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Theophilos Rifiotis
Departamento de Antropologia
Laboratório de Estudos das Violências (LEVIS)
Universidade Federal de Santa Catarina
diferença, pela falta de finalidade das formações sociais. A violência, nas suas
sentido seria o de ser um elo da cadeia que nos prende ao passado. Nestes
concebida como uma ruptura, provocada por um elemento não integrado, sempre
1 Texto apresentado no Seminário Linguagens da Violência (Rio de Janeiro, UFRJ, 1995). Um primeira versão deste
texto será publicada na História em Revista do Núcleo de Documentação Histórica da Universidade Federal de Pelotas,
sob o título “O Fantasma da violência. Reflexões sobre forças centrífugas e um objeto em revolução”.
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O complexo jogo discursivo que procuramos caracterizar ao longo deste
texto, não se restringe a um simples embate entre duas tendências que poderiam
incontrolável da violência2.
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logo, destacar a importância que se tem atribuído aos estudos culturais, e,
Entendemos que há pelo menos duas boas razões para uma atitude de
primeiro lugar, porque no quadro atual dos estudos sobre a violência, há uma
limitada se ela for reduzida a uma simples soma, mais uma parcela, mais uma
outro lado, agindo pela premência, talvez não consigamos atingir a eficácia na
nossa ação, pois, submetendo-nos à urgência da atualidade nada nos garante que
o nosso pensamento não seja outra coisa que a sua própria duplicação. Por esta
para ampliar um equívoco que seria, a grosso modo, substituir uma explicação,
4 Retomando os principais pressupostos da análise da violência, Alba Zaluar (ZALUAR et alii, 1994) mostra que
estamos num campo semeado de equívocos, em relação aos quais tem-se observado uma significativa dificuldade de
superação. Esta leitura nos estimulou a escrever o presente texto colocando as dificuldades que observamos frente aos
referidos pressupostos.
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centralidade explicativa, seja ela, por exemplo, política, econômica, cultural5. Por
outro lado, ao evocar traços políticos ou culturais, tais como processo colonial,
concretização. Afinal, o óbvio tem sempre a sua importância garantida pela sua
5 No campo da cultura, o trabalho de Roberto da Matta, em “As raízes da violência no Brasil” (PAOLI et alii: 1982) é
certamente uma iniciativa da maior importância para o enfrentamento deste problema. O ensaio de R. da Matta é
instigante e oferece pistas produtivas para a pesquisa, tais como a idéia que a violência no Brasil serve tanto para
hierarquizar iguais, quanto para igualar diferentes. Entendida como um modelo operatório, esta idéia, entre outras,
torna-se uma poderosa matriz para a compreensão dos fenômenos ligados à violência no Brasil.
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Os campos da violência
lugar, uma prioridade dos recortes temáticos, tais como criminalidade, gênero,
6 Referimo-nos particularmente a discussões que tiveram lugar nos seguintes eventos: IV Reunião da ABA-SUL
(Florianópolis, 1993), XIX Reunião Brasileira de Antropologia (Niterói, 1994), V Reunião da ABA-(Merco)SUL
(Tramandaí, 1995), Encontro “Tendências Atuais no Estudo da Violência” (Florianópolis, 1996), e XX Reunião Brasileira
de Antrpologia (Salvador, 1996). Além de vários encontros paralelos, como aquele que teve lugar em João Pessoa
durante a realização do VII Encontro de Ciências Sociais e da IV Reunião de Antropologia do Norte e Nordeste (1995).
7 A ficha de mapeamento da RAIVA e o arquivo com os dados dos inscritos podem ser obtidos via e-mail
(theo@cfh.ufsc.br). Para participar da lista eletrônica de discussão da RAIVA, basta enviar um mail para
majordom@server07.npd.ufsc.br, com o seguinte texto: Subscribe Raiva-L. Estaremos brevemente colocando na
Internet a nossa home page, procurando facilitar o intercâmbio entre os pesquisadores e agentes sociais dedicados ao
estudo da violência.
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minorias étnicas, meninos de rua, conflito de gerações, etc, em relação ao recorte
dos encontros dividiam-se entre um grupo temático e aquele com o recorte sobre
da violência para avançar nas suas áreas específicas aparecia de modo conflitivo
no Brasil, principalmente a partir dos anos 80, podemos afirmar que há uma
lugares: nas relações entre pais e filhos, na escola, nas relações de trabalho, na
8 O evento contou com participantes do Projeto Integrado “Violência, Comunicação e Cultura no Brasil” (Universidade
Federal do Rio de Janeiro), da Equipe de Antropologia Política e Jurídica (Universidade de Buenos Aires) e do Grupo
“Violência, Cultura e Sociedade”do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de
Santa Catarina, que coordena as atividades da RAIVA.
9 A passagem dos estudos da violência como um elemento intelegível apenas no quadro das contradições estruturais
da sociadade de classes, para o domínio da micro-física, nos parece bem caracterizado em A Violência Brasileira (Paoli
et alii,1982); onde já encontramos também uma abertura para a abordagem antropológica no ensaio de Roberto da
Matta sobre as raízes culturais da violência no Brasil, referida anteriormente.
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prisão, etc; por outro lado, as manifestações de poder e de violência moveriam-se
Esta apreciação geral coloca em debate alguns traços que nos parecem
substituir uma revisão sistemática desta produção científica, o que seria uma
Neste campo tão complexo, nós nos perguntamos como se poderia circunscrever
o discurso sobre a violência como uma “objetivação”, uma vez que ele nem
10 Entendemos território num sentido mais amplo do que aquele de um espaço onde se articula a porção de vida ou
uma sociedade determinada. Território é um espaço vivido, mas também um sistema percebido no qual o sujeito
percebe uma “familiaridade”. Ele é, portanto, um sinônimo de apropriação, um espaço do imaginário onde desembocam
toda uma série de comportamentos, investimentos semióticos, sejam cognitivos ou estéticos. Segundo Félix Guattari
(1986), nós estamos em constante processo de desterritorialização, ou seja, desfazem-se ininterruptamente os nossos
territórios. Nesse sentido, a empresa capitalística é uma máquina de reterritoralização, de domesticação, de
disciplinamento, pois ela é a volta de tudo o que se perde, de todas as ovelhas desgarradas da ordem da produção e das
relações sociais. A noção de reterritorialização, conforme veremos mais adiante, é útil para a própria delimitação do
campo de estudos da violência.
11 “Um conceito próximo da experiência é, a grosso modo, um conceito pelo qual qualquer um - um paciente, um
sujeito, no nosso caso um informante - poderia, ele mesmo, naturalmente e sem esforço, se servir para definir o que ele
e seus companheiros vêem, pensam, sentem, imaginam e assim ele compreenderá facilmente quando este conceito for
aplicado pelos outros da mesma maneira. Um conceito distante da experiência é aquele que os especialistas de uma
forma ou de outra - um analista, um experimentador, um etnógrafo, mesmo um padre ou um ideólogo - empregam para
apresentar seu objetivo científico, filosófico ou prático.” (Geertz, 1986: 73)
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sempre é visível12, e, por outro lado, a violência é sempre um objeto em constante
retrato dos estudos sobre a violência apontam para um dado inequívoco que
mas ela nos permite colocar em questão a posição que estes discursos pretendem
intervenção política direta não pode ser exclusivo: a revisão deve ser sempre
parte do tempo para a ação; e é sempre bom lembrar que os reclamos pelo fim da
afirmá-lo, nós nos colocamos em defesa dos pobres, das minorias sociais, dos
que sofrem a violência policial, das mulheres e crianças que são alvo da violência,
12 A invisibilidade a que nos referimos é a mesma que tem a gramática para o falante de uma língua: falar implica na
mobilização de regras que não são conscientes para o sujeito enunciador.
De um modo geral, consideramos que a nossa percepção do mundo está irremediavelmente permeada pela nossa
experiência pessoal. Esta história, construída a partir de vivências concretas é, ao mesmo tempo, única e compartilhada
pelos nossos contemporâneos. É que a percepção e o objeto percebido são constituintes da mesma realidade. Esta é
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e acreditamos que os discursos denunciatórios têm uma tarefa fundamental na
não, está na origem deste nosso trabalho. O que gostaríamos de destacar é que
uma razão fundamental para que o conhecimento da dimensão imaginária das práticas sociais seja considerada
prioritária neste campo de estudo.
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contaminado por esta peste, que é preciso eliminá-la, antes que ela se torne
Diz-se também que, com certeza, nunca foi assim... Os bailes funks, as gangs, os
semântico que nos leva a pensar que estamos frente a um constante e inelutável
atua como uma portadora de referências que avaliam a realidade presente como
diremos que ela não pode ser diretamente interrogada; é melhor deixá-la falar.
realimenta o nosso próprio discurso. O seu léxico e a sua sintaxe são próximos do
13 No momento em que concluímos a revisão deste texto nos associamos, juntamente com os colegas do Grupo
“Violência, Cultura e Sociedade” do Programa de Pós-graduação da Antropologia Social da UFSC, à Assembléia
Legislativa de Santa Catarina para a realização de um mapeamento da violência no Estado.
14 Tomamos o conceito de fantasia ou fantasma da discussão de Renato Mezan em Freud: Pensador da Cultura,
citando uma carta de Sigmund Freud, onde este afirma que: “As fantasias são construções defensivas, sublimações e
ornamentações dos fatos, servindo simultaneamente a propósitos de auto-exoneração” (Mezan, 1986: 187).
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estranho da rua desconhecida, na noite escura. A violência é o caos, uma porta
paralela, pois o mundo que nos envolve está tornando-se cada vez mais previsível
e previdente, e talvez por isto mesmo estejamos cada vez mais preocupados com
participação social ampliada, com a luta pelo respeito aos Direitos Humanos e um
15 Relatórios detalhados sobre homicídios nos Estados Unidos da América e na Inglaterra mostram que os números da
violência doméstica são tão significativos quanto o silêncio que se coloca em torno deles (Chesnais, 1981: 100-124).
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O fantasma fala do aumento da violência, dos números "alarmantes", do
medo do outro, etc; mas afinal, o que entendemos por “violência”? Que objeto é
esse, do qual tentamos sempre nos afastar, e que se apresenta como uma força
interrogações não são tão solitárias quanto se poderia pensar, nem são apenas
a) negatividade/positividade da violência,
b) cumplicidade/vitimização,
este não é o objetivo deste ensaio. Aliás, é possível que o quadro desenhado
16 Várias iniciativas neste sentido estão em curso, entre as quais poderíamos destacar, apenas à título de exemplo, os
trabalhos de Alba Zaluar e os do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
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demanda por uma sistematização do campo conceitual. Com este espírito, ao
Diferença e positividade
questões, e que eles poderão contribuir para o debate ético em torno da violência.
17 Convidamos para esta mesa-redonda “Violência e Cultura no Brasil Contemporâneo” da XX RBA, realizada em
Salvador, os Professores Alba Zalur (UERJ), Ruben George Oliven (UFRS), Sérgio Adorno (USP), Luiz Eduardo Soares
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De fato, tomando a antropologia como referência, podemos afirmar que as
1980: 171). Porém esta imagem coincide mais exatamente com sociedades sob o
particular a guerra, atuaria no sentido inverso. A violência pode atuar como uma
também ser pensada nos aspectos que fazem dela um elemento instaurador de
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identidades locais (étnicas, culturais, etc) e da construção de subjetividades
como no caso das sociedades indígenas (Clastres, 1980: 206). Cada minoria,
18 Tendo presente a complexidade da questão ética envolvida, apresentamos no Encontro “Tendências Atuais no
Estudo da Violência” (Florianópolis, 1996), o texto “Entre dois amores... Apontamentos sobre um dilema ético no estudo
da violência: cidadania, democracia e diferença”.
19 Lembramos aqui as palavras de M.Godelier (1993:21): “Irei mais longe, e os senhores hão de permitir que eu afirme
que talvez haja formas de utlizar a Declaração dos Direitos Humanos que possam ser uma maneira perversa de denegrir
as outras culturas e de subordiná-las, antes de aniquilá-las.”
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implique em limites para as identidades locais. De um modo amplo, gostaríamos
de considerar que ela pode atuar, sob condições específicas, como um elemento
Além do mais acreditamos que este tipo de pesquisa pode vir a somar-se a outros
são as suas formas vivenciais. Por esta razão destacamos, em primeiro lugar, a
violência, para vermos a forma rara, particular na qual ela se manifesta. Assim,
prática concreta não seja ofuscada pela força dos objetos reificados.
sendo postos em jogo, pois é a partir deles que é construída a nossa própria
A melhor descrição dessa postura metodológica foi dada por Paul Veyne
(1982), quando ele analisa a contribuição da obra de Michel Foucault e propõe aos
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pesquisadores uma atitude de “densificação”, próxima da “descrição densa” na
antropologia interpretativa. Ele sugere uma descrição positiva dos objetos, livre
dos fantasmas da linguagem, sempre tendo em conta que todo objeto é correlato
noções”.
dos sujeitos, evitando o caminho das grandes noções, como “a” violência, “a”
outros termos, com relação a violência, o nosso objetivo não está na definição de
sobre a violência.
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aponte um princípio mais amplo, como foi feito na Física. Em síntese,
descrição positiva.
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Bibliografia citada
GEERTZ, C. Savoir local, savoir global. Les lieux du savoir. Paris, PUF, 1986.
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