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ANNA PEETERS
O ÉTOILE POLAIRE
A PARTEIRA
O RETRATO
A NOITE DE MAIGRET
O MARTELO
Ele não sabia para onde ir. Saía por sair, ou melhor, para
mergulhar de novo na atmosfera da cidade. O acaso o fez
parar numa placa de cobre anunciando:
*
A primeira pessoa que ele viu, quando foi introduzido na
sala de jantar, foi Marguerite Van de Weert, folheando uma
partitura.
Ela estava mais etérea do que nunca em seu vestido de
seda azul-claro e esboçou um sorriso acolhedor ao
comissário.
– O senhor veio ver Joseph?
– Ele não está aqui?
– Ele subiu para se trocar... É loucura andar de moto com
esse tempo!... Sobretudo ele, que já tem uma saúde
delicada e está sobrecarregado com os estudos...
Não era amor! Era adoração! Ela seria capaz de ficar
horas sem se mexer, contemplando o rapaz!
O que ele tinha para inspirar tais sentimentos? Sua irmã
não falava dele mais ou menos nos mesmos termos?
– Anna está com ele?
– Ela está ajeitando suas roupas.
– E a senhorita? Faz tempo que chegou?
– Uma hora.
– A senhorita sabia que Joseph chegaria?
Um leve tremor. Que durou apenas um segundo, e ela
retomou no mesmo instante:
– Ele vem todos os sábados, à mesma hora.
– Há algum telefone na casa?
– Aqui, não! Em minha casa, sim! Meu pai precisa o
tempo todo.
Ela começava a desagradá-lo, ele não sabia por quê. Ou
melhor, começava a irritá-lo! Ele não gostava de seu ar de
bebê, sua maneira voluntariamente infantil de falar, seu
olhar que ela queria cândido.
– Veja! Ele está descendo...
E, de fato, ouviam-se passos na escada. Joseph Peeters
entrava na sala de jantar, limpo, arrumado, com os cabelos
ainda com a marca do pente molhado.
– O senhor estava aqui, sr. comissário...
Ele não ousou estender a mão. Virou-se para Marguerite.
– E você ainda não lhe ofereceu nada?
Na loja, várias pessoas falavam flamengo. Anna chegava
por sua vez, tranquila, se inclinava como deviam ter-lhe
ensinado no convento.
– É verdade, sr. comissário, que houve um escândalo,
ontem à noite, num café da cidade?... Sei que as pessoas
sempre exageram... Mas... Sente-se! Joseph!... Vá buscar
alguma coisa para beber...
Havia carvão e fogo na lareira. O piano estava aberto.
Maigret tentava especificar uma impressão que tivera
desde sua chegada, mas cada vez que se acreditava prestes
a conseguir, seus pensamentos fugiam.
Algo havia mudado. Mas ele não sabia o quê.
E ele estava mal-humorado. Seu rosto estava fechado,
com a testa carrancuda dos dias ruins. Ele justamente tinha
vontade de cometer alguma inconveniência para romper
toda aquela harmonia que o cercava.
Era Anna quem mais lhe inspirava aquele sentimento
confuso. Ela continuava usando o mesmo vestido cinza que
dava a suas formas um aspecto invariável de estátua.
Teriam os acontecimentos de fato causado impressão
sobre ela? Ela se movia e seus gestos não tiravam do lugar
uma única prega de sua roupa. Seu rosto permanecia
sereno.
Ela lembrava uma personagem de tragédia antiga que
se perdera na vida cotidiana e mesquinha de uma pequena
cidade da fronteira.
– A senhorita às vezes serve no armazém?
Ele não ousara dizer: na loja.
– Com frequência! Substituo mamãe.
– E a senhorita também serve bebidas?
Ela não sorriu. Contentou-se em manifestar surpresa.
– Por que não?
– Às vezes os marinheiros estão bêbados, não? Devem
se comportar de maneira desenvolta, talvez atrevida?
– Não aqui!
De novo a estátua! Ela tinha confiança em si mesma!
– O senhor prefere um vinho do Porto ou...?
– Prefiro um copo desse schiedam que a senhorita me
ofereceu no outro dia.
– Vá pedir à mamãe uma garrafa de Vieux Système,
Joseph.
E Joseph obedecia.
Era preciso mudar a ordem hierárquica imaginada por
Maigret, que era a seguinte: Joseph primeiro, verdadeiro
deus da família. Depois Anna. Depois Maria. Depois a sra.
Peeters, dedicada à mercearia. Por fim, o pai adormecido
em sua poltrona.
Anna, sem dificuldades, parecia assumir o primeiro
lugar.
– O senhor não descobriu nada de novo, comissário?... O
senhor viu que os barcos começam a partir?... A navegação
foi restabelecida até Liège, talvez até Maestricht... Em dois
dias, só restarão três ou quatro barcaças...
Por que ela dizia aquilo?
– Não, Marguerite! As taças...
Pois Marguerite pegava os copos na cristaleira.
Maigret continuava atormentado por sua necessidade de
romper o equilíbrio e aproveitou que Joseph estava na loja e
sua prima ocupada em escolher os copos, para mostrar a
Anna o retrato de Gérard Piedbœuf.
– Preciso falar com a senhorita! – disse em voz baixa.
Ele olhava para ela com insistência. Mas, se esperava
perturbar a calma de seu rosto, deve ter ficado
desapontado. Ela se contentou em esboçar um sinal de
cumplicidade. Um sinal que dizia:
– Sim... Mais tarde...
E, para seu irmão, que entrava:
– Ainda há bastante gente?
– Cinco pessoas.
Anna logo demonstraria senso de distinção. A garrafa
que Joseph trazia tinha um pequeno gargalo de metal que
permitia servir o líquido sem perder uma gota. Antes de
servir, a jovem retirou o acessório, indicando assim que
esse não era de bom-tom num salão, com convidados.
Maigret esquentou um pouco seu copo nas mãos.
– À sua saúde! – disse ele.
– À sua saúde! – repetiu Joseph Peeters, que era o único
a beber.
– Temos a prova de que Germaine Piedbœuf foi
assassinada.
Somente Marguerite soltou um gritinho assustado, um
verdadeiro gritinho de donzela, teatral.
– Que horror!
– Ouvi falar, mas não quis acreditar! – disse Anna. – Isso
tornará nossa situação ainda mais difícil, não é mesmo?
– Ou mais fácil! Principalmente se eu conseguir provar
que seu irmão não estava em Givet no dia 3 de janeiro.
– Por quê?
– Porque Germaine Piedbœuf foi morta a marteladas.
– Meu Deus!... Cale-se!
Era Marguerite, que se levantava pálida, prestes a
desmaiar.
– Estou com o martelo em meu bolso.
– Não! Eu lhe suplico... Não o mostre...
Mas Anna, por sua vez, continuava calma. Foi ao irmão
que se dirigiu.
– Seu colega voltou? – perguntou ela.
– Ontem.
Então ela explicou ao comissário:
– O colega com quem ele passou a noite de 3 de março
num café em Nancy... Ele fora para Marselha, há uns dez
dias, devido à morte de sua mãe... Ele acaba de voltar...
– À sua saúde! – respondeu Maigret, esvaziando o copo.
E pegou a garrafa, se serviu de novo. De vez em
quando, a campainha soava. Ou então se ouvia o barulho de
uma grande colher colocando açúcar num saco de papel e o
ruído da balança.
– Sua irmã não melhorou?
– Acreditamos que ela poderá levantar segunda ou
terça-feira. Mas com certeza não virá por um bom tempo.
– Ela vai se casar?
– Não! Ela quer se tornar freira. É uma ideia que
acalenta há bastante tempo.
Como Maigret percebeu que alguma coisa acontecia na
loja? Os ruídos eram os mesmos, talvez menos fortes. No
instante seguinte, no entanto, a sra. Peeters falava francês.
– O senhor os encontrará no salão...
Portas abertas e fechadas. O inspetor Machère parava à
porta, muito animado, fazendo um esforço para se manter
calmo, olhando para o comissário sentado à mesa na frente
do copo de genebra.
– O que foi, Machère?
– O... Eu gostaria de falar com o senhor em particular.
– Sobre?
– O...
Ele hesitava em falar, fazia sinais de cumplicidade que
todos entendiam.
– Não se incomode.
– É que o marinheiro...
– Ele voltou?
– Não... Ele...
– Confessou algo?
Machère estava num suplício. Vinha para dar um
comunicado que considerava da maior importância, e que
queria que permanecesse secreto, e o obrigavam a falar na
frente de três pessoas!
– Ele... Encontraram seu quepe e seu casaco...
– O velho ou o novo?
– Não estou entendendo.
– Seu casaco de domingo, de tecido azul, foi
encontrado?
– De tecido azul, sim... Na margem...
Todos se calavam. Anna, que estava em pé, olhava para
o inspetor sem que um músculo de seu rosto estremecesse.
Joseph Peeters acariciava as mãos com nervosismo.
– Continue!
– Ele deve ter se jogado no Meuse... Seu quepe foi
recuperado perto da barcaça que estava atrás da dele... A
barcaça o parou. O senhor entende?
– Depois?
– Quanto ao casaco, estava na margem... E havia esse
papel espetado nele...
Ele o tirou da carteira com cuidado. Era um pedaço de
papel sem forma, molhado pela chuva. Mal se podia ler: Sou
um crápula. Prefiro o rio...
Maigret lera em voz baixa. Joseph Peeters perguntou
com voz agitada:
– Não estou entendendo... O que isso quer dizer?
Machère continuava em pé, desconcertado, pouco à
vontade. Marguerite olhava para cada um sucessivamente,
com seus grandes olhos inexpressivos.
– Acho que o senhor é quem... – começou o inspetor.
Maigret se levantou, cordial, com um sorriso educado
nos lábios. Ele se dirigia mais diretamente a Anna.
– Viu?... Eu estava falando um pouco antes do martelo...
– Cale-se! – suplicou Marguerite.
– O que vocês farão amanhã, depois do almoço?
– Como todos os domingos... Ficamos em família... Só
faltará Maria...
– Vocês permitem que eu me apresente? Talvez haja um
pouco daquela excelente torta de arroz?
Maigret se dirigiu para o corredor, onde vestiu o
sobretudo que a chuva tornava duas vezes mais pesado.
– Desculpem-me... – balbuciou Machère. – Foi o
comissário quem quis...
– Venha!
Na loja, a sra. Peeters subira num banquinho para pegar,
na prateleira mais alta, um pacote de amido. Uma mulher
de marinheiro esperava, taciturna, com uma sacola de
compras na mão.
CAPÍTULO VIII
A VISITA ÀS URSULINAS
*
A sra. Peeters falava pouco, como se percebesse sua
inferioridade. Por outro lado, assim que um de seus filhos
falava, ela aprovava com sorrisos ou movimentos de
cabeça.
– Desculpe minha indiscrição, senhor comissário... Talvez
eu diga uma besteira...
Ela colocava no prato de Maigret uma grande fatia de
torta de arroz.
– Ouvi dizer que tinham encontrado objetos a bordo do
Étoile Polaire e que o marinheiro tinha fugido... Ele veio aqui
várias vezes... Devo tê-lo colocado na rua, primeiro porque
ele quer comprar tudo fiado, depois porque está bêbado da
manhã à noite... Mas não é isso que eu queria dizer... Se ele
está fugindo, deve ser culpado... E, nesse caso, a
investigação está encerrada, não é mesmo?
Anna comia com indiferença, sem olhar para Maigret.
Marguerite dizia a Joseph:
– Um pedacinho... Por favor!... Faça isso por mim...
Maigret, com a boca cheia, se dirigia a sra. Peeters:
– Eu poderia lhe responder que sim, se estivesse à frente
da investigação, mas não é o caso... Não esqueça que foi
sua filha quem me pediu para vir até aqui para tentar
provar a inocência de vocês...
Van de Weert se agitava na cadeira, como alguém que
quer falar mas que não deixam tomar a palavra:
– Mas enfim...
– O inspetor Machère está à frente da situação e...
– Mas enfim, comissário, existe, no entanto, uma
hierarquia... Ele não passa de um inspetor e o senhor...
– Aqui, não sou nada... Veja bem! Agora mesmo, eu
gostaria de interrogar um de vocês, que teria o direito de
não responder... Subi a bordo da barcaça porque o
marinheiro permitiu... O acaso me fez descobrir a arma do
crime, bem como o pequeno casaco usado pela vítima...
– Mas então...
– Então nada! Tentarão prender o sujeito. A essa hora,
talvez já o tenham prendido! Mas ele pode se defender. Por
exemplo, pode dizer que encontrou a roupa e o martelo e
que os guardou sem saber o que representavam... Também
pode dizer que fugiu de medo... Ele já teve problemas com
a Justiça... Ele sabe que acreditarão menos nele do que em
outras pessoas...
– Isso não se sustenta!
– Uma acusação quase nunca se sustenta, não mais do
que uma defesa... Outros poderiam ser acusados... O senhor
sabe o que descobri essa tarde?... Que Gérard, o irmão de
Germaine, não sabe há um mês como sair da situação difícil
em que se colocou... Ele tem dívidas em toda parte... Pior
do que isso! Condenaram-no por pegar dinheiro do caixa e,
até o pagamento total da quantia, metade de seu salário é
descontada todo mês...
– É verdade?
– Daí a dizer que ele fez sua irmã desaparecer para
obter uma indenização...
– Seria horrível! – suspirou a sra. Peeters, que não
conseguia comer com aquela conversa.
– O senhor o conheceu bastante bem! – disse Maigret se
virando para Joseph.
– Há muito tempo, convivíamos um pouco...
– Antes do nascimento da criança, não é mesmo?...
Vocês fizeram várias excursões juntos... Se não me engano,
sua irmã inclusive os acompanhou às grutas de...
– É verdade? – perguntou espantada a sra. Peeters,
virando-se para a filha. – Eu não sabia disso.
– Não me lembro! – disse Anna, que não parou de comer
e cujo olhar estava fixo no comissário.
– Aliás, não é importante... Mas o que eu estava
dizendo?... Pode me dar um pedaço de torta, senhorita
Anna?... Não, de frutas não... Permaneço fiel a sua
magnífica torta de arroz... Foi a senhorita quem fez?
– Foi! – apressou-se em afirmar a mãe.
De repente, fez-se um silêncio, pois Maigret se calava e
ninguém ousava tomar a palavra. Ouvia-se o barulho da
mastigação. O comissário deixou cair o garfo e precisou se
abaixar para pegá-lo. Com o movimento, viu que o pé de
Marguerite, calçado com delicadeza, estava colocado em
cima do pé de Joseph.
– O inspetor Machère é um rapaz desembaraçado!
– Ele não parece ser muito inteligente! – articulou Anna
devagar.
Maigret lhe sorriu com cumplicidade.
– Tão poucas pessoas parecem inteligentes! Eu, por
exemplo, assim que me encontro na presença de um
possível culpado, procuro me passar por imbecil...
Era a primeira vez que Maigret se entregava ao que
podia ser visto como confidências.
– O crânio não pode mudar! – se apressou em declarar
com educação o dr. Van de Weert. – Para alguém que
conhece um pouco de frenologia... Veja bem! Tenho certeza
de que o senhor é terrivelmente irascível...
O lanche finalmente chegava ao fim. O comissário era o
primeiro a empurrar a cadeira, pegando o cachimbo e
começando a enchê-lo.
– Sabe o que deveria fazer, senhorita Marguerite? Ir para
o piano e tocar a “Canção de Solveig”...
Ela hesitou, olhou Joseph para lhe pedir conselho,
enquanto a sra. Peeters murmurava:
– Ela toca tão bem!... E ela canta!
– Só lamento uma coisa: que a lesão da srta. Maria a
impeça de estar conosco... Para meu último dia...
Anna virou a cabeça com rapidez em sua direção.
– O senhor vai embora logo?
– Esta noite... Não vivo de rendas... Além disso, sou
casado e minha mulher começa a se impacientar...
– E o inspetor Machère?
– Não sei o que ele decidirá... Imagino...
A campainha da loja tocava. Ouviram-se passos
apressados, depois batidas na porta.
Era o próprio Machère, muito agitado.
– O comissário está aqui?
Ele não o vira de imediato, surpreso de chegar em plena
reunião de família.
– O que houve?
– Preciso falar com o senhor.
– Vocês me dão licença?
E ele acompanhou o inspetor até a loja, onde se apoiou
no balcão.
A “CANÇÃO DE SOLVEIG”
O FIM DE ANNA
S599m
ISBN 978.85.254.2480-8