisa Trindade, Pai, Filho e Espirito Santo. Amém».

3. Da catedral, S. Santidade se dirigiu ao Palacio do Pre


sidente da República Turca, com quem se entreteve cérea de
hora e meia. Do discurso entáo pronunciado pelo S. Padre,
sejam realcados os seguintes tópicos :

«Como todas as viagens que empreendemos desde o inicio do Nosso


pontificado, esta, V. Excelencia bem o sabe, tem finalidade, antes do
mais, religiosa. Todavía dá-Ños ensejo também para entrar em con
tato com um grande povo, que somos felizes por poder assim conhe-
cer de mais perto...
Entrando ñas intencóes désse Pontífice (Joáo XXIII), de grande
coragao, tivemos a preocupagáo de desenvolver e reforjar as relagóes
(da Santa Sé) com a Turquía. Foi o que Nos inspirou entre outrás
coisas, Vos o sabéis, a idéia de restituir ao Govérno turco o estan
darte conservado em Roma desde os remotos tempos da batalha de
Lepanto — gesto éste que com muito prazer efetuamos para atestar
publicamente que as dissensoes do passado estao realmente extintas
e que nada desejamos tanto quanto ser para todos os povos um
mensageiro de paz e entreter, principalmente com o vosso povo, re-
lagoes impregnadas da mais sincera e cordial amizade».

4. Á tarde, verificou-se o ponto alto da viagem de


Paulo VI, ou seja, o encontró de S. Santidade com o Patriarca
Atenágoras na igreja' ortodoxa de S. Jorge em Istambul. Pe-
rante a multidáo de pessoas que enchiam o templo, o Papa
se dirigiu ao Patriarca nos seguintes termos :

«Há pouco mais de tres anos, Deus, em sua infinita bondade,


permitiu que nos encontrásemos na Tena Santa, em que Cristo fun-
dou sua Igreja e derramou seu sangue por Ela. Os dois fomos como
peregrinos até o lugar onde foi erguida a cruz gloriosa de nosso Sal
vador e de onde, elevado sobre a térra, atraiu tudo a si (cf. Jo 12, 32).
Hoje é o mesmo amor de Cristo e de sua Igreja que me traz, de
novo como peregrino, a éste nobre país, onde os sucessares dos

— 492 —
PAULO VI NA TURQUÍA 41

Apostólos se reuniram outrora no Espirito Santo para testemunhar


a fé da Igreja. Evocamos aqui os quatro grandes Concilios Ecuménicos
de Nicéia, Constantinopla, Éfeso e Calcedonia, que os padres nao
duvidaram em comparar aos quatro Evangelhos. Eram as primeiras
vézes que se encontravam vindos de todo o mundo cristáo dessa época.
Animados de urna mesma caridade íraterna, éles deram á nossa fé
urna expressáo cuja riqueza e densidade inspiram ainda em nossos
días a fé e a contemplacáo amorosa de todos os cristáos...
No principio déste ano em que celebramos o 19* centenario do
supremo testemunho de fé dos Apostólos Pedro e Paulo, encontra-
mo-nos para trocar novamente o ósculo da caridade fraternal, na
mesma térra onde nossos pais na fé se encontraram para confessar
unánimemente a Santa Trindade, indivisivel e consubstancial.
A luz de nosso amor por Cristo e de nossa caridade fraternal,
descubrimos mais ainda a profunda identidade de nossa íé; os
pontos sobre os quais ainda divergimos, nao nos devem impedir de
ver esta unidade profunda.
A caridade deve ajudar-nos, como ajudou a Hilario e Atanásio,
a reconhecer a identidade da fé por tras das diferencas de vocabula
rio, num momento em que graves divergencias dividiam o episcopado
cristáo. Nao defendía por acaso Sao Basilio, em sua caridade de
pastor, a fé auténtica no Espirito Santo, evitando algumas palavras,
que, por exatas que fóssem. poderiam ser oportunidade de escándalo
para urna parte do povo cristáo ?...
Se a unidade de fé é necessária para a plena comunháo, a diver-
sidade de costumes nao é um obstáculo; bem ao contrario.
Santo Ireneu nao dizia por acaso que a diferenca de costumes
confirma o acordó da fé ? Quanto ao grande doutor da Igreja de
África, Agostinho, ele via na diversidade de costumes urna das razSes
da beleza da Igreja de Cristo.
A caridade nos permite tomar urna consciémcia mais clara da
própria profundidade de nossa unidade, ao mesmo tempo que torna
mais dolorosa a impossibilidade atual de ver esta unidade expan-
dir-se em urna concelebracao e nos concita a por tudo em acáo para
acelerar a chegada désse dia do Senhor. Desta maneira vemos clara
mente que cabe aos Chefes das Igrejas, a sua hierarquia, dirigir suas
Igrejas no caminho que leva á plena comunháo. Éles devem fazé-lo
reconheceridose e respeitando se como pastores da parte do rebanho
de Cristo que lhes íoi confiado, cuidando da coesáo e do cresdmento
do povo de Deus, evitando tudo o que possa dispersar ou criar con-
fusao em suas fileiras.
Desta maneira, desde já, com éste esfórco poderemos dar teste
munho mais eficiente em nom'e de Cristo, que quis sejamos um
só para que o mundo creia...
Que o Senhor, que pela segunda vez nos permite trocar o ósculo
de seu amor, nos esclarece e guie nossos passos e nossos esforcos
para ésse dia tSo almejado ! Que Ele nos permita estar cada dia mais
animados únicamente pela preocupacáo do cumprimento fiel de sua
vontade sobre a Igreja, que nos conceda o sentido vivo do único ne-
cessário, a que todo o resto deve estar subordinado ou sacrificado!
É nesta esperanca que com urna caridade sem fingimento o abraco
com um santo ósculo !»

_ 493 _
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 5

5. Em recordagáo perene de táo importante visita, o S.


Padre deixou em máos do Patriarca Atenágoras um precioso
documento de pergaminho bilingüe (latim e francés), cujo teor
vai aqui transcrito na íntegra :

«No inicio do Ano da Fé celebrado em honra do décimo nono


centenario do martirio dos santos Apostólos Pedro e Paulo, Nos, Paulo,
bispo de Roma" e Cheíe da Igreja Católica, persuadidos de que é
Nossa obrigacáo empreender tudo que possa servir á universal e santa
Igreja de Cristo, encontramo-Nos de novo com Nosso muito amado
Irmüo Atenágoras, arcebispo ortodoxo de Constantinopla e patriarca
ecuménico. Estamos animados do ardente desojo de ver realizarse
a oracáo do Senhor, a qual pedia 'sejam um como nos somos um :
eu néles e tu em mim, para que sejam perfeitamente um, e o mundo
saiba que Tu me enviaste' (Jo 17,22s).
Ésse desejo nos incute o decidido propósito de íazer tudo que
esteja ao nosso alcance a íim de acelerar o dia em que entre a
Igreja do Ocidente e a do Oriente se restabelecerá plena comunháo,
em vista de se reconstituirem todos os cristáos na unidade. Essa
unidade permitirá á Igreja atestar mais eficazmente que o Pai enviou
seu Filho ao mundo para que nele todos os homens se tornern filhos
de Deus e vivam como irmáos na caridade e na paz.
Convictos de que 'nao há debaixo do céu outro momc dado aos
homens mediante o qual devamos ser salvos' (cí. At 4,12) e que Ihes
possa conferir a verdadeLra fraternidade e a paz, ouvimos a mensa-
gem que Joao, o discípulo bem-amado, enviava de Éfeso ás Igrejas
da Asia: 'O que vimos e ouvimos, nos vó-lo anunciamos, a fim de
que também vos estejais em comunháo conosco. Quanto á nossa
comunháo, ela se dá com o Pai e com seu Filho Jesús Cristo' (1 Jo 1,3).
O que os Apostólos viram, ouviram e nos anunciaram, Deus nos
concedeu a graca de o receber na fé. Pelo batismo 'somos um só
no Cristo Jesús' (Gal 3, 28). Em virtude da sucessáo apostólica, o
sacerdocio e a Eucaristía nos unem mais Intimamente aínda (cf. De
creto sobre o Ecumenismo 15). Tal é a comunháo profunda e miste
riosa que existe entre nos: participando dos dons que Deus outorgou
á sua Igreja, somos postos em comunháo com o Pai pelo Filho no
Espirito Santo. Feitos realmente filhos no Filho (cf. 1 Jo 3,ls), tor-
namo-nos também verdadeira e misteriosamente irmáos uns dos
outros.

Em cada Igreja local se realiza ésse misterio do amor divino.


Nao é esta a razáo pela qual, segundo urna bela tradicáo, as Igrejas
locáis tém estima a se chamar 'Igrejas irmás' (cf. Decreto sobre o
Ecumenismo 14) ? Essa vida de Igrejas irmás, nos a vivemos durante
séculos,. celebrando conjuntamente os Concilios Ecuménicos que de-
fenderam o depósito da fé contra toda alteracáo.
Agora, após longo período de divisáo e reciproca incompreensáo,
o Senhor nos concede que nos redescubramos como Igrejas irmás,
apesar dos obstáculos que foram levantados entre nos. Na luz de
Cristo, vemos quanto é urgente a necessidade de superar ésses obstá
culos para poder levar á plenitude e k perfeicáo a comunháo já táo
rica que existe entre nos. Pois que todos professamos 'os dogmas
fundamentáis da fé crista a respeito da Trindade e do Verbo de Deus
que tomou carne da Virgem María', tais como foram definidos nos

— 494 —
PAULO VI NA TURQUÍA 43

Concilios Ecuménicos celebrados no Oriente' (cf. Decreto sobre o


Ecumenismo 14), e visto que temos em comum verdadeiros sacra
mentos e um sacerdocio hierárquico, é preciso em primeiro lugar que,
para o bem de nossa santa íé, trabalhemos fraternalmente a íim de
encontrarmos juntos as formas adaptadas e progressivas para desen
volver e atualizar, na vida de nossas Igrejas, a comunháo que, embora
imperfeita, já existe.
É preciso também que todos, mediante contatos mutuos, promo
vamos, aprofundemos e adaptemos a formacáo do clero, a instrucáo
e a vida do povo cristáo. É mister que, mediante um diálogo teológico
sincero, tornado possível pela restauracáo da caridade fraterna, nos
conhecamos e respeitemos na diversidade legitima das tradicSes litúr
gicas, espirituais, disciplinares e teológicas (cf. Decreto s6bre o
Ecumenismo 14-17), para podermos com unanimidade professar de
maneira clara e sincera toda a verdade revelada. Contudo, para que
a comunháo e a unidade sejam restauradas e conservadas, é preciso
'nao impor coisa alguma que nao seja necessária' (cf. At 15,28; De
creto sobre o Ecumenismo 18).
Na esperanca e na caridade, firmados por continua oracáo, ani
mados pelo desejo do único necessário (cf. Le 10,42), ao qual tudo
há de ser subordinado, nao sómente prosseguiremos, mas também
intensificaremos a nossa caminhada em nome do Senhor.
No dia 25 de julho do ano do Senhor de 1967.

PAULO Pp. VI».

6. As 21 h do dia 25 de julho, o S. Padre Paulo VI e o


Patriarca Atenágoras se encontraram na catedral católica de
Istambul, a fim de orar em comum com grande número de
prelados e fiéis católicos, ortodoxos e o Rabino-Chefe da co-
munidade judaica da cidade.
Eis o texto das preces litánicas ou súplicas que foram
entáo proferidas :
Solo: «Irmáos carissimos, supliquemos o Deus de nossos Pais,
para que se digne de conservar na sua Igreja as marayilhas do seu
poder e da sua misericordia, e conceda as nacóes e aos homens a paz
na caridade e na justica.
A fim de que todos os que créem em Cristo sejam preservados
de todos os males e se tornem períeitos no amor déle, oremos ao
Senhor. . x
Todos : Kyrie eleison (Senhor, tende piedade de nos).
— A fim de que Sua Santidade o Papa Paulo VI, Sua Santidade
o Patriarca ecuménico Atenágoras I e os pastores de todas as comu
nidades cristas sejam fiéis servidores do Evangelho de Cristo, oremos
ao Senhor.
Kyrie eleison.
A fim de que a palavra do Senhor se cumpra em todos os que
trazem o nome de Cristo e a fim de que a sua unidade seja perfeita,
oremos ao Senhor.
Kyrie eleison.

— 495 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967, qu. 5

A fim de que nos aqui reunidos o todos os que no mundo


inteiro oram conosco, sejamos artífices de paz, de amor e de justica,
oremos ao Senhor.
Kyrie eleison.
A fim de que os governantes déste pa5s e todos os que gover-
nam ou exercem autoridade no mundo sejam abencoados e ilumina
dos no seu trabalho para conseguirem a verdadeira paz e a concordia
entre os homens e as nacoes, oremos ao Senhor.
Kyrie eleison.
— Por todas as almas provadas e aflitas, por todos os que
precisam da misericordia de Deus o do socorro dos homens seus ír-
maos, por todos os que estáo á procura da luz de Cristo, oremos
ao Senhor.
Kyrie eleison».

A estas súplicas o S. Padre acrescentou, á guisa de con-


clusáo, a prece «Livrai-nos, Senhor, de todos os males»..», a
qual se segué ao «Pai Nosso» na S. Missa.
7. Na quarta-feira 26/VII, o Papa Paulo VI celebrou as
7 h 30 min a S. Missa na igreja de S. Antonio dos Franciscanos
Conventuais de Istambul; após o Evangelho, dirigiu aos fiéis
urna exortagáo em italiano, recomendando-lhes a vida de fe
e a fidelidade as virtudes cristas, a fim de que mais e mais
se difunda a mensagem de Cristo.
Na mesma manhá Sua Santidade seguiu para Éfeso, via
Izmir (Esmirna), cidades cheias de evocacóes cristas. Após
ter visitado em Éfeso as ruinas de veneráveis monumentos, re-
tomou a nave aérea, que o levou de novo para Roma, onde
aterrissou as 20 h 40 min (hora local) do dia 26 de julho pp.

3. Reflexáo final

A visita de S. Santidade o Papa Paulo VI a Turquía cons


tituí algo de grandioso sob mais de um aspecto :
a) na historia da Igreja, é acontecimento inédito. O Sumo
Pontífice foi dar o ósculo da paz a comunidades de cristáos que
desde 1054 vivem separadas do Chefe visível da Igreja. Aos
olhos do Catolicismo, tal fato significa humildade, humildade
sugerida pelo zélo da uniáo entre os cristáos. As palavras de
Sua Santidade proferidas em Istambul denotam urna alma vi
brante, desejosa de envidar todos os esforgos necessários para
que os cristáos se reunam e para que o Reino de Cristo seja
mais e mais testemunhado neste mundo ;
b) na pastoral católica: é mais um estímulo a que os
fiéis católicos se esforcem em prol da unidade entre todos os

— 496 —
PAULO VI NA TURQUÍA 45

cristáos. Todos os católicos podem, sem dúvida, contribuir para


isso mediante o seu teor de vida fiel as normas da S. Igreja.
É muitas vézes segundo a conduta dos católicos que os. homens,
cristáos e náo-cristáos, julgam a Esposa de Cristo. O compor-
tamento de um católico redunda freqüentemente em maior
honra ou em detrimento da S. Igreja;

c) no cenário internacional: é urna demonstracáo do


empenho da Santa Sé para que reine a concordia entre todos
os homens. O recente conflito judeo-árabe pos em perigo a
paz universal. Em atencáo especial a ésse conflito, S. Santidade
quis chegar-se ao Oriente Medio. Procurem judeus, árabes e
muculmanos conviver em respeito mutuo e em paz. Se o fizerem,
superando sentimentos antifraternais, por certo se aproxima-
ráo do único e verdadeiro Deus.

Quem ama ao próximo, está, sem o saber, amando o


único Deus.

Segue-se em Apéndice urna estatística da situacáo reli


giosa do mundo contemporáneo.

— 497 —
Apéndice: Quadro religioso da humanidade em 19631

América Se- América


Rcligiuo tcntriotval = Meridional Europa Asia África Oceantaa Total

Cristáos 202.936.000 145.156*000 501.664.000 57.132.000 41.695.000 12.529.000 961.112.000

Católicos 118.550.000 142.350.000 252,917.000 43.948.000 28.624*000 3.651.000 590.040.000

Ortodoxos 3.585.000 44.000 131.849.000 2.701.000 5.143.000 80.000 143.402.000

Protestantes-» ... 80.801.000 2.762.000 116.898.000 10.483.000 7.928.000 8.798.000 227.670.000

Judeus* 5.936.000 689.000 3.933.000 2.345.000 265.000 72.000 13.240.000

Mugulmanos« 40.000 393.000 13.335.000 353.420.000 97.934.000 115.000 465.237.000

Zoroastrianos — — — 150.000 — — 150.000

Chintoistas 30.000 109.000 2.000 67.621.000 — — 67.762.000

TaoístasT 15.000 18.000 12.000 52.286.000 — — 52.331.000

Confucionistast .... 93.000 104.000 54.000 357.540.000 8.000 56.000 357.855.000

Budistas» 177.000 148.000 — 164.769.000 — — 165.094.000

Hinduístas 54.000 589.000 157.000 406.284.000 1.386.000 209.000 408.679.000

Outras crencas
e sem religiao .. 77.010.000 12.555.000 92.243.000 409.959.000 157.031.000 4.003.000 752.801.000

TOTAL 286.291.000 159.761.000 611.400.000 1.871.506.000 298.319.000 16.984.000 3.244.261.000


QUADRO RELIGIOSO DA HUMANIDADE 47

J Dados colhidos em «Encyclopaedia Britannica. Book of the


Year 1966».

2 Incluidas a América Central e as Indias ocidentais.

3 Incluidas a Australia e a Nova-Zelándia.

* Entre os protestantes estao compreendidos aqui os que se


acham sob controle comunista na Europa e na Asia. Muitas das deno-
minagoes protestantes so contam seus membros efetivos e nao todos
os fiéis batizados, á difarenca da Igreja Católica ; é o que ocasiona
certa vacilacáo ñas estatísticas concernentes aos protestantes.

n Compreendidos todos os judeus, mesmo os que nao pertencam


a determinada Sinagoga.

« A íonte principal para as estatísticas de muculmanos é cons


tituida pelos recenseamentos da India e do Paquistáo assim como por
um «Summary oí World Islam», publicado em «Islamic Review». Ésses
dados íoram aumentados no quadro anexo de acordó com a media
de aumento das populac5es. Quanto aos muculmanos da China, mesmo
antes da vitória comunista, as avaliacSes variavam entre 12 e 15
milh5es.

7 Sempre foi muito diíícil dizer com certeza quantos chineses


professavam o confucionismo ou o taoismo. Com eíeito, muitos pro-
fessam um e outro sistema. Também nao é possivel averiguar quantos
chineses abandonaram urna ou outras dessas crencas ou mesmo am
bas, em conseqüéncia da campanha antirreligiosa do govénno de
Mao-Tse.

s As estatísticas referentes ao budismo variam notoriamente,


podendo passar de 150 a 500 milhóes. Isto se deve principalmente á
dificuldade de avaliar a situacáo religiosa na China. Os números indi
cados no quadro anexo podem ser demasiado baixos. O problema é
quase insolúvel, pois na China e no Japáo as religiSes nao sao con
sideradas exclusivas: a mesma pessoa pode ser simultáneamente
confucionista, taoísta e budista na China, chintoista e budista no
Japáo.

CORRESPONDENCIA MIÜDA

ODILON (Rio de Janeiro): "Atencáo ! Sobrevieram mate noticias


a rcspeito do D. Lcmercier e dos monges de Cuernavaca, que se incom-
patibilizaram com a Santa Sé por causa da psicanálise".
Muito grato ao Irmáo. Continuamos aqui o noticiario encerrado
em "P.R." 93/1967, qu. 1. pág. 370.
D. Gregorio Lemercier, ao regressar de Roma em maio de 1967, nao
abandónou propriamente a Igreja, reas procedeu do seguinte modo :
Pouco depois de voltar ao México, D. Lfemercier declarou pela tele-
visáo que rcnunciava ao exercício do sacerdocio, mas nem por isto pre-
tendia deixar de praticar a religiáo católica. Entáo quarenta dos monges
de Cuernavaca resolveram pedir dispensa de seus votos religiosos para

— 499 —
_48 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 95/1967

acompanhar o Prior na fundagáo de um novo "mosteiro" chamado "Fa


milia de Emaus", em Cuernavaca mesmo (continuagáo do antigo "Centro
Psicanalítico Emaus").
Esta nova comunidade, atualmente já criada, recebe em seu gremio
todo e qualquer candidato masculino, independcnlcmcntc de difcrongas
religiosas, ideológicas ou raciais. Os mcmbi-os da "Familia" nao fazetn
votos religiosos, mas procuram seguir exclusivamente a sua consciéncia
pessoal. Como se compreende, tal comunidade, por sua estrutura mesma,
nao podia querer pertencer á Igreja Católica ; por isto desligou-se de
Roma e propós á Santa Sé colaborar com o Secretariado da Igreja "para
os náo-crentes". Esta posicáo, segundo Lemercier, nao impede que sa
cerdotes católicos pertencam á "Familia de Emaus".
E qual o denominador comum dos membros de tal comunidade ?
É Lemercier quem responde : "O elemento unitivo de nossa
Familia há de ser o fé no homem". Tal familia "nao discute idéias, mas
analisa sentimentos, honestamente, sem preconceitos". A tarefa a que
se dedicam os membros de Emaus é "a hospedagem em favor de todos
os que precisem de alimento, protecáo, auxilio e reconforto espiritual..."
Além disto, o novo "mosteiro" aplica-se a psicoterapia ou ao tratamento
das possíveis neuroses de seus hospedes, pretendendo assim cultivar
"um setor da medicina em que ainda há muito que fazer" !
Que dizer a respeito de toda essa evolucáo ?
1) A profissáo pública de fé em Deus foi substituida em Cuerna-
vaca por urna profissáo pública de fé no homem (será éste o novo
Deus ?)!!!
Tal troca é urna expressáo típica da mentalidade prevalente em
nossos dias : reconhece-se o homem como valor mais ou menos absoluto;
caso se reconheca também a Deus, é como valor subordinado ou valor
que deve servir ao homem.
Na verdade, porém, é utópico, se nao impossível, atender realmente
aos homens, Se isto nao é feito por amor a Deus. O maior beneficio que
os homens de fé podem prestar aos que nao tém fé, é manifestar por
palavras e obras, de maneira coerente e lúcida, a sua santa crenca.
2) O "seguir a consciéncia" de Lemercier e de seus companheiros,
que se desligaram de seus votos, é pobre programa e também... degra-
dacáo. Na verdade, os votos religiosos nao extinguem a consciéncia e o
exercício das mais .nobres facilidades do homem. Ao contrario, seja lícito
lembrar : "Servir a Deus é reinar".
3) Discutir sentimentos sem considerar idéias é impossível a um
homem enquanto homem. Tudo que o homem faz, há de ser necesaria
mente iluminado por idéias ; em caso contrario, é a mera animalidade
que funciona.

A Familia de Emaus nao Se pode dispensar de idéias ou de certa


filosofía, nao sómente no foro particular, mas também no foro comunitario.
Cedo ou tarde há de se por em Cuernavaca a pergunta : "Que é o
homem no qual eremos ? Materia pura ? Ou santuario de urna alma
¡mortal ?" Sem entendimento nesta questáo de base, multiplicam-se as
línguas, como em Babel.

D. ESTÉVAO BETTENCOURT O.S.B.

— 500 —
A RADIO TUPI DA GUANABARA

aprésente os programas

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

todos os domingos, das 6h 30min as 7h, na palavra de

D. Estéváo Bettencourt O. S. B.

«CONVERSA DE TRES MINUTOS»

de segunda a sexta-feira, as 6h 50min, por

monges de Sao Bento da GB


NO PRÓXIMO NÚMERO :

O Novo Catecismo holandés

O pecado original

Ecumenismo em nossos días

Genocidio

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