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CAPÍTULO I

ANNA PEETERS

QUANDO MAIGRET DESCEU DO TREM na estação de Givet, a


primeira pessoa que viu, bem na frente de seu
compartimento, foi Anna Peeters.
Foi como se ela tivesse previsto que ele pararia naquele
exato lugar da estação! Ela não parecia surpresa nem
orgulhosa daquilo. Estava como ele a vira em Paris, como
ela devia sempre ser, vestindo um tailleur cinza-chumbo,
sapatos pretos e um chapéu cuja forma ou mesmo a cor era
impossível lembrar.
Ali, ao vento que varria a estação onde apenas alguns
passageiros caminhavam, ela parecia mais alta, um pouco
mais forte. Estava com o nariz vermelho e segurava um
lenço amarrotado.
– Eu tinha certeza que viria, senhor comissário...
Ela tinha certeza de si mesma ou dele? Ela não sorria ao
recebê-lo. Já perguntava:
– O senhor tem mais bagagens?
Não! Maigret só tinha uma pasta sanfonada de couro
enegrecido, que ele mesmo carregava, apesar do peso.
O trem deixara na estação apenas passageiros da
terceira classe, que já tinham desaparecido. A jovem
mostrou o tíquete ao funcionário, que olhou para ela com
insistência.
Na rua, ela recomeçou, sem embaraço:
– Primeiro pensei em preparar um quarto para o senhor
em nossa casa. Após refletir sobre isso, achei que seria mais
interessante para o senhor ficar num hotel. Então reservei o
melhor quarto do Hôtel de la Meuse...
Eles tinham percorrido apenas cem metros pelas
pequenas ruas de Givet, mas todos se viravam para vê-los.
Maigret caminhava pesadamente, puxando a mala com
esforço. Ele tentava observar tudo: as pessoas, as casas e,
principalmente, sua interlocutora.
– Que barulho é esse? – perguntou ao ouvir um rumor
que não conseguia identificar.
– A cheia do Meuse, que bate nos pilares da ponte... A
navegação foi interrompida há três semanas...
Ao desembocar de uma ruela, via-se de repente o rio.
Ele era largo, suas margens, imprecisas. Pequenas ondas
escuras, aqui e ali, morriam na relva. Mais adiante, um
hangar emergia da água.
Havia, no mínimo, cem barcaças, rebocadores e dragas,
apertados uns contra os outros, formando um grande bloco.
– Este é o hotel... Não é muito confortável... O senhor
quer entrar para tomar um banho?
Era incrível! Maigret era incapaz de definir sua
impressão. Nunca, com certeza, uma mulher despertara sua
curiosidade tanto quanto essa, que permanecia calma, sem
rir, sem tentar parecer bonita, e que às vezes dava tapinhas
nas narinas com o lenço.
Ela devia ter entre 25 e 30 anos. Muito mais alta do que
a média, era robusta e tinha uma estrutura que privava
seus traços de qualquer graça.
Roupas de pequeno-burguesa, de extrema sobriedade.
Um comportamento calmo, quase distinto.
Ela parecia acolhê-lo. Sentia-se em casa. Pensava em
tudo.
– Não tenho motivo algum para tomar um banho.
– Nesse caso, o senhor quer ir imediatamente para
minha casa? Entregue sua mala ao recepcionista... Moço!...
Leve esta bagagem ao quarto 3... O hóspede voltará depois.
Maigret pensava, observando-a com o canto do olho:
“Devo parecer idiota!”.
Pois ele não tinha nada de criança! Apesar de ela não
ser delicada, ele era duas vezes mais largo do que ela e seu
grande sobretudo o fazia parecer talhado em pedra.
– O senhor não está cansado demais?
– Não estou nem um pouco cansado!
– Então, posso, no caminho, passar-lhe as primeiras
informações...
As primeiras informações ela lhe passara em Paris! Um
belo dia, ao chegar em seu gabinete, ele encontrara aquela
desconhecida que o esperava há duas ou três horas e que o
recepcionista não conseguira fazer mudar de ideia.
“É particular!”, ela afirmara quando interrogada na
frente de dois inspetores.
Uma vez a sós, ela lhe entregara uma carta. Maigret
reconhecera a letra de um primo de sua mulher, que
morava em Nancy.

Meu caro Maigret,


A senhorita Anna Peeters me foi recomendada por meu
cunhado, que a conheceu há uns dez anos. Trata-se de
uma moça muito séria, que lhe contará seus infortúnios.
Faça o que puder por ela...
– A senhorita mora em Nancy?
– Não, Givet!
– No entanto, essa carta...
– Fui a Nancy só para isso, antes de vir para Paris. Eu
sabia que meu primo conhecia alguém importante na
polícia...
Não se tratava de uma solicitante comum. Ela não
baixava os olhos. Sua atitude não era humilde. Ela falava
com clareza e olhava direto para a frente, como para exigir
o que lhe era devido.
– Se o senhor não aceitar cuidar do nosso caso,
estaremos perdidos, minha família e eu, e haveria o mais
terrível erro judiciário...
Maigret tomara algumas notas, resumindo seu relato.
Um caso de família bastante complicado.
Os Peeters tinham uma mercearia na fronteira belga.
Eram três filhos: Anna, que os ajudava no comércio, Maria,
que era professora, e Joseph, estudante de Direito em
Nancy.
Joseph tivera um filho com uma jovem da região. A
criança tinha três anos. Mas a jovem desaparecera de
repente, e os Peeters eram acusados de tê-la matado ou
sequestrado.
Maigret não precisaria se envolver. Um colega de Nancy
trabalhava no caso. Ele lhe enviara um telegrama e
recebera uma resposta categórica:

Peeters arquiculpados. Ponto. Prisão próxima.


Essa resposta o fizera se decidir. Ele chegava em Givet
sem missão, sem status oficial. E, já na estação, caía sob a
dependência de Anna, a quem não parava de observar.

A corrente era violenta. O fluxo formava cascatas


ruidosas em cada pilar da ponte e arrastava árvores
inteiras.
O vento, que se engolfava no vale do Meuse, batia no rio
na contracorrente, levantava a água a alturas inesperadas e
criava verdadeiras ondas.
Eram três horas da tarde. A noite se anunciava.
Havia correntes de ar nas ruas quase desertas e os raros
transeuntes caminhavam rápido. Anna não era a única a se
assoar.
– Olhe para aquela rua, à esquerda...
A jovem fazia uma parada, discretamente, apontava
num gesto quase imperceptível para a segunda casa da
ruela. Uma casa pobre, de um único andar. Havia luz – de
um lampião a querosene – numa janela.
– É ali que ela mora!
– Quem?
– Ela! Germaine Piedbœuf... A moça que...
– Foi com ela que seu irmão teve um filho?
– Sim! E isso nem foi provado... Olhe!
Via-se um casal na soleira de uma porta: uma jovem
sem chapéu, provavelmente uma operária de fábrica, e as
costas de um homem que a abraçava.
– É ela?
– Não, pois ela desapareceu... Mas é da mesma raça... O
senhor entende?... Ela conseguiu fazer meu irmão
acreditar...
– A criança não se parece com ele?
E ela, de modo seco:
– Parece com a mãe... Venha! Essa gente está sempre à
espreita atrás das cortinas...
– Ela tem família?
– O pai, que é guarda noturno na fábrica, e o irmão
Gérard...
A pequena casa e, principalmente, a janela iluminada
pelo lampião a querosene ficariam gravadas na memória do
comissário.
– O senhor não conhece Givet?
– Uma vez passei por aqui, sem descer.
Um cais interminável, muito largo, com abitas para a
amarração de barcaças de vinte em vinte metros. Alguns
armazéns. Uma construção baixa, encimada por uma
bandeira.
– Aquela é a alfândega francesa... Nossa casa fica mais
adiante, perto da alfândega belga...
A agitação das águas era tão violenta que as barcaças
se entrechocavam. Cavalos soltos pastavam a grama
esparsa.
– O senhor está vendo aquela luz?... É nossa casa...
Um funcionário da alfândega olhou-os passar sem dizer
nada. Num grupo de marinheiros, começou-se a falar
flamengo.
– O que eles estão dizendo?
Ela hesitou em responder, virou a cabeça pela primeira
vez.
– Que a verdade nunca será descoberta!
E ela caminhou mais depressa, contra o vento,
curvando-se para criar mais resistência.
Eles não estavam mais na cidade. Estavam nos domínios
do rio, dos barcos, da alfândega, dos fretadores. Aqui e ali,
uma lâmpada elétrica acesa, em pleno vento. Roupa
estendida drapejando numa barcaça. Garotos brincando na
lama.
– Seu colega veio ainda ontem até nossa casa e
anunciou, da parte do juiz de instrução, que devemos nos
manter à disposição da Justiça... É a quarta vez que
vasculham tudo, inclusive a cisterna...
Estavam chegando. A casa dos flamengos se delineava.
Era uma construção bastante imponente, na beira do rio,
num lugar em que os barcos eram mais numerosos.
Nenhuma casa próxima. A única construção à vista, a cem
metros, era o escritório da alfândega belga, com um mastro
tricolor.
– Se o senhor quiser fazer a gentileza de entrar...
Nos vidros da porta, adesivos de uma pasta para limpar
utensílios de cobre. Uma campainha soou.
Já à porta era-se envolvido pelo calor de uma atmosfera
indefinível, calma, densa, em que predominavam os
aromas. Mas que aromas? Havia um toque de canela, um
outro mais intenso de café moído. Sentia-se também cheiro
de petróleo, mas com vestígios de gim.
Uma lâmpada elétrica, a única. Atrás do balcão de
madeira pintada de marrom-escuro, uma mulher de cabelos
brancos, com uma blusa preta, falava flamengo com uma
marinheira. Esta segurava uma criança nos braços.
– Faça o favor de vir por aqui, senhor comissário...
Maigret tivera tempo de ver prateleiras repletas de
mercadorias. Ele notara, em especial, na ponta do balcão,
uma parte coberta com zinco, garrafas com tampas de
metal e cheias de aguardente.
Ele não tinha tempo para parar. Outra porta
envidraçada, com uma cortina. Atravessava-se a cozinha.
Um velho estava sentado numa poltrona de vime, junto ao
forno.
– Por aqui...
Um corredor mais frio. Outra porta. E chegava-se a um
aposento inesperado, meio salão, meio sala de jantar, com
piano, caixa de violino, parquê encerado com cuidado,
móveis confortáveis, reproduções de quadros nas paredes.
– Dê-me seu sobretudo...
A mesa estava posta: toalha xadrez, talheres de prata,
finas taças de porcelana.
– O senhor tomaria alguma coisa...
O casaco de Maigret já estava no vestíbulo, e Anna
voltava com uma blusa de seda branca que a tornava
menos jovem ainda.
No entanto, ela tinha formas cheias. Por que, então,
aquela falta de feminilidade? Era difícil imaginá-la
apaixonada. Menos ainda um homem apaixonado por ela!
Tudo devia estar pronto de antemão. Ela trazia uma
cafeteira fumegante. Enchia três xícaras. Depois de um
novo desaparecimento, voltava com uma torta de arroz.
– Sente-se, senhor comissário... Minha mãe está vindo...
– A senhorita toca piano?
– Minha irmã e eu... Mas ela tem menos tempo do que
eu... À noite, ela corrige os deveres de casa.
– E o violino?
– Meu irmão...
– Ele não está em Givet?
– Ele chegará daqui a pouco... Avisei-o de sua chegada...
Ela cortava a torta. Servia o visitante, taxativa. A
senhora Peeters entrava, as mãos juntas sobre o ventre,
esboçando um tímido sorriso de hospitalidade, um sorriso
cheio de melancolia e resignação.
– Anna me disse que o senhor aceitou...
Era mais flamenga do que a filha, tinha um leve
sotaque. No entanto, tinha traços muito finos, e seus
cabelos de um branco surpreendente não deixavam de dar-
lhe certa nobreza. Ela sentou na ponta da cadeira, como
uma mulher acostumada a ser requisitada.
– O senhor deve estar com fome, depois dessa viagem...
Quanto a mim, não tenho mais apetite depois que...
Maigret pensava no velho que ficara na cozinha. Por que
ele também não vinha comer a torta? Bem naquele
momento, a sra. Peeters dizia à filha:
– Leve um pedaço a seu pai...
E para Maigret:
– Ele quase nunca sai de sua poltrona... Mal se dá
conta...
Tudo, na atmosfera, era o oposto de um drama. Tinha-se
a impressão de que os piores acontecimentos poderiam
ocorrer lá fora sem perturbar a quietude da casa dos
flamengos, onde não havia uma poeira, uma corrente de ar,
um só ruído além do ronco da estufa.
Maigret perguntava, enquanto comia a torta espessa:
– Que dia foi exatamente?
– No dia 3 de janeiro... Uma quarta-feira...
– Hoje é dia 20...
– Sim, não fomos acusados de imediato...
– Essa jovem... Como se chama?
– Germaine Piedbœuf... Ela chegou às oito da noite...
Entrou na loja e foi recebida por minha mãe...
– O que ela queria?
A sra. Peeters fingiu secar uma lágrima em sua
pálpebra.
– Como sempre... Queixar-se que Joseph não ia vê-la,
não lhe dava notícias... Um rapaz que trabalha tanto!... Ele
tem o mérito, garanto-lhe, de continuar com os estudos
apesar de tudo...
– Ela ficou aqui por muito tempo?
– Talvez cinco minutos... Eu precisava pedir que não
gritasse... Os marinheiros poderiam ouvir... Anna chegou e
disse que seria melhor se ela fosse embora...
– Ela foi?
– Anna a conduziu para fora... Fui para a cozinha e tirei a
mesa...
– Desde então, a senhora não a viu mais?
– Nunca!
– Ninguém na região a encontrou?
– Todos dizem que não!
– Ela não ameaçou se suicidar?
– Não! Mulheres assim não se matam... Mais um pouco
de café?... Um pedaço de torta?... Foi Anna quem fez...
Um novo traço se somava à imagem de Anna. Ela estava
plácida em sua cadeira. Observava o comissário como se os
papéis tivessem sido invertidos, como se ela pertencesse ao
Quai des Orfèvres, e ele, à casa dos flamengos.
– A senhora lembra o que fez naquela noite?
Foi Anna quem respondeu, com um triste sorriso.
– Nos interrogaram tanto sobre esse assunto que
tivemos que recordar os mínimos detalhes. Ao voltar, subi
até meu quarto para pegar lã para tricotar... Quando desci,
minha irmã estava ao piano, neste aposento, e Marguerite
acabava de chegar...
– Marguerite?
– Nossa prima... A filha do dr. Van de Weert... Eles
moram em Givet... Melhor dizer logo, pois o senhor ficará
sabendo. Ela é noiva de Joseph...
A sra. Peeters se levantou suspirando, porque a
campainha da loja soara. Ouviram-na falando em flamengo,
numa voz quase alegre, e pesando feijões ou ervilhas.
– É a grande dor de minha mãe... Desde sempre, estava
decidido que Joseph e Marguerite se casariam... Eles já
eram noivos aos dezesseis anos... Mas Joseph precisava
terminar os estudos... E então apareceu esse filho...
– E, mesmo assim, eles se casariam?
– Não! Mas Marguerite não queria casar com mais
ninguém... Eles ainda se amavam...
– Germaine Piedbœuf sabia disso?
– Sim! Mas ela queria que ele se casasse com ela! Tanto
que meu irmão, para ter um pouco de paz, prometeu que o
faria... O casamento aconteceria depois dos exames...
A campainha da loja soava, e a sra. Peeters cruzava
rapidamente a cozinha.
– Eu lhe perguntava sobre a noite do dia 3...
– Sim... Eu dizia que quando desci minha irmã e
Marguerite estavam aqui... Tocamos piano até dez e meia...
Meu pai estava deitado desde as nove horas, como
sempre... Minha irmã e eu acompanhamos Marguerite até a
ponte...
– E vocês não encontraram ninguém?
– Ninguém... Estava frio... Voltamos... No dia seguinte,
não suspeitávamos de nada... À tarde, falou-se do
desaparecimento de Germaine Piedbœuf... Somente dois
dias depois pensaram em nos acusar, porque alguém a vira
entrar aqui... O comissário de polícia mandou nos chamar,
depois o seu colega de Nancy... Parece que o sr. Piedbœuf
prestou queixa... Vasculharam a casa, a adega, os
depósitos, tudo... Revolveram até mesmo a terra do
jardim...
– Seu irmão não estava em Givet, no dia 3?
– Não! Ele só vem aos sábados, de moto... Raramente
em outros dias da semana... Toda a cidade está contra nós,
porque somos flamengos e temos dinheiro...
Um vestígio de orgulho em sua voz. Ou melhor, um
aumento de convicção.
– O senhor não imaginaria tudo o que inventaram...
De novo a campainha da loja, depois uma voz jovem:
– Sou eu!... Não se incomode...
Passos apressados. Uma silhueta bastante feminina
entrava na sala de jantar, parando de maneira brusca na
frente de Maigret.
– Ah! Desculpem... Eu não sabia...
– O comissário Maigret, que veio nos ajudar... Minha
prima Marguerite...
Uma pequena mão enluvada na mão de Maigret. E um
sorriso intimidado.
– Anna me disse que o senhor aceitou...
Ela era muito refinada, ainda mais refinada do que
bonita. Seu rosto era emoldurado por cabelos loiros, com
leves ondulações.
– Parece que a senhorita toca piano...
– Sim... Tenho paixão por música... Sobretudo quando
estou triste...
Seu sorriso lembrava os das garotas bonitas de
calendários-propagandas. Lábios pinçados num beicinho,
olhar velado, rosto um pouco inclinado...
– Maria não voltou?
– Não! Seu trem deve estar atrasado de novo.
A cadeira frágil demais rangeu quando Maigret quis
cruzar as pernas.
– A que horas a senhorita chegou, no dia 3?
– Às oito e meia... Talvez um pouco antes... Jantamos
cedo... Meu pai recebera amigos para o bridge...
– O tempo era o mesmo de hoje?
– Chovia... Choveu por uma semana...
– O Meuse já estava em cheia?
– Começava... Mas as barragens só foram derrubadas no
dia 5 ou 6... Ainda havia barcos circulando...
– Um pedaço de torta, senhor comissário?... Não?... Um
charuto, então?
Anna ofereceu uma caixa de charutos belgas e
murmurou, como que se desculpando:
– Não é contrabando... Uma parte da casa está na
Bélgica e a outra na França...
– Em suma, pelo menos seu irmão está totalmente fora
de suspeita, visto que estava em Reims...
Anna disse, com obstinação:
– Nem isso! Por causa de um bêbado, que diz ter visto
sua moto passar no cais... Ele contou isso quinze dias
depois... Como se pudesse lembrar!... Trata-se de um golpe
de Gérard, o irmão de Germaine Piedbœuf... Ele não tem
muito o que fazer... Então, passa o tempo procurando
testemunhos... Imagine que eles querem uma indenização,
e exigem trezentos mil francos...
– Onde está a criança?
Ouvia-se a sra. Peeters correndo para a loja, onde a
campainha soara. Anna guardava a torta no armário,
colocava a cafeteira em cima da estufa.
– Na casa deles!
A voz do marinheiro que pedia uma genebra ressoava
atrás da parede.
CAPÍTULO II

O ÉTOILE POLAIRE

MARGUERITE VAN DE WEERT vasculhava febrilmente a


bolsa, com pressa de mostrar alguma coisa.
– Você ainda não recebeu o Écho de Givet?
Ela estendia a Anna um recorte de jornal. Esboçava um
sorriso modesto nos lábios. Anna passava o papel a Maigret.
– Quem deu a você essa ideia?
– Eu mesma a tive ontem, por acaso.
Era apenas um anúncio:
Solicita-se ao motociclista que passou no dia 3 de
janeiro à noite pela estrada do Meuse que se apresente.
Boa recompensa. Dirigir-se à mercearia Peeters.
– Não ousei passar meu endereço, mas...
Pareceu a Maigret que Anna olhava para a prima com
uma ponta de impaciência, enquanto murmurava:
– É uma ideia... Mas ninguém virá...
Marguerite, agitada, esperava elogios!
– Por que não? Se uma moto passou, não há motivo para
não vir, pois não foi Joseph...
As portas estavam abertas. A água começava a chiar na
chaleira da cozinha. A sra. Peeters colocava a mesa para o
jantar. Foi da porta da loja que ruídos de vozes chegaram e
de repente as duas jovens ficaram de ouvidos em pé.
– Entrem, por favor... Não tenho nada a dizer, mas...
– Joseph! – balbuciou Marguerite levantando-se.
Havia mais fervor do que amor em sua voz. Ela se
transfigurara. Não ousava voltar a sentar-se. Com a
respiração suspensa, esperava, como se uma espécie de
super-homem fosse aparecer.
A voz se elevava agora na cozinha.
– Boa tarde, mãe...
E outra voz, desconhecida de Maigret:
– Desculpe, senhora, mas preciso fazer algumas
verificações e aproveitei a passagem de seu filho...
Os dois homens enfim chegavam à sala de jantar. Joseph
Peeters franzia imperceptivelmente o cenho, murmurava
com incômoda doçura:
– Boa tarde, Marguerite...
Ela, por sua vez, pegava a mão dele entre as suas.
– Cansado demais, Joseph?... Com boa disposição?
Anna, mais calma, se dirigia ao segundo personagem,
indicava-lhe Maigret.
– O comissário Maigret, que o senhor deve conhecer...
– Inspetor Machère... – disse o outro, estendendo a mão.
– É verdade que o senhor...
Era impossível conversar daquela maneira, todos em pé
entre a porta e a mesa ainda servida.
– Estou aqui em caráter extraoficial... – resmungou
Maigret. – Faça como se eu não existisse...
Alguém tocava seu braço.
– Meu irmão Joseph... O comissário Maigret...
Joseph estendia uma longa mão ossuda e fria. Ele era
meia cabeça mais alto do que Maigret, que media um metro
e oitenta. Mas era tão fino que dava a impressão de que,
apesar de seus 25 anos, seu crescimento não estava
concluído.
Um nariz de narinas afiladas. Olhos cansados, com
muitas olheiras. Cabelos loiros cortados bem curtos. Ele
devia enxergar mal, pois suas pálpebras piscavam o tempo
todo, como que evitando a luz da lâmpada.
– Encantado, senhor comissário... Estou confuso...
Não era nem mesmo elegante. Tirava um impermeável
sujo sob o qual usava um traje completo cinza neutro, de
corte medíocre.
– Encontrei-o perto da ponte! – dizia o inspetor Machère
– E pedi que me trouxesse até aqui na carona de sua moto...
Foi para Anna que ele se voltou logo depois. Foi a ela
que ele se dirigiu então, como se fosse ela a verdadeira
dona da casa. Não se viam nem a sra. Peeters, nem seu
marido, acomodado na poltrona de vime da cozinha.
– Suponho que seja fácil chegar ao telhado?
Todos se olharam.
– Pela portinhola do sótão – respondeu Anna. – O senhor
quer...?
– Sim! Quero dar uma olhada lá em cima...
Foi, para Maigret, uma oportunidade para visitar a casa.
A escada era envernizada, com um linóleo encerado com
tanto esmero que era preciso tomar cuidado para não
escorregar.
No primeiro andar, um corredor com portas para três
quartos. Joseph e Marguerite tinham ficado no andar de
baixo. Anna ia à frente, e o comissário notou que ela
balançava ligeiramente os quadris.
– Preciso falar com o senhor! – murmurou o inspetor.
– Depois!
Eles chegaram ao segundo andar. De um lado, uma
água-furtada, transformada em quarto, mas desocupada.
Do outro, um imenso sótão com vigas aparentes no qual
eram empilhadas caixas e sacos de mercadorias. Para
chegar à portinhola, o inspetor precisou subir em duas
caixas.
– Não há luz?
– Estou com minha lanterna...
Ele era um homem jovem, de rosto redondo, jovial,
incansável. Maigret não subiu ao telhado, mas olhou pela
portinhola. O vento soprava em rajadas. Ouvia-se o roncar
do rio e percebia-se na noite sua aparência agitada
salpicada pela luz de alguns bicos de gás.
À esquerda, sobre a cornija, havia um reservatório de
zinco, de dois metros cúbicos no mínimo, para o qual o
policial se dirigiu sem hesitar. Ele devia servir para recolher
a água da chuva.
Machère se debruçou, pareceu desapontado, caminhou
um pouco mais pelo teto, inclinou-se para pegar alguma
coisa do chão.
Anna esperava sem nada dizer, na escuridão, atrás de
Maigret. As pernas do inspetor reapareceram, depois seu
tronco, por fim seu rosto.
– Um esconderijo no qual pensei apenas nesta tarde, ao
constatar que as pessoas de meu hotel só bebem a água da
chuva... Mas o cadáver não está lá...
– O que o senhor juntou?
– Um lenço... Um lenço de mulher...
Ele o abriu, iluminou-o com a lanterna, procurou em vão
por alguma inicial. O lenço, imundo, ficara exposto à
intempérie por bastante tempo.
– Veremos isso mais tarde! – suspirou o inspetor,
caminhando em direção à porta.

Quando voltaram para a atmosfera quente da sala de


jantar, Joseph Peeters estava sentado na banqueta do piano
e lia o anúncio que Marguerite acabava de lhe mostrar. Ela
estava em pé à sua frente, e seu chapéu de abas largas, seu
casaco enfeitado com pequenos babados, ressaltavam o
que havia nela de vaporoso.
– O senhor poderia me encontrar esta noite no hotel? –
disse Maigret ao jovem.
– Que hotel?
– O Hôtel de la Meuse! – interveio Anna. – O senhor já
vai, comissário?... Gostaria que ficasse para jantar, mas...
Maigret atravessava a cozinha. A sra. Peeters olhava
para ele com estupor.
– O senhor vai embora?
O velho, por sua vez, tinha os olhos vazios. Fumava um
cachimbo de sepiolita, não pensando em nada. Nem mesmo
o saudou.
Na rua, ventava. Ouvia-se o barulho da cheia do Meuse,
os choques dos barcos atracados lado a lado. O inspetor
Machère se apressava a mudar de lugar, pois se colocara à
direita de Maigret.
– O senhor acredita que eles são inocentes?
– Não sei. O senhor tem fumo?
– Somente tabaco picado... Fala-se muito no senhor em
Nancy... E é isso que me inquieta... Porque esses Peeters...
Maigret parara diante dos barcos, sobre os quais deixava
vagar seu olhar. Givet, graças à cheia que interrompia a
navegação, parecia um grande porto. Havia várias barcas
do Reno, de mil toneladas, todas em aço negro. Perto delas,
barcaças do Norte, em madeira, pareciam brinquedos
envernizados.
– Preciso comprar um quepe! – resmungou o comissário,
que precisava segurar seu chapéu-coco.
– O que lhe disseram ao certo? Que são inocentes, claro!
Era preciso falar muito alto, devido à barulheira do
vento. Givet, a quinhentos metros, era apenas um conjunto
de luzes. A casa dos flamengos se desenhava sobre um céu
de tormenta e mostrava janelas amareladas por luzes
suaves.
– De onde eles vêm?
– Do Norte da Bélgica... O pai Peeters nasceu logo acima
de Limburgo, na fronteira holandesa... Ele é vinte anos mais
velho do que a mulher, o que o deixa, no momento, na casa
dos oitenta... Ele era cesteiro... Há alguns anos ainda
exercia a profissão, com quatro trabalhadores, na oficina
que fica atrás da casa... Agora, está totalmente senil...
– Eles são ricos?
– Dizem! A casa é deles. Eles inclusive emprestaram
dinheiro a marinheiros pobres que queriam comprar um
barco... Veja bem, comissário, eles não têm a mesma
mentalidade que nós... A velha Peeters tem centenas de
milhares de francos, o que não a impede de servir um
copinho aos clientes, como dizem... Mas o filho vai ser
advogado... A filha mais velha toca piano... A outra é
professora-regente num grande colégio de freiras de
Namur... É mais do que apenas professora... Como se fosse
professora de liceu...
Machère apontava para as barcaças.
– Metade é de flamengos... Gente que não gosta de
mudar seus hábitos... Os outros vão aos bistrôs franceses
que ficam perto da ponte, bebem vinho e aperitivos... Os
flamengos querem beber genebra, alguém que compreenda
a língua deles... Cada barco compra provisões para uma
semana ou mais... E sem falar dos contrabandos!... Eles
estão em condições de praticá-los...
Os sobretudos colavam no corpo. A agitação do rio era
tão grande que a água respingava no convés das barcaças.
– Eles não pensam como nós... Para eles, aquilo não é
um bistrô... É uma mercearia, apesar de servirem bebidas
no balcão... As próprias mulheres bebem uma dose ao
fazerem compras... Parece que é o que mais dá dinheiro...
– Os Piedbœuf? – perguntou Maigret.
– Gente simples... Um guarda de fábrica... A filha era
datilógrafa no mesmo lugar... O filho ainda está empregado
lá...
– Um rapaz sério?
– Não se pode dizer isso... Ele não trabalha muito...
Prefere jogar bilhar no Café de la Mairie... É um rapaz
bonito, e sabe disso...
– E a filha?
– Germaine?... Ela tinha admiradores... O senhor sabe,
comissário, uma dessas moças que vemos à noite, nos
cantos escuros, com um homem... Mesmo assim, a criança é
mesmo de Joseph Peeters... Eu a vi... Parece com ele... O
que não podemos negar, em todo caso, é que ela entrou na
casa, no dia 3 de janeiro, um pouco depois das oito da noite,
e desde então ninguém voltou a vê-la...
O inspetor Machère falava com clareza.
– Visitei tudo... Fiz inclusive um traçado do local, com a
ajuda de um arquiteto... Eu só tinha esquecido uma coisa: o
telhado... Não pensamos, em geral, que seja possível
esconder um cadáver no telhado... Subi ali, agora há
pouco... Encontrei um lenço, mas nada mais...
– E o Meuse?
– Justamente! Eu ia falar sobre isso... O senhor sabe, não
é mesmo, que quase sempre encontramos afogados nas
barragens... São oito até Namur... Só que, dois dias depois
do crime, o rio estava tão cheio que as barragens
transbordaram, o que acontece todos os invernos...
Germaine Piedbœuf pode ter chegado à Holanda, ou ao
mar...
– Disseram que Joseph Peeters não estava aqui na noite
do...
– Eu sei! É o que ele diz... Uma testemunha viu uma
moto parecida com a sua... Ele jura que não era a sua...
– Ele não tem álibi?
– Tem e não tem. Fui a Nancy só para isso... Ele ocupa
um quarto mobiliado no qual pode entrar sem ser visto pela
zeladora... Além disso, frequenta cafés e bares onde os
estudantes se encontram todas as noites... Ninguém se
lembra exatamente se foi no dia 3, 4 ou 5 que ele passou a
noite num desses lugares...
– Germaine Piedbœuf pode ter cometido suicídio?
– Ela não era desse tipo... Uma moça simples, com
pouca saúde, pouca moral, mas que adorava o filho...
– É possível que ela tenha sido vítima de outro
atentado...
Dessa vez, Machère se calou, deixou seu olhar vagar
pelos barcos que formavam como que uma ilha a poucos
metros da margem.
– Pensei nisso. Fiz uma investigação sobre cada
marinheiro... Quase todos são pessoas sérias, que vivem a
bordo com suas famílias e filhos... Hesitei apenas em
relação ao Étoile Polaire... O último barco rio acima... O mais
sujo, que parece prestes a afundar...
– O que ele tem?
– É o barco de um belga de Tilleur, próximo a Liège... Um
velho bruto julgado duas vezes por atentado ao pudor... O
barco é malconservado... As companhias se recusam a
segurá-lo... Várias histórias com mulheres e garotinhas...
Mas por que o senhor...?
Os dois caminhavam de novo em direção à ponte. À
medida que se aproximavam, penetravam na luz das
lâmpadas da cidade. Viram bistrôs à direita, bistrôs
franceses onde soavam pianos mecânicos.
– Mandei vigiá-los... Mesmo assim, o testemunho sobre a
moto...
– Em que hotel o senhor está?
– No Hôtel de la Gare...
Maigret estendeu a mão.
– Voltaremos a nos ver, meu caro... Claro, você segue
com a investigação... Estou aqui apenas como diletante...
– O que posso fazer?... Se não encontrarmos o corpo,
não teremos nenhuma prova... Se ele foi jogado no rio,
nunca o encontraremos...
Maigret apertou discretamente sua mão e, como
chegavam à ponte, entrou no Hôtel de la Meuse.

Maigret, jantando, escrevera em sua caderneta:


Opiniões sobre os Peeters.
MACHÈRE – Eles não se consideram um bistrô.
O DONO DO HOTEL – São pessoas que se tomam por
grandes burgueses. Por acaso eu penso em fazer de
meu filho um advogado?
UM MARINHEIRO – Em regiões flamengas, todos são
assim!
OUTRO – Eles ficam entre eles, como maçons!
Era curioso olhar para o lado dos flamengos da cidade,
ou melhor, da ponte, que era o ponto central de Givet.
Estava-se numa cidade francesa. Ruas pequenas. Cafés
cheios de amantes de bilhar ou dominó. Cheiros de bebidas
à base de anis e familiaridade geral.
Mais adiante, aquele pedaço de rio. O prédio da
alfândega. Por fim, bem na ponta, no limite dos campos, a
casa dos flamengos: a mercearia abarrotada de
mercadorias; o pequeno balcão de zinco para os
consumidores de genebra; a cozinha e o velho marido senil
em sua poltrona de vime colada à estufa; a sala de jantar e
o piano, o violino, as cadeiras confortáveis, a torta feita em
casa, Anna e Marguerite, a toalha xadrez, o longilíneo
Joseph, magro e adoentado, chegando de moto numa
atmosfera de admiração geral!
O Hôtel de la Meuse era um hotel para viajantes do
comércio. O proprietário conhecia todos eles, que
carregavam suas pastas com documentos.
Joseph Peeters chegou, timidamente, por volta das nove
horas, dirigiu-se ao comissário e balbuciou:
– Há novidades!
Como todos olhavam para eles, Maigret preferiu levar o
jovem para seu quarto.
– O que foi?
– O senhor está sabendo do anúncio?... Um motociclista
se apresentou... É um mecânico de Dinant, que passou
naquela noite na frente da casa, por volta das oito e meia...
A mala de Maigret ainda não fora aberta. O comissário
estava sentado na beira da cama, deixando a única poltrona
ao visitante.
– Você realmente ama Marguerite?
– Sim... Quer dizer...
– Quer dizer...?
– Ela é minha prima! Gostaria de fazê-la minha mulher...
Está decidido há muito tempo...
– Mesmo assim, você fez um filho em Germaine
Piedbœuf!
Silêncio. Depois, apenas balbuciado, um fraco:
– Sim...
– Você a amava?
– Não sei!
– Você teria casado com ela?
– Não sei...
Maigret o via em plena luz, com seu rosto magro, seus
olhos fatigados, seus traços cansados. Joseph Peeters não
ousava olhá-lo de frente.
– Como aconteceu?
– Tínhamos uma relação, Germaine e eu...
– E Marguerite?
– Não! Era outra coisa...
– Então?
– Ela me anunciou que teria um filho... Eu não sabia
mais...
– Foi sua mãe quem...
– Minha mãe e minhas irmãs... Elas me provaram que eu
não era o primeiro, que Germaine tivera...
– Aventuras?
A janela dava para o rio, no lugar exato onde esse batia
nos pilares da ponte. Era um estrondo contínuo, potente.
– Você ama Marguerite?
O jovem se levantou, pouco à vontade.
– O que o senhor quer dizer com isso?
– Você ama Marguerite ou Germaine?
– Eu... Quer dizer...
Ele tinha gotas de suor na testa.
– Como o senhor quer que eu saiba?... Minha mãe já
reservou um escritório de advocacia em Reims...
– Para você e Marguerite?
– Não sei... Conheci a outra num baile...
– Germaine?
– Num baile a que me proibiram de ir... Acompanhei-a
até sua casa... No caminho...
– E Marguerite?
– Não é a mesma coisa... Eu...
– Você não saiu de Nancy na noite de 3 para 4?
Maigret sabia o suficiente. Caminhava para a porta.
Julgara seu homem: um rapagão ossudo, mas frouxo de
caráter, cujo orgulho era alimentado pela admiração das
irmãs e da prima.
– O que você está fazendo desde então?
– Estou me preparando para meu exame... O último...
Anna me enviou um telegrama dizendo para vir vê-lo... Será
que...
– Não! Não preciso mais de você. Pode voltar para
Nancy.
Uma imagem que Maigret não esqueceria mais: grandes
olhos claros que a preocupação pintava de vermelho. Um
casaco reto demais. Calças com bolsos nos joelhos...
Com a mesma roupa, apenas vestindo um impermeável,
Joseph Peeters voltaria para Nancy, em sua moto, sem
ultrapassar os limites de velocidade...
Um pequeno quarto de estudante, na casa de alguma
velha senhora miserável... As aulas, a que ele nunca devia
faltar... O café ao meio-dia... O bilhar à noite...
– Se sua presença me for útil, avisarei!
Maigret, sozinho, debruçou-se na janela, recebendo o
vento do vale no rosto, vendo o Meuse se precipitar na
direção da planície, percebendo ao longe uma pequena luz
velada: a casa dos flamengos.
Na escuridão, uma aglomeração confusa de barcos,
mastros, chaminés, talha-mares arredondados.
O Étoile Polaire à frente...
Maigret foi para a rua, enchendo o cachimbo,
levantando o colarinho de veludo do sobretudo. O vento era
tão forte que, apesar de seu peso, ele era obrigado a se
contrair para lhe opor resistência.
CAPÍTULO III

A PARTEIRA

COMO DE COSTUME, Maigret estava de pé desde as oito


horas da manhã. Com as mãos nos bolsos do sobretudo,
cachimbo nos dentes, ficou um bom tempo imóvel na frente
da ponte, ora olhando para o rio revolto, ora deixando seu
olhar vagar pelos transeuntes.
O vento era tão violento quanto na véspera. Fazia muito
mais frio do que em Paris.
Mas o que exatamente o fazia sentir-se na fronteira? As
casas de tijolos de um marrom sujo, que já eram casas
belgas, com suas soleiras de pedra de cantaria e suas
janelas enfeitadas com vasos de cobre?
Os traços mais duros, mais marcados dos belgas? Os
uniformes cáqui dos funcionários da alfândega belga? Ou
ainda na moeda dos dois países, que valia nas lojas?
Em todo caso, era nítido. Estava-se na fronteira. Dois
povos se encontravam.
Maigret sentiu isso mais do que nunca ao entrar num
bistrô do cais para beber um grogue. Um bistrô francês.
Toda a variedade de aperitivos multicoloridos. Paredes
claras cheias de espelhos. E pessoas tomando, em pé, a
dose de vinho branco matinal.
Havia uma dezena de marinheiros em torno dos
comandantes de dois rebocadores. Discutiam as
possibilidades de descer o rio, apesar de tudo.
– Impossível passar embaixo da ponte de Dinant! Mesmo
se fosse possível, seríamos obrigados a aceitar quinze
francos franceses a tonelada... É caro demais... Por esse
preço, é melhor esperar...
E olhavam para Maigret. Um homem tocava o outro com
o cotovelo. O comissário fora identificado.
– Um flamengo está falando em ir embora amanhã, sem
uso do motor, deixando-se levar pela corrente...
Não havia flamengos no café. Eles preferiam a loja dos
Peeters, toda em madeira escura, com seus aromas de café,
chicória, canela e genebra. Deviam ficar com os cotovelos
no balcão por horas a fio, estendendo uma conversa
preguiçosa, olhando com seus olhos claros os anúncios
adesivos da porta.
Maigret ouvia o que era dito a sua volta. Ficava sabendo
que os marinheiros flamengos não eram apreciados. Não
em razão do caráter deles, mas porque, com seus barcos
com motores potentes, conservados como baterias de
cozinha, concorriam com os franceses e ainda aceitavam
fazer fretes a preços irrisórios.
– E ainda matam moças!
Falavam para Maigret, observando-o com o canto do
olho.
– É de se perguntar o que a polícia está esperando para
prender os Peeters!... Talvez por eles terem dinheiro demais,
a polícia hesite...
Maigret foi embora, vagou ainda por alguns minutos no
cais, olhando para a água escura que arrastava galhos. Na
pequena rua à esquerda, ele avistou a casa que Anna lhe
mostrara.
A luz, naquela manhã, era triste, o céu era de um cinza
uniforme. As pessoas, que passavam frio, não se
demoravam nas ruas.
O comissário se aproximou da porta, tocou a campainha.
Era um pouco mais de oito e quinze. A mulher que abriu a
porta devia estar ocupada em alguma grande faxina, pois
enxugava as mãos no avental molhado.
– É para quem?
No fundo do corredor, via-se uma cozinha e, no meio,
um balde e uma escova.
– O senhor Piedbœuf está?
Ela olhou para ele dos pés à cabeça, com desconfiança.
– O pai ou o filho?
– O pai.
– O senhor deve ser da polícia... Então deve saber que a
esta hora ele está deitado, pois é guarda noturno e nunca
volta para casa antes das sete da manhã... Agora, se o
senhor quiser subir...
– Não é preciso. E o filho?
– Faz dez minutos que saiu para trabalhar.
Houve um ruído de colher caindo na cozinha. Maigret
percebeu a cabeça de uma criança.
– Por acaso não é... – começou ele.
– O filho da pobre senhorita Germaine, sim! Entre ou
saia! A casa toda está esfriando por causa do senhor...
O comissário entrou. As paredes do corredor eram
pintadas em falso mármore. A cozinha estava em desordem
e a mulher murmurava coisas confusas enquanto juntava o
balde e a escova.
Em cima da mesa, xícaras e pratos sujos. Um garoto de
dois anos e meio estava sentado, sozinho, comendo um ovo
cozido, desajeitado, sujando-se com a gema.
A mulher devia ter uns quarenta anos. Era magra, tinha
um rosto ascético.
– É a senhora quem cuida dele?
– Desde que mataram a mãe, sou eu que fico com ele a
maior parte do tempo, sim! O avô é obrigado a dormir a
maior parte do dia. Não há mais ninguém na casa. Quando
tenho pacientes para visitar, preciso entregá-lo à vizinha.
– Pacientes?
– Tenho um diploma de parteira.
Ela tirara o avental xadrez, como se esse lhe tirasse a
dignidade.
– Não tenha medo, meu pequeno Jojo! – disse ela ao
menino, que olhava para o visitante e parara de comer.
Seria parecido com Joseph Peeters? Era difícil dizer. Em
todo caso, era uma criança com alguma debilidade. Tinha
traços irregulares, a cabeça grande demais, o pescoço
magro e uma boca fina e longa que parecia a de uma
criança de no mínimo dez anos.
Seus olhos estavam fixos em Maigret, mas não
expressavam nada. Também não expressaram algum
sentimento quando a parteira sentiu a necessidade de
abraçá-lo, talvez de maneira um pouco teatral, exclamando:
– Pobrezinho! Coma seu ovo, querido!
Ela não convidara Maigret a sentar-se. Havia água no
chão e uma sopa no fogo.
– Com certeza foi o senhor que foram buscar em Paris.
A voz ainda não era agressiva, mas estava longe de ser
amável.
– O que a senhora quer dizer com isso?
– Aqui é inútil fazer mistérios! Sabemos de tudo!
– Explique-se.
– O senhor sabe tanto quanto eu! A bela tarefa que
aceitou!... Mas a Polícia não está sempre do lado dos ricos?
Maigret franzira o cenho, não devido à acusação
gratuita, mas por aquilo que as frases da parteira
revelavam.
– Foram os próprios flamengos que anunciaram a todo
mundo que podiam incomodá-los por enquanto, mas que
isso não duraria e que as coisas mudariam quando não sei
qual comissário chegasse de Paris!
Ela esboçou um sorriso malicioso.
– Claro! Deram-lhes todo o tempo do mundo para
preparar suas mentiras! Eles sabem muito bem que o corpo
da senhorita Germaine jamais será encontrado! Coma, meu
pequeno. Não se preocupe...
Ela tinha os olhos úmidos ao fitar o garoto que segurava
a colher no ar, sem perder Maigret de vista.
– A senhora não tem nada de específico a me contar? –
perguntou o comissário.
– Absolutamente nada! Os Peeters devem ter passado
todas as informações que o senhor queria, e devem
inclusive ter dito que o menino não é de Joseph!
Valeria a pena insistir? Maigret era o inimigo. Pairava
naquela casa pobre como que uma atmosfera de ódio.
– Agora, se quer ver o sr. Piedbœuf, precisa tentar por
volta do meio-dia... É quando ele se levanta e o senhor
Gérard volta do trabalho...
Ela o reconduzia ao longo do corredor, fechava a porta
atrás dele. No primeiro andar, as janelas estavam fechadas.

Maigret encontrou o inspetor Machère nas proximidades


da casa dos flamengos, conversando com dois marinheiros
que abandonou ao avistar o comissário.
– O que eles dizem?
– Eu estava falando do Étoile Polaire... Eles acham que
no dia 3 de janeiro o proprietário saiu do Café des Mariniers
por volta das oito horas e que, como todas as noites, estava
bêbado... Neste momento, ele ainda está dormindo... Acabo
de subir em seu barco e ele nem me ouviu...
Atrás dos vidros da mercearia, podia-se perceber a
cabeça branca da sra. Peeters observando os policiais.
A conversa era desconexa. Os dois homens olhavam em
volta sem nada examinar em particular.
De um lado, o rio de barragens transbordadas que
carregava destroços numa velocidade de nove quilômetros
por hora. Do outro, a casa.
– Há duas entradas! – disse Machère. – A que vemos e
outra, nos fundos... No pátio, há um poço...
Ele se apressou a acrescentar:
– Já o examinei... Acho que vasculhei tudo... No entanto,
não sei por que, tenho a impressão de que o cadáver não foi
jogado no Meuse... O que aquele lenço de mulher estava
fazendo no telhado?
– O senhor sabe que encontraram o motociclista?
– Anunciaram-me a novidade. Mas isso não prova que
Joseph Peeters não esteve aqui naquela noite...
Claro que não! Não havia nenhuma prova, nem contra
nem a favor! Não havia nem mesmo algum testemunho
importante!
Germaine Piedbœuf entrara na loja por volta das oito
horas. Os flamengos diziam que ela saíra alguns minutos
depois, mas ninguém mais a vira.
Era tudo!
Os Piedbœuf acusavam e pediam trezentos mil francos
de indenização.
Duas mulheres de barqueiros entravam na mercearia e a
campainha soava.
– O senhor ainda acha, comissário...
– Não acho nada, meu velho! Até mais...
Ele entrou na mercearia. As duas clientes se encolheram
para lhe dar passagem. A sra. Peeters gritou:
– Anna!
Ela se agitou, abriu a porta envidraçada da cozinha.
– Entre, senhor comissário... Anna está vindo... Está
arrumando os quartos...
Ela se ocupou uma vez mais de suas clientes, e o
comissário, atravessando a cozinha, passou pelo vestíbulo e
subiu lentamente as escadas.
Anna não devia ter ouvido. Havia barulho num dos
quartos, cuja porta estava aberta, e Maigret avistou de
repente a jovem, com um lenço amarrado na cabeça,
escovando uma calça masculina.
Ela viu o visitante pelo espelho, se voltou com rapidez e
deixou a escova cair.
– O senhor estava aí?
Ela continuava a mesma, mesmo com a roupa caseira
matinal. Conservava exatamente seu ar de jovem bem-
educada, um pouco distante.
– Desculpe... Disseram-me que a senhorita estaria aqui
em cima... Este é o quarto de seu irmão?
– Sim... Ele foi embora hoje de manhã cedo... O exame é
muito difícil... Ele quer passar com a maior distinção, como
nos anteriores...
Sobre um baú, um grande retrato de Marguerite Van de
Weert, com um vestido claro, usando um chapéu de palha
italiano.
A jovem escrevera numa letra alongada e pontuda o
início da “Canção de Solveig”:
O inverno pode fugir...
A primavera bem-amada...
Pode passar...
Maigret tinha o retrato nas mãos. Anna olhava para ele
com insistência, com uma ponta de desconfiança, como se
temesse um sorriso.
– São versos de Ibsen – disse ela.
– Eu sei...
E Maigret recitou o fim do poema:
Espero você aqui,
Ó meu belo noivo,
Até meu último dia...
Ele quase sorriu, no entanto não deixava de olhar para a
calça que Anna não largara.
Aqueles versos heroicos no ambiente sombrio de um
quarto de estudante eram inesperados, estranhos ou
enternecedores.
Joseph Peeters, longilíneo e magro, malvestido, com
seus cabelos loiros que não conseguiam ficar penteados,
seu nariz desproporcional, seus olhos míopes...
Ó meu belo noivo...
E aquele pequeno retrato provincial de uma beleza
vaporosa!
Não era uma moldura de prestígio para o drama de
Ibsen. Ela não clamava sua fé nas estrelas! De um modo
burguês, copiava versos na parte de baixo de um retrato.
Espero você aqui.
E ela de fato esperara! Apesar de Germaine Piedbœuf!
Apesar da criança! Apesar dos anos!
Maigret sentiu um vago incômodo. Olhou para a mesa
com uma toalha verde, um tinteiro de cobre que devia ser
um presente e canetas de plástico.
Maquinalmente, ele abriu uma das gavetas do baú e viu,
numa caixa de papelão sem tampa, fotografias caseiras.
– Meu irmão tem uma câmera fotográfica.
Jovens com quepes de estudante... Joseph de moto, a
mão no manete como para uma partida fulminante... Anna
ao piano... Outra jovem, mais magra, mais triste...
– É minha irmã, Maria.
De repente, surge um pequeno retrato de passaporte,
sinistro como todos os retratos do tipo, devido ao contraste
brutal de brancos e pretos.
Uma jovem, tão frágil e tão pequena que parecia uma
menina. Tinha grandes olhos que ocupavam o rosto todo.
Ela usava um chapéu ridículo e parecia olhar para a câmera
com medo.
– Germaine, não é?
Seu filho se parecia com ela.
– Ela estava doente?
– Ela tinha tuberculose. Não tinha uma saúde forte.
Anna tinha! Grande e robusta, tinha acima de tudo um
equilíbrio físico e moral desconcertante. Ela acabara
soltando a calça sobre a colcha da cama.
– Estou vindo da casa dela...
– O que disseram?... Devem ter...
– Só vi a parteira... E o pequeno...
Ela não fez perguntas, por pudor. Havia algo de discreto
em seu porte.
– Seu quarto fica ao lado?
– Sim... Meu quarto, que também é o de minha irmã...
Havia uma pequena porta que o comissário abriu. O
outro aposento era mais claro, pois as janelas davam para o
cais. A cama já fora feita. Não havia a mínima desordem,
nenhuma roupa sobre os móveis.
Apenas duas camisolas bem-dobradas em cima dos dois
travesseiros.
– A senhorita tem 25 anos?
– Tenho 26.
Maigret tinha vontade de fazer uma pergunta, mas não
sabia como.
– A senhorita nunca noivou?
– Nunca.
Mas não era bem aquilo que queria ter perguntado. Ela o
impressionava, sobretudo agora que ele via seu quarto. Ela
o impressionava como uma estátua enigmática. Ele se
perguntava se aquelas carnes sem sedução já teriam
vibrado, se ela seria algo mais do que uma irmã dedicada,
do que uma filha modelo, do que uma dona de casa, do que
uma Peeters, se, por fim, por trás das aparências, havia
uma mulher!
Ela não desviava o olhar. Não se esquivava. Devia
pressentir que ele examinava suas linhas tanto quanto seus
traços, mas não teve nenhum estremecimento.
– Não nos relacionamos com ninguém, além de nossos
primos Van de Weert...
Maigret hesitou, e sua voz não saiu totalmente natural
quando ele disse:
– Vou lhe pedir para se prestar a uma experiência... A
senhorita poderia descer à sala de jantar e tocar o piano até
eu chamá-la?... Se possível, a mesma peça que foi tocada
no dia 3... Quem tocava?
– Marguerite... Ela canta enquanto toca... Fez aulas de
canto...
– A senhorita lembra qual peça?
– Sempre a mesma... A “Canção de Solveig”... Mas...
Eu... Não entendo...
– Uma simples experiência...
Ela foi saindo de costas, quis fechar a porta.
– Não! Deixe aberta.
Alguns minutos depois, seus dedos corriam
displicentemente pelo piano, desfiando acordes mal-
encadeados. Maigret, sem perder tempo, abria os armários
do quarto das jovens.
O primeiro era um armário de roupa. Pilhas regulares de
camisas, calças, saias bem-passadas...
Os acordes se sucediam. Reconhecia-se a canção.
Enquanto isso, os dedos gordos de Maigret iam e viam pela
roupa de baixo branca.
Quem o visse com certeza o tomaria por um
apaixonado, ou melhor, por um homem satisfazendo uma
paixão secreta.
Roupa de baixo grande, sólida, resistente. A das duas
irmãs devia estar misturada.
Depois foi a vez de uma gaveta: meias, ligas, caixas com
grampos... Nenhum pó de arroz... Nenhum perfume, a não
ser um frasco de água-de-colônia que só devia ser usada
em grandes ocasiões...
O som aumentava... A casa era preenchida pela
música... Pouco a pouco, uma voz começava a acompanhar
o piano, ficava em primeiro plano.
Espero você aqui,
Ó meu belo noivo,
Não era Marguerite quem cantava! Era Anna Peeters!
Ela articulava todas as sílabas. Enfatizava com nostalgia
algumas frases.
Os dedos de Maigret continuavam correndo. Tateavam
tecidos.
Numa pilha de roupas, ouviu um farfalhar, que não era
de tecido, mas de papel.
Outro retrato. Um retrato caseiro em sépia. Um jovem de
cabelos encaracolados, de traços finos, com o lábio superior
avançando um sorriso confiante, um pouco irônico.
Maigret não sabia o que aquilo lhe lembrava. Mas lhe
lembrava alguma coisa.
Até meu último dia...
Uma voz grave, quase masculina, que se apagava aos
poucos. Depois um chamado:
– Devo continuar, senhor comissário?
Ele fechou as portas dos armários, colocou a fotografia
no bolso do casaco, entrou com rapidez no quarto de Joseph
Peeters.
– Não é preciso.
Ele notou que Anna estava mais pálida ao voltar. Teria
cantado com ardor demais? Seu olhar examinava o
aposento sem nada ver de anormal.
– Não entendo... Eu gostaria de lhe perguntar algo,
senhor comissário. O senhor viu Joseph, ontem à noite... O
que o senhor pensa dele?... O senhor acreditaria que ele
seria capaz...
Ela tirara, provavelmente lá em baixo, o xale que cobria
sua cabeça. Maigret também teve a impressão de que ela
lavara as mãos.
– É preciso, o senhor entende, é preciso – continuou ela
–, que todos reconheçam sua inocência!... É preciso que ele
seja feliz!
– Com Marguerite Van de Weert?
Ela não disse nada. Suspirou.
– Quantos anos tem sua irmã Maria?
– Ela tem 28... Todos estão de acordo em dizer que ela
se tornará diretora da escola de Namur...
Maigret tateava o retrato no bolso.
– Nenhum pretendente?
E a resposta, imediata:
– Maria?
O que significava:
– Maria, um pretendente?... O senhor não a conhece!
– Vou continuar minha investigação! – disse Maigret,
dirigindo-se para a entrada.
– O senhor está obtendo resultados?
– Não sei.
Ela o seguiu na escada. Ao atravessar a cozinha, ele viu
o velho Peeters, que tomara seu lugar na poltrona e que
nem mesmo o viu passar.
– Ele não se dá conta de nada – suspirou Anna.
Na mercearia, havia três ou quatro pessoas. A sra.
Peeters servia genebra. Ela o cumprimentou, inclinando o
peito, sem largar a garrafa, depois continuou falando
flamengo.
Devia estar explicando que o visitante era o comissário
vindo de Paris, pois os marinheiros se voltaram para Maigret
com respeito.
Na rua, o inspetor Machère estava ocupado examinando
um pedaço de terreno onde o solo estava menos firme.
– Algo de novo? – perguntou o comissário.
– Não sei! Ainda estou procurando o cadáver! Porque
enquanto não o encontrarmos, será impossível pegar aquela
gente...
E ele se virou para o Meuse, insinuando que o corpo não
sumira lá dentro.
CAPÍTULO IV

O RETRATO

ERA UM POUCO DEPOIS DO MEIO-DIA. Maigret, talvez pela


quarta vez desde a manhã, caminhava ao longo da margem
do rio. Do outro lado do Meuse, havia um grande muro de
fábrica pintado de cal, uma porta e dezenas de operários e
operárias saindo a pé ou de bicicleta.
O encontro aconteceu cem metros antes da ponte. O
comissário cruzou com alguém, olhando-o nos olhos, e
quando se virou viu o outro se virar também.
Era o original do retrato encontrado nas roupas de Anna.
Uma breve hesitação. Foi o jovem quem deu um passo
na direção de Maigret.
– O senhor não é o policial de Paris?
– Gérard Piedbœuf, sem dúvida?
“O policial de Paris”. Era a quinta ou sexta vez desde a
manhã que Maigret era chamado assim. Ele entendia muito
bem a sutileza. Seu colega Machère, de Nancy, estava ali
para fazer uma investigação e mais nada. Ele era visto ir e
vir, e quando alguém pensava saber alguma coisa, corria
para lhe dizer.
Maigret, por sua vez, era “o policial de Paris”, chamado
pelos flamengos, que viera só para livrá-los de suspeitas. Na
rua, as pessoas, que já o conheciam, o seguiram com os
olhos sem a menor simpatia.
– O senhor está vindo de minha casa?
– Estive lá esta manhã, bem cedo, e só vi seu sobrinho...
Gérard não tinha mais a idade do retrato. Apesar de seu
porte ainda ser jovial, jovem também sua maneira de se
pentear e se vestir, de perto percebia-se que ele já passara
dos 25 anos.
– O senhor quer falar comigo?
Em todo caso, seu defeito não era a timidez. Nenhuma
vez ele desviou o olhar. Tinha olhos castanhos, muito
brilhantes, que deviam agradar às mulheres, sobretudo
porque sua tez era bronzeada, seus lábios bem-desenhados.
– Ah!... Mal iniciei minha investigação...
– Por conta dos Peeters, eu sei! Toda a região sabe!
Sabíamos até mesmo antes de sua chegada... O senhor é
um amigo da família e se comprometeu a...
– A nada! Ah! Seu pai está acordando...
Via-se a pequena casa. No primeiro andar, a persiana
estava aberta e adivinhava-se a silhueta de um homem com
um grande bigode cinza que olhava pela janela.
– Ele nos viu! – disse Gérard. – Ele vai se vestir...
– Você conhece pessoalmente os Peeters?
Eles caminhavam ao longo do cais, davam meia-volta
cada vez que chegavam a uma abita de amarração situada
a cem metros da mercearia. O vento era cortante. Gérard
usava um sobretudo fino demais, cujo corte excessivamente
acinturado devia seduzi-lo.
– Como assim?
– Fazia três anos que sua irmã era amante de Joseph
Peeters. Ela ia à casa dele?
O outro deu de ombros.
– Se é para retomar tudo em detalhes!... Em primeiro
lugar, um pouco antes do nascimento da criança, Joseph
jurava que casaria com ela... Depois veio o dr. Van de Weert,
em nome dos Peeters, ofereceu dez mil francos para que
minha irmã saísse do país e nunca mais voltasse... A
primeira saída de Germaine, depois de recuperada do parto,
foi para ir mostrar a criança aos Peeters... Uma cena
terrível, pois não queriam deixá-la entrar e a velha a tratava
como uma garota perdida... Por fim, tudo acabou se
acomodando... Joseph ainda prometia casar com ela... Mas
ele queria primeiro acabar os estudos...
– E você?
– Eu?
Ele começou fingindo não compreender. Mas, quase de
imediato, mudou de ideia, esboçou um sorriso ao mesmo
tempo vaidoso e irônico.
– Contaram-lhe alguma coisa?
Maigret, enquanto caminhavam ao longo do cais, tirou o
pequeno retrato do bolso, mostrou-o a Gérard.
– Essa agora! Não imaginei que ainda existisse!
Ele quis pegá-lo, mas o comissário recolocou-o na
carteira.
– Foi ela quem...? Não! Não é possível... Ela é orgulhosa
demais para isso... Pelo menos agora!
Durante toda aquela conversa, Maigret não tirava os
olhos de seu interlocutor. Seria ele tuberculoso como a irmã
e sem dúvida como o filho de Joseph? Talvez não! Mas tinha
o charme de alguns tísicos: traços finos, pele transparente,
lábios sensuais e zombeteiros ao mesmo tempo.
Sua elegância era a de um pequeno funcionário, e ele
achava necessário colocar uma braçadeira de luto sobre o
sobretudo bege.
– Você a cortejou?
– É uma velha história... Do tempo em que minha irmã
ainda não tinha a criança... Há pouco menos de quatro
anos...
– Continue...
– Meu pai acaba de olhar para a rua.
– Continue mesmo assim.
– Foi num domingo... Germaine ia visitar as grutas de
Rochefort com Joseph Peeters... No último momento, me
pediram para ir junto, porque uma das irmãs iria... As grutas
ficam a 25 quilômetros daqui... Almoçamos na grama... Eu
estava muito alegre... Depois, os dois casais se separaram
para passear no bosque...
O olhar de Maigret continuava pesando sobre ele, sem
nada expressar de seus pensamentos.
– Então?
– Então? Sim...
Gérard sorria com vaidade e malícia.
– Eu não posso mais dizer como aconteceu... Não tenho
o costume de prolongar as coisas... Ela não esperava e...
Maigret colocou a mão em seu ombro, perguntou
lentamente.
– É verdade, isso?
E ele entendeu que era verdade! Anna, na época, tinha
21 anos...
– Depois?
– Nada! Ela é feia demais... Na volta, no trem, ela me
olhava fixamente nos olhos, e entendi que o melhor a fazer
seria deixar aquilo de lado...
– Ela não tentou...?
– Absolutamente nada! Fiz de tudo para evitá-la. Ela
sentiu que não devia insistir... Só que, quando nos cruzamos
na rua, tenho a impressão de que, se seus olhos fossem
revólveres...
Eles se aproximavam do pai Piedbœuf, que, sem
colarinho, calçando pantufas de pano, esperava os dois.
– Fiquei sabendo que o senhor veio esta manhã... Entre,
por favor... Você contou ao comissário, Gérard?
Maigret subiu a escada estreita cujos degraus de
madeira branca não pareciam sólidos. A mesma peça servia
de cozinha, sala de jantar e sala de estar. Tudo era muito
pobre e feio. A mesa estava coberta com um linóleo de
estampa azulada.
– Quem a teria matado? – interrompeu Piedbœuf, em
quem se adivinhava uma inteligência medíocre. – Ela saiu
naquela noite dizendo que ainda não recebera seu mês,
nem notícias de Joseph.
– Seu mês?
– Sim! Ele entregava cem francos por mês para cuidados
com a criança... É o mínimo e...
Gérard, que sentia que o pai começaria conhecidas
lamentações, interrompeu-o.
– Isso não interessa ao comissário! O que ele quer são
fatos, provas! Muito bem! Eu pelo menos tenho a prova de
que Joseph Peeters, que diz não ter vindo a Givet naquele
dia, veio... Ele chegou de moto e...
– Você está falando do testemunho?... Não vale mais
nada... Outro motociclista se apresentou afirmando ter sido
ele quem passou no cais um pouco depois das oito horas...
– Ah!
E, agressivo:
– O senhor está contra nós?
– Não estou com ninguém. Nem contra ninguém!
Procuro a verdade.
Mas Gérard riu, zombeteiro, e disse ao pai, em voz alta:
– O comissário veio aqui apenas para nos testar... O
senhor me desculpe, comissário... Mas preciso comer...
Preciso ganhar a vida, e meu escritório abre às duas horas!
Para que discutir? Maigret lançou um último olhar em
volta, viu o berço da criança no aposento vizinho, dirigiu-se
para a porta.

Machère o esperava no Hôtel de la Meuse. Os viajantes


do comércio comiam numa pequena sala separada do café
por uma porta envidraçada.
Mas, no próprio café, podia-se comer algo leve, sem
toalha, e algumas pessoas o faziam.
Machère não estava sozinho. Um homem pequeno de
ombros monstruosamente largos, longos braços de
corcunda, bebia um aperitivo em sua mesa e se levantou ao
ver o comissário chegar.
– O dono do Étoile Polaire! – anunciou o inspetor, que
estava muito animado. – Gustave Cassin...
Maigret se sentou. Um olhar para os pires lhe disse que
seus interlocutores já estavam na terceira dose.
– Cassin tem algo a lhe dizer...
Esse não esperou. Assim que Machère ficou quieto,
começou a se debruçar com importância sobre o ombro do
comissário:
– Precisamos dizer o que temos a dizer, não é mesmo?...
Mas não é preciso dizer enquanto isso não for pedido...
Como ensinava meu falecido pai: sem exageros!
– Uma cerveja! – pediu Maigret ao garçom que se
aproximava.
Empurrou seu chapéu-coco para trás, desabotoou o
sobretudo. Depois, como o marinheiro procurava as
palavras, resmungou:
– Se não estou enganado, na noite de 3 de janeiro, o
senhor estava completamente bêbado...
– Completamente, não é verdade!... Eu tinha bebido
alguns copos, mas ainda caminhava em linha reta... E eu vi
o que vi...
– O senhor viu uma moto chegando e parando na frente
da casa dos flamengos?
– Eu?... Nunquinha!
Machère fazia um sinal para que Maigret não
interrompesse o homem, o qual encorajava com um gesto.
– Vi uma mulher no cais... E vou dizer qual... Aquela das
duas irmãs que nunca está na loja e que pega o trem todos
os dias...
– Maria?
– Talvez ela se chame assim... Uma magra de cabelos
loiros... Pois bem! Não era normal ela estar na rua, pois
havia um vento de fazer estalar as amarras dos barcos...
– A que horas?
– Quando entrei para deitar... Talvez por volta das oito
horas... Talvez um pouco mais tarde...
– E ela, viu o senhor?
– Não! Em vez de continuar meu caminho, me colei
contra o hangar da alfândega, pois pensei que ela estivesse
esperando um amante e eu queria rir um pouco...
– Justamente! O senhor foi condenado duas vezes por
atentado ao pudor...
Cassin sorriu, mostrando toda uma série de dentes
estragados. Era um homem difícil de precisar a idade, de
cabelos ainda escuros, que cobriam bem sua testa, mas de
rosto todo enrugado.
Ele estava muito preocupado com o efeito que produzia,
e a cada frase que pronunciava olhava primeiro para
Maigret e em seguida para o inspetor Machère, depois para
um cliente que estava atrás dele e que ouvia a conversa.
– Continue!
– Ela não esperava nenhum amante.
Mesmo assim, houve certa hesitação em sua voz. Ele
engoliu o conteúdo do copo de uma vez só, gritou ao
garçom:
– O mesmo!
E, de um só fôlego:
– Ela cuidava para ver se ninguém se aproximava...
Enquanto isso, algumas pessoas saíam da mercearia, não
pela loja, mas pela porta dos fundos... Carregavam algo
comprido e o jogaram no Meuse, bem entre meu barco e o
Les Deux Frères, que está atracado atrás...
– Quanto, garçom? – perguntou Maigret, levantando-se.
Ele não parecia impressionado. Machère estava muito
aturdido. Já o marinheiro não sabia o que pensar.
– Venha comigo.
– Para onde?
– Não importa. Venha!
– Estou esperando a dose que pedi.
Maigret esperou sem impaciência. Anunciou ao
proprietário que voltaria para almoçar em alguns minutos e
levou o bêbado para o cais, que a essa hora estava deserto,
pois todos estavam à mesa.
Grandes gotas de chuva começavam a cair.
– Em que lugar o senhor estava? – perguntou o
comissário.
Ele conhecia o prédio da alfândega. Viu Cassin se
refugiar num canto.
– O senhor não saiu daí?
– Não, com certeza! Eu não queria me meter naquela
história!
– Ceda-me o lugar!
Ficou ali apenas alguns segundos, disse encarando o
homem:
– Será preciso encontrar outra coisa, amigo!
– Como assim, outra coisa?
– Estou dizendo que sua história não se sustenta. Desse
lugar aqui, o senhor não poderia ver nem a mercearia nem
o espaço do rio delimitado pelos dois barcos.
– Quando eu disse que era aqui, eu quis dizer...
– Não! Basta! Estou dizendo para procurar outra coisa!
Venha me ver quando tiver encontrado. E, se ela não for
satisfatória, palavra de honra, talvez seja preciso prendê-lo
mais uma vez...
Machère não acreditava no que ouvia. Embaraçado por
seu erro, se colara por sua vez na parede e controlava as
afirmações do comissário.
– É claro! – resmungou.
Quanto ao marinheiro, nem tentou responder. Abaixara a
cabeça. Adivinhava-se um olhar irônico e maldoso fixo nos
pés de Maigret.
– Não esqueça o que acabei de lhe dizer: outra história,
e mais plausível... Se não, prisão!... Venha, Machère...
Maigret se virou e se dirigiu para a ponte, enchendo um
cachimbo.
– O senhor pensa que esse marinheiro...?
– Penso que hoje à noite ou amanhã ele virá nos trazer
uma nova prova da culpa dos Peeters...
O inspetor Machère estava desnorteado.
– Não estou entendendo mais nada... Se ele tem uma
prova...
– Ele terá...
– Mas como?
– Como vou saber?... Ele encontrará algo...
– Para se redimir?
Mas o comissário deixou a conversa de lado,
murmurando:
– Você tem fogo?... É o vigésimo fósforo que...
– Eu não fumo.
Machère não teve muita certeza de ter ouvido:
– Eu deveria saber...
CAPÍTULO V

A NOITE DE MAIGRET

A CHUVA TINHA COMEÇADO a cair por volta do meio-dia. Ao


crepúsculo, crepitava com força sobre o calçamento. Às oito
da noite, parecia um dilúvio.
As ruas de Givet estavam desertas. As barcaças
reluziam ao longo do cais. Maigret, com a gola do colarinho
erguida, caminhava rapidamente para a casa dos
flamengos, empurrava a porta, acionava a campainha que
se tornava familiar e respirava o cheiro quente da
mercearia.
Era a hora em que Germaine Piedbœuf tinha entrado na
loja, no dia 3 de janeiro, e desde então ninguém a vira.
O comissário notou pela primeira vez que a cozinha só
era separada da loja por uma porta envidraçada. Essa era
ornada com uma cortina de tule, tanto que se distinguiam
vagamente os contornos das pessoas do outro lado.
Alguém se levantava.
– Não se incomode! – gritou Maigret.
E entrou na cozinha, surpreendendo sua vida cotidiana.
Quem se levantara para ir à loja fora a sra. Peeters. Seu
marido estava na poltrona de vime, sempre tão perto da
estufa que se podia temer que pegasse fogo. Sua mão
segurava um cachimbo de sepiolita de longo cano de
cerejeira. Mas ele não estava fumando. Seus olhos estavam
fechados. Um sopro cadenciado saía de seus lábios
entreabertos.
Quanto a Anna, estava sentada à mesa de madeira
branca areada e polida pelos anos. Ela fazia contas numa
pequena caderneta.
– Leve o comissário para a sala de jantar, Anna...
– Não é preciso – protestou esse. – Só estou de
passagem...
– Dê-me seu casaco...
Maigret percebia que a sra. Peeters tinha uma bela voz
grave, profunda, cordial, que um leve sotaque flamengo
tornava ainda mais agradável.
– O senhor toma uma xícara de café?
Ele quis saber o que ela fazia antes de sua chegada. Em
sua cadeira, viu os óculos de armação de aço e o jornal do
dia.
A respiração do velho parecia compassar a vida da casa.
Anna fechava a caderneta, colocava uma tampa no lápis, se
levantava e ia pegar uma xícara numa prateleira.
– Com licença... – murmurou ela.
– Eu esperava conhecer sua irmã Maria.
A sra. Peeters balançou a cabeça com um ar doloroso.
Anna explicou:
– O senhor só a verá daqui a alguns dias, a não ser que
a visite em Namur. Uma de suas colegas, que também mora
em Givet, passou aqui um pouco antes... Maria descia do
trem, hoje de manhã, quando machucou o tornozelo...
– Onde ela está?
– Na escola... Ela tem direito a um quarto...
A sra. Peeters suspirava ainda balançando a cabeça:
– Não sei o que fizemos ao bom Deus!
– E Joseph?
– Ele não voltará antes de sábado... É verdade que já é
amanhã...
– Sua prima Marguerite não os visitou?
– Não! Eu a vi nas vésperas...
A xícara era servida com café fervente. A sra. Peeters
saía e voltava com um pequeno copo e uma garrafa de
genebra.
– É um velho schiedam.[1]
Ele se sentou. Não esperava descobrir nada. Talvez sua
presença inclusive fosse em parte estranha ao caso.
A casa lhe lembrava uma investigação que fizera na
Holanda, com diferenças que ele, no entanto, era incapaz
de definir. Reinava a mesma calma, o mesmo peso no ar, a
mesma sensação de que a atmosfera não era fluida, mas
sim que constituía um corpo sólido que se partia ao ser
remexido.
De vez em quando, o vime da poltrona fazia um estalido,
sem que o velho se mexesse. Sua respiração ritmava a vida,
a conservação.
Anna disse alguma coisa em flamengo, e Maigret, que
aprendera algumas palavras em Delfzijl, entendeu mais ou
menos:
– Você deveria ter usado um copo maior...
Às vezes um homem calçando tamancos passava pelo
cais. Ouvia-se a chuva crepitar na vitrine.
– A senhorita me disse que chovia, não é mesmo? Tão
forte quanto hoje?
– Sim... Acho que sim...
As duas mulheres, novamente sentadas, o olhavam
pegar seu copo e levá-lo aos lábios.
Anna não tinha a delicadeza de traços da mãe, nem seu
sorriso bondoso, cheio de indulgência. Segundo seu
costume, ela não tirava os olhos de Maigret.
Teria percebido a ausência do retrato em seu quarto?
Sem dúvida não! Senão, estaria incomodada.
– Faz 35 anos que estamos aqui, senhor comissário... –
dizia a sra. Peeters. – Meu marido primeiro se estabeleceu
como cesteiro, na mesma casa onde, mais tarde, apenas
acrescentamos um andar...
Maigret pensava em outra coisa, em Anna cinco anos
mais jovem acompanhando Gérard Piedbœuf às grutas de
Rochefort.
O que a impelira aos braços dele? Por que ela se
entregara? Quais tinham sido seus pensamentos depois?
Ele tinha a impressão de que aquela fora a única
aventura de sua vida, que ela não teria outra...
O ritmo de vida daquela casa era enfeitiçante. A
genebra provocava um calor surdo dentro da cabeça de
Maigret. Ele percebia os menores ruídos, os estalidos da
poltrona, o ronco do velho, as gotas de chuva num
parapeito...
– A senhorita deveria tocar de novo a peça desta
manhã... – ele disse a Anna.
Como ela hesitava, sua mãe insistiu:
– Claro!... Ela toca bem, não é mesmo? Fez aulas
durante seis anos, três vezes por semana, com a melhor
professora de Givet...
A jovem saía da cozinha. As duas portas ficavam abertas
entre ela e o resto da família. A tampa do piano bateu.
Algumas notas esparsas, com a mão direita.
– Ela deveria cantar... – murmurou a sra. Peeters. –
Marguerite canta melhor... Falávamos inclusive da
possibilidade de ela ter aulas no Conservatório...
As notas se sucediam na casa vazia e sonora. O velho
não despertava e sua mulher, preocupada com o cachimbo
que poderia cair, o pegou delicadamente e pendurou num
prego da parede.
O que Maigret continuava fazendo ali? Não havia nada a
descobrir. A sra. Peeters ouvia, olhando para o jornal sem
ousar pegá-lo. Anna aos poucos fazia o acompanhamento
com a mão esquerda. Adivinhava-se que era naquela
mesma mesa que Maria, normalmente, corrigia os temas
dos alunos.
Mais nada!
Exceto que toda a cidade acusava os Peeters de terem
matado Germaine Piedbœuf numa noite como aquela!
Maigret se sobressaltou ao ouvir a campainha da loja.
Por um segundo teve a sensação de que era três semanas
atrás, de que a amante de Joseph entraria, exigiria a
quantia da pensão, os cem francos que recebia todos os
meses para cuidados com a criança.
Era um marinheiro com um impermeável, que entregou
uma pequena garrafa para a sra. Peeters, e essa a encheu
com genebra.
– Oito francos!
– Belgas?
– Franceses! Dez francos belgas...
Maigret se levantou, atravessou a loja.
– O senhor já vai?
– Voltarei amanhã.
Na rua, ele viu o marinheiro voltando para seu barco.
Virou-se para a casa. Ela parecia, com sua vitrine luminosa,
um cenário de teatro, principalmente pela música que
continuava tocando, doce e sentimental.
A voz de Anna não se misturava a ela?
Mas você voltará...
Ó meu belo noivo...
Maigret patinhava na lama e a chuva era tão copiosa
que seu cachimbo apagava.
Agora era toda Givet que parecia um cenário de teatro.
Depois que o marinheiro voltara a bordo de seu barco, não
havia mais ninguém na rua.
Apenas luzes filtradas em algumas janelas. E o ruído do
Meuse em cheia que aos poucos abafava o canto do piano.
Depois de ter percorrido duzentos metros, ele pôde ver
ao mesmo tempo, ao fundo do cenário, a casa dos
flamengos e, em primeiro plano, a outra casa, a dos
Piedbœuf.
Não havia luz no primeiro andar. Mas o corredor estava
iluminado. A parteira devia estar sozinha com a criança.
Maigret estava carrancudo. Era raro ele chegar ao ponto
de sentir a inutilidade de seus esforços.
O que ele viera fazer ali, afinal? Não estava fazendo um
trabalho encomendado? Pessoas acusavam os flamengos de
terem matado uma jovem. Mas nem se tinha certeza da
morte dela!
Será que, cansada de sua pobre existência em Givet,
Germaine não fora para Bruxelas, para Reims, para Nancy
ou para Paris, beber com amigos?
E, mesmo que estivesse morta, teria sido assassinada?
Desencorajada, não teria sido atraída, ao sair da mercearia,
pelo rio lamacento?
Nenhuma prova! Nenhum indício! Machère ia a fundo,
mas não encontrava nada. Mais dia menos dia o Ministério
Público sem dúvida decidirá arquivar o caso.
Então, por que Maigret se envolvia naquele cenário
estranho?
Bem à sua frente, do outro lado do Meuse, ele via a
fábrica cujo pátio só era iluminado por uma lâmpada
elétrica. Bem perto da grade, uma guarita com a luz acesa.
O pai Piedbœuf começara a trabalhar. O que ele fazia a
noite inteira?
Então, sem saber direito por que, o comissário, com as
mãos enfiadas nos bolsos, se dirigiu para a ponte. No café
onde bebera um grogue naquela manhã, uns doze
marinheiros e donos de rebocadores falavam tão alto que
eram ouvidos no cais. Mas ele não se deteve.
O vento fazia vibrar as vigas de aço da ponte que
substituía a ponte de pedra destruída durante a guerra.
Na outra margem, o cais não era nem mesmo
pavimentado. Era preciso patinhar na lama. Um cachorro
que rondava se colou contra o muro branco de cal.
Na grade fechada, uma pequena porta fora instalada.
Maigret imediatamente viu Piedbœuf, que vinha colar o
rosto no vidro da guarita.
– Boa noite!
O homem usava um velho casaco militar que tingira de
preto. Ele também fumava cachimbo. No meio da peça,
havia uma estufa cujo cano, depois de dois ângulos, entrava
na parede.
– O senhor sabe que não se pode...
– Entrar aqui à noite! Está bem!
Um banco de madeira. Uma cadeira com assento de
palha. O sobretudo de Maigret começava a fumegar.
– O senhor fica a noite inteira aqui dentro?
– Não! Tenho que fazer três rondas pelos pátios e
oficinas.
De longe, os grossos bigodes cinza podiam causar
impressão. De perto, tratava-se de um sujeito tímido, a
ponto de se fechar em si mesmo, tendo no mais alto grau o
senso da humildade de sua condição. Maigret o
impressionava. Ele não sabia o que lhe dizer.
– Resumindo, o senhor está sempre sozinho... À noite,
aqui... Pela manhã, em sua cama... E à tarde?
– Arrumo a horta!
– A da parteira?
– Sim... Dividimos os legumes...
Maigret notou formas redondas em meio às cinzas.
Vasculhou-as com a ponta do atiçador, descobriu batatas
não descascadas. E entendeu. Imaginou o sujeito, sozinho,
no meio da noite, comendo suas batatas e olhando para o
vazio.
– Seu filho nunca vem vê-lo na fábrica?
– Nunca!
Gotas de chuva ainda caíam uma a uma na frente da
porta, dando um ritmo irregular à vida.
– O senhor realmente acredita que sua filha foi
assassinada?
O homem não respondeu de imediato. Ele não sabia
onde pousar o olhar.
– Assim que Gérard...
– Ela não teria se matado... Ela não teria ido embora...
Era de uma tragicidade inesperada. O homem enchia
maquinalmente o cachimbo.
– Se eu não acreditasse que aquela gente...
– O senhor conhece bem Joseph Peeters?
Piedbœuf virou o rosto.
– Eu sabia que ele não casaria com ela... São gente
rica... E nós...
Na parede, havia um belo relógio elétrico, único luxo do
abrigo. Na frente, um quadro-negro, sobre o qual alguém
escrevera com giz: não há vagas. Perto da porta, um
aparelho complicado, para registrar com a ajuda de uma
grande roda a hora de entrada e saída dos funcionários.
– Está na hora da ronda...
Maigret quase sugeriu fazê-la junto com ele, para entrar
um pouco mais na vida daquele homem. Piedbœuf colocava
um impermeável que ia até os calcanhares, pegava num
canto um lampião aceso, que apenas precisou aumentar o
pavio.
– Não entendo por que o senhor está contra nós... Talvez
seja esperado, afinal!... Gérard diz que...
Mas a chuva os interrompeu, pois eles chegavam ao
pátio. Piedbœuf conduziu o visitante até a grade, que
fechou antes de fazer sua ronda.
Uma surpresa a mais para o comissário. Dali, ele
percebia uma paisagem recortada em pedaços iguais pelas
barras de ferro: as barcaças atracadas do outro lado do rio,
a casa dos flamengos e sua vitrine iluminada, o cais onde as
lâmpadas elétricas desenhavam, de cinquenta em
cinquenta metros, círculos de luz.
Via-se muito bem o prédio da alfândega, o café dos
marinheiros...
Via-se especialmente a esquina da ruela cuja segunda
casa à esquerda era a dos Piedbœuf.
No dia 3 de janeiro...
– Faz tempo que sua mulher morreu?
– Doze anos no mês que vem... Ela morreu de
tuberculose...
– O que Gérard está fazendo a esta hora?
O lampião balançava na mão do guarda. Ele já colocara
uma grossa chave na fechadura. Um trem apitava ao longe.
– Deve estar na cidade...
– O senhor não sabe para que lado?
– Os jovens se reúnem sobretudo no Café de la Mairie.
Maigret voltou de novo para a chuva, para a escuridão.
Não era uma investigação. Não havia nenhum ponto de
partida, nenhuma base.
Apenas um punhado de homens e mulheres que
seguiam cada qual com suas próprias vidas na pequena
cidade varrida pelo vento.
Talvez todos estivessem sendo sinceros! Mas talvez
também um deles escondesse uma alma atormentada,
assustada até o mais alto grau por aquela espessa silhueta
que rondava pelas ruas naquela noite.
Maigret passou pela frente de seu hotel sem entrar.
Percebeu através dos vidros o inspetor Machère que
discorria no meio de um grupo do qual o proprietário fazia
parte. Parecia ser a quarta ou quinta rodada de bebida. O
proprietário acabava de oferecer a sua.
Machère, muito animado, gesticulava e devia dizer:
– Esses comissários que vêm de Paris se acham...
E falavam dos flamengos! Acabavam com eles!
No fim de uma rua estreita, havia uma praça bastante
ampla. Num canto, um café de fachada branca, com três
vitrines bem iluminadas: Café de la Mairie.
Um rumor recebia a partir da porta os que entravam.
Um balcão de zinco. Mesas. Jogadores de cartas diante de
panos vermelhos. Fumaça de cachimbos e de cigarros, e um
forte odor de cerveja quente.
– Duas cervejas, duas!
O barulho das fichas sobre o mármore do caixa. O
avental branco do garçom.
– Por aqui!
Maigret sentou na primeira mesa, viu Gérard Piedbœuf
por um dos espelhos embaciados da sala. Ele também
estava muito animado, como Machère. Parou de falar no
instante em que percebeu o comissário e seu pé deve ter
tocado o dos amigos.
Um homem e duas mulheres. Eram quatro na mesma
mesa. Todos jovens e de mesma idade. As mulheres sem
dúvida eram pequenas operárias da fábrica.
Todos se calavam. Os próprios jogadores de cartas, em
outras mesas, anunciavam seus pontos a meia-voz. Todos
os olhares estavam fixos no recém-chegado.
– Uma cerveja!
Maigret acendia o cachimbo, colocava o chapéu-coco
encharcado sobre o banco de pelica escuro.
– Uma cerveja, uma!
Gérard Piedbœuf esboçava um sorriso irônico e
desdenhoso, resmungava em voz baixa:
– O amigo dos flamengos...
Ele também bebera. Seus olhos estavam brilhantes
demais. Os lábios vermelhos ressaltavam a palidez de sua
pele. Ele parecia muito excitado. Observava as pessoas.
Procurava algo a dizer para impressionar os amigos.
– Entenda, Ninie, quando você for rica, não precisará
mais temer a polícia...
Seu amigo lhe deu uma cotovelada para fazê-lo calar,
mas o resultado foi irritá-lo ainda mais.
– O que foi? Não temos mais o direito de dizer o que
pensamos?... Estou dizendo que a polícia está à disposição
dos ricos, e que se você é pobre...
Ele estava lívido. No fundo, ele próprio estava assustado
com suas palavras, mas queria conservar a aura que essa
atitude lhe dava.
Maigret afastava a espuma que cobria o copo, bebia um
grande gole de cerveja. Ouviam-se os jogadores
murmurarem, rompendo o silêncio:
– Trinca alta...
– Quatro valetes...
– Sua vez!
– Eu corto!
As duas pequenas operárias que não ousavam se virar
para o comissário tentavam vê-lo pelo espelho.
– Até parece que é um crime, na França, ser francês!
Sobretudo se ainda por cima se é pobre...
No caixa, o proprietário franzia o cenho, se virava para
Maigret, que não olhava para ele, com a esperança de fazê-
lo entender que o jovem estava bêbado.
– Espadas!... E de novo espadas!... Hein?... Vocês não
esperavam por essa...
– Pessoas que ganharam fortunas fazendo contrabando!
– continuava Gérard, com a consciência de estar sendo
ouvido por toda a sala. – Todo mundo sabe em Givet! Antes
da guerra, eram charutos e tecidos rendados... Agora, como
o álcool é proibido na Bélgica, eles servem genebra aos
marinheiros flamengos... O que possibilita que o filho deles
se torne advogado... Ha! Ha! Ele precisará disso para se
defender!
Maigret continuava sozinho na mesa, alvo dos olhares
de todos os clientes. Ele não tirara o sobretudo. Seus
ombros brilhavam de chuva.
O proprietário se agitava, previa um drama, se
aproximava do comissário:
– Suplico-lhe para não prestar atenção... Ele bebeu... E a
dor...
– Vamos embora, Gérard! – murmurava com medo a
moça que estava ao lado do jovem.
– Para que ele pense que tenho medo dele?
Continuava de costas para Maigret. Os dois se viam
apenas pelos espelhos.
Os outros clientes jogavam mais para esconder seu
embaraço, esqueciam de marcar os pontos.
– Um conhaque, garçom!... Degustação!
O proprietário quase a negou, mas não ousou, visto que
Maigret continuava fingindo não perceber nada.
– Porcaria!... É o que é!... Essa gente pega nossas
moças, mata quando cansa delas... E a polícia...
O comissário imaginava o velho Piedbœuf, com seu
uniforme tingido, fazendo a ronda das oficinas, iluminando o
caminho com o lampião, voltando a seu canto quentinho
para comer as batatas.
Em frente, a casa dos Piedbœuf: a parteira que devia ter
colocado a criança na cama e que esperava a hora de deitar
lendo o jornal ou tricotando...
Mais adiante, a mercearia dos flamengos, o pai Peeters
que era acordado e conduzido para seu quarto, a sra.
Peeters que fechava as venezianas, Anna, sozinha, que se
despia em seu quarto...
E as barcaças adormecidas na corrente que esticava as
amarras e fazia os lemes ranger e os botes se chocarem...
– Mais uma cerveja!
A voz de Maigret estava calma. Ele fumava lentamente,
lançava baforadas de fumaça para o teto.
– Observem todos que ele está me provocando!... Já que
ele está me provocando...
O proprietário estava consternado, a ponto de intervir. O
escândalo começava.
Pois, depois dessas palavras, Gérard se levantara,
encarando Maigret. Ele tinha os traços tensionados, os
lábios retorcidos de cólera.
– Estou dizendo que ele veio até aqui apenas para me
provocar!... Olhem para ele!... Está zombando de nós,
porque bebi um pouco... Ou então porque não temos
dinheiro...
Maigret não se mexia. Era incrível! Estava tão imóvel
quanto o mármore de sua mesa e segurava o copo com a
mão. Continuava fumando.
– Só ouros! – disse alguém de boa vontade, com a
esperança de criar uma distração.
Então Gérard pegou as cartas da mesa do jogador e as
jogou no meio da sala.
De repente, metade dos clientes se levantara, sem
ousar avançar ainda, mas prontos para intervir.
Maigret continuava sentado, fumando.
– Mas olhem para ele!... Está nos provocando!... Ele sabe
muito bem que minha irmã foi assassinada...
O proprietário não sabia mais onde se enfiar. As duas
moças que estavam na mesa de Gérard se olhavam com
medo e já tinham calculado a distância que as separava da
porta.
– Ele não ousa falar!... Observem que ele não ousa abrir
a boca!... Ele está com medo!... Sim, medo que façamos a
verdade aparecer!
– Juro que ele bebeu! – exclamou o proprietário ao ver
Maigret se levantar.
Tarde demais! De todos, sem dúvida Gérard era quem
mais devia estar com medo.
Aquela massa escura e molhada que avançava na sua
direção...
Ele esboçou um leve movimento com a mão direita na
direção do bolso e esse movimento foi acompanhado por
um grito de mulher.
O jovem sacava um revólver. Mas a mão do comissário o
agarrara no ar. Ao mesmo tempo, seu pé, avançando, fazia
Gérard cair.
De cada três clientes, um no máximo se deu conta do
que estava acontecendo. No entanto, agora todos estavam
em pé. O revólver estava na mão de Maigret. Gérard se
levantava, com o rosto colérico, humilhado pela derrota.
Enquanto o comissário colocava a arma no bolso, num
gesto calmo e natural, o jovem arquejava:
– O senhor vai me prender, hein!
Ele ainda não estava em pé. Levantava-se com a ajuda
das mãos. Era de dar pena.
– Vá dormir! – disse Maigret lentamente.
Como o outro parecia não estar entendendo, ele
acrescentou:
– Abram a porta!
Uma baforada de ar fresco na atmosfera sufocante.
Maigret segurava o ombro de Gérard, empurrava-o para a
calçada.
– Vá dormir!
E a porta voltou a fechar. Havia uma pessoa a menos na
sala: Gérard Piedbœuf.
– Ele está podre de bêbado! – resmungou Maigret,
voltando a sentar na frente de seu copo de cerveja pela
metade.
Os clientes ainda não sabiam o que deviam fazer. Alguns
tinham retomado seus lugares. Outros hesitavam.
Então Maigret, depois de beber um gole de cerveja,
suspirou:
– Não foi nada!
Depois, dirigindo-se a seu vizinho, que não entendeu
nada, acrescentou:
– O senhor tinha anunciado só ouros...

[1] Aguardente de cereais, típica da Holanda, da Bélgica e do Norte da França.


(N.T.)
CAPÍTULO VI

O MARTELO

MAIGRET DECIDIRA DORMIR até tarde, menos por preguiça


do que por ociosidade. Eram cerca de dez horas quando foi
despertado de maneira desagradável.
Primeiro bateram violentamente em sua porta, coisa que
ele odiava acima de tudo. Depois, seus sentidos ainda
adormecidos perceberam o barulho da chuva na sacada.
– Quem é?
– Machère.
O inspetor falava seu nome como um triunfante toque
de clarim.
– Entre!... Vá abrir as cortinas...
Maigret, na cama, viu surgir a luz cinzenta de um dia
feio. No andar de baixo, uma vendedora de peixes gabava-
os ao dono do hotel.
– Novidades!... Chegaram esta manhã com o primeiro
correio...
– Espere um pouco! Você pode gritar na escada que
tragam meu café da manhã, pois não há campainha de
serviço...
E, sem sair da cama, Maigret acendeu um cachimbo que
estava pronto ao alcance de sua mão.
– Novidades de quem?
– De Germaine Piedbœuf.
– Morta?
– Mortíssima!
Machère afirmava isso com êxtase, tirando do bolso uma
carta com quatro páginas grandes ornadas de etiquetas
administrativas.
“Transmitido pelo Ministério Público de Huy ao Ministério
do Interior, em Bruxelas.
Transmitido pelo Ministério do Interior à Polícia Judiciária
em Paris.
Transmitido pela Polícia Judiciária à Brigada Móvel de
Nancy.
Transmitido ao inspetor Machère, em Givet...”
– Resuma, por favor?
– Muito bem! Em poucas palavras, ela foi retirada do
Meuse em Huy, isto é, a uns cem quilômetros daqui. Isso há
cinco dias... Não pensaram de imediato no pedido de
informações que enviei à polícia belga... Mas vou ler...
– Posso entrar?
Era a camareira com o café e croissants. Quando ela
desapareceu, Machère retomou:

“Nesse vinte e seis de janeiro de mil novecentos...”


– Não, meu velho! Diga logo o que é...
– Muito bem! Parece mais ou menos certo que ela foi
assassinada. Não se trata mais de apenas uma certeza
moral. Trata-se de uma certeza material... Ouça:

“O corpo, tanto quanto é possível julgar, deve ter


permanecido na água de três semanas a um mês... Seu
estado de...”
– Resuma! – resmungou Maigret, que comia.
– ...decomposição...
– Eu sei! As conclusões! E sobretudo sem descrições!
– Há uma página inteira...
– De quê?
– De descrições... Enfim, já que o senhor não quer... Não
é conclusivo... No entanto, uma coisa é certa: que Germaine
Piedbœuf estava morta muito tempo antes de submergir... O
doutor diz: “dois ou três dias antes...”.
Maigret continuava mergulhando o croissant no café,
comendo e olhando o retângulo da janela enquanto
Machère pensava que ele não estava ouvindo.
– Isso não interessa ao senhor?
– Continue.
– Há o relatório detalhado da autópsia... O senhor quer
que...? Não?... Muito bem! Resta contar o mais
interessante... O crânio do cadáver estava completamente
afundado e os médicos acreditam que é possível afirmar
que a morte ocorreu em razão desta fratura, produzida com
um instrumento contundente, como um martelo ou um
malho de ferro...
Maigret tirou uma de suas pernas da cama, depois a
outra, olhou-se por um momento no espelho antes de
começar a ensaboar as bochechas com a ajuda do pincel.
Enquanto se barbeava, o inspetor Machère relia o relatório
datilografado que tinha em mãos.
– O senhor não acha isso extraordinário?... Não o golpe
de martelo!... Estou falando do fato de o corpo ter sido
jogado na água somente dois ou três dias depois da morte...
Precisarei fazer outra visita aos flamengos...
– Você tem a lista das roupas que Germaine Piedbœuf
usava?
– Sim... Espere... Sapatos pretos com fivelas, bastante
gastos... Meias pretas... Roupa íntima rosa de má
qualidade... Vestido de sarja preto, sem etiqueta...
– Só? Nenhum casaco?
– Nossa! É verdade...
– Era o dia 3 de janeiro... Chovia... Estava frio...
O rosto de Machère se franziu. Ele resmungou sem se
explicar:
– Claro!
– Claro o quê?
– Ela não se dava o suficiente com os Peeters para que a
convidassem a ficar à vontade... Por outro lado, não vejo por
que o assassino lhe teria tirado o casaco... Senão, ele a teria
despido por inteiro, para tornar a identificação mais difícil...
Maigret se lavava ruidosamente, respingando água no
inspetor, que estava no meio do quarto.
– Os Piedbœuf já estão sabendo?
– Ainda não... Pensei que o senhor se encarregaria...
– De nada! Não estou em missão! Faça como se
estivesse sozinho, meu velho!
E procurou o botão do colarinho, acabou de se vestir,
empurrou Machère em direção à porta.
– Preciso sair... Até mais...

Ele não sabia para onde ir. Saía por sair, ou melhor, para
mergulhar de novo na atmosfera da cidade. O acaso o fez
parar numa placa de cobre anunciando:

Dr. Van de Weert


Consultas das dez horas ao meio-dia
Alguns minutos depois, faziam-no passar na frente dos
três pacientes que esperavam na antessala, e ele se viu na
presença de um homenzinho de pele rosada de criança,
cabelos do mesmo branco puro dos da sra. Peeters.
– Nada de desagradável, pelo menos?
Ele esfregava as mãos enquanto falava, e toda sua
fisionomia revelava um sólido otimismo.
– Minha filha me disse que o senhor aceitou...
– Eu gostaria primeiro de lhe fazer uma pergunta. Qual a
força necessária para afundar o crânio de uma mulher com
um golpe de martelo?
O assombro do homenzinho, cujo abdômen era
transpassado por uma grossa corrente de relógio e que
usava uma jaqueta antiquada, foi grande.
– Um crânio?... Como vou saber?... Jamais tive a ocasião,
em Givet...
– O senhor acha, por exemplo, que uma mulher seria
capaz...
Ele se alarmava. Gesticulava.
– Uma mulher?... Mas é loucura!... Jamais uma mulher
pensaria em...
– O senhor é viúvo, sr. Van de Weert?
– Há vinte anos! Felizmente minha filha...
– O que o senhor pensa de Joseph Peeters?
– Mas... Um rapaz excelente!... Eu preferiria que ele
escolhesse a medicina, porque ficaria com meu consultório.
Mas já que tem talento para o Direito... É um sujeito
notável...
– Do ponto de vista de saúde?
– Muito bom! Muito bom! Um pouco cansado por um
trabalho obstinado e por seu crescimento...
– Os Peeters não têm nenhum problema?
– Um problema?
Era de acreditar, pelo seu grande espanto, que nunca
tinha ouvido falar naquilo.
– O senhor é desconcertante, comissário! Não estou
entendendo! O senhor viu minha prima. Ela foi feita para
viver um século...
– Sua filha também?
– Ela é mais delicada... Puxou a mãe... Mas me permita
oferecer um charuto...
Um verdadeiro flamengo, como os das litografias
gabando uma marca de genebra, um flamengo de lábios
vermelhos e olhos claros proclamando a simplicidade de sua
alma.
– Em suma, a srta. Marguerite deveria casar com o
primo.
Seu rosto se fechou um pouco.
– Mais cedo ou mais tarde, sim!... Sem esta aventura
inoportuna...
Para ele, era apenas algo inoportuno!
– Pessoas que não entenderam que o melhor a fazer era
aceitar uma pequena pensão para a criança e, se possível,
mudar de cidade... Acredito que principalmente o irmão tem
más intenções...
Não! Era impossível lhe querer mal! Ele era sincero!
Ingênuo de tanta sinceridade!
– Sem contar que nada prova que a criança seja de
Joseph... Ela ficaria muito melhor num sanatório, com a
mãe...
– Enfim, sua filha esperava...
Van de Weert sorriu.
– Ela o ama desde os catorze ou quinze anos... Não é
bonito?... Seria certo eu me opor?... O senhor tem fogo?...
Na minha opinião, se o senhor quiser saber, não há nem
mesmo drama... A jovem, que sempre foi uma pequena
libertina, seguiu um novo amante para algum lugar... E o
irmão dela aproveitou para tentar conseguir dinheiro...
Ele não pedia a opinião de Maigret. Tinha certeza de que
a sua era a certa. Estava atento aos ruídos da antessala, na
qual os pacientes deviam se impacientar.
Então o comissário, tranquilamente, com o mesmo olhar
inocente de seu interlocutor, fez uma última pergunta.
– O senhor acredita que a srta. Marguerite seja amante
de seu primo?
Van de Weert talvez tenha ficado a ponto de se indignar.
Seu rosto ficou vermelho. Mas o que prevaleceu foi tristeza
diante de tanta incompreensão.
– Marguerite?... O senhor está louco!... Quem pode ter
inventado uma coisa dessas?... Marguerite sendo a...
Maigret, que já estava com a mão na maçaneta, foi
embora sem nem mesmo sorrir. A casa cheirava ao mesmo
tempo a farmácia e a cozinha. A criada que abria a porta
aos pacientes exalava um frescor de quem sai de um banho
quente.
Na rua, de novo a chuva e a lama, e os caminhões que
passavam sujando as calçadas.
Era sábado. Joseph Peeters devia chegar à tarde e
passar o domingo em Givet. No Café des Mariniers, discutia-
se com fervor, pois a Ponts et Chaussées[1] acabava de
anunciar que a navegação fora restabelecida da fronteira
até Maestricht.
No entanto, devido à força da corrente, os rebocadores
cobravam quinze francos o quilômetro, por tonelada, em
vez de dez. Além disso, anunciava-se que um arco da ponte
de Namur fora obstruído por uma barcaça carregada de
pedras cujas amarras haviam rompido e que ficara
atravessada na frente de um pilar.
– Há mortos? – perguntou Maigret.
– A mulher e o filho. O marinheiro, que estava no bistrô,
chegou à margem quando o barco já partira!
Gérard Piedbœuf passava de bicicleta, voltando dos
escritórios da fábrica. Alguns momentos depois, Machère
voltava da casa dos flamengos, onde fora anunciar a
novidade, batia à porta dos Piedbœuf e se via diante da
parteira, que o recebia de modo seco.

– Como foi seu caso de atentado ao pudor?


A bordo de quase todas as barcaças, os aposentos são
de uma limpeza raramente igualada pela das casas. Mas
esse não era o caso no Étoile Polaire.
O marinheiro não tinha mulher. Era auxiliado por um
rapaz de uns vinte anos que não regulava muito bem e que
de vez em quando tinha uma crise de epilepsia.
A cabine cheirava a caserna. O sujeito estava ocupado
comendo pão com salame e bebendo uma garrafa de vinho
tinto.
Ele estava menos bêbado do que de costume. Olhava
para Maigret com desconfiança e demorou bastante tempo
até se decidir a falar.
– Não foi nem mesmo um atentado... Já tinha dormido
duas ou três vezes com a garota... Uma noite, na estrada,
eu a encontrei e, dizendo que eu tinha bebido, ela se
recusou... Então a agarrei... Ela gritou... Policiais passavam
por acaso, e derrubei um no chão com um soco...
– Cinco anos?
– Quase. Ela negava nossas relações anteriores... Alguns
amigos foram confirmá-las no tribunal, mas só acreditaram
neles um pouco... Sem o policial, que ficou quinze dias no
hospital, eu não teria pegado mais de um ano, talvez até a
suspensão da pena...
Ele cortava o pão com uma faca de bolso.
– O senhor não está com sede?... Talvez partamos
amanhã... Só vamos esperar para saber se a ponte de
Namur estará livre...
– Diga-me agora por que inventou a história da mulher
que você disse ter visto no cais.
– Eu?
Ele ganhava tempo para refletir, fingindo comer com
apetite.
– Confesse que não viu absolutamente nada!
Maigret surpreendeu um ar risonho nos olhos de seu
interlocutor.
– O senhor acredita nisso?... Pois é! Com certeza o
senhor tem razão!
– Quem pediu para você dar esse testemunho?
– Para mim?
Ele continuava rindo. Cuspia a pele do salame aos seus
pés.
– Onde você conheceu Gérard Piedbœuf?
– Ah! Pronto...
Mas estava diante de um homem tão plácido quanto ele.
– Ele lhe deu alguma coisa?
– Pagou umas rodadas...
Então, bruscamente, com um riso silencioso:
– Só que não é verdade! Estou dizendo isso para agradar
o senhor... Se o senhor quiser que eu declare o contrário no
tribunal, é só fazer um sinal...
– O que você viu de fato?
– Se eu dissesse, o senhor não acreditaria em mim.
– Fale mesmo assim!
– Muito bem! Vi uma mulher esperando... Depois um
homem, nos braços de quem ela se atirou...
– Quem era?
– Como o senhor quer que eu os tenha reconhecido, na
escuridão?
– Onde você estava?
– Estava voltando do bistrô...
– E para onde o casal foi? Para a casa dos flamengos?
– Não! Eles foram para trás.
– Para trás do quê?
– Da casa... Aliás, se o senhor quiser que não seja
verdade... Contaram tantas histórias em meu processo... Até
meu advogado, que foi o mais mentiroso de todos...
– Você vai de vez em quando beber uma dose nos
flamengos?
– Eu?... Eles se recusam a me servir, sob o pretexto de
que uma vez quebrei a balança dando um soco nela... Eles
querem clientes que se embebedem sem se mover e sem
dizer nada...
– Gérard Piedbœuf falou com você?
– O que eu lhe disse antes?
– Que ele pediu para que você dissesse...
– Pois é! Então é verdade... E a verdade do bom Deus é
que eu nunca lhe direi o que sei, porque detesto policiais, o
senhor e os outros!... O senhor pode ir contar isso ao juiz...
Eu jurarei que o senhor me bateu e mostrarei as cicatrizes
dos golpes... O que não me impede de lhe oferecer um copo
de vinho tinto, se o senhor quiser...
Naquele exato instante, Maigret olhava dentro de seus
olhos, e de repente se levantou.
– Mostre-me o barco! – disse secamente.
Surpresa? Temor? Simples contrariedade? O certo é que
o sujeito, com a boca cheia, esboçou uma careta.
– O que o senhor quer ver?
– Um momento...
E Maigret saiu, voltou no momento seguinte com um
funcionário da alfândega com o impermeável brilhando de
chuva. O marinheiro troçou:
– Já recebi a visita...
O comissário falava com o funcionário.
– O senhor está acostumado... Imagino que todos os
barcos façam um pouco de contrabando...
– Um pouco!
– Onde eles costumam esconder a mercadoria?
– Depende... Antes, guardavam em cofres à prova
d’água que amarravam embaixo do barco... Mas agora
passamos uma corrente sob o casco, então não fazem mais
isso... Sob o assoalho também... Quer dizer, às vezes entre
o assoalho e o fundo... Mas costumamos fazer alguns furos
com uma enorme broca que o senhor deve ter visto no
cais...
– Então?
– Espere!... O que você está carregando?
– Ferro-velho...
– Demoraria demais... – resmungou o funcionário da
alfândega. – É preciso procurar em outro lugar...
Maigret não tirava os olhos do marinheiro. Esperava um
olhar revelador para algum esconderijo. O sujeito
continuava comendo, sem apetite, para fazer alguma coisa.
Ele não se assustara. No entanto, continuava
obstinadamente sentado.
– Levante-se!
Dessa vez, foi obedecido de má vontade.
– Não tenho mais nem o direito de permanecer sentado
em minha casa?
Em cima da cadeira, havia uma almofada suja que
Maigret pegou. Três lados da almofada estavam costurados
normalmente. O quarto mostrava pontos grossos que não
tinham sido feitos por uma costureira.
– Muito obrigado! Não preciso mais do senhor! – disse o
comissário ao funcionário da alfândega.
– O senhor acredita que ele esteja contrabandeando?
– Nem um pouco... Obrigado...
Ele esperou que o funcionário saísse, a contragosto.
– O que é isso?
– Nada!
– Você tem o hábito de colocar objetos tão duros nas
almofadas?
A costura cedia, deixava ver algo escuro. Maigret logo
exibia um pequeno casaco de sarja todo amarrotado, cheio
de pregas.
Era a mesma sarja do tipo descrito no relatório do
Ministério Público belga. Não havia etiqueta. A roupa fora
feita pela própria Germaine Piedbœuf.
Mas aquela não era a peça mais interessante. No meio
do pacote, havia um martelo com a empunhadura polida
pelo uso.
– O mais engraçado – resmungou o marinheiro –, é que o
senhor vai se enganar redondamente... Não fiz nada!... Tirei
essas duas coisas aí do Meuse, no dia 4 de janeiro, à
primeira hora da manhã...
– E você teve a boa ideia de colocá-las em lugar seguro!
– Estou começando a ficar acostumado! – replicou o
sujeito com ar satisfeito. – O senhor vai me prender?
– É tudo o que tem a dizer?
– Que o senhor se engana redondamente!
– Você ainda parte amanhã?
– Se o senhor não me prender, é provável.
Deve ter sido a maior surpresa de sua vida ver Maigret
refazer o pacote com cuidado, colocá-lo embaixo do
sobretudo e ir embora sem dizer nada.
Ele o viu se afastar na chuva, ao longo do cais, e passar
na frente do funcionário da alfândega, que o cumprimentou.
Depois voltou à cabine coçando a cabeça e se serviu de
algo para beber.

[1] Departamento público responsável pela construção e pela manutenção de


vias públicas. (N.E.)
CAPÍTULO VII

UM VAZIO DE TRÊS HORAS

QUANDO MAIGRET CHEGOU ao hotel para almoçar, o


proprietário lhe anunciou que o carteiro trouxera uma carta
registrada em seu nome, mas que não quisera deixá-la.
Como um indício dos inúmeros probleminhas que se
combinam para atormentar um homem. Assim que sentou à
mesa, o comissário perguntou sobre seu colega. Este não
fora visto. Mandou que telefonassem para seu hotel.
Responderam-lhe que ele saíra há meia hora.
Não era grave. Maigret sequer tinha poder para passar
instruções a Machère. Mas teria gostado de lhe sugerir a
ideia de não perder o marinheiro de vista.
Às duas da tarde, ele estava no posto de correio, onde
lhe entregaram a carta registrada. Uma coisa estúpida.
Móveis que ele tinha comprado e se recusado a pagar
porque não estavam de acordo com a encomenda. O
fornecedor o intimava.
Precisou, por uma boa meia hora, escrever a resposta,
depois uma carta para a mulher, para lhe passar instruções
sobre o assunto.
Ele ainda não acabara quando lhe chamaram ao
telefone. Era o diretor da Polícia Judiciária que perguntava
quando ele pensava voltar e lhe pedia que enviasse alguns
detalhes sobre dois ou três casos em andamento.
Na rua, continuava chovendo. O chão do café estava
coberto de serragem. Àquela hora, não havia ninguém, e o
garçom também aproveitava para colocar sua
correspondência em dia.
Pequeno detalhe ridículo: Maigret detestava escrever
sobre uma mesa de mármore, mas todas eram iguais.
– Telefone ao Hôtel de la Gare para saber se o inspetor
ainda não foi visto.
Maigret estava tomado por um mau humor vago, ainda
mais exasperante por não ter um objeto definido. Duas ou
três vezes foi colar seu rosto ao vidro embaçado. O céu se
tornava um pouco mais claro, as gotas de chuva mais
espaçadas. Mas o cais enlameado continuava deserto.
Por volta das quatro horas, o comissário ouviu um apito.
Ele correu até a porta e viu um rebocador que, pela primeira
vez desde o início da cheia, cuspia um espesso vapor.
A corrente ainda estava violenta. Quando o rebocador,
estreito, leve, que parecia um puro-sangue ao lado das
barcaças, se afastou da margem, literalmente empinou e
por um momento parecia que seria levado pela corrente.
Novo apito, mais estridente. E ele resistiu. Um cabo se
retesava atrás dele. Um primeiro batelão se separou do
bloco de barcos que esperavam, se colocou atravessado no
Meuse enquanto dois homens colocavam todo seu peso no
leme.
Nas portas dos cafés, os clientes estavam reunidos para
assistir à manobra, que levou no máximo seis minutos.
Duas, três barcaças entraram na luta por sua vez,
descreveram um semicírculo e de repente, após um apito
vibrante de orgulho, o rebocador se dirigiu para a Bélgica,
enquanto seus batelões, atrás dele, tentavam mais ou
menos seguir uma linha reta.
O Étoile Polaire não fazia parte do comboio.

...rogo-lhe, portanto, para mandar buscar em minha


residência, no Boulevard Richard-Lenoir, os móveis
que...
Maigret escrevia com lentidão anormal, como se seus
dedos fossem grandes demais para a caneta-tinteiro que
eles esmagavam no papel. Por contraste, aquilo resultava
numa letra bem pequena que, de longe, parecia uma série
de manchas.
– O sr. Peeters está passando de moto... – anunciou o
garçom, que acendia as lâmpadas e abria as cortinas da
fachada.
Eram quatro e meia.
– É preciso coragem para fazer duzentos quilômetros
sob esse tempo! Ele está enlameado até os olhos!
Maigret assinava a carta, colocava-a no envelope.
– Albert!... O telefone! – gritava a proprietária.
– É para o senhor, comissário! De Paris...
– Alô!... Alô!... Sim, sou eu...
Maigret tentou refrear o mau humor. Era sua mulher na
linha, perguntando quando voltaria.
– Alô... Vieram pelos móveis...
– Eu sei! Estou fazendo o necessário...
– Há também uma carta de seu colega inglês que...
– Sim, minha querida! Não é importante...
– Está frio, aí?... Agasalhe-se... Seu resfriado não está
totalmente curado...
Por que ele estava com uma impaciência quase
dolorosa? Uma impressão vaga. Parecia que perdia alguma
coisa ao desperdiçar seu tempo naquela cabine telefônica.
– Estarei em Paris em três ou quatro dias.
– Tudo isso!
– Sim... Um beijo... Até mais...
No café, ele perguntou por uma caixa de correio.
– Bem na esquina, na tabacaria.
Estava escuro. Do Meuse, só se viam os reflexos dos
postes de luz. Contra o tronco de uma árvore, o comissário
viu uma silhueta que o fez franzir o cenho. Pois não era o
tipo de clima para se tomar um ar, sob a chuva e o vento.
Colocou a carta na caixa, se virou, viu que a silhueta se
afastava da árvore. Caminhou, e o desconhecido começou a
caminhar atrás dele.
Foi muito rápido! Alguns passos ágeis para trás e
Maigret segurava o homem pelo colarinho.
– O que você está fazendo aqui?
Ele apertara um pouco demais. O rosto do desconhecido
estava vermelho. Maigret diminuiu a pressão.
– Fale!
Algo o chocava, ele ainda não sabia o quê. Aquele olhar
que fugia era incômodo, mais incômodo que o sorriso do
sujeito.
– Você não é o ajudante do Étoile Polaire?
O outro concordou com a cabeça, arrebatado.
– Você me espreitava?
Era uma mistura de medo e de felicidade que se lia no
rosto longo demais do rapaz. O marinheiro não dissera a
Maigret que seu empregado era simples de espírito e tinha
crises de epilepsia?
– Não ria! Diga o que está fazendo aqui...
– Estou olhando para o senhor.
– Foi seu patrão quem disse para me vigiar?
Impossível ser bruto com aquele pobre-diabo, ainda
mais digno de pena por estar na flor da idade. Ele tinha
vinte anos. Não se barbeava, mas sua barba escassa,
alguns fios loiros muito finos, não chegavam a um
centímetro. Sua boca era duas vezes maior do que uma
normal.
– Não me bata...
– Venha!
Várias barcaças tinham mudado de lugar. Pela primeira
vez em semanas, havia agitação a bordo delas, pois todos
se preparavam para partir. As mulheres iam às compras. Os
funcionários da alfândega circulavam, subindo nos barcos.
O Étoile Polaire, depois das partidas, estava isolado e
sua proa se afastara um pouco da margem. Havia luz na
cabine.
– Vá na frente!
Era preciso atravessar uma passarela feita de tábuas
macias demais, instável.
Não havia ninguém a bordo, apesar do lampião a
querosene estar aceso.
– Onde seu patrão guarda as roupas para sair?
Maigret adivinhava uma desordem fora do normal.
O empregado abria um armário, se espantava. No chão,
as roupas que o marinheiro usara pela manhã.
– E o dinheiro?
Sinais negativos intensos. O idiota não sabia! O dinheiro
estava escondido!
– Está bem! Você pode ficar aqui.
Maigret saiu, com a cabeça baixa, se chocou com um
funcionário da alfândega.
– O senhor não viu o marinheiro do Étoile Polaire?
– Não! Ele não está a bordo? Eu pensei que ele fosse
partir amanhã bem cedo.
– O barco é dele?
– De jeito nenhum! É de um de seus primos que mora
em Flémalle. Um excêntrico como ele...
– Quanto ele deve ganhar navegando?
– Seiscentos francos por mês?... Talvez um pouco mais,
com o contrabando... Mas não muito...
A casa dos flamengos estava iluminada. Havia luz nas
janelas da loja, e também no primeiro andar.
Alguns instantes depois, a campainha da mercearia
soava, Maigret esfregava os sapatos no capacho, gritava
para a sra. Peeters, que corria da cozinha:
– Não se incomode!

*
A primeira pessoa que ele viu, quando foi introduzido na
sala de jantar, foi Marguerite Van de Weert, folheando uma
partitura.
Ela estava mais etérea do que nunca em seu vestido de
seda azul-claro e esboçou um sorriso acolhedor ao
comissário.
– O senhor veio ver Joseph?
– Ele não está aqui?
– Ele subiu para se trocar... É loucura andar de moto com
esse tempo!... Sobretudo ele, que já tem uma saúde
delicada e está sobrecarregado com os estudos...
Não era amor! Era adoração! Ela seria capaz de ficar
horas sem se mexer, contemplando o rapaz!
O que ele tinha para inspirar tais sentimentos? Sua irmã
não falava dele mais ou menos nos mesmos termos?
– Anna está com ele?
– Ela está ajeitando suas roupas.
– E a senhorita? Faz tempo que chegou?
– Uma hora.
– A senhorita sabia que Joseph chegaria?
Um leve tremor. Que durou apenas um segundo, e ela
retomou no mesmo instante:
– Ele vem todos os sábados, à mesma hora.
– Há algum telefone na casa?
– Aqui, não! Em minha casa, sim! Meu pai precisa o
tempo todo.
Ela começava a desagradá-lo, ele não sabia por quê. Ou
melhor, começava a irritá-lo! Ele não gostava de seu ar de
bebê, sua maneira voluntariamente infantil de falar, seu
olhar que ela queria cândido.
– Veja! Ele está descendo...
E, de fato, ouviam-se passos na escada. Joseph Peeters
entrava na sala de jantar, limpo, arrumado, com os cabelos
ainda com a marca do pente molhado.
– O senhor estava aqui, sr. comissário...
Ele não ousou estender a mão. Virou-se para Marguerite.
– E você ainda não lhe ofereceu nada?
Na loja, várias pessoas falavam flamengo. Anna chegava
por sua vez, tranquila, se inclinava como deviam ter-lhe
ensinado no convento.
– É verdade, sr. comissário, que houve um escândalo,
ontem à noite, num café da cidade?... Sei que as pessoas
sempre exageram... Mas... Sente-se! Joseph!... Vá buscar
alguma coisa para beber...
Havia carvão e fogo na lareira. O piano estava aberto.
Maigret tentava especificar uma impressão que tivera
desde sua chegada, mas cada vez que se acreditava prestes
a conseguir, seus pensamentos fugiam.
Algo havia mudado. Mas ele não sabia o quê.
E ele estava mal-humorado. Seu rosto estava fechado,
com a testa carrancuda dos dias ruins. Ele justamente tinha
vontade de cometer alguma inconveniência para romper
toda aquela harmonia que o cercava.
Era Anna quem mais lhe inspirava aquele sentimento
confuso. Ela continuava usando o mesmo vestido cinza que
dava a suas formas um aspecto invariável de estátua.
Teriam os acontecimentos de fato causado impressão
sobre ela? Ela se movia e seus gestos não tiravam do lugar
uma única prega de sua roupa. Seu rosto permanecia
sereno.
Ela lembrava uma personagem de tragédia antiga que
se perdera na vida cotidiana e mesquinha de uma pequena
cidade da fronteira.
– A senhorita às vezes serve no armazém?
Ele não ousara dizer: na loja.
– Com frequência! Substituo mamãe.
– E a senhorita também serve bebidas?
Ela não sorriu. Contentou-se em manifestar surpresa.
– Por que não?
– Às vezes os marinheiros estão bêbados, não? Devem
se comportar de maneira desenvolta, talvez atrevida?
– Não aqui!
De novo a estátua! Ela tinha confiança em si mesma!
– O senhor prefere um vinho do Porto ou...?
– Prefiro um copo desse schiedam que a senhorita me
ofereceu no outro dia.
– Vá pedir à mamãe uma garrafa de Vieux Système,
Joseph.
E Joseph obedecia.
Era preciso mudar a ordem hierárquica imaginada por
Maigret, que era a seguinte: Joseph primeiro, verdadeiro
deus da família. Depois Anna. Depois Maria. Depois a sra.
Peeters, dedicada à mercearia. Por fim, o pai adormecido
em sua poltrona.
Anna, sem dificuldades, parecia assumir o primeiro
lugar.
– O senhor não descobriu nada de novo, comissário?... O
senhor viu que os barcos começam a partir?... A navegação
foi restabelecida até Liège, talvez até Maestricht... Em dois
dias, só restarão três ou quatro barcaças...
Por que ela dizia aquilo?
– Não, Marguerite! As taças...
Pois Marguerite pegava os copos na cristaleira.
Maigret continuava atormentado por sua necessidade de
romper o equilíbrio e aproveitou que Joseph estava na loja e
sua prima ocupada em escolher os copos, para mostrar a
Anna o retrato de Gérard Piedbœuf.
– Preciso falar com a senhorita! – disse em voz baixa.
Ele olhava para ela com insistência. Mas, se esperava
perturbar a calma de seu rosto, deve ter ficado
desapontado. Ela se contentou em esboçar um sinal de
cumplicidade. Um sinal que dizia:
– Sim... Mais tarde...
E, para seu irmão, que entrava:
– Ainda há bastante gente?
– Cinco pessoas.
Anna logo demonstraria senso de distinção. A garrafa
que Joseph trazia tinha um pequeno gargalo de metal que
permitia servir o líquido sem perder uma gota. Antes de
servir, a jovem retirou o acessório, indicando assim que
esse não era de bom-tom num salão, com convidados.
Maigret esquentou um pouco seu copo nas mãos.
– À sua saúde! – disse ele.
– À sua saúde! – repetiu Joseph Peeters, que era o único
a beber.
– Temos a prova de que Germaine Piedbœuf foi
assassinada.
Somente Marguerite soltou um gritinho assustado, um
verdadeiro gritinho de donzela, teatral.
– Que horror!
– Ouvi falar, mas não quis acreditar! – disse Anna. – Isso
tornará nossa situação ainda mais difícil, não é mesmo?
– Ou mais fácil! Principalmente se eu conseguir provar
que seu irmão não estava em Givet no dia 3 de janeiro.
– Por quê?
– Porque Germaine Piedbœuf foi morta a marteladas.
– Meu Deus!... Cale-se!
Era Marguerite, que se levantava pálida, prestes a
desmaiar.
– Estou com o martelo em meu bolso.
– Não! Eu lhe suplico... Não o mostre...
Mas Anna, por sua vez, continuava calma. Foi ao irmão
que se dirigiu.
– Seu colega voltou? – perguntou ela.
– Ontem.
Então ela explicou ao comissário:
– O colega com quem ele passou a noite de 3 de março
num café em Nancy... Ele fora para Marselha, há uns dez
dias, devido à morte de sua mãe... Ele acaba de voltar...
– À sua saúde! – respondeu Maigret, esvaziando o copo.
E pegou a garrafa, se serviu de novo. De vez em
quando, a campainha soava. Ou então se ouvia o barulho de
uma grande colher colocando açúcar num saco de papel e o
ruído da balança.
– Sua irmã não melhorou?
– Acreditamos que ela poderá levantar segunda ou
terça-feira. Mas com certeza não virá por um bom tempo.
– Ela vai se casar?
– Não! Ela quer se tornar freira. É uma ideia que
acalenta há bastante tempo.
Como Maigret percebeu que alguma coisa acontecia na
loja? Os ruídos eram os mesmos, talvez menos fortes. No
instante seguinte, no entanto, a sra. Peeters falava francês.
– O senhor os encontrará no salão...
Portas abertas e fechadas. O inspetor Machère parava à
porta, muito animado, fazendo um esforço para se manter
calmo, olhando para o comissário sentado à mesa na frente
do copo de genebra.
– O que foi, Machère?
– O... Eu gostaria de falar com o senhor em particular.
– Sobre?
– O...
Ele hesitava em falar, fazia sinais de cumplicidade que
todos entendiam.
– Não se incomode.
– É que o marinheiro...
– Ele voltou?
– Não... Ele...
– Confessou algo?
Machère estava num suplício. Vinha para dar um
comunicado que considerava da maior importância, e que
queria que permanecesse secreto, e o obrigavam a falar na
frente de três pessoas!
– Ele... Encontraram seu quepe e seu casaco...
– O velho ou o novo?
– Não estou entendendo.
– Seu casaco de domingo, de tecido azul, foi
encontrado?
– De tecido azul, sim... Na margem...
Todos se calavam. Anna, que estava em pé, olhava para
o inspetor sem que um músculo de seu rosto estremecesse.
Joseph Peeters acariciava as mãos com nervosismo.
– Continue!
– Ele deve ter se jogado no Meuse... Seu quepe foi
recuperado perto da barcaça que estava atrás da dele... A
barcaça o parou. O senhor entende?
– Depois?
– Quanto ao casaco, estava na margem... E havia esse
papel espetado nele...
Ele o tirou da carteira com cuidado. Era um pedaço de
papel sem forma, molhado pela chuva. Mal se podia ler: Sou
um crápula. Prefiro o rio...
Maigret lera em voz baixa. Joseph Peeters perguntou
com voz agitada:
– Não estou entendendo... O que isso quer dizer?
Machère continuava em pé, desconcertado, pouco à
vontade. Marguerite olhava para cada um sucessivamente,
com seus grandes olhos inexpressivos.
– Acho que o senhor é quem... – começou o inspetor.
Maigret se levantou, cordial, com um sorriso educado
nos lábios. Ele se dirigia mais diretamente a Anna.
– Viu?... Eu estava falando um pouco antes do martelo...
– Cale-se! – suplicou Marguerite.
– O que vocês farão amanhã, depois do almoço?
– Como todos os domingos... Ficamos em família... Só
faltará Maria...
– Vocês permitem que eu me apresente? Talvez haja um
pouco daquela excelente torta de arroz?
Maigret se dirigiu para o corredor, onde vestiu o
sobretudo que a chuva tornava duas vezes mais pesado.
– Desculpem-me... – balbuciou Machère. – Foi o
comissário quem quis...
– Venha!
Na loja, a sra. Peeters subira num banquinho para pegar,
na prateleira mais alta, um pacote de amido. Uma mulher
de marinheiro esperava, taciturna, com uma sacola de
compras na mão.
CAPÍTULO VIII

A VISITA ÀS URSULINAS

HAVIA UM PEQUENO GRUPO perto do local onde o quepe


fora recuperado, mas o comissário, conduzindo Machère,
caminhou em direção à ponte.
– O senhor não tinha me falado sobre o martelo... Fica
claro que...
– O que você fez o dia todo?
O inspetor fez a cara de um aluno repreendido.
– Fui a Namur... Eu queria ter certeza de que a lesão de
Maria Peeters...
– Então?
– Não quiseram me deixar entrar... Caí num convento de
religiosas que me olhavam como uma mosca na sopa...
– Você insistiu?
– Cheguei a ameaçar.
Maigret reprimiu um sorriso. Perto da ponte, ele entrou
numa oficina que fazia locação de veículos e pediu um com
motorista para ir a Namur.
Cinquenta quilômetros para ir e cinquenta para voltar,
seguindo o Meuse.
– Você vem comigo?
– O senhor quer...? Estou dizendo que não o receberão...
Sem contar que agora que encontramos o martelo...
– Bom! Faça outra coisa. Pegue um carro também. Passe
em todas as pequenas estações a um raio de vinte
quilômetros. Assegure-se de que o marinheiro não pegou
um trem...
O carro de Maigret foi ligado. Bem escorado no assento,
o comissário fumou beatificamente seu cachimbo, vendo da
paisagem apenas algumas luzes que cintilavam dos dois
lados do automóvel.
Ele sabia que Maria Peeters era regente numa escola
mantida pelas ursulinas. Ele também sabia que essas eram,
na hierarquia religiosa, o equivalente dos jesuítas, ou seja,
que constituíam de certa forma a aristocracia docente. A
escola de Namur devia ser frequentada por toda a elite da
província.
Assim, era divertido imaginar o inspetor Machère
discutindo com as religiosas, insistindo para entrar e
sobretudo ameaçando!
“Esqueci de perguntar como ele as chamou...” pensou
Maigret. “Deve ter dito: senhoras... Ou ainda: minha querida
irmã...”
Maigret era alto, pesado, de ombros largos, traços
cheios. No entanto, quando apertou a campainha do
convento, numa pequena rua provincial onde a grama
crescia por entre os paralelepípedos, a religiosa conversa
que abriu a porta não se assustou nem um pouco.
– Eu gostaria de falar com a Madre Reverenda – disse
ele.
– Ela está na capela. Mas, assim que a benção
terminar...
Ele foi introduzido numa sala de espera perto da qual a
sala de jantar dos Peeters não passava de sujeira e
desordem. Aqui era de fato possível se ver no parquê como
num espelho. Sentia-se que até os menores objetos eram
imutáveis, que as cadeiras ocupavam cada uma a mesma
posição há anos, que o pêndulo da lareira nunca parara,
nunca adiantara ou atrasara.
Nos corredores de ladrilhos suntuosos, ouviam-se passos
deslizantes, às vezes cochichos. Por fim, muito suave,
longínqua, uma melodia de órgão.
Os funcionários do Quai des Orfèvres sem dúvida teriam
ficado espantados de ver um Maigret tão à vontade. Quando
a Superiora entrou, ele a cumprimentou de modo discreto,
chamando-a pelo nome que se deve às ursulinas, ou seja,
dizendo:
– Minha mãe...
Ela esperava, com as mãos para dentro do hábito.
– Peço desculpas por incomodar, mas eu gostaria de lhe
pedir autorização para visitar uma de suas alunas... Sei que
a regra proíbe... No entanto, como se trata da vida, ou pelo
menos da liberdade de alguém...
– O senhor também é da polícia?
– Vocês receberam a visita de um inspetor, acredito?
– Um senhor se dizendo da polícia, que fez barulho e foi
embora gritando que ouviríamos notícias suas...
Maigret pediu desculpas por ele, continuou calmo,
educado, deferente. Pronunciou algumas frases oportunas,
e um pouco depois uma religiosa conversa era encarregada
de avisar Maria Peeters que a requisitavam.
– Uma jovem de grande mérito, acredito, minha mãe?
– Só posso falar o melhor dela. No início, hesitamos em
aceitá-la, o senhor capelão e eu, devido ao comércio de
seus pais... Não a mercearia... Mas o fato de servirem
bebidas... Passamos por cima disso e somente podemos nos
congratular... Ontem, descendo uma escada, ela torceu o
tornozelo e desde então está na cama, muito abatida, pois
sabe que isso nos complica um pouco...
A religiosa conversa voltava. Maigret a seguiu por
intermináveis corredores. Encontrou vários grupos de alunas
trajadas todas da mesma maneira: vestido preto com
pequenas pregas e fita de seda azul em volta do pescoço.
Finalmente, no segundo andar, uma porta se abriu. A
religiosa refletiu se devia ficar ou ir embora.
– Deixe-nos, irmã...
Um quarto pequeno e simples. Paredes pintadas a óleo,
ornadas com litografias religiosas com moldura preta e um
grande crucifixo.
Uma cama de ferro. Uma forma magra quase
imperceptível sob a colcha.
Maigret não via um rosto. Ninguém falava. Depois de
fechar a porta, ele ficou um bom tempo imóvel,
constrangido com o chapéu molhado, o grosso casaco.
Por fim, ouviu um soluço abafado. Mas Maria Peeters
continuava escondendo a cabeça embaixo das cobertas,
virada para a parede.
– Acalme-se... – ele murmurou maquinalmente. – Sua
irmã Anna deve ter-lhe dito que sou antes um amigo...
Mas aquilo não acalmava a jovem. Pelo contrário! Seu
corpo agora era agitado por verdadeiros espasmos
nervosos.
– O que o médico disse?... A senhorita precisa ficar de
cama por muito tempo?
Era incômodo falar daquela maneira com uma pessoa
invisível. Sobretudo porque Maigret nem a conhecia!
Os soluços se espaçavam. Ela devia estar retomando o
sangue-frio. Ela fungava e sua mão procurou um lenço
embaixo do travesseiro.
– Por que a senhorita está tão nervosa? A Madre
Reverenda acaba de me dizer todas as coisas boas que
pensa da senhorita!
– Deixe-me! – suplicou ela.
Naquele exato momento, alguém batia à porta, a Madre
Reverenda entrava, como se estivesse esperado o momento
de intervir.
– Desculpe! Sei que nossa pobre Maria é muito
sensível...
– Ela sempre foi assim?
– Sua natureza é delicada... Quando soube que sua lesão
a imobilizaria e que ficaria no mínimo uma semana sem
poder dar aulas, teve uma crise de desespero... Mostre o
rosto, Maria...
A cabeça da jovem fez grandes sinais de negação.
– Sabemos, claro – continuou a Superiora –, quais são as
acusações feitas contra sua família. Mandei celebrar três
missas para que a verdade não demore a aparecer... Acabo
de rezar por sua saúde, Maria...
Ela enfim mostrou o rosto. Um pequeno rosto, magro,
pálido, com manchas vermelhas produzidas pela febre e
pelas lágrimas.
Ela não se parecia nem um pouco com Anna, mas sim
com a mãe, cujos traços finos herdara, mas infelizmente tão
irregulares que não podia ser considerada bonita. O nariz
era comprido demais, pontudo, a boca grande e fina.
– Desculpem! – disse ela, tapando os olhos com o lenço.
– Estou nervosa demais... E a ideia de que estou deitada
aqui enquanto... O senhor é o comissário Maigret?... O
senhor viu meu irmão?
– Despedi-me dele há menos de uma hora. Ele estava
em sua casa, com Anna e sua prima Marguerite...
– Como ele está?
– Muito calmo... Confiante...
Ela recomeçaria a chorar? A Madre Reverenda
encorajava Maigret com o olhar. Ela estava feliz de vê-lo
falar daquela maneira, uma autoridade que impressionaria
favoravelmente a doente.
– Anna me anunciou que a senhorita estava decidida a
fazer seus votos...
Maria chorava de novo. Nem tentava escondê-lo. Não
tinha afetação nenhuma e mostrava seu rosto brilhante,
inchado.
– É uma decisão que esperávamos há muito tempo –
murmurou a Superiora. – Maria pertence mais à religião do
que ao mundo...
A crise recomeçava, os soluços brotavam, dolorosos, em
sua garganta apertada. Seu corpo continuava se agitando,
as mãos se agarravam à colcha.
– O senhor vê que fiz muito bem, antes, em não deixar
aquele outro senhor subir! – dizia baixinho a religiosa.
Maigret continuava em pé, com seu sobretudo que o
deixava maior ainda. Ele olhava para aquela pequena cama,
aquela jovem sobressaltada.
– O médico a viu?
– Sim... Ele disse que a lesão não é nada... O mais grave
é a crise nervosa que se desencadeou em seguida... O
senhor quer que a deixemos?... Acalme-se, Maria... Vou lhe
enviar a mãe Julienne, que ficará a seu lado...
A última imagem colhida por Maigret foi a da brancura
da cama, dos cabelos espalhados no travesseiro e de um
olho que o fixava enquanto ele recuava para a porta.
No corredor, a Superiora falava baixo, deslizando pelo
assoalho encerado.
– Ela nunca teve boa saúde... Esse escândalo abalou
seus nervos, e com certeza é à agitação que devemos
atribuir a queda que ela teve na escada... Tem vergonha
pelo irmão, pela família... Ela me disse várias vezes que
depois disso nossa Ordem não a admitiria mais em seu
círculo... Ficou prostrada por horas a fio, olhando para o
teto, sem comer nada... Depois, sem motivo aparente, teve
uma crise... Demos injeções para reanimá-la...
Eles tinham chegado ao térreo.
– Posso perguntar o que pensa sobre esse caso, senhor
comissário?
– A senhora pode, mas me custa lhe responder... Com
toda a franqueza, afirmo que não sei nada... Somente
amanhã...
– O senhor acredita que amanhã...?
– Só me resta, minha mãe, agradecer e me desculpar
pela visita... Talvez a senhora me permita telefonar para
saber notícias?
Ele finalmente estava na rua. Respirava o ar fresco,
saturado de chuva. Voltava para o carro parado na beira da
calçada.
– Para Givet!
Ele encheu voluptuosamente o cachimbo, quase se
deitou no fundo do carro. Numa curva, perto de Dinant, viu
uma placa: Grutas de Rochefort...
Não teve tempo de ler o número de quilômetros. Apenas
mergulhou o olhar na escuridão de uma estrada transversal.
E pensou num belo domingo, um trem repleto de turistas,
dois casais: Joseph Peeters e Germaine Piedbœuf... E Anna e
Gérard...
Devia estar quente... Na volta, os viajantes sem dúvida
vinham carregados de flores do campo...
Anna sentada, magoada, agitada, desconcertada, talvez
espiando com o canto dos olhos o homem que acabava de
transformar todo seu ser?
E Gérard, muito alegre, animado, dizendo coisas
engraçadas, incapaz de entender o que havia de grave,
quase definitivo, nos acontecimentos da tarde...
Teria voltado a vê-la? Teria a aventura continuado?
– Não! – respondia Maigret para si mesmo. – Anna
entendeu! Não criou ilusões sobre o companheiro! A partir
do dia seguinte, ela o evitou...
Ele a imaginava guardando seu segredo, temendo talvez
por meses a fio as consequências daquele encontro,
sentindo pelos homens, todos os homens, um ódio feroz.
– Conduzo o senhor para o hotel?
Já em Givet, a fronteira belga e o funcionário da
alfândega, de guarda com seu uniforme cáqui, a fronteira
francesa, as barcaças, a casa dos flamengos, o cais
enlameado.
Maigret se espantou ao sentir um objeto pesado em seu
bolso. Mergulhou a mão e encontrou o martelo que tinha
esquecido.
O inspetor Machère, que ouvira o carro parando, estava
na porta do café e observava Maigret pagar o motorista.
– Deixaram o senhor entrar?
– Claro!
– Isso me espanta! Porque, no fundo da alma, eu estava
convencido de que ela não estava lá...
– Onde ela estaria?
– Não sei... Não entendo mais nada... Sobretudo depois
do martelo... O senhor sabe quem veio falar comigo?
– O marinheiro?
Maigret, que entrara na sala, pedia uma cerveja,
sentava num canto perto da janela.
– Quase!... Enfim, dá mais ou menos na mesma... Foi
Gérard Piedbœuf... Eu tinha passado pelas estações de
carro... E não tinha encontrado nada...
– E ele revelou o esconderijo do nosso homem?
– Ele me disse, em todo caso, que o tinham visto pegar o
trem das quatro e quinze na estação de Givet... É o trem
que vai para Bruxelas...
– Quem o viu?
– Um amigo de Gérard... Ele me propôs chamá-lo...
– Coloco dois pratos? – perguntou o proprietário.
– Sim... Não... Dá na mesma...
Maigret bebia sua cerveja com avidez.
– Só isso?
– O senhor acha que não é o suficiente?... Se ele foi de
fato visto na estação, é porque não está morto... E, acima
de tudo, porque está fugindo... Se ele está fugindo...
– Claro!
– O senhor pensa o mesmo que eu!
– Eu não penso absolutamente nada, Machère! Estou
com calor! Estou com frio! Acho que peguei um bom
resfriado... E estou me apalpando para saber se não irei
deitar sem comer... Mais uma cerveja, garçom!... Ou melhor,
não! Um grogue... Com bastante rum...
– Ela realmente está com uma lesão?
Maigret não respondeu. Ele estava taciturno. Inclusive se
poderia dizer que estava inquieto.
– Em suma, o juiz de instrução deve ter mandado a você
um mandado de prisão em branco?
– Sim... Mas me aconselhou a ser mais prudente, devido
à mentalidade das cidades pequenas. Ele prefere que eu lhe
telefone antes de fazer algo de definitivo.
– E o que você vai fazer?
– Já enviei um telegrama para a Polícia Judiciária de
Bruxelas, para que prendam o marinheiro ao descer do
trem. Preciso lhe pedir para me entregar o martelo.
Para grande estupor de alguns clientes, o comissário
tirou o objeto do bolso e o colocou sobre o mármore da
mesa.
– Só isso?
– O senhor precisará depor, pois o encontrou.
– Claro que não! Claro que não! O martelo, para todo
mundo, foi você quem encontrou.
Os olhos de Machère brilharam de alegria.
– Muito obrigado. É precioso para o avanço do caso.
– Coloquei dois pratos perto da estufa! – anunciou o
proprietário.
– Obrigado!... Vou me deitar!... Não estou com fome...
Maigret subiu para o quarto, depois de apertar a mão do
colega.
Talvez tivesse pegado um resfriado ao circular nos
últimos dois dias com roupas úmidas nas costas, pois não
levara um traje completo para troca.
Ele se deitou exausto. Durante uma boa meia hora lutou
contra as imagens borradas que lhe passavam pela retina
num ritmo extenuante.
No domingo pela manhã, foi o primeiro a levantar. No
café, só encontrou o garçom que preparava a máquina de
café e enchia a parte superior com o grão moído.
A cidade ainda dormia. A aurora recém se seguia à noite
e as lâmpadas continuavam acesas. No rio, no entanto,
chamados de uma barcaça a outra, amarras sendo atiradas
e um rebocador se posicionando à frente da fila.
Um novo comboio de barcos partia para a Bélgica e para
a Holanda.
Não chovia. Mas o sereno enchia os ombros de gotículas.
Os sinos de uma igreja soavam em algum lugar. Uma luz
numa janela da casa dos flamengos. Depois a porta sendo
aberta. A sra. Peeters voltava a fechá-la com cuidado e saía
a passos rápidos, com um missal forrado de tecido nas
mãos.
Maigret passou toda a manhã na rua, às vezes entrando
num bistrô para tomar um copo de bebida alcoólica e se
reaquecer. Os entendidos diziam que gearia, o que seria
uma catástrofe para as regiões inundadas pela cheia.
Às sete e meia, a sra. Peeters, ao voltar da missa, abriu
as janelas da loja e, na cozinha, acendeu o fogo.
Somente por volta das nove horas Joseph apareceu por
um instante à porta, sem colarinho, sem ter feito a barba
nem lavado o rosto, os cabelos desgrenhados.
Às dez horas, ele saiu para a missa com Anna, que
usava um casaco novo, de tecido bege.
No Café de la Marine, ainda não se sabia se um
rebocador, cuja chegada era aguardada, aceitaria sair no
mesmo dia com um comboio de barcos, tanto que os
marinheiros estavam ali esperando, às vezes saindo para
olhar o rio.
Era perto do meio-dia quando Gérard Piedbœuf saiu de
casa, em roupas festivas, calçando sapatos amarelos,
usando um chapéu de feltro claro e com luvas. Ele passou
bem perto de Maigret. Seu primeiro pensamento deve ter
sido o de não lhe dirigir a palavra, nem mesmo
cumprimentá-lo.
Mas ele não resistiu a seu desejo de bravura, ou de
revelar o fundo de seus pensamentos.
– Eu o incomodo, não é mesmo?... O senhor deve me
detestar!
Ele tinha os olhos abatidos. Desde o ataque do Café de
la Mairie vivia inquieto.
Maigret deu de ombros, virou as costas. Viu a parteira
colocando a criança dentro de um carrinho, e empurrando
esse em direção ao centro da cidade.
Machère não aparecia. Somente um pouco antes da uma
hora Maigret o encontrou, justamente no Café de la Mairie.
Gérard estava em outra mesa, com as duas companheiras e
o amigo da outra noite.
Machère, por sua vez, estava cercado por três homens
que o comissário tinha a impressão de já ter visto.
– O adjunto do prefeito... O comissário de polícia... Seu
secretário... – apresentou o inspetor.
Todos estavam com suas melhores roupas e bebiam
aperitivos de anis. Havia três pires por cabeça. Machère
demonstrava uma segurança fora do normal.
– Eu dizia a esses senhores que a investigação está
quase encerrada... Tudo depende, principalmente agora, da
polícia belga... Estou surpreso de ainda não ter recebido de
Bruxelas um telegrama dizendo que o marinheiro foi preso...
– Os telegramas não são entregues no domingo depois
das onze horas! – afirmou o adjunto do prefeito. – A menos
que o senhor se apresente ao correio... O que podemos lhe
oferecer, senhor comissário?... Sabe que muito se falou no
senhor na região?
– Folgo em saber!
– Quero dizer, se falou mal. Sua atitude foi interpretada
como...
– Uma cerveja, garçom! Bem gelada!
– O senhor bebe cerveja a esta hora?
Marguerite passava pela rua. Sentia-se por seu porte
que ela era a pessoa requintada da cidade, e que sabia que
todos os olhares estavam fixados em sua pessoa.
– O desagradável é que esses casos de costumes... Veja
bem! Há dez anos não havia um em Givet...Da última vez,
um operário polonês...
– Com licença, senhores...
Maigret se precipitou para fora, alcançou Anna Peeters e
o irmão na rua principal, onde caminhavam com a cabeça
erguida, como para enfrentar a desconfiança.
– Tomarei a liberdade de visitá-los esta tarde, conforme
anunciei ontem...
– Por volta de que horas?
– Três e meia... Está bom para vocês?
E voltou sozinho, ranzinza, para o hotel, onde comeu
numa mesa isolada.
– Peça uma ligação para Paris ao telefone.
– Ele não funciona domingo depois das onze horas.
– Que azar!
Enquanto almoçava, leu um jornalzinho local, e uma
manchete o divertiu: O mistério de Givet se adensa.
Para ele, não havia mais mistério algum.
– Traga-me o guisado! – disse ao garçom.
CAPÍTULO IX

EM VOLTA DE UMA POLTRONA DE VIME

DE TODOS OS PEQUENOS RITUAIS familiares dominicais,


aquele que mais chamou a atenção de Maigret foi o fato de
transportarem da cozinha para a sala a poltrona de vime do
velho Peeters.
Durante a semana, o lugar da poltrona e, por
consequência, do velho, era perto do forno. Mesmo quando
havia visitas na sala de jantar, Peeters não aparecia.
Mas havia o lugar dos domingos, perto da janela que
dava para o pátio. O cachimbo de sepiolita, de longo cano
de cerejeira, estava no parapeito da janela, perto de uma
tabaqueira.
Instalado numa poltrona menor, de couro, o dr. Van de
Weert, na frente do fogo de carvão, cruzava suas pernas
gorduchas.
Enquanto lia o relatório do médico-legista belga, ele não
cessava de menear a cabeça, de aprovar, de se espantar,
de fazer pequenos gestos para si mesmo.
Por fim, estendeu o relatório para Maigret. Marguerite,
que estava entre os dois, quis pegá-lo.
– Não! Você não... – interveio Van de Weert.
– Isso sem dúvida interessa mais ao senhor! – disse
Maigret, passando as folhas para Joseph Peeters.
Todos estavam em volta da mesa: Joseph e Marguerite,
Anna e a mãe, que se levantava de vez em quando para
conferir o café.
À moda belga, o doutor bebia um borgonha fumando
charuto, cuja ponta acesa passeava sem parar sob seu
queixo.
Em cima da mesa da cozinha, Maigret vira ao passar
umas seis tortas prontas.
– Um bom relatório, claro... Por exemplo, não diz se...
Se...
Ele olhou para a filha, constrangido.
– O senhor entende o que quero dizer... Não diz se...
– Se houve estupro! – soltou Maigret sem pensar.
E quase caiu na gargalhada ao ver o rosto escandalizado
do doutor, que não imaginava que palavras do tipo
pudessem ser pronunciadas.
– Teria sido interessante saber, pois em casos
semelhantes... Veja bem! Em 1911...
Ele continuou falando, relatando com eufemismos
decentes um caso qualquer. Mas o comissário não o ouvia.
Ele olhava para Joseph Peeters, que lia o documento.
Esse fazia, sem reserva alguma, uma descrição
minuciosa do cadáver de Germaine Piedbœuf tal como
retirado do Meuse.
Joseph estava pálido. Suas narinas eram afiladas, o que
tinha em comum com sua irmã Maria.
Parecia prestes a abandonar a leitura e devolver os
papéis a Maigret. Mas não o fez. Seguiu em frente. Como ele
virava a página, Anna, que lia por sobre seu ombro, o
interrompeu:
– Espere...
Ela ainda tinha três linhas para ler. Depois os dois
começaram juntos a página seguinte, que começava com:
...tamanha era a abertura da caixa craniana que foi
impossível de encontrar sequer uma parte do cérebro...
– O senhor quer pegar seu copo, comissário? Vou colocar
a mesa...
A sra. Peeters colocava o cinzeiro, os charutos e a
garrafa de genebra sobre a lareira, estendia na mesa uma
toalha bordada à mão.
Seus filhos continuavam lendo. Marguerite olhava para
eles com curiosidade. Já o doutor percebera que não o
ouviam e fumava em silêncio.
Ao fim da segunda página, Joseph Peeters estava lívido,
com um buraco escuro em cada lado do nariz, suor nas
têmporas. Ele esqueceu de virar a página e Anna precisou
fazê-lo, continuando sozinha até o fim da leitura.
Marguerite aproveitou para se levantar e tocar o ombro
do jovem.
– Meu pobre Joseph!... Você não deveria ter... Ouça: vá
tomar um pouco de ar...
Maigret aproveitou.
– Boa ideia! Também preciso esticar as pernas...
Um pouco depois, os dois estavam no cais, com a
cabeça descoberta. Não chovia mais. Alguns pescadores
com anzol aproveitavam os mínimos espaços livres entre as
barcaças. Ouvia-se, do outro lado da ponte, o som
ininterrupto de um cinema.
Nervosamente, Peeters acendeu um cigarro, com o olhar
perdido na superfície fugidia da água.
– Aquilo o transtornou, não é mesmo?... Desculpe minha
pergunta... E agora, você ainda pensa em casar com
Marguerite?
O silêncio durou bastante. Joseph evitava se virar para
Maigret, que só o via de perfil. Por fim, ele olhou para a
porta da loja, decorada com anúncios adesivos, depois para
a ponte, e então para o Meuse.
– Não sei...
– No entanto, você a amava...
– Por que o senhor me fez ler aquele relatório?
E ele passou a mão na testa. Retirou-a molhada, apesar
do ar frio.
– Germaine era muito menos bonita?
– Cale-se... Não sei... Ouvi tantas vezes dizerem que
Marguerite é bonita, que é fina, inteligente, bem-educada...
– E agora?
– Não sei...
Ele não estava com vontade de falar. Articulava as
palavras a contragosto, porque lhe era impossível se calar
de todo. Rasgara o papel do cigarro.
– Ela aceitou casar, apesar de seu filho?
– Ela quer adotá-lo.
Seus traços não se mexiam. Mas se sentia que estava
nauseado, ou cansado. Ele observava Maigret com o canto
dos olhos, com medo de vê-lo fazer mais perguntas.
– Em sua casa, todos parecem acreditar que o
casamento acontecerá logo... Marguerite é sua amante?
Ele grunhiu, bem baixinho:
– Não...
– Ela não quis?
– Não foi ela... Fui eu... Nem pensei nisso... O senhor não
entenderia...
E, de repente, arrebatado:
– Precisarei casar com ela! É necessário! Ponto final!
Os dois seguiam não se encarando. Maigret, que estava
sem sobretudo, começava a sentir frio.
Naquele momento, a porta da loja se abriu. Ouviu-se a
campainha que já se tornara familiar ao comissário. Depois
a voz de Marguerite, doce demais, envolvente demais:
– Joseph!... O que você está fazendo?
O olhar de Peeters cruzou com o de Maigret. Como se
ele repetisse:
– Pronto!
Enquanto isso, Marguerite continuava:
– Você vai pegar um resfriado... Todos estão à mesa... O
que você tem? Está pálido...
Uma pausa, para olhar a esquina da pequena rua onde
se erguia, imperceptível da mercearia, a casa dos Piedbœuf.
Anna cortava as tortas.

*
A sra. Peeters falava pouco, como se percebesse sua
inferioridade. Por outro lado, assim que um de seus filhos
falava, ela aprovava com sorrisos ou movimentos de
cabeça.
– Desculpe minha indiscrição, senhor comissário... Talvez
eu diga uma besteira...
Ela colocava no prato de Maigret uma grande fatia de
torta de arroz.
– Ouvi dizer que tinham encontrado objetos a bordo do
Étoile Polaire e que o marinheiro tinha fugido... Ele veio aqui
várias vezes... Devo tê-lo colocado na rua, primeiro porque
ele quer comprar tudo fiado, depois porque está bêbado da
manhã à noite... Mas não é isso que eu queria dizer... Se ele
está fugindo, deve ser culpado... E, nesse caso, a
investigação está encerrada, não é mesmo?
Anna comia com indiferença, sem olhar para Maigret.
Marguerite dizia a Joseph:
– Um pedacinho... Por favor!... Faça isso por mim...
Maigret, com a boca cheia, se dirigia a sra. Peeters:
– Eu poderia lhe responder que sim, se estivesse à frente
da investigação, mas não é o caso... Não esqueça que foi
sua filha quem me pediu para vir até aqui para tentar
provar a inocência de vocês...
Van de Weert se agitava na cadeira, como alguém que
quer falar mas que não deixam tomar a palavra:
– Mas enfim...
– O inspetor Machère está à frente da situação e...
– Mas enfim, comissário, existe, no entanto, uma
hierarquia... Ele não passa de um inspetor e o senhor...
– Aqui, não sou nada... Veja bem! Agora mesmo, eu
gostaria de interrogar um de vocês, que teria o direito de
não responder... Subi a bordo da barcaça porque o
marinheiro permitiu... O acaso me fez descobrir a arma do
crime, bem como o pequeno casaco usado pela vítima...
– Mas então...
– Então nada! Tentarão prender o sujeito. A essa hora,
talvez já o tenham prendido! Mas ele pode se defender. Por
exemplo, pode dizer que encontrou a roupa e o martelo e
que os guardou sem saber o que representavam... Também
pode dizer que fugiu de medo... Ele já teve problemas com
a Justiça... Ele sabe que acreditarão menos nele do que em
outras pessoas...
– Isso não se sustenta!
– Uma acusação quase nunca se sustenta, não mais do
que uma defesa... Outros poderiam ser acusados... O senhor
sabe o que descobri essa tarde?... Que Gérard, o irmão de
Germaine, não sabe há um mês como sair da situação difícil
em que se colocou... Ele tem dívidas em toda parte... Pior
do que isso! Condenaram-no por pegar dinheiro do caixa e,
até o pagamento total da quantia, metade de seu salário é
descontada todo mês...
– É verdade?
– Daí a dizer que ele fez sua irmã desaparecer para
obter uma indenização...
– Seria horrível! – suspirou a sra. Peeters, que não
conseguia comer com aquela conversa.
– O senhor o conheceu bastante bem! – disse Maigret se
virando para Joseph.
– Há muito tempo, convivíamos um pouco...
– Antes do nascimento da criança, não é mesmo?...
Vocês fizeram várias excursões juntos... Se não me engano,
sua irmã inclusive os acompanhou às grutas de...
– É verdade? – perguntou espantada a sra. Peeters,
virando-se para a filha. – Eu não sabia disso.
– Não me lembro! – disse Anna, que não parou de comer
e cujo olhar estava fixo no comissário.
– Aliás, não é importante... Mas o que eu estava
dizendo?... Pode me dar um pedaço de torta, senhorita
Anna?... Não, de frutas não... Permaneço fiel a sua
magnífica torta de arroz... Foi a senhorita quem fez?
– Foi! – apressou-se em afirmar a mãe.
De repente, fez-se um silêncio, pois Maigret se calava e
ninguém ousava tomar a palavra. Ouvia-se o barulho da
mastigação. O comissário deixou cair o garfo e precisou se
abaixar para pegá-lo. Com o movimento, viu que o pé de
Marguerite, calçado com delicadeza, estava colocado em
cima do pé de Joseph.
– O inspetor Machère é um rapaz desembaraçado!
– Ele não parece ser muito inteligente! – articulou Anna
devagar.
Maigret lhe sorriu com cumplicidade.
– Tão poucas pessoas parecem inteligentes! Eu, por
exemplo, assim que me encontro na presença de um
possível culpado, procuro me passar por imbecil...
Era a primeira vez que Maigret se entregava ao que
podia ser visto como confidências.
– O crânio não pode mudar! – se apressou em declarar
com educação o dr. Van de Weert. – Para alguém que
conhece um pouco de frenologia... Veja bem! Tenho certeza
de que o senhor é terrivelmente irascível...
O lanche finalmente chegava ao fim. O comissário era o
primeiro a empurrar a cadeira, pegando o cachimbo e
começando a enchê-lo.
– Sabe o que deveria fazer, senhorita Marguerite? Ir para
o piano e tocar a “Canção de Solveig”...
Ela hesitou, olhou Joseph para lhe pedir conselho,
enquanto a sra. Peeters murmurava:
– Ela toca tão bem!... E ela canta!
– Só lamento uma coisa: que a lesão da srta. Maria a
impeça de estar conosco... Para meu último dia...
Anna virou a cabeça com rapidez em sua direção.
– O senhor vai embora logo?
– Esta noite... Não vivo de rendas... Além disso, sou
casado e minha mulher começa a se impacientar...
– E o inspetor Machère?
– Não sei o que ele decidirá... Imagino...
A campainha da loja tocava. Ouviram-se passos
apressados, depois batidas na porta.
Era o próprio Machère, muito agitado.
– O comissário está aqui?
Ele não o vira de imediato, surpreso de chegar em plena
reunião de família.
– O que houve?
– Preciso falar com o senhor.
– Vocês me dão licença?
E ele acompanhou o inspetor até a loja, onde se apoiou
no balcão.

– Como tenho horror dessa gente!


Machère, crispado, apontava com o queixo a porta da
sala de jantar.
– O cheiro do café e da torta deles já me...
– É isso que você queria me dizer?
– Não! Tenho notícias de Bruxelas... O trem chegou na
hora prevista...
– Mas o marinheiro não estava mais lá!
– O senhor já sabia?
– Imaginei! Você o tomou por um imbecil? Eu não! Ele
deve ter descido em alguma pequena estação, deve ter
pegado outro trem, depois mais outro... Essa noite, talvez
chegue à Alemanha, talvez à Amsterdã, talvez até a Paris...
Mas Machère olhava para ele rindo.
– Como se ele tivesse dinheiro!
– O que você quer dizer?
– Que fiz minha investigação. O sujeito se chama Cassin.
Ontem pela manhã, não podia pagar sua dívida no bistrô e
eles se recusaram a lhe servir bebida... Mais do que isso!
Ele devia dinheiro a todo mundo... A ponto de os
comerciantes terem decidido não deixar seu barco partir...
Maigret olhava para o inspetor com perfeita indiferença.
– Então?
– Não fiquei nisso. E foi difícil, porque hoje é domingo e
quase ninguém está em casa... Fui até o cinema para
interrogar algumas pessoas...
Maigret, fumando seu cachimbo, se divertia colocando
pesos nos dois lados da balança, tentando mantê-la em
equilíbrio.
– Descobri que Gérard Piedbœuf pegou dois mil francos
emprestados, ontem, dando como garantia a assinatura do
pai, pois ninguém queria a sua...
– Eles se encontraram?
– Justamente! Um funcionário da alfândega viu Gérard
Piedbœuf e Cassin caminhando ao longo da margem, juntos,
do lado da alfândega belga...
– Que horas eram?
– Mais ou menos duas horas...
– Perfeito!
– O que é perfeito? Se Piedbœuf deu dinheiro ao
marinheiro...
– Cuidado com as conclusões, Machère! É tão perigoso
querer tirar conclusões...
– Mesmo assim, o sujeito, que não tinha dinheiro pela
manhã, partiu de trem à tarde, e tinha dinheiro no bolso. Fui
até a estação. Ele pagou com uma nota de mil francos...
Parece que havia outras...
– Ou uma outra?
– Talvez outras, talvez uma outra... O que o senhor faria,
no meu lugar?
– Eu?
– Sim.
Maigret suspirou, bateu o cachimbo contra o calcanhar
para esvaziá-lo, apontou para a porta da sala de jantar:
– Eu viria tomar um bom copo de genebra... Sobretudo
porque ouviremos uma peça ao piano!
– É tudo o que...
– Vamos! Venha... Você não tem mais nada a fazer na
cidade a essa hora... Onde está Gérard Piedbœuf?
– No cinema Scala, com uma operária da fábrica.
– Aposto que estão num camarote!
Maigret, com um riso silencioso, empurrou o colega na
direção da sala onde a penumbra começava a esfumar os
contornos. Um filete de fumaça subia lentamente da
poltrona de Van de Weert. A sra. Peeters estava ocupada na
cozinha, guardando a louça. Marguerite, ao piano, deixava
os dedos irem e virem com displicência sobre as teclas.
– O senhor quer mesmo que eu toque?
– Quero... Sente-se aqui, Machère...
Joseph estava em pé, com o cotovelo direito sobre a
lareira, o olhar fixo na janela esverdeada.
O inverno pode fugir...
A primavera bem-amada...
Pode passar...
As folhas do outono
E as frutas do verão
Tudo pode passar...
Faltava firmeza à voz. Marguerite fazia um esforço para
ir até o fim. Por duas vezes errou os acordes.
Mas você voltará para mim,
Ó meu belo noivo
Para nunca mais me abandonar...
Anna não estava mais ali, nem estava na cozinha, onde
se ouvia a sra. Peeters ir e vir, fazendo o mínimo de barulho
possível, por respeito à música.
...dei a você meu coração...
Marguerite não podia ver a silhueta lúgubre de Joseph,
que deixara o cigarro apagar.
Agora que a noite caíra, o fogo feito de carvão dava
reflexos púrpura a todos os objetos, principalmente aos pés
envernizados da mesa.
Para grande espanto de Machère, que não ousou se
mexer, Maigret saiu num movimento tão sutil que passou
despercebido. Subiu as escadas sem fazer estalar um único
degrau e se encontrou na frente de duas portas fechadas.
O corredor era de uma escuridão quase completa.
Apenas as maçanetas das portas formavam manchas
leitosas, pois eram de porcelana.
Por fim o comissário colocou o cachimbo aceso no bolso,
girou uma das maçanetas, entrou e fechou a porta atrás de
si.
Anna estava ali. Por causa das cortinas, a peça estava
mais escura do que a sala de jantar. Como uma poeira
cinza, mais opaca em alguns lugares, nos cantos, flutuando
pelo ar.
Anna não se mexia. Será que não ouvira nada?
Ela estava na frente da janela, à contraluz, com o rosto
virado para a paisagem crepuscular do Meuse. Na outra
margem, as lâmpadas tinham sido acesas, lançando raios
cortantes na penumbra.
De costas, Anna parecia chorar. Ela era alta. Parecia
mais vigorosa, mais “estátua” do que nunca.
E seu vestido cinza literalmente se fundia no ambiente.
Uma tábua do assoalho, uma só, gemeu quando Maigret
estava a um passo da jovem, mas isso não a fez estremecer.
Então ele colocou a mão em seu ombro, com uma
suavidade surpreendente, ao mesmo tempo em que
suspirava, como alguém que afinal pode confidenciar:
– Pronto!
Ela se virou, de uma vez só. Estava calma. Nenhuma
ruga viera romper a severa harmonia de seus traços.
Apenas o pescoço inchava um pouco, lentamente, sob
uma misteriosa pressão interna.
As notas do piano chegavam com nitidez, e todos os
versos da “Canção de Solveig” eram ouvidas.
Que Deus ainda queira,
Em sua grande bondade
Proteger você...
Dois olhos claros procuravam os olhos de Maigret,
enquanto os lábios, que quase se abriram num soluço,
assumiam a mesma rigidez do resto do corpo de Anna.
CAPÍTULO X

A “CANÇÃO DE SOLVEIG”

– O QUE O SENHOR ESTÁ fazendo aqui?


Coisa estranha, o tom não era agressivo. Anna olhava
para Maigret com aborrecimento, talvez temor, mas não
com ódio.
– A senhorita ouviu o que eu disse. Estou partindo esta
noite. Acabamos de viver alguns dias numa intimidade
bastante próxima...
Ele olhava à sua volta, para a cama das duas jovens, a
pele de urso branco que servia de tapete, o papel de parede
com pequenas flores rosas, o guarda-roupa com espelho
que só refletia as sombras da noite.
– Eu não quis ir embora sem ter uma última conversa
com a senhorita...
O retângulo da janela como que formava uma tela sobre
a qual a silhueta de Anna se delineava, mais indecisa, à
medida que os minutos passavam. Maigret percebeu um
detalhe que ainda não tinha notado. Uma hora atrás ele não
poderia ter dito como ela estava penteada. Agora ele sabia.
Seus cabelos longos, com uma trança apertada, estavam
presos na cabeça numa grande espiral.
– Anna! – gritou a voz da sra. Peeters no corredor de
baixo.
O piano se calara. Tinham percebido o desaparecimento
dos dois.
– Sim!... Estou aqui...
– Você viu o comissário?
– Sim! Estamos descendo...
Para responder, ela caminhara até a porta. Agora
voltava até seu interlocutor, muito grave, com o olhar de
uma fixidez dramática.
– O que o senhor tem a me dizer?
– A senhorita sabe muito bem!
Ela não virou a cabeça. Continuou a olhar para ele com
intensidade, as mãos juntas sobre a barriga numa pose de
velha.
– O que o senhor vai fazer?
– Já disse: voltar para Paris...
Então, mesmo assim, a voz falhou.
– E eu?
Era a primeira vez que se detectava nela alguma
emoção. Ela própria percebia isso, e, sem dúvida para
ajudar a vencer seu transtorno, caminhou até o interruptor
elétrico, que pressionou.
A lâmpada do abajur de seda amarela iluminava apenas
um círculo de dois metros de diâmetro no assoalho.
– Primeiro preciso lhe fazer uma pergunta! – disse
Maigret. – Quem forneceu o dinheiro? Era preciso agir com
rapidez, não é mesmo? Reunir a quantia em poucos
minutos. O banco estava fechado. A senhorita não deve ter
grandes somas em casa. Vocês não têm telefone...
Tudo era muito lento. O silêncio, em volta deles, era de
uma rara intensidade.
Maigret continuava respirando aquela atmosfera quieta
de pequena burguesia. Adivinhava-se um murmúrio de
vozes no andar de baixo, o dr. Van de Weert estendendo as
curtas pernas na direção da estufa, Joseph e Marguerite se
olhando sem dizer palavra, Machère que devia estar
impaciente e a sra. Peeters pegando algum trabalho de
costura ou ainda enchendo os copos de genebra.
Mas o comissário sempre voltava para as pupilas claras
de Anna, que acabou articulando:
– Foi Marguerite...
– Ela tinha dinheiro em casa?
– Dinheiro e títulos. Ela mesma gerencia a parte da
fortuna de sua mãe que lhe cabe.
E Anna repetiu:
– O que o senhor vai fazer?
No momento em que dizia isso, seus olhos se
umedeceram, mas foi tão rápido que Maigret acreditou ter-
se enganado.
– E a senhorita?
O fato daquela questão sempre voltar provava que eles
tinham medo, ambos, de abordar o principal.
– Como a senhorita atraiu Germaine Piedbœuf para seu
quarto?... Espere! Não responda ainda... Ela veio por
vontade própria naquela noite, para pedir notícias de Joseph
e exigir a pensão da criança... Sua mãe a recebeu... A
senhorita também entrou na loja e... sabia que mataria?
– Sim!
Mais emoção, pânico. Uma voz clara.
– Desde quando?
– Mais ou menos um mês.
Maigret se sentou na beira da cama, a cama das duas
jovens, de Anna e Maria, passou a mão na testa olhando
para o papel de parede que servia de pano de fundo para
sua adversária.
Naquele momento, ela parecia orgulhosa de seu ato.
Reivindicava toda a responsabilidade por ele. Proclamava
sua premeditação.
– A senhorita ama tanto assim seu irmão?
Ele sabia. E não era apenas o caso de Anna. Aquilo se
deveria ao fato do velho Peeters há muito ter deixado de
contar na família? As três mulheres, em todo caso, a mãe e
as duas irmãs, tinham pelo jovem a mesma adoração que,
em Anna, quase evocava pensamentos ambíguos.
Ele não era bonito. Era magro, e seus traços, irregulares.
Sua silhueta longilínea, seu nariz grande, seus olhos de
pupilas cansadas exalavam tristeza.
Mas ele não deixava de ser um deus! E era como deus
também que Marguerite o amava!
Como num sugestionamento coletivo, era possível de se
imaginar as duas irmãs, a mãe e a prima passando as
tardes falando dele...
– Eu não queria que ele se matasse!
De repente, Maigret quase se irritou. Levantou-se num
pulo, percorreu o quarto de um lado a outro.
– Ele disse isso?
– Se precisasse casar com Germaine, ele teria se matado
na noite de núpcias...
Ele não riu, mas encolheu os ombros com força.
Lembrava das confidências de Joseph na outra noite! Joseph
nem sabia mais quem amava! Joseph que tinha quase tanto
medo de Marguerite quanto de Germaine Piedbœuf!
Mas, para agradar as irmãs, para não perder sua
admiração, ele se dera ares românticos.
– Sua vida estava dilacerada...
Claro! Tudo aquilo combinava muito bem com a “Canção
de Solveig”!
Mas você voltará...
Ó meu belo noivo...
Todos tinham bebido dali! Eles tinham se intoxicado com
música, poesias e confidências.
O noivo era belo, no entanto, com suas roupas
malcortadas e seus olhos de míope!
– A senhorita contou seu plano a alguém?
– A ninguém!
– Nem mesmo a ele?
– Muito menos a ele!
– E a senhorita estava com o martelo no quarto há um
mês? Espere! Estou começando a entender!
Ele também começava a respirar com força, pois se
deixava levar pelo que havia de trágico e mesquinho no
drama.
Mal ousava olhar para Anna, que não se mexia.
– A senhorita não poderia ser pega, não é mesmo? Caso
contrário, Joseph não ousaria casar com Marguerite! A
senhorita pensou em todas as armas possíveis! Um revólver
faz barulho demais! Como Germaine nunca comia aqui, não
poderia ser veneno... Se suas mãos fossem fortes o
suficiente, a senhorita com certeza a teria estrangulado...
– Pensei nisso.
– Cale-se, por favor!... A senhorita foi buscar um martelo
em algum canteiro de obras, pois não é estúpida o
suficiente para pegar uma ferramenta da casa... Sob que
pretexto Germaine foi convencida a segui-la?
Ela recitou com indiferença:
– Ela tinha chorado na loja... Era uma mulher que
sempre chorava... Minha mãe tinha dado a ela cinquenta
francos de sua pensão... Saí com ela... Prometi dar o resto...
– E vocês duas contornaram a casa na escuridão...
Entraram pela porta de trás e subiram ao primeiro andar...
Ele olhou para a porta, grunhiu numa voz firme:
– A senhorita abriu a porta... Fez sua companheira
passar na frente... O martelo estava pronto...
– Não!
– O que, não?
– Não a golpeei na hora... Talvez eu não tivesse coragem
para fazer isso... Não sei... Mas então ela disse, olhando
para a cama: “É aqui que meu irmão vem se encontrar com
você?... Vocês têm sorte: sabem evitar os filhos!...”.
Apenas um detalhe estúpido, extremamente prosaico.
– Quantos golpes?
– Dois... Ela caiu imediatamente... Empurrei-a para baixo
da cama...
– E, no andar de baixo, a senhorita se encontrou com
sua mãe, sua irmã Maria, bem como com sua prima
Marguerite, que acabava de chegar...
– Minha mãe estava na cozinha com meu pai, ocupada
moendo o café para a manhã seguinte...
– Então! Anna! – gritou de novo a voz da sra. Peeters. –
O inspetor quer ir embora...
Foi Maigret quem, debruçado no corrimão, respondeu:
– Que ele espere!
E chaveou a porta.
– A senhorita contou para sua irmã e Marguerite?
– Não! Mas eu sabia que Joseph viria. Eu não seria capaz
de fazer sozinha o que deveria ser feito. Além disso, eu não
queria que meu irmão fosse visto na casa. Disse para Maria
ir esperá-lo no cais, para que ele não se mostrasse e
deixasse a moto o mais longe possível...
– Maria ficou surpresa?
– Ficou com medo. Ela não entendia. Mas sentiu que
devia obedecer... Marguerite estava ao piano. Pedi que
tocasse e cantasse... Pois eu sabia que faríamos barulho, lá
em cima...
– E foi a senhorita quem teve a ideia do reservatório no
telhado!
Ele acendeu o cachimbo, que tinha enchido
maquinalmente.
– Joseph veio encontrá-la no quarto. O que ele disse ao
ver...?
– Nada! Ele não entendia e me olhava apavorado! Quase
não foi capaz de me ajudar...
– A levar o corpo pela portinhola e arrastá-lo pela cornija
até o reservatório galvanizado!
Grandes gotas de suor escorriam da testa do comissário,
que resmungou para si mesmo:
– Formidável!
Ela fingiu não ouvir.
– Se eu não tivesse matado aquela mulher, Joseph é
quem estaria morto...
– Quando a senhorita disse a verdade para Maria?
– Nunca!... Ela não ousou perguntar... Quando ficaram
sabendo do desaparecimento de Germaine, ela suspeitou de
algo... Desde então está doente...
– E Marguerite?
– Se ela tem suspeitas, prefere não saber... O senhor
entende?
Como entendia! E a sra. Peeters, que continuava indo e
vindo pela casa sem suspeitar de nada, indignada com as
acusações do povo de Givet!
O pai Peeters, por sua vez, se contentava em fumar
cachimbos na poltrona de vime, onde adormecia duas ou
três vezes por dia...
Joseph se mostrava o mínimo possível, voltava para
Nancy, deixava para a irmã o cuidado de se defender.
E Maria estava aflita, passava os dias no convento das
ursulinas com a angústia de ficar sabendo, ao voltar à noite,
que tudo fora descoberto.
– Por que a senhorita retirou o corpo do reservatório?
– Ele teria começado a feder... Esperei três dias... No
sábado, quando Joseph voltou, o transportamos juntos até o
Meuse.
Ela também tinha gotas de suor, mas não na testa:
acima do lábio superior, exatamente onde a pele tinha uma
leve penugem.
– Quando vi que o inspetor desconfiava da gente e fazia
sua investigação com furor, pensei que a melhor maneira de
fazer as pessoas calarem era eu mesma procurar a polícia...
Se não tivessem encontrado o corpo...
– O caso teria sido arquivado! – grunhiu ele.
E acrescentou, recomeçando a caminhar:
– Mas havia o marinheiro, que vira o corpo ser jogado na
água e que recuperara o martelo e o casaco...
Seu cinismo não era maior do que o dos bandidos
profissionais? Ele não dizia nada à polícia! Ou melhor,
mentia! Dava a entender que sabia muito mais do que
queria confessar!
Para Gérard Piedbœuf, ele ia dizer que podia fazer com
que os Peeters fossem condenados e, como preço do
testemunho, recebia dois mil francos.
Mas não testemunhava. Dirigia-se a Anna. Também
propunha a ela um acordo.
Se ela não lhe desse nada, ele falaria. Se ela pagasse
uma grande quantia em dinheiro, ele deixaria o país,
fazendo com que também pesassem sobre seus ombros as
suspeitas, desviando-as da casa dos flamengos!
Fora Marguerite quem pagara! Era preciso agir com
rapidez! Maigret já encontrara o martelo! Anna não podia
sair da mercearia sem chamar atenção! Ela enviava um
bilhete ao marinheiro através da prima.
Essa voltava um pouco depois.
– O que está acontecendo...? Por que você...?
– Silêncio!... Joseph logo vai chegar... Vocês se casarão
em breve...
E a etérea Marguerite não ousava perguntar mais.
No sábado à noite, reinava na casa uma atmosfera de
alívio. O perigo fora conjurado. O marinheiro estava
foragido! Bastaria agora que não fosse pego!
– Como a senhorita temia o nervosismo de sua irmã
Maria – grunhiu Maigret –, aconselhou-a a ficar em Namur, a
se declarar doente ou a fingir uma lesão...
Ele sufocava. Ouviam o piano novamente, mas dessa
vez tocando o “Conde de Luxemburgo”!

Anna se dava conta da monstruosidade de seu ato? Ela


continuava absolutamente calma. Esperava. Seu olhar tinha
a mesma limpidez de sempre.
– Eles vão se preocupar, lá embaixo! – disse ela.
– É verdade! Vamos descer...
Mas ela não se movia. Continuava em pé no meio do
quarto, parando o comissário com um gesto.
– O que o senhor vai fazer?
– Já disse três vezes! – suspirou Maigret, cansado. – Volto
para Paris esta noite.
– Mas... Pelo...
– O resto não me diz respeito! Não estou aqui em
missão. O inspetor Machère...
– O senhor lhe contará?
Ele não respondeu. Já estava no vestíbulo. Respirava o
cheiro suave e doce espalhado por toda a casa, e o toque
de canela que dominava lhe trazia velhas lembranças.
Havia um risco luminoso sob a porta da sala de jantar.
Ouvia-se a música com mais nitidez.
Maigret empurrou a porta, se surpreendeu ao ver Anna,
que ele não ouvira, entrar ao mesmo tempo.
– O que vocês dois estavam conspirando? – perguntou o
dr. Van de Weert, que acabava de acender um enorme
charuto e que chupava sua ponta como uma criança
mamando.
– Desculpem-nos... A srta. Anna me pedia informações
sobre a viagem que, acredito, quer fazer um dia desses...
Marguerite parara bruscamente de tocar.
– É verdade, Anna?
– Ah! Não por agora...
A sra. Peeters, que tricotava, olhava para eles com um
pouco de preocupação.
– Enchi seu copo, senhor comissário... Agora conheço
seu gosto...
Machère, com a testa franzida, observava o colega,
tentando adivinhar o que acontecera.
Quanto a Joseph, estava vermelho, pois bebera vários
copos de genebra, um atrás do outro. Seus olhos estavam
brilhantes, suas mãos, agitadas.
– Poderia me fazer um agrado, senhorita Marguerite?
Toque uma última vez a “Canção de Solveig”...
E, dirigindo-se para Joseph:
– Por que o senhor não vira as páginas?
Era perversidade, como quando colocamos a língua num
dente dolorido para provocar mais dor.
Do lugar em que estava, com um cotovelo na lareira,
seu copo de schiedam na mão, Maigret dominava o salão
inteiro. A sra. Peeters estava debruçada sobre a mesa e
aureolada pela luz da lâmpada. Van de Weert fumava,
esticando as pernas curtas. Anna continuava em pé contra a
parede.
Ao piano, Marguerite tocava e cantava, Joseph virava as
páginas...
O móvel do instrumento era enfeitado com um bordado
e inúmeras fotografias: Joseph, Maria e Anna crianças, em
todas as idades...
Que Deus ainda queira...
Mas era principalmente Anna que o comissário
estudava. Ele ainda não se dera por vencido. Esperava
alguma coisa, sem saber ao certo o quê.
Uma agitação genuína, em todo caso! Talvez um
movimento convulsivo dos lábios? Talvez lágrimas? Talvez
uma saída precipitada...
A primeira estrofe acabou sem que nada tivesse
acontecido e Machère murmurou no ouvido do comissário:
– Ainda ficaremos muito tempo aqui?
– Alguns minutos...
Durante essa breve troca de palavras, Anna olhou para
eles por cima da mesa, como para se assegurar de que
nada era preparado contra sua pessoa.

...Para nunca mais me abandonar...


Enquanto o último acorde ainda soava, a sra. Peeters
murmurava, com a cabeça branca sempre inclinada sobre a
costura:
– Nunca desejei mal a ninguém, mas estou dizendo,
Deus sabe o que faz!... Não teria sido horrível se essas
crianças...
Ela não concluiu, porque estava comovida demais.
Secou uma lágrima em sua bochecha com a meia que
estava tricotando.
Anna continuava impassível, com o olhar cravado no
comissário. Machère se impacientava.
– Vamos!... Vocês vão me desculpar de sair tão
bruscamente, mas meu trem parte às sete e...
Todos se levantavam. Joseph não sabia para onde olhar.
Machère gaguejava, finalmente encontrava a frase que
procurava, ou algo parecido:
– Sinto muito por ter desconfiado de vocês... Mas
confessem que as aparências... Se esse marinheiro não
tivesse fugido...
– Você acompanha os senhores, Anna?
– Sim, mãe...
Os três cruzaram a mercearia. A porta estava chaveada,
pois era domingo. Mas uma lamparina ficava acesa,
espalhando seus reflexos pelos pratos de cobre da balança.
Machère apertou a mão da jovem com solicitude.
– Peço de novo desculpas...
Maigret e Anna ficaram alguns segundos frente a frente,
e essa por fim balbuciou:
– Fique tranquilo... Não permanecerei aqui...
Na noite do cais, Machère falava sem parar, mas Maigret
só ouvia fragmentos de sua fala.
– ... já que o nome do culpado é conhecido, voltarei
amanhã para Nancy...
“O que ela quis dizer?”, pensava o comissário. “Eu não
permanecerei aqui... Será que de fato teria coragem?”
Ele olhou para o Meuse. Lampadários de gás alinhados
de cinquenta em cinquenta metros espalhavam reflexos
deformados pela correnteza. Uma luz mais viva, do outro
lado do rio. O pátio da fábrica, onde, naquela noite ainda, o
velho Piedbœuf assaria batatas sob as cinzas.
Eles passaram pela ruela. Não havia luzes dentro da
casa.
CAPÍTULO XI

O FIM DE ANNA

– VOCÊ RESOLVEU o caso?


A sra. Maigret se espantava de ver o marido com tanto
mau humor. Ela tateava o sobretudo que acabara de ajudá-
lo a tirar.
– Você de novo circulou sob a chuva... Um dia ficará
doente e verá no que dá!... O que era?... Um crime?
– Um caso de família.
– E a jovem que veio ver você?
– Uma jovem! Pode me passar as pantufas?
– Está bem! Não vou mais perguntar nada! Pelo menos
sobre isso. Você comeu bem, pelo menos, em Givet?
– Não sei...
É verdade! Ele mal lembrava as refeições que fizera.
– Adivinhe o que preparei para você!
– Quiches!
Não era difícil de adivinhar, pois a casa toda estava
perfumada.
– Está com fome?
– Sim, querida... Em todo caso, ficarei com fome logo
mais... Conte-me o que aconteceu por aqui... A propósito, a
questão dos móveis foi resolvida...
Por que, olhando para a sala de jantar, ele mirava
sempre o mesmo canto, onde não havia nada? Ele só se deu
conta quando sua mulher disse:
– Você parece estar procurando alguma coisa!
Então, em voz alta, ele exclamou:
– Claro! O piano...
– Que piano?
– Nada! Você não entenderia... As quiches estão
maravilhosas...
– De que serviria ser alsaciana e não saber preparar
quiches... Mas se você continuar assim, não me deixará
nenhum pedaço... Falando em piano, o pessoal do quarto
andar...

Um ano depois, Maigret entrava numa exportadora na


Rue Poissonnière, por um caso de falsas cédulas bancárias.
Os armazéns eram amplos, repletos de mercadorias,
mas os gabinetes eram estreitos.
– Vou lhe trazer a cédula falsa que encontrei... – disse o
proprietário, apertando uma campainha.
Maigret olhava para o outro lado. Ele percebeu
vagamente uma saia cinza se aproximando do gabinete,
pernas com meias de algodão. Depois ergueu a cabeça,
ficou um momento imóvel olhando para o rosto debruçado
sobre a mesa.
– Obrigado, senhorita Anna...
Como o comissário seguia a funcionária com os olhos, o
homem explicou:
– Ela parece um pouco um dragão... Mas lhe desejo
encontrar uma secretária como essa!... Ela substitui
exatamente dois funcionários. Dá conta de toda a
correspondência e ainda acha tempo para assumir a função
de contadora...
– Faz tempo que o senhor está com ela?
– Uns dez meses.
– Ela é casada?
– Ah, não! É seu pequeno defeito: um ódio mortal que se
estende a todos os homens... Um dia, um colega que veio
me ver tentou, rindo, agarrar a cintura dela... Se o senhor
visse o olhar que recebeu... Ela chega às oito da manhã, às
vezes mais cedo... À noite, é ela quem fecha as portas...
Deve ser estrangeira, pois tem um leve sotaque...
– O senhor me permite falar um pouco com ela?
– Vou chamá-la.
– Não! Gostaria de vê-la em seu gabinete...
Maigret passou por uma porta de vidro. O gabinete dava
para um pátio cheio de caminhões. Todo o local parecia
sofrer com a trepidação do fluxo de ônibus e carros que
aceleravam pela Rue Poissonnière.
Anna estava calma, como agora há pouco, quando se
debruçara sobre a mesa do chefe, do mesmo modo que
Maigret sempre a vira. Ela deveria estar com 27 anos, mas
parecia ter 30, pois seu rosto não tinha o mesmo frescor,
seus traços tinham murchado.
Em dois ou três anos, seria impossível precisar sua
idade. Em dez, seria uma velha!
– A senhorita tem notícias de seu irmão?
Ela virou a cabeça sem responder, manejando
maquinalmente um mata-borrão.
– Ele casou?
Ela se contentou em fazer um sinal afirmativo com a
cabeça.
– Feliz?
Então as lágrimas que Maigret por tanto tempo esperara
irromperam, ao mesmo tempo em que sua garganta se
apertava. Ela disse, como se o responsabilizasse por tudo:
– Ele começou a beber... Marguerite está grávida...
– Seus negócios?
– O escritório não dava nada... Ele precisou aceitar um
emprego de mil francos por mês em Reims...
Ela enxugou os olhos com o lenço, com tapinhas secos,
furiosos.
– Maria?
– Morreu, oito dias antes de vestir o hábito...
O telefone tocou e foi numa voz diferente que Anna
respondeu, pegando um bloco de anotações:
– Sim, sr. Worms... Entendi... Amanhã à noite... Enviarei
um cabograma agora mesmo... Sobre o carregamento de lã,
envio-lhe uma carta com algumas observações... Não! Não
tenho tempo... O senhor a lerá...
Ela desligou. Seu chefe estava na porta, olhando para
ela e para Maigret, sucessivamente.
O comissário voltou para o gabinete vizinho.
– O que o senhor diz?... E não falei de sua
honestidade!... A esse ponto, é quase bobagem...
– Onde ela mora?
– Não sei... Ou melhor, não sei seu endereço, mas sei
que numa casa mobiliada para mulheres solteiras, mantida
por uma caridade qualquer... Mas, me diga! O senhor me
assustou... Não foi no exercício de suas funções que a
conheceu, pelo menos?... Pois seria um pouco
preocupante...
– Não foi no exercício de minhas funções! – respondeu
Maigret devagar. – Estávamos dizendo que o senhor
descobriu essa cédula num maço de...
Ele estava escutando os sons do gabinete vizinho no
qual uma voz de mulher dizia ao telefone:
– Não, senhor, ele está ocupado! Quem está falando é a
senhorita Anna... Estou informada...
Nunca se teve notícias do marinheiro.
Fim
SOBRE O AUTOR

GEORGES JOSEPH CHRISTIAN SIMENON nasceu na cidade


belga de Liège, em 12 de fevereiro de 1903, filho de Desiré
Simenon, contador de uma companhia de seguros, e
Henriette. A família era católica, e o comparecimento a
rituais da Igreja foi uma constante na infância do autor.
Christian, filho mais novo do casal, era o preferido de
Henriette, enquanto Georges venerava o pai, um homem
paciente que não desperdiçava palavras. Era adolescente
quando Liège foi ocupada pelos alemães durante a Primeira
Guerra Mundial.
Ainda na juventude do autor, seu pai adoeceu
gravemente do coração. Georges abandonou a escola e
começou a trabalhar. Passou por vários empregos, até que,
em janeiro de 1919, foi admitido como office boy no Gazette
de Liège, sendo posteriormente promovido a repórter.
Escreveu sob vários pseudônimos, até chegar ao nome de
Georges Sim, que usaria por doze anos. Na atividade
jornalística, adquiriu habilidades que muito lhe valeriam na
carreira de romancista: escrever rápido e respeitar prazos.
Paralelamente ao trabalho, nesse período Simenon aplicou-
se no estudo de medicina forense. Também nessa época
começou suas primeiras experimentações literárias e
conheceu Régine Renchon, a quem apelidou de Tigy, sua
futura mulher.
Seu pai morreu em 1921, e, após cumprir o serviço
militar, Georges mudou-se para Paris, em 1922, onde se
sustentou graças ao salário de secretário particular. Nos
anos seguintes, ele se estabeleceria como autor de
literatura pulp, além de frequentar artistas da cena
francesa, como o cineasta Jean Renoir, de quem se tornou
amigo, e a cantora americana Josephine Baker, de quem foi
amante. Já nessa época estava em gestação aquele que se
tornaria um dos mais famosos personagens da literatura
ocidental, o inspetor Jules Maigret.
Entre 1929 e 1930, Simenon escreveu sob pseudônimo
vários textos que prenunciavam o surgimento da série em
que o comissário da Polícia Judiciária francesa desvenda
uma série de crimes. Os anos de 1930 e 1931 foram
dedicados à redação dos romances que comporiam a série
Maigret e que seriam publicados já com o nome do autor
pela editora francesa Fayard a partir de 1931. Pietr-le-Letton
(O assassino sem rosto) foi o primeiro desses romances a
ser escrito, mas Monsieur Gallet, décédé foi o primeiro a ser
publicado, obtendo sucesso imediato, como os demais livros
que se seguiriam. Todo o universo e a ética de Maigret já
estavam estabelecidos nos primeiros livros da série. As
histórias protagonizadas pelo inspetor Maigret – parisiense,
fumante de cachimbo, usando sempre um sobretudo de
gola de veludo e chapéu – compõem uma categoria sui
generis da literatura policial: o êxito junto ao público deve-
se menos ao enredo e à descoberta do mistério do que ao
misto de ceticismo e esperança com o qual o taciturno
Maigret vê a sociedade – visão psicológica que é a principal
arma desse humanista no combate contra o crime. Com o
passar dos anos, a composição dos personagens
secundários se tornaria mais complexa e o tom dos
romances, mais filosófico.
Em 1933, já havia escrito seis romances em um estilo
diferente do que praticara até então, que ele chamou de
roman dur : romances que não necessariamente giram em
torno de um crime e que se apoiam, sobretudo, na riqueza
psicológica dos personagens. A essa altura a família já
estava vivendo na propriedade em La Rochelle, na costa
oeste da França.
Em 1945, Simenon – já com problemas de coração –,
Tigy e o filho do casal, Marc, deixaram a Europa em direção
à América. Lá, ele conheceu Denyse Ouimet, que se tornaria
sua segunda mulher. Em 1953, nasceu Marie-Jo, a única
filha do autor, que acabaria se suicidando em 1978. Em
1955, a família retornou à Europa, estabelecendo-se na
Suíça.
A década que se seguiu foi turbulenta: Denyse sofreu de
problemas psiquiátricos que a levaram à internação, em
1962, e, em 1964, abandonou a recém-construída
residência familiar, na cidade suíça de Épalinges. Em 1970,
morreu a mãe de Simenon, com quem ele sempre tivera
relações problemáticas, e nesse mesmo ano ele escreveu
seu último roman dur, Les Innocents, além de Maigret e o
sumiço do sr. Charles, o último romance protagonizado por
Jules Maigret. A partir de 1973, Simenon ditou e escreveu
apenas livros de memórias que, como seus textos
autobiográficos, são vistos com reservas por muitos
estudiosos de sua obra, no que diz respeito à veracidade
dos fatos. Nos últimos anos, o escritor viveu recluso,
fazendo aparições públicas apenas ocasionalmente, das
quais a mais famosa foi a entrevista dada ao cineasta e
amigo Federico Fellini, na qual afirmou ter mantido relações
com dez mil mulheres. Morreu aos 86 anos, no dia 4 de
setembro de 1989, em Lausanne.
Simenon, o mais emblemático caso de proficuidade
literária do século XX, é autor de mais de duzentos
romances (75 dos quais protagonizados pelo inspetor
Maigret), 155 contos (trinta com Maigret) e 25 textos
autobiográficos. Esses números são apenas aproximados, já
que vários escritos foram publicados apenas em periódicos,
sob até 29 pseudônimos. Dezenas de livros seus foram
adaptados para a tevê, cinema e quadrinhos, e a sua venda
mundial é estimada em 1,5 bilhão de exemplares, em mais
de cinquenta línguas. Atestando a sua permanência literária
e a excelência de sua ficção, foi recentemente eleito o
segundo melhor autor de livros de mistério pelo jornal The
Times, somente atrás de Patricia Highsmith.
Texto de acordo com a nova ortografia.

Título original: Maigret chez les Flamands


Tradução: Julia da Rosa Simões
Capa: Ivan Pinheiro Machado. Foto: © Alex Woods / Millennium Images /
Latinstock
Preparação: Gustavo de Azambuja Feix
Revisão: Caren Capaverde

CIP-Brasil. Catalogação na Fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

S599m

Simenon, Georges, 1903-1989


Maigret e os flamengos / Georges Simenon; tradução de Julia da Rosa Simões. –
Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.
(Coleção L&PM POCKET; v. 968)
Tradução de: Maigret chez les Flamands

ISBN 978.85.254.2480-8

1. Romance francês. I. Simões, Julia da Rosa. II. Título. III. Série.


11-3298. CDD: 843
CDU: 821.133.1-3

Maigret chez les Flamands © 1959 Georges Simenon Limited, a Chorion


Company. All rights reserved.
Maigret e os flamengos © 2011 Georges Simenon Limited, a Chorion Company.
All rights reserved.

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