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O ÁLIBI

TRISTAN BERNARD

(1866-1947 - França)

Ao mestre Le Gévaudan, advogado no Tribunal de Paris.


Nouméa, 7 de fevereiro de 1897

Mestre,
Eis a narrativa completa dos acontecimentos sobre
os quais lhe falei em minha última carta. O senhor
encontrará aqui todas as informações necessárias para
seu dossiê.
***
Observe inicialmente que me chamo Pierre-Louis
Brond, que tenho trinta e nove anos desde 1° de
dezembro e que nasci em Lyon. Perdi minha mãe
quando era criança. Meu pai, que possuía um pequeno
armazém em minha cidade natal, morreu há cerca de
dezoito meses. Tenho uma irmã que se casou em Lyon.
Desde os dezenove anos de idade não me entendo
com minha família. Trabalhei na contabilidade de
diversas empresas, mau funcionário, pois era
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preguiçoso e chegava tarde ao escritório. Assim, de


1880 a 1885, me vi desempregado. Vivi de
expedientes, de apostas nas corridas. Vendi jornais e
distribuí prospectos. Mas as agências de publicidade me
davam pouco trabalho, porque minhas roupas eram
realmente deploráveis.
Nas corridas, eu conhecera dois trapaceiros, Henri e
Jules, e sua amiga, uma menina de dezoito anos, que
chamavam de Pêra. Henri e Jules agiam no subúrbio.
Eles me associaram a duas de suas expedições, eles
roubaram duas mansões, uma em Billancourt e uma em
Auteuil. Eu bancava o vigia diante da grade. A Pêra
ficava a cem metros dali, na esquina de uma rua. Ela
andava de um lado para outro, aparentemente para
abordar os passantes. Ela também vigiava e atrasava,
com brincadeirinhas, os guardas.
Como paga pelos meus serviços, Henri e Jules me
deram quantias irrisórias, uma vez 30 tostões e noutra
48 tostões. Assim me veio a idéia de trabalhar por
conta própria.
Eu vivia, desde julho de 1884, na rua Bédex, perto
da Porta de Aubervilliers, num hotel de aparência
miserável que se chamava, não sei por quê, Hotel dos
Fundadores. Só iam lá garotas e estivadores.
O mês de março de 1885 foi quente e sem chuvas.
Depois do almoço eu saía para explorar a periferia, do
lado oeste, depois de Saint-Germain. Às vezes, ficava
cansado demais para voltar a Paris: ficava dormindo no
campo, numa garagem ou numa cabana.
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Entrava nas mansões para pedir caridade e,


principalmente, para fazer uma pesquisa sobre o
número de moradores. Na maior parte das vezes, era
mandado embora. Mas, visitando uma boa quantidade
de casas durante o dia, tinha sempre no fim uns dez
tostões de esmolas e muito pão dormido. Comia o
máximo que conseguia, distribuía o supérfluo entre
vagabundos, oferecia as cascas aos cães errantes e
esmigalhava o miolo para os pássaros.
Às vezes, a criada da casa cometia a imprudência
de me deixar sozinho na cozinha.
Mas era raro que um objeto fácil de esconder se
encontrasse ao meu alcance. Só um dia peguei uma
tigelinha de cerâmica, que vendi por um tostão a um
outro mendigo.
Numa tarde, enfim, em Écueil, perto de Poissy, uma
velha senhora me recebeu com boa vontade. Ela era
baixa, muito gorda e quase não tinha cabelos. Ocupava-
se de obras de caridade e conversou longamente
comigo: aconselhou-me procurar, em seu nome, uma
firma em Paris que conseguia trabalho. Ela falava
comigo na cozinha, onde uma empregada, gorda como
sua patroa e ainda mais baixa, descascava legumes.
Durante todo o discurso da senhora, enquanto sacudia
a cabeça em concordância, eu olhava ao meu redor.
Não havia tranca de segurança na porta de entrada. A
grade do jardim era baixa. As casas vizinhas estavam
desabitadas. Com os cem tostões que me deu a
senhora, comprei um canivete.
Decidi agir sem demora. Eram três horas (era dia 21
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de março) quando saí da casa em Écueil. Tomei em


Poissy o trem para Paris e cheguei em meu hotel por
volta das sete horas da noite. Pedi ostensivamente um
castiçal à dona do hotel e disse-lhe que iria me deitar.
Fiquei em meu quarto até oito e meia. Eu tinha,
numa gaveta, um pé-de-cabra enferrujado e um gancho
comprido. Henri, o trapaceiro, me dera de presente
aqueles dois instrumentos e, uma noite, na fechadura
de meu quarto, me mostrara o modo de usá-los.
Desci então às oito e meia: eu sabia que naquela
hora o rapaz do hotel e a dona estavam jantando e que
estaria vazia a pequena cabine que dava para o
corredor.
Tive a idéia de ir a Poissy a pé, para evitar possíveis
testemunhos dos empregados da estação. Mas eu já
não me criara um álibi suficiente? E, aliás, eu preferia
correr aquele risco do que enfrentar as quatro horas de
estrada que me seriam necessárias para chegar a
Poissy.
Tomei então o trem de nove e quarenta na estação
Saint-Lazare. Às dez e trinta e cinco, desci em Poissy.
Tinha quinze minutos de caminho para chegar até a
casa de Écueil. Quando cheguei lá, vi que uma janela
estava iluminada no térreo e que uma persiana, no
primeiro andar, tinha listras de luz. A empregada ainda
estava na cozinha e a patroa estava em seu quarto.
Afastei-me durante alguns minutos. Quando voltei, a
janela do primeiro andar continuava iluminada, bem
como uma pequena clarabóia no segundo. A empregada
estava indo dormir. Quando um relógio tocou as onze e
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meia, vi, passando defronte a casa, que a clarabóia da


empregada não brilhava mais. Mas a persiana do
primeiro andar continuava listrada de luz: a velha
senhora devia estar lendo na cama. Meia-noite soou,
depois meia-noite e meia, sem que desaparecesse a luz
protetora. Eu não saía mais da grade e espiava a janela.
Iria ela ler a noite toda, seria eu forçado - e na verdade
talvez eu desejasse - a voltar sobre meus passos para
minha vida miserável e tranqüila?
Eu não podia mais acreditar que a janela se
apagaria. Nada mais espreitava no silêncio além do
próximo aviso do campanário, que iria soar uma hora.
Meus olhos, entretanto, continuavam fixos na fachada.
De repente, senti-me estremecer. A janela se apagara
bruscamente como um olho que se fecha, em sinal de
concordância.
Esperei ainda uns dez minutos: era preciso que a
velha senhora adormecesse de fato. Finalmente, escalei
a grade e pulei para o jardim.
O solo discreto não gritava sob as solas furadas e
adelgaçadas de minhas botinas.
Cheguei à porta de entrada. Introduzi na fechadura
meu comprido gancho enferrujado. A fechadura
funcionou muito bem, a porta se abriu e penetrei no
pequeno vestíbulo, de onde uma escada em caracol
subia ao primeiro andar.
Tirei então meu paletó e meu colete de modo a que
o sangue jorrasse apenas sobre minha camisa. Depois
acendi um toco de vela que trouxera em meu bolso. Eu
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o mantinha seguro na mão esquerda entre o polegar e


o indicador. Na outra mão, levava meu canivete,
inteiramente aberto.
Quando chegava em silêncio ao alto da escada,
alguém na casa falou. Imaginei que fosse a voz da
velha senhora. Ela perguntou: - É você, Jeanne?
Respondi à meia-voz:
- Sou.
Eu esperava que ela, tranqüilizada, voltasse a
dormir. Mas teria ela ficado inquieta ao ouvir sua
empregada descer naquela hora tardia? Eu apagara
minha vela e fiquei de pé encostado ao corrimão,
prendendo a respiração. De repente, a luz invadiu o
patamar. A porta à minha frente se abrira e a velha
senhora, em roupas de dormir, aparecera, um castiçal
na mão, na soleira. Dei um passo adiante e golpeei
quase ao acaso. A gorda mulher caiu no chão ao longo
da porta.
O castiçal que ela trazia na mão apagou-se rolando.
Eu procurava na escuridão o meu toco de vela quando
ouvi ranger uma porta, no andar superior. A escada
iluminou-se fracamente na parte de cima. Um passo
pesado desceu os degraus. Encostado na parede, vi
chegar até mim a empregada da velha senhora. Ela
usava um camisão branco e uma saia vermelha. Trazia
na mão um pequeno lampião cuja luz fez sair das
sombras o meu rosto, que eu sentia todo vermelho e
empapado de suor.
A empregada fez um movimento de recuo. Ela me
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tinha certamente reconhecido.


Vejo muito bem seu gordo rosto suave. Ela colocou
o lampião no chão e juntou as mãos. Eu a golpeei no
ombro com o canivete. Ela caiu, sem gritar, sobre os
degraus.
Apanhei então o lampião e entrei no quarto da velha
senhora, passando sobre o corpo.
Arrombada a porta de uma pequena escrivaninha,
descobri numa gaveta duas notas de cem francos e
cento e dez francos em moedas de ouro. Vi algumas
jóias sem valor, um colar de coral, uma velha aliança
gasta. Aqueles objetos poderiam me comprometer:
peguei o dinheiro e deixei as jóias.
Naquele momento, a velha senhora deu um gemido,
um lamento suave. Onde eu pusera meu canivete?
Passando os olhos ao meu redor, vi, sobre uma mesinha
redonda, um punhal de lâmina curta e larga. O cabo era
em metal muito pesado, ricamente incrustado de
pedras brilhantes. Segurei aquele punhal, enterrei-o no
pescoço da velha senhora. Depois, após haver
enxugado a lâmina no tapete, coloquei a arma, que me
parecia preciosa, em meu bolso.
Desci a escada com precaução. Embaixo, soprei o
lampião, recoloquei meu colete e meu paletó, que tinha
pendurado na esfera do corrimão. Deixei então a casa,
depois de ter fechado a porta com cuidado.
Soprava um ventinho fresco. A rua continuava
deserta. Escalei a grade e dirigi-me para os lados da
estação. Faltavam vinte minutos para as três horas, no
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relógio. Li o horário dos trens num painel: o primeiro


trem para Paris passava às cinco e vinte, decidi ir tomá-
lo na estação anterior, a quatro quilômetros dali.
Desviaria as suspeitas.
Antes de me pôr a caminho, parei por um instante
na beira da estrada. Abri meu colete e meu paletó e
constatei que minha camisa estava ensangüentada. Eu
tinha também uma pequena mancha escura em minha
calça, mas não dava para reparar.
Nada, na minha opinião, poderia me tornar
suspeito. A dona do hotel me tinha visto subir para meu
quarto na véspera, para me deitar. Eu voltaria para o
hotel às nove horas. Ninguém me veria naquela hora, a
patroa estava nas compras, os estivadores tinham
partido desde o amanhecer e as moças ainda estavam
deitadas.
A propósito de nada, comecei a bater os dentes.
Sem dúvida, era o frio. Então, ao enfiar as mãos nos
bolsos, senti o cabo incrustado do punhal que me tinha
servido para acabar com a velha senhora. Lá estava um
objeto comprometedor e pelo qual eu não conseguiria,
apesar de seu valor, obter um bom preço: era melhor
jogá-lo em algum lugar. Avistei, não longe da estação,
um poço abandonado. Deixei-o cair ali e me afastei.
Caminhando, eu calculava o que me havia rendido
meu crime: exatamente trezentos e dez francos. Depois
dos míseros resultados de minha associação com os
trapaceiros, aquela soma me parecia satisfatória. Eu
havia, contudo, feito um trabalho duro, com grandes
riscos, perigos sérios. Refleti então muito sobre isto e
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acredito que o melhor freio para deter os criminosos e


desviá-los do crime é ainda o acaso e o pouco lucro
deste tipo de negócio.
Assim que subi no trem, adormeci. E quase de
imediato acordei na estação Saint-Lazare, no dia
desagradável, a boca pastosa, moído de cansaço. Eram
seis horas e meia. Eu ia comer alguma coisa numa
leiteria. Subi bem lentamente na direção da rua Bédex.
Numa camisaria da avenida, fiz a compra de uma
camisa de cretone, para substituir aquela que vestia e
que estava manchada de sangue. Lembro-me também
que comprei os fascículos de um romance ilustrado
cujas dezesseis primeiras páginas haviam sido
distribuídas gratuitamente.
Eu tinha resolvido passar o dia em minha cama,
descansando e lendo. Fora sobretudo com esta idéia
que eu havia roubado e matado: para não ter mais
coisa alguma a fazer, para ficar deitado o dia inteiro.
Mas naquele momento, possuidor de um pequeno pé-
de-meia, tinha veleidades de economia, não queria
esbanjar demais: no dia seguinte, eu procuraria
trabalho.
Em meio a estas reflexões, cheguei à esquina das
ruas Bédex e Aubervilliers. Meu albergue ficava a quatro
ou cinco casas dali. Mas então apresentou-se um
espetáculo muito inquietante.
Uma aglomeração se havia formado diante do Hotel
dos Fundadores, havia bem umas cinqüenta pessoas. Vi
um carro e muitos guardas. Todo tipo de idéias me
passou pela cabeça em alguns segundos. Haviam, sem
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dúvida, entrado lá na casa da velha senhora. Eu talvez


tivesse deixado cair, ao tirar o paletó, um envelope.
Alguém acionou o telégrafo ... Enfim, eu tinha sido
descoberto. Estava claro.
Dei instintivamente um passo para trás e me
apressei a dar marcha a ré. Um pequeno homem de
barbicha preta, usando um chapéu de feltro e sobretudo
marrom, postou-se diante de mim.
- O senhor é Pierre Brond? Não respondi.
- O senhor está preso.
Ele fez sinal para dois guardas, que me seguraram
cada um por um braço.

***

Levaram-me até a porta do hotel. Os guardas que lá


se encontravam afastaram a multidão. Em meio a um
grande vozerio, entrei no prédio.
O inspetor que me havia prendido dirigiu-se então a
um senhor que se encontrava na cabine da proprietária.
- Ele está comigo. O outro respondeu: - Faça-o subir.
Eu não dissera uma palavra desde minha prisão.
Fizeram-me subir ao primeiro andar e me empurraram
para um quarto. O corpo de uma moça estava
estendido sobre a cama.
Não posso dizer exatamente o que senti com aquela
visão. Eu tinha as idéias embaralhadas como num
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sonho. Aquele cadáver não era o cadáver da minha


vítima. Aquele crime não era o meu. Acho que me
comportei bem. Fiquei perplexo e calmo, talvez mais
calmo do que deveria. Fiz, depois de alguns instantes,
esta pergunta simples e um pouco tardia:
- Por que estão me prendendo? E acrescentei:
- Quem é esta mulher?
Um senhor de barba grisalha e chapéu alto estava
lá.
- Levem-no para o lado, disse o senhor de barba
grisalha. Revistem-no e dispam-no. Ao me revistar,
encontraram em meus bolsos quase trezentos francos e
perceberam grandes manchas de sangue em minha
camisa. Levaram estes fatos ao comissário. Então me
conduziram à delegacia.
Durante a instrução judicial eu fiquei sabendo,
detalhe por detalhe, do crime do qual me acusavam ser
o autor. Por volta de meia-noite, a proprietária tinha
ouvido, sobre sua cabeça, um barulho de móveis
arrastados. Pouco depois, alguém havia descido e pedi-
do que abrissem a porta. Então lamentações e gemidos
se fizeram ouvir lá em cima. O empregado do hotel se
levantara. Uma porta no primeiro andar estava
entreaberta: o corpo de uma moça que morava no hotel
jazia por terra. As gavetas da cômoda estavam abertas.
O colchão, rasgado.
Entre os locatários do hotel, que acorreram todos
aos gritos do rapaz, como perceberam minha ausência?
A proprietária tinha certeza de que eu voltara ao hotel
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na véspera. Por outro lado, ela não soube dizer se a


moça morta havia, na noite anterior, entrado sozinha,
ou acompanhada. Foram bater à porta do meu quarto e
ninguém respondeu. Abriram minha porta com uma
chave-mestra: meu quarto estava vazio. Ora, mesmo
naquela casa suspeita, minhas más companhias não
tinham passado despercebidas. Henri, o trapaceiro,
restabelecera a sua reputação no bairro. Quando o
comissário chegou, todos tinham formado sua opinião:
o assassino era Pierre Brond e minha descrição foi dada
aos guardas.
Acontece com freqüência, sabe-se, que uma espécie
de curiosidade perversa leva os assassinos de volta ao
local do crime: era com o que contava o inspetor
mandando vigiar os arredores do hotel.
Diante do juiz, neguei obstinadamente, mas o
dinheiro que haviam encontrado comigo, e as manchas
de sangue de minha camisa constituíam indícios
agravantes. E, quando o magistrado me perguntava
"Onde o senhor estava na noite de 21 para 22 de
março, já que não estava no Hotel dos Fundadores?",
eu não podia afinal responder-lhe que, no exato
momento em que matavam minha vizinha de hotel, eu
assassinava duas outras mulheres a oito léguas de
Paris, entre Poissy e Orgeval.
Meu suposto crime não teve repercussão na
imprensa. O assassinato de uma garota num hotel
suspeito, o pouco mistério que circundara o caso, nada
havia ali que pudesse manter a atenção do público. Em
compensação, eu soube que meu verdadeiro crime,
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aquele do qual eu era o autor anônimo, havia


provocado muita emoção. Soube que minha vítima era
a viúva de um escultor famoso. Soube ainda que a
empregada sobrevivera ao seu ferimento. Voltando a si,
ela dera de minha agressão um relato muito detalhado
e muito exato. Ela me havia perfeitamente reconhecido
como o vagabundo que, naquela mesma tarde, viera
pedir caridade. Ela forneceu minha descrição completa
e fui procurado por toda parte, menos na Conciergerie.
Eu soube também - atente para este detalhe – que
haviam notado o desaparecimento do punhal de cabo
incrustado e lâmina larga e curta com o qual eu
exterminara a vítima e que jogara no fundo do poço.
Compareci perante o tribunal do júri. Por não poder
fornecer um álibi, minha condenação parecia certa.
Estive a ponto de confessar meu verdadeiro crime. Mas
decidi só falar em caso de condenação à morte. Minhas
negações impressionaram os jurados: eles me
concederam circunstâncias atenuantes e fui condenado
à prisão perpétua com trabalhos forçados.

***

Escrevo-lhe então da Nova Caledônia, onde estou há


onze anos. Minha conduta não foi má. Trabalho na
contabilidade, na despensa da penitenciária. Não estou
muito infeliz. Mas tenho um grande desejo de voltar à
França. A lei me dá este direito e quero me valer dele.
Explico-me: o último ato judiciário relativo ao crime
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de Écueil traz a data de 10 de agosto de 1886. (Um de


meus companheiros, empregado no tribunal de Paris,
forneceu-me esta informação muito segura). A
prescrição me é portanto devida, nos termos da lei, e
faço valer hoje o álibi que não podia invocar outrora.
Demonstrarei que não poderia ser o autor do crime da
rua Bédex porque, naquela mesma noite de 21 para 22
de março de 1885, eu estava a oito léguas de lá,
cometendo o crime de Écueil. A empregada que feri me
reconheceu e me reconhecerá ainda, pois mudei muito
pouco. Ela é hoje porteira em Neuilly, eu lhe darei seu
endereço. Será certamente encontrado, no fundo do
poço abandonado, perto da estação, o punhal de cabo
incrustado, que ali joguei há quase doze anos.
Posso então obter a revisão de meu processo,
fornecendo ao mesmo tempo a prova de minha
inocência no crime que expio injustamente e a de
minha culpa no crime impune. Confio, senhor
advogado, que o senhor aceitará encarregar-se de meu
caso e me dará a resposta pelo próximo correio.

Pierre-Louis BROND,
empregado na despensa da penitenciária
em Nouméa (Nova Caledônia).

Tradução de Celina Portocarrero

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