Você está na página 1de 88

© 1989 – Antônio Vera Ramirez

“Cerne de Cañon”
Tradução de Margarida Gandra
Ilustração de Benicio
Colaboração de
Carlos Natali
® 541003
CAPÍTULO PRIMEIRO
Ave Maria Puríssima

Primavera chuvosa.
Era como se a luz do mondo se tivesse escoado, e agora
só se pudesse dispor daquela claridade melancólica e úmida.
Daquela pequena suíte, hermeticamente fechada, ouvia-se o
rumorejar da chuva que caia lá fora, e parecia que tudo, não
só a luz do mundo, mas tudo o que nele caíste chegara a seu
termo.
Só a chuva era uma realidade.
Os dois padres esperavam a hora do jantar, quando então
desceriam ao pequeno restaurante daquele lugarejo francês
situado ao norte Paris, a uma distância relativamente curta,
perto da estrada de Amiens. Era primavera, chovia e nada
mais.
E isso parecia ser tudo.
Um dos padres, o que lia um jornal, parou de repente,
olhou o relógio e disse:
— Podíamos descer agora.
— Francamente, não me atrai nem um pouco a ideia de
jantar num lugar como este.
— Nem a mim, mas se não formos parecerá uma desfeita.
— É, você tem razão. Terminou de ler o jornal
— Não. Mas pode pegá-lo. Fará o que diz...!
— E o que diz?
— O mesmo de sempre.
— Esperava outra coisa.
— Na verdade, não. É sempre uma bobagem. Só dizem
mentiras.
— De qualquer forma, vou dar uma olhada.
E pegou o Jornal. O outro, depois de passar as mãos no
rosto num gesto mais de tédio que de cansaço, aproximou-se
da janela e ficou olhando a chuva através da vidraça.
— Você pode imaginar uma praia ensolarada, quente, de
águas azuis? — disse voltando-se companheiro que lia o
jornal.
— Tudo tem seu dia. Nossa missão agora é aqui. Logo
voltaremos à Itália. Ou a qualquer outro lugar onde haja
praias como as que está imaginando.
— Detesto este clima. Deprime-me.
— Não ficaremos aqui muito tempo. Além disso, este
hotel é bastante confortável.
— Mas bem menos que o Vaticano.
Começaram a rir os dois. O padre da janela voltou às suas
praias imaginárias, e o do jornal à leitura dos engodos
políticos e mentiras econômicas.
Quando chamaram à porta da suíte, os dois estavam
distraídos, tão absortos que a batida na porta os sobressaltou.
Trocaram um olhar, riram como que se desculpando
mutuamente pelo sobressalto, que evidentemente não tinha
cabimento, e o padre da janela fez um sinal ao outro e se
aproximou da porta.
— Quem é? — perguntou sem abrir.
— Ave Maria Puríssima — disse uma voz doce do outro
lado da porta, em ótimo francês.
O que estava com o jornal levantou-se de um pulo.
Olharam-se, e o que ficava mais longe da porta disse,
aborrecido:
— Que será que eles querem Não deviam vir à nossa
suíte!
— Pois estão ai, e se vieram é por alguma coisa, não?
Dito isto, abriu a porta. Não é fácil imaginar o que
pensava ver diante dele; mas está na cara que não esperava
encontrar-se com a boca de um silenciador apontada para
ele, pois teve o maior susto. Conteve-se e ficou imóvel. O
outro padre, de pé, junto à poltrona em que lia o jornal,
também não se movia, como o seu companheiro, olhava sem
compreender aquela mulher que, de revólver na mão, entrava
calmamente na suíte.
Era alta, forte, ruiva e míope, pois usava óculos fundos de
garrafa. Vestia uma velha capa mais do que passada da
moda. Com um gesto de sua mão branca e firme, mexeu com
o revólver provido de silenciador, indicando o fundo da
suíte. O padre que abrira a porta compreendeu e foi
recuando, sem perder de vista a gigantesca ruiva.
— Quem é você? Que deseja?
A ruiva levou o indicador esquerdo aos lábios.
Um dedo delicado, aristocrático, com esmalte claro,
elegante. Era uma bonita mão. Mão de artista, que não
combinava com aquela arma.
— É um assalto? — perguntou o outro padre.
A ruiva arqueou as sobrancelhas como que divertida.
Com a mão esquerda tirou os óculos seus verdes olhos,
enormes, que pareciam flutuar calmamente no mar do seu
rosto de feições graúdas e duras. A boca excessivamente
pintada de vermelho tinha um trejeito incomum numa
mulher, um ricto de crueldade.
— Mas... que quer? — insistiu o primeiro padre. — Se se
trata de dinheiro, diga; nós lhe damos o que temos. Mas
tenha cuidado com este revólver, minha filha...
A ruiva o encarou, atravessando-o com o olhar, de
maneira quase sinistra. O padre tremeu. Ela virou para ele o
escuro orifício do silenciador. Olhando-a nos olhos, viu
perfeitamente que ia morrer. Empalideceu e quis falar.
Plof, disparou a ruiva.
A bala penetrou a negra batina, precisamente sobre o
coração, com um estalido brando e tétrico, salpicando de
vermelho seu branco colarinho. Com um gemido, girou e foi
cair de bruços numa poltrona. Dai rolou para o chão, de cara
para cima, olhos abertos e a boca crispada... Do canto lhe
escorria um fio de sangue.
A ruiva virou o revólver para o segundo padre, tão
rapidamente que ele nem se deu conta do gesto, umedeceu os
lábios e engoliu saliva.
— Quem mandou você? — arquejou.
Plof.
Morreu tão depressa quanto o primeiro. Um tiro no
coração, que o fez cair sentado no sofá, escapando-lhe o
jornal de suas mãos crispadas, ficou sentado, a cabeça
inclinada para a frente como se quisesse continuar lendo o
jornal, ou talvez contemplar seu companheiro que o
precedera na última viagem.
A mulher observou-os por um instante. Tudo era silêncio.
Só se ouvia lá fora a chuva da primavera.
Apagou as luzes da suíte e aproximou-se da janela. Via a
chuva, a pequena esplanada onde se estacionavam os carros
dos hóspedes do hotel e a luz azulada que se difundia
tristemente, como adormecendo.
O rumorejar da chuva era simplesmente delicioso.
CAPÍTULO SEGUNDO
Morte de um agente da CIA

A linda passageira requebrou seus enormes olhos azuis


para os dois homens do outro lado da barreira de chegada
dos voos internacionais, que por sua vez olhavam-na
dissimuladamente, muito sérios. Ela lhes sorrira por duas
vezes. Bem de leve, dissimulando melhor que eles, mas
sorrira...
Não era uma passageira comum. Alta, cabelos negros não
muito ondulados, elegante, testa alta, boca rosada, olhar
direto e firme... Era uma beleza impressionante.
— Mercí, Mademoiselle Montfort — e o empregado do
aeroporto devolveu-lhe seu passaporte.
— Pas de quoi — ela o recebeu.
Guardou-o numa valise que permaneceu na mão direita,
enquanto que com a esquerda pegou a única mala com que
viajava na ocasião, e caminhou para a saída, já no saguão, foi
ao encontro dos dois homens; eles se mostraram solícitos.
— É você? — perguntou um deles, como que incrédulo.
— Se vocês são vocês, eu sou eu — sorriu Brigitte. —
Mas quero avisar que não tenho vontade de brincar.
— Compreendemos. Deixe que eu leve sua mala.
— Obrigada.
Não fizeram menção de pegar-lhe a valise e a jornalista
norte-americana recém-chegada da França conservou-a em
seu poder. Saíram os três para o estacionamento, instalando-
se num discreto carro preto; iam os dois na frente e Brigitte
atrás, sozinha. Partiram.
— Vamos pela estrada 20, Paris-Orleans. Paramos em
Etampes. Simão-Paris pensou que o preferisse,
considerando-se que no momento Paris não parece ter nada
que interesse ao caso.
— Tudo bem.
A escuridão da noite estava molhada pela chuva quando
chegaram a Etampes, isto é, a uma casa na periferia de
Etampes, às margens de um rio silencioso e sombrio. Aliás,
tudo ali era sombrio, com um ar sinistro.
Havia luz na casa diante da qual o carro parou.
— Eu levo a mala — disse o homem que estava no
volante. — Você acompanha a “Baby” com o guarda-chuva.
Tinham previsto tudo, até um guarda-chuva, que a agente
da CIA abriu depois de sair do carro. Abriu a porta do lado
esquerdo, que dava para a casa, e Brigitte desceu, abrigou-se
sob o guarda-chuva e correram os quatro metros que os
separavam da casa. Foram chegando e a porta se abrindo,
recortando-se na luz dourada a silhueta de um homem alto e
atlético, que estendeu a mão a Brigitte, já dentro de casa.
— Fez boa viagem?
— Sim... Como sempre. A verdade é que já nem ligo.
Viajo e pronto.
— Entendo. Vamos agora aonde temos que ir, ou
deixamos para depois?
— Deixamos para depois.
— Vamos então tomar um aperitivo... Talvez algo
quente. Que lhe parece?
— Não quero tomar, nada, obrigada.
— Certo. Temos tudo pronto na sala.
Entraram na sala, onde se encontravam mais dois
homens. Eram também altos e atléticos, e mais novos que o
que a recebera. Fixaram nela o seu olhar e ela sorriu-lhes.
Era tudo muito simples, e todos sabiam. O homem que
recebera a agente “Baby” à porta da casa era Simão-Paris, e
os outros eram Simão I e Simão II, os do carro; e Simão III e
Simão IV, os que esperavam na sala daquela casa isolada.
— Houve alguma novidade desde seu último relatório à
Central — perguntou Brigitte.
— Fizemos pequenas investigações complementares, mas
não alteramos nada, pois nos disseram que você viria
urgentemente até aqui. Se quer, podemos dar andamento ao
programa.
— Vamos esperar pelos outros.
Simão-Paris indicara um televisor junto ao qual havia um
aparelho de vídeo. Brigitte sentou-se em frente, numa
poltrona, e acendeu um cigarro que tirara da valise. Entraram
os dois que a tinham apanhado em Orly. Um deles fez um
gesto indicando que tudo estava bem. Dos cinco homens ali
reunidos parecia que só os quatro mais jovens estavam
armados. Aparentemente, Simão-Paris não levava arma
alguma
— Vamos começar — disse Brigitte.
Simão-Paris ligou o vídeo. As Imagens apareciam na tela
do televisor, em cores. Primeiro apareceu o rosto de um
homem jovem e sorridente, de estranha beleza Não parecia
ter mais de trinta anos. Moreno, dono de grandes olhos
negros e cabelos crespos.
— Este é Renzo Capavaro — murmurou Simão-Paris...
— Foi fácil obter informações sobre ele, pois até bem pouco
tempo, pouco menos de um ano, foi um dos mais destacados
jogadores de futebol do Juventus de Milão. Completou trinta
anos e decidiu deixar o futebol. Sofrera lesões importantes
na última temporada e se ressentia delas; além disso, já
ganhava muito dinheiro. Preferiu terminar seu curso de
Psicologia em Milão
— Muito inteligente.
— Bom, digamos que sua decisão o foi. Ele não tem uma
inteligência... superior, diria eu a julgar pelo que se obteve.
Não é que seja bobo, nada disso, mas não é especialmente
inteligente nem interessante sob nenhum aspecto. O que se
destaca nele é a simpatia Dizem que cada pessoa tem um
dom especial. Pois bem: o de Renzo Capavaro é a simpatia
pessoal, É capaz de fazer amizade com qualquer pessoa. E
tem inteligência. Jamais será um Einstein, mas não é burro e
ia tudo bem com ele. Vamos ver agora Ambler.
A imagem foi trocada.
O rosto agora era de um homem de seus quarenta anos,
feições atraentes, mas duras. Seus olhos claros pareciam
desconfiar da câmara que captara sua imagem, e seus lábios
finos se fechavam num gesto quase agressivo.
— Desmond Ambler — apresentou Simão-Paris. — Um
de nossos companheiros da CIA, um veterano ressabiado,
nada fácil de enganar. É por que pensamos que se foi ao
encontro de Renzo Capavaro é porque tinha confiança nele.
Sabemos agora que passou curtas temporadas em Milão, há
três anos, e achamos que foi quando fez amizade com
Capavaro. Mas não devia ser nada relacionado com
espionagem. Simplesmente se conheceram em circunstâncias
que lhes propiciaram uma, ao que parece, sólida amizade.
Não achamos outra explicação para o fato de ele atender a
um chamado do ex-jogador de futebol, sem medidas de
segurança.
— Capavaro continua desaparecido?
— Continua.
— E enquanto isso vocês encontraram Desmond Ambler
morto; nosso companheiro que prestava serviço com vocês
em Paris, serviços de rotina, sem que estivesse no momento
em nenhuma missão especial.
— Exato.
— Quer dizer que Desmond Ambler realizava em Paris
seu trabalho normal para a CIA quando desapareceu de
repente, o último contato que tem com ele é sua chamada
pelo rádio de bolso, de fora de Paris. Isto significa que ele
previu a possibilidade de ter que se comunicar com vocês,
pois de outro modo não levaria o suplemento para dar maior
alcance ao rádio até os cinquenta quilômetros. Correto?
— Tudo parece indicar que foi assim — disse Simão-
Paris.
— O que sugere que temia algo por parte de Capavaro,
não?
— Podia ser, se não fosse a conversa que teve com Simão
II, depois de chamá-lo pelo rádio, Já ferido — disse um dos
agentes que receberam a agente no aeroporto. — Achamos
que se Capavaro tivesse alguma coisa a ver com sua morte,
ele teria falado de outro modo.
— E que disse exatamente Ambler, quando falou com
Simão II?
Simão-Paris virou-se para Simão II, que se adiantou para
junto de Brigitte:
— Depois de perder o contato com Desmond, anotei o
que conversamos, pois tudo levava a crer que acabava de
morrer ou estava moribundo, não podendo dizer mais nada.
Suas palavras pareceram-me estranhas, de modo que tomei
nota para não perder os dados.
— Fez muito bem.
— Obrigado — sorriu o espião. — Bom, montamos em
letras grandes para a filmagem deste vídeo. O que vamos ver
agora é a última coisa que nos disse Ambler. Prosseguimos?
— Por favor — disse Brigitte.
O vídeo foi acionado. Desapareceu a Imagem e apareceu
um letreiro. O texto era o seguinte:
“Renzo Capavaro me... me falou de um... um
quartel... exército novo... bucha de canhão...
milhares de... vítimas. Els Oiseaux.”
“Desmond... Desmond, onde é que você
está?”
“Anger... Angerville... Les Quatre... Quatre...”

O texto permanecia na tela. Brigitte já o sabia de cor, e


por fim virou-se para o agente da CIA que manejava o vídeo
e perguntou:
— Isso é tudo?
— Quanto à mensagem, sim.
— Há mais alguma coisa além de mensagem?
— Bom, levávamos a câmara de vídeo no carro, e quando
encontramos Desmond nós o filmamos. Estava estendido no
chão, dentro do bosque que se encontra perto de Angerville,
a uns dezoito quilômetros ao sul desta casa, na direção de
Orleans, claro.
— Como lhes ocorreu procurar pelo bosque?
— Guiando-nos logicamente por suas palavras — o
homem da CIA apontou para a tela na qual permanecia o
texto. — Fomos até Angerville. Aí se cruzam quatro
estradas. Por isso a pousada dali se chama “Les quatre
routes”, e suspeitamos que era a ela que Desmond se referia.
A confirmação foi o carro dele parado bem perto do local...
— Perto... mas não diante da pousada?
— Exato. Como se desejasse que não houvesse relação
com a pousada. Mas no local não há mais nada além disso.
De modo que fomos lá e perguntamos por Desmond. Nós o
descrevemos ao proprietário de “Les quatre routes”, que o
reconheceu. Disse-nos que estivera bebendo com outro, mais
jovem e muito simpático...
— Quer dizer, Renzo Capavaro.
— Parece que é evidente.
— Sim... de fato parece. E o resto?
— O proprietário da pousada disse que nenhum deles fez
nada que lhe parecesse incomum. Disse que pareciam...
muito amigos, mas nada além da discrição, a que...
— Perdão... Que quer dizer que esse nada além da
discrição.
— Bom — o jovem agente titubeou embaraçado. —
Segundo o proprietário da pousada, havia a possibilidade de
serem homossexuais.
— Capavaro e Desmond Ambler? — exclamou Brigitte.
— Sim.
A divina espiã estava boquiaberta. Por fim resmungou:
— Que mais.
— Capavaro e Desmond conversaram um tempão. De
repente se levantaram e Desmond deixou uma nota na mesa.
Saíram a toda pressa.
— Estavam sentados perto de uma janela?
— Sim.
— Ora, viram chegar alguém e resolveram ir embora.
— Foi o que nós deduzimos. Pensamos que Renzo
Capavaro marcou encontro com Desmond em “Les quatre
routes”, e para lá foi o nosso companheiro sem a menor
vacilação. No entanto, tomou umas pequenas precauções,
como levar o rádio de bolso com o suplemento e deixar o
carro distanciado da pousada. Também Capavaro deve ter
deixado seu carro afastado. Devia ter advertido Desmond de
algum perigo no encontro.
— E ele não disse nada a vocês do encontro?
— Não.
— Normalmente o fazia?
— Sim — interveio Simão-Paris. — Desmond Ambler
era demasiado veterano para se meter em embrulhos
profissionais de modo individual. E por isso que o encontro
para nós tinha uma parte de espionagem e outra... de relação
pessoal.
— Isso quer dizer que podia ser verdade que fossem
homossexuais, ou seja, que o proprietário da pousada tem
bom faro para essas coisas.
— Sim. Ele foi a um encontro que poderíamos
denominar... misto. Foi discretamente, mas para o caso de
uma eventualidade, levou seu revólver, seu rádio... Portanto,
achamos que Capavaro marcou o encontro basicamente para
falar de algo que deve ser da incumbência ou do interesse da
CIA.
Brigitte concordou:
— Também vejo assim... E quando estavam conversando
viram pela janela a chegada de algo que os inquietou, e então
decidiram sair apressadamente. Acho que os recém-chegados
deviam ser relacionados com Capavaro, e este os traía
passando informações a Desmond Ambler. Quem quer que
fosse compreendeu a jogada e os dois foram encurralados,
atiraram neles e... bem, não sabemos o que houve com
Capavaro, mas sim com Ambler que ferido, entrou no
bosque onde teve forças e lucidez para tentar passar-nos o
que lhe dissera Capavaro. Mas só pôde dizer o que temos na
tela. Certo?
— Certo. Talvez Capavaro tenha escapado e esteja por aí,
escondido, possivelmente ferido. E também pode ser que o
tenham levado com o carro em que chegou ao local do
encontro com Desmond.
— Como encontraram Desmond?
A imagem apareceu na tela do televisor. Só que havia
pouca luz, pois foi ao final da tarde e o bosque estava
sombreado, tenebroso até. O agente da CIA aparecia
encolhido como se sentisse frio. A câmara dera voltas ao seu
redor para mostrar sua postura e feições tensas, como que
retorcidas num último ricto, mais de amargura, de decepção
pela vida, que de dor.
Brigitte compreendia aquele gesto. Era de um homem que
vivera duramente sua vida, para, no fim, cair de um modo
estúpido num bosque úmido e sombrio, longe de casa, sem
pena nem glória, só e acossado. Uma vida de esforços e
sacrifícios para nada, absolutamente nada. Sua expressão era
um adeus à vida que tinha muito de tristeza, desilusão e
ironia.
A câmara mostrava bem os buracos de balas em suas
costas e um bem visível de um balaço disparado a queima-
roupa sobre o coração.
— Quer dizer — sussurrou Brigitte, — que os
perseguidores alcançaram Ambler quando ele já tinha
chamado vocês e certamente desmaiara Então, terminaram o
serviço com este tiro no coração. Tiraram alguma coisa dele?
— Só o rádio. O resto ficou: documentos, dinheiro,
revólver...
Brigitte acendeu outro cigarro, levantou-se e se
aproximou de uma janela que estava fechada. Parecia que ia
procurar olhar para fora, mas desistiu e se voltou para os
companheiros da CIA.
— Suponho que chegaram a pensar que Capavaro está
vivo, e que foi quem levou o rádio ao escapar, possivelmente
ferido.
— Pensamos, mas agora achamos que não. Bom, não
sabemos que tal pode ser esse jogador de futebol como
homem de ação, mas em nossa opinião, por inábil ou
pacífico que seja, devia ter ficado com o revólver de
Desmond para defender-se, ou pelo menos tentar.
— Quer dizer que vocês acham que ele foi caçado vivo
ou morto e recambiado. E levaram com ele o rádio de
Ambler, só o rádio.
— Nós pensamos que sim, mas admitimos a
possibilidade de outra versão. Por exemplo...
— Não, por favor. Não sou partidária de teorias como
ponto de partida para uma ação. Não só porque podem ser
muitas, mas porque podem ser todas falsas. Poderíamos
passar mil anos falando sobre as possibilidades de um feito e
depois resultar que era uma coisa na qual jamais pensamos.
— Isso é verdade — admitiu Simão-Paris.
— Vamos ver a mensagem novamente — pediu Brigitte.
O texto reapareceu na tela.
— Milhares de vitimas — disse Simão-Paris.
— Quando soube disto tive a certeza de que você estaria
aqui em menos de vinte e quatro horas. E chegou antes de
transcorridas dezesseis, desde que mandamos o aviso à
Central.
— Milhares de vitimas e bucha de canhão — murmurou
Brigitte. — E um exército novo... Santo Deus, e um quartel!
Não tem significado para mim essas palavras em francês: les
ouseax, isto é, os pássaros. Significam alguma coisa para
vocês? Talvez uma contrassenha estabelecida com Desmond
Ambler
— Não sabemos. Mas já disse que fizemos umas
pequenas investigações, assim que localizamos certo ponto.
— E...?
— Bom, encontramos uma... mansão, perto daqui,
chamada “Les Oiseaux”. Ata a apenas oito quilômetros do
ponto de encontro entre Desmond e Capavaro, ao leste de
Angerville, seguindo uma estrada local.

CAPÍTULO TERCEIRO
A mansão “Les Oiseaux”

O carro parou entre os altos pinheiros, escondidos na


melancólica penumbra da tarde. Por entre os grossos troncos
via-se uma planura como que camuflada numa leve neblina
que pairava sobre um rio invisível, afluente do Sena.
Um pouco mais além, parecendo flutuar na via se a
mansão.
— É um castelo — disse Brigitte, sem surpresa.
— Bem, sim, mas não tão espetacular. Existam muitas
mansões como está no norte da França, restauradas em sua
maioria por gente de dinheiro que as utiliza para veraneio.
— Mas esse não é o caso de “Les Oiseaux” — disse
Brigitte indicando com o queixo a fantasmagórica mansão.
— Está ocupada o tempo todo, não só em férias ou fins
de semana. Estamos investigando com a máxima discrição,
mas seria demasiada casualidade que Desmond mencionasse
les oiseaux e que não se referisse a essa mansão. Renzo
Capavaro podia estar instalado aí, antes de chamar Desmond
em Paris. Um encontro em “Les quatre routes” lhe era muito
cômodo. Podia ir lá até correndo, desportista como era.
— Ou a cavalo — sorriu de leve a divina espiã. — Esse
castelo parece lugar adequado para ter cavalos com os quais
passear pelo bosque.
— É, podia ser — admitiu Simão-Paris.
— Gostaria de dar uma olhada de mais perto.
— Hoje não dá mais. Antes de cinco minutos é noite
fechada. Já tivemos sorte de chegar aqui antes que
anoitecesse.
— Que há em volta da mansão?
— Campos e bosques. O rio passa muito perto. Do outro
lado está Mereville, a cujo município a mansão pertence. É
um lugar sem nenhum dos ingredientes que hoje em dia se
consideram básicos para se viver bem.
— Pode ser premeditado o fato de manter as terras em
volta do castelo sem deixar construir nada, não
acrescentando nada novo à paisagem. É possível até que
Mereville esteja submetida a um isolamento deliberado. Hoje
em dia um lugar solitário é para privilegiados
— Certo
Brigitte ficou olhando a mansão, que parecia ir-se
esfumando entre a neblina que escurecia. Tudo ia ficando
preto, tudo submergia na escuridão úmida e total. Simão-
Paris e o agente que dirigia o carro guardavam silêncio em
respeito à atitude de reflexão da espiã, mais audaz e
inteligente que se conhecia, qualidades que “Baby” vinha
demonstrando há muitos anos com uma carreira assustadora.
— Bom — disse de repente Brigitte. — Antigamente, na
velha Europa, os exércitos se aquartelavam em castelos mais
ou menos como este, mas hoje as coisas são bem diferentes;
assim, não me ocorre que classe de... novo exército possa
haver ai. Menos ainda um exército que possa fazer milhares
de vitimas.
— Deve ser exagero — murmurou Simão-Paris.
— Sim? Por que acha isso?
— Não sei... Olhe, nessa mansão não cabem mais de...
cem ou duzentas pessoas, e isso se ficarem como sardinha
em lata, suponho. Por outro lado, para ocasionar tanta morte
seria necessário um sistema de destruição... muito
sofisticado.
— Tão sofisticado que precisaria apenas de uma centena
de soldados para acioná-lo? — disse Brigitte.
— Não acredito que haja soldados aí. Haveria muito
aparato.
— Há muita espécie de soldado, Simão. Mas vamos
deixar as teorias de lado e voltar para casa. Talvez amanhã
nossos companheiros que estão nessa investigação nos
mandem dados esclarecedores sobre essa mansão e seus
ocupantes.
***
— Intelectuais — murmurou Brigitte. — intelectuais?
— É que dizem nossas investigações — disse o agente
porta-voz do grupo investigador.
— Mas... que classe de intelectuais? Dedicam-se
particularmente a quê?
— Ao que parece, a estudos esotéricos.
Brigitte Montfort, a “Baby”, olhava o agente como que
absorta. Eram pouco mais das onze da manhã, e desde as
oito esperavam a chegada daquele homem que devia passar-
lhes o que fora averiguado em menos de vinte e quatro horas
sobre a mansão chamada “Les Oiseaux”.
— Estudos esotéricos — repetiu por fim Brigitte, num
sussurro. — Quer dizer, estudos com a finalidade de um
conhecimento maior do ser humano e seu aperfeiçoamento
através da correta utilização da mente e de suas faculdades.
Digamos que o esoterismo pretende colocar o ser humano
numa... Inteligente postura mística de aperfeiçoamento,
como componente que é de toda a criação, de tudo o que
existe.
— Eu pensava que esoterismo era outra coisa — disse o
agente.
— Bruxarias ou coisas assim? — sorriu Brigitte.
— Algo parecido.
— Não é nada disso, Simão. Esse estudo pretende a posse
de conhecimentos superiores, fora do alcance de pessoas
menos dotadas ou afortunadas. O esoterismo, tal como o
vejo, seria superioridade mental e de conhecimentos, muitos
deles perdidos no tempo.
— E que relação pode ter tudo isto com um novo exército
que faria milhares de vitimas? — perguntou Simão II.
— Além disso — interveio Simão IV, — não posso
imaginar um sujeito como Renzo Capavaro estudando
Esoterismo.
— E Psicologia? — perguntou rapidamente Brigitte.
O agente da CIA abriu a boca como se quisesse dizer
alguma coisa, mas fechou-a, permanecendo carrancudo.
— Se Capavaro tivesse estudado Arquitetura, por
exemplo, nas horas livres que lhe deixava o futebol — sorriu
deliciosamente Brigitte, — eu também estaria desconcertada,
pois não poderíamos encontrar nenhuma relação entre
Arquitetura e Esoterismo. Mas entre Esoterismo e Psicologia
eu acho que se pode estabelecer uma relação. E por acaso
não estava estudando Psicologia o belo Renzo Capavaro?
— Então você é de opinião que ele foi ao encontro saindo
da mansão “Les Oiseaux”, e que portanto lá estão tramando
algo.
— Sim. É o que penso.
— E vai lazer o quê?
Continuava chovendo. Era um dia deprimente, e Brigitte
sentiu de repente saudades do sol, do mar e, de modo muito
especial, do jardim sempre ensolarado da “Villa Tartaruga”,
onde podia juntar-se com o Número Um sempre que queria.
Há tanto tempo não passava ali uns dias de sol, paz e amor!...
Ela se propôs fazer isso tão logo terminasse a missão do
momento... O certo era que estava ali porque haviam
assassinado um agente da CIA, um dos seus companheiros,
um dos seus Simões... Com ou sem armadilha, tivesse sido
enganado ou não por Capavaro, o fato era que Desmond
Ambler fora baleado nas costas e rematado com um terceiro
balaço no coração. E quem fizera isso teria que pagar.
— Bem — murmurou por fim a espiã, ante a expectativa
dos outros ali reunidos, — digamos que não tenho nada
contra o esoterismo. Entusiasma-me tudo aquilo que serve
para desenvolver e dignificar o homem tanto física como
mentalmente.
— E o esoterismo consegue isso?
— Não sei, mas vou averiguar.
— Deus do céu — exclamou Simão III... — Isso quer
dizer que vai se meter nessa mansão!
— Digamos que pretendo entrar... Mas numa boa. Se há
ali um grupo de jovens intelectuais, por que não posso estar
entre eles?
— Pela simples razão de não pertencer ao grupo. Não
conhece nenhum deles nem eles a conhecem
— Apesar de tudo, espero poder entrar.
— Isso nós sabemos, porque quando você quer uma
coisa...
— Como disse que se chamam os proprietários alemães?
— Otto Pfalzer e Kurt Hulm.
— Quero crer que já solicitaram a identificação deles a
Paris.
— Certamente.
— Entre os convidados ou amigos desses alemães há
alguma pessoa conhecida, mais ou menos famosa? Alguém,
por exemplo, como Renzo Capavaro, um jogador de futebol
bastante famoso, pelo que se sabe?
— Não sabemos. Não convinha fazer uma investigação
mais precisa no momento. Em Mereville perdem
oportunidade de falar desse pessoal, como sendo gente muito
simpática e em geral jovem.
— Sem fazer segredo da sua estada na mansão?
— Não, não. Todo o mundo sabe que na mansão há muita
gente estudando “essas coisas”. Os moradores de Mereville
são de opinião, em sua maioria, que o que se faz na mansão é
espiritismo, ou coisa que o valha, e isso os diverte.
— E os convidados da mansão vão com frequência a
Mereville, talvez para comprar livros, ou enviar algum
telegrama, ou qualquer coisa?
— Não, quase nunca. Mas os que chegam passam todos
por lá, perguntando pela mansão “Les Oiseaux”. Os que
chegam à tarde passam a noite ali e pela manhã se dirigem
para a mansão. O mais comum, no entanto, é que cheguem
de táxi, se instalem na pensão de Mereville, e esperem que
da mansão mandem apanhá-los de carro.
Brigitte ficou pensativa e por fim perguntou:
— Como são esses dois alemães?
— Quer dizer, fisicamente?
— Sim.
— Não sabemos. Não sabemos nada sobre eles... por
enquanto.
— Talvez fosse melhor esperar informações antes de
tomar decisões — sugeriu Simão-Paris. — Eles podem ser
perigosos, “Baby”
Brigitte olhou-o com simpatia e disse:
— Eu também sou perigosa, Simão.
***
Visto de perto, tinha mais de castelo que de mansão,
devido a suas altas torres de vigilância. Na grande fachada
que dava para o Norte havia um grande portão, não
espetacular como uma ponte levadiça, mas de eficácia quase
igual no que se refere a impedir a entrada de estranhos.
Os bosques estavam no Norte e Leste do castelo. Ao
Oeste e ao Sul estendia-se a campina de um intenso verde. O
rio passava bem perto, notando-se uma maior densidade de
vegetação às suas margens, inclusive caniços. O lugar visto
às primeiras horas da tarde, sem névoa e sem chuva, era bem
menos lúgubre. Via-se também que a grande construção fora
restaurada, e sem dúvida lá dentro dispunham de todo o
conforto moderno, desde banheiros com água quente e
televisão em cores até telefone e telex.
Parou o carro diante do enorme portão. Desceu e apertou
o botão da campainha que havia ao lado, cravado na pedra.
Enquanto esperava acendeu um cigarro e retrocedeu uns
passos, olhando as janelas pintadas de branco e protegidas
por toldos claros. Era um lugar elegante.
Abriu-se somente a porta pequena cortada numa das
folhas do portão, e um sujeito vestido com roupa comum
apareceu.
— Boa-tarde — saudou a espiã em francês. — Os
senhores Hulm e Pfalzer poderiam receber-me? Ou apenas
um... Sou Brigitte Montfort, do jornal “Morning News” de
Nova York. Faria a gentileza de entregar-lhes o meu cartão?
Estendeu-o ao homem que o tomou, perguntando:
— Por favor, qual é o motivo de sua visita?
— Bem, pelo que entendi estão fazendo no castelo,
digamos, experiências do tipo espiritismo; achei que podia
conseguir um interessante artigo para o meu jornal.
O homem olhou-a por alguns instante e de repente
murmurou:
— Tenha a bondade de esperar um minuto, senhorita.
— Pois não. Obrigada.
O sujeito desapareceu no interior da mansão. Reapareceu
um minuto mais tarde, quando Brigitte pôde ver como o
portão se abria eletricamente para dentro, deixando a
descoberto um amplo pátio no qual havia cinco ou seis
carros. O homem lhe fez sinal e ela dirigiu o carro até o
pátio. O portão se fechou atrás da jornalista-espiã. Ele então
se aproximou do seu carro e abriu a porta
— O senhor Pfalzer está ocupado no momento, mas o
senhor Hulm terá prazer em recebê-la. Quer ter a bondade de
me acompanhar
O pátio era quadrado, com várias portas grandes e janelas
nas quatro paredes. A sensação era de estar num convento:
silencioso, tranquilo e com recolhimento. O sujeito se dirigiu
para uma das portas; entraram num. amplo saguão e daí
passaram para uma biblioteca enorme cujas janelas davam
precisamente para o pátio.
Kurt Hulm, que aguardava na biblioteca aproximou-se de
Brigitte sorrindo cordialmente e estendendo a mão.
— Realmente é a senhorita Montfort — exclamou... —
Nem pude acreditar! Sou seu admirador, um grande
admirador.
— Gentileza sua — sorriu Brigitte, apertando-lhe a mão.
— Obrigada por me receber, Herr Hulm.
— Por nada do mundo perderia a oportunidade de
conhecer pessoalmente a jornalista mais famosa da
atualidade. Naturalmente que é uma personalidade
internacional, mas minha admiração por você é por sua
atuação no jornalismo... Gosto do seu modo de fazer
jornalismo.
— Sim? — quase riu Brigitte. — Que modo?
— Você tem dons fora do comum, e naturalmente sabe
disso.
Brigitte sorria com simpatia. Observava e era observada.
Kart Hulm era quase redondo de tão gordo, e não devia ter
nem um metro e setenta de altura. Usava um terno comum,
embora sem dúvida feito sob medida, e suas mãos eram
pequenas, brancas e macias. Sua cabeça redonda exibia um
penteado à escovinha, de modo que seus cabelos grisalhos
pareciam agulhas apontando pata o céu, óculos redondos de
grossas lentes conferiam-lhe um aspecto de estudante
aplicado, desprotegido, embora se percebessem claramente
seus cinquenta anos ou mais.
— Aceitaria um café? — ofereceu Hulm depois de uns
segundos de silêncio. — Ou prefere um bom conhaque
francês?
— Prefiro o conhaque. Obrigada.
Hulm fez um sinal para o homem que levara Brigitte até
ali, e o sujeito saiu da biblioteca. Hulm indicou uma das
poltronas, esperou que Brigitte se sentasse e o fez em outra
em frente da sua visitante.
— A verdade que você é famosa e eu sou um
desconhecido. Garanto que estou encantado com a sua visita,
mas... a que a devo? Interessa-se realmente pelo espiritismo?
— Soube por acaso das atividades daqui, e me pareceu
que seria interessante fazer-lhe uma visita.
— Soube por acaso? O que você chama de casualidade?
— Estava em Mereville tratando de um assunto e ouvi
falar de “Les Oiseaux”. Senti curiosidade, simplesmente. E
como do outro assunto não vou conseguir nada...
— É difícil acreditar que alguém tenha assuntos em
Mereville — sorriu Hulm... — Tirando os seus moradores, é
claro. De qualquer forma, se posso ajudá-la em alguma coisa
ficarei encantado. Qual é seu problema em Mereville?
— Não é propriamente um problema meu. É algo
especial. Eu estava em Paris quando tive noticia de que um
agente da CIA fora encontrado morto num bosque perto
daqui. Achei que era notícia digna de interesse.
— Sem dúvida... Não soube disse. Aqui temos muito
pouco jornal, e quase nunca vemos televisão... Essa é uma
noticia que deve ter tido repercussão.
— Não, nenhuma. — sorriu a visitante. — Não foi
divulgada oficialmente, senhor Hulm. Acontece que... Bem,
depois de tantos anos de jornalismo internacional pode
compreender que tenho... bons amigos e excelentes canais de
informação privada. Com frequência amigos de diferentes
esferas me passam informações... especiais, e sempre me
pedem para não utilizá-las antes do momento adequado. Mas
enquanto não chega o momento gosto de investigar por conta
própria. Acho que a CIA está concentrando sua atenção em
Angerville. Por isso decidi dar uma volta por aqui...
— Então você tem amigos na CIA...
— Isso o surpreende, senhor Hulm? Sou norte-americana
e há muito tempo diretora da Seção Internacional do
“Morning News”, um dos jornais mais importantes do
mundo.
— Está quase dizendo que tem boas relações com a CIA
que poderia estar trabalhando para ela — sorriu o gordo.
— Já lhes fiz pequenos favores, mas nada mais. Bom,
mas não é a CIA que interessa agora. Dei-me conta de que o
ocorrido está além das minhas pobres possibilidades de
investigação, e enquanto espero alguma dica de algum
amigo, me deixo atrair por “Les Oiseaux”, É verdade que
fazem espiritismo em grupo?
— Em grupo?
— Bom, sabe-se que há muita gente neste castelo, não é
assim?
— É, mas não praticamos espiritismo nem nada parecido.
Simplesmente realizamos cursos de aperfeiçoamento
pessoal.
— Interessante! Em que consistem.
Kurt Hulm começou a rir. Naquele momento voltou o
criado, empurrando um carrinho com uma garrafa de
conhaque e copos. Deixou-o diante de Hulm, olhou para ele
e ao captar o sinal de dispensa saiu da biblioteca. Hulm
serviu conhaque em dois copos e ofereceu um a Brigitte.
— Parece-me que talvez não tenha sido muito discreta ao
mencionar esse assunto da CIA.
— Não tardará muito a se espalhar. Por experiência sei
que a CIA não costuma ser demasiado discreta... salvo que
lhe convenha de modo especial. Agora não vai ser assim, não
tem importância que eu seja ou não.
— A CIA não vai ser discreta nesta ocasião? Por que
não?
— Porque parece que não têm nenhuma pista, e quando
isso acontece gritam e aparentemente falam demais. É uma
tática para provocar reações. Esperam com isso que alguém
se ponha em evidência.
— Caramba! Que ardilosos!
Brigitte encolheu os ombros, tomou um gole de
conhaque, e abriu muito os olhos, num gesto simpático.
— Excelente conhaque! O senhor é muito gentil, senhor
Hulm. Talvez possa me dizer isso de aperfeiçoamento
pessoal. Que cursos são esses?
— O nome já diz. Ministram-se informações e disciplinas
visando ao aperfeiçoamento do ser humano, basicamente no
seu aspecto moral, mental e emocional.
— Puxa!
— Sim, reconheço que é um programa ambicioso. Mas
nesta vida só vale a pena o que leva o ser humano a
ambicionar o seu aperfeiçoamento, melhorando a cada dia.
— Estou inteiramente de acordo. E como fazem isso?
— Bom, estudamos matérias como Filosofia, Teologia,
Lógica, Psicologia, Psiquiatria, Ética... Digamos que
desenvolvemos a capacidade natural do ser humano para
alcançar estágios superiores aos comuns. Há quem chame
isto de futilidade e quem pense que é bruxaria. E até
espiritismo — riu Hulm. — Mas nós aqui temos ideias muito
claras. O ser humano tem a obrigação de se aperfeiçoar
continuamente, enchendo-se consequentemente de repulsa
pela degradação. É nisso que estamos.
— Garanto-lhe que a mim estas coisas me parecem
maravilhosas.
— É lógico, posto que você é uma pessoa de altíssima
qualidade. Quanto mais qualidade tem uma pessoa, mais
compreende o que significam os esforços para alcançar
aperfeiçoamentos morais e emocionais, sempre sob o
controle de uma mente lúcida e equilibrada.
— Senhor Hulm, sempre gostei de ouvir palavras como
as que me diz. Adoraria escrever uma ampla reportagem
sobre o que estão fazendo aqui em “Les Oiseaux”.
— Pessoalmente não vejo inconveniente. Espero que
tampouco o tenham Otto e Angela.
— Angela? Não mencionaram o nome dela no povoado.
Quem é?
— Para Otto e para mim Angela é... o centro de nossas
vidas. Diga-me: como você enfocaria uma reportagem sobre
nossos cursos de aperfeiçoamento humano?

CAPÍTULO QUARTO
Uma negra chamada Angela

Brigitte Montfort e Kurt Hulm conversavam


animadamente quando entraram na biblioteca Otto Pfalzer e
Angela. Otto era mais ou menos da idade de Hulm, mas não
tão gordo, e era um pouco mais alto e bastante calvo. Uma
coroa de cabelos grisalhos caia-lhe extravagantemente na
nuca. Seu terno era comum. Usava óculos, mas não de
miopia.
Angela era uma negra. Uma negra enorme, talvez de um
metro e noventa de altura, e de uma gordura preocupante, na
opinião de Brigitte. Se ficasse tão gorda quanto Angela,
temeria pela sua saúde. Mas quem sabe a negra não tinha um
coração de elefante e podia suportar...
Era bonita, apesar da gordura. Ou talvez a gordura é que
lhe proporcionava uma beleza especial, luminosa, com suas
rijas carnes. Olhos grandes bem pretos, boca grande e
vermelha, dentes brancos e fortes, um ar jovem atraente
Estava muito bem maquilada, e seus cabelos comprimiam-se
à sua cabeça, formando como que um casco com milhares de
pequenas ondas Sua vestimenta consistia numa túnica branca
que chegava aos pés. Uns pés grandes e bonito: calçados
com sandálias que deixavam seus dedos à mostra. As unhas
estavam pintadas de esmalte de um vermelho vivo, como o
das mãos. A gigantesca negra chamada Angela era um
espetáculo exótico.
Enquanto Kurt Hulm fazia as apresentações, Brigitte
lembrou o que ele dissera sobre Angela de ser ela o centro de
suas vidas... Em que sentido podia ser ela esse centro de vida
para dois homens de raça diferente e que tinham o dobro da
sua idade
— Até eu, que não sou dada a me interessar pelas noticias
do mundo, tenho lido sobre você — disse Angela. — O seu
estilo tem um toque especial, senhorita Montfort.
— Vão conseguir me envaidecer — sorriu a divina espiã.
— Com seu estilo profundo e humano pode conseguir o
Nobel da literatura — disse o calvo Pfalzer.
— Senhor Pfalzer — riu Brigitte, — sou jornalista, não
romancista!
— Eu sei. Mas já ganhou o Prêmio Pulitzer em
Jornalismo, não é verdade? Se se dedicasse à literatura,
alcançaria o Nobel, estou certo disso.
— Os senhores estão sendo demasiado amáveis comigo.
Por que não falamos a sério?
— Estamos falando a sério! — exclamou Hulm.
— Acho que a senhorita Montfort quis dizer alguma coisa
concreta com esta frase — interveio Angela. — O que seria?
— O que quis dizer é que gostaria de ter permissão para
escrever uma reportagem sobre a sua obra. Estivemos
conversando o senhor Hulm e eu. Segundo ele, não há
inconveniente. E para vocês?
— Nenhum inconveniente — replicou Angela. — Claro
que atendendo nossas condições mínimas de discrição a
respeito das pessoas da casa. Sabemos que tratará o tema de
modo sério. Não permitiríamos isso a um jornalzinho
qualquer que só busca sensacionalismo.
— Minha intenção é inteirar-me bem do que vocês estão
fazendo aqui, e publicar... se realmente há conteúdo para as
páginas do “Morning News”.
— Entendido! — riu Angela. — Você impõe também
suas condições.
— Jamais escrevi reportagens baratas. Compreendam que
com o prestígio que tenho não vou mudar a norma do meu
trabalho.
— Sua atitude é uma garantia para nós — disse Angela.
— De modo que conta com nossa permissão. De acordo,
queridos?
Otto e Kurt concordaram, olhando embevecidos a negra,
que os beijou docemente nos lábios, para espanto de Brigitte.
— Lamentavelmente — prosseguiu a esplêndida negra —
as aulas de hoje já terminaram ou estão terminando, e temos
por norma que nada deve interromper uma aula.
Absolutamente nada. Mas se deseja pode conhecer alguns
dos nossos alunos, e conversar com eles até a hora do jantar.
— Adoraria. Mas não quero entreter-me demais, pois não
conheço a região e, além disso, tenho que encontrar
alojamento...
— De maneira alguma! — exclamou Angela
— Você é nossa convidada! Temos alguns quartos
desocupados e tê-la conosco é um prazer.
Brigitte olhou para Kurt e Otto, que concordavam, mas
viu nos seus olhos que seus desejos não eram precisamente
os mesmos da Angela.
— Bom, vou então apanhar minha mala no carro...
— Roger se encarregará disso e de lhe preparar um
quarto. Agora vamos ao salão, e assim irá conhecendo
nossos discípulos à medida que terminem suas aulas. Sempre
há reuniões interessantes antes do jantar, para intercâmbio de
impressões e opiniões.
— Sem dúvida devem ser interessantes.
— É, sem a menor dúvida — disse Angela fitando-a
Saíram daquela sala, atravessaram o amplo saguão e
entraram em outra, um salão, onde havia uns trinta ou trinta
e cinco jovens de ambos os sexos, a maioria conversando
animadamente, de pé ou sentados em sofás e poltronas, uns
tomando aperitivos...
Ao perceberem a presença de Brigitte, ficaram
silenciosos e olhavam-na. Ela observava, olhando
rapidamente de um lado para outro, que eram todos jovens e
consideravelmente bonitos. Não havia uma só pessoa
naquele grupo que se pudesse chamar de feia. E, no entanto,
ela sentiu um calafrio cujo estremecimento esforçou-se para
conter. Por um instante pensou que sua reação era absurda
ante tal número de jovens tão bonitos. Em seguida, porém,
achou que se sentira aquela impressão sinistra tinha que ser
por alguma razão, pois sua sensibilidade crescia a cada dia e
alcançava, além dos simples e comuns, sentidos corporais.
Mas... Que podia haver de sinistro, de arrepiante, naquele
grupo de belos jovens? Deu-se conta de repente que Angela
falava dela para eles, e prestou atenção.
—... de tal categoria que KAO achou por bem autorizar a
senhorita Montfort não só a escrever a reportagem, mas
também a permanecer aqui o tempo necessário para conhecer
bem a situação e poder chegar às suas próprias conclusões.
Embora saiba que não preciso dizer, KAO agradece a
gentileza de vocês para com ela.
Houve um murmúrio de aceitação, e os olhares receosos
foram trocados por sorrisos. Brigitte por sua vez sorria, e foi
apertando as mãos de alguns deles, que se aproximaram com
atitude visivelmente cordial. Em questão de segundos e
quase sem se dar conta encontrou-se rodeada de jovens que
lhe sorriam, apertavam-lhe a mão e elogiavam sua pessoa e
sua personalidade profissional. Uma boa parte lera artigos
dela, e a elogiavam, enquanto nos seus olhos ela lia uma
mentira. Havia algo que a fazia estremecer.
— Alguns de nós também somos jornalistas, mas como
se diz, estamos nos cueiros — dizia uma garota loura.
— Tudo consiste em trabalhar — disse Brigitte
delicadamente. — As vezes a sabedoria não é mais que
experiência. Posso fazer uma pergunta?
— Certamente!
— Quem é KAO Angela falou como se eu soubesse...
— São as iniciais de Kurt, Angela e Otto — disse rindo
um jovem moreno, de olhos claros com um brilho perverso
que quase a assustou. — Eles tomam as decisões importantes
consultando-se entre si, e para não ficarem repetindo
“Angela, Otto e Kurt decidiram que...”, usam a sigla.
— Entendo. Bom, foi um prazer conhecê-los, mas se
estavam discutindo sobre temas em que só posso participar
dizendo bobagens, prefiro ir para o meu quarto, encontro
vocês no jantar.
— Falamos de temas que qualquer pessoa pode
participar. Você poderia até enriquecer nossa conversa.
— São todos muito gentis, realmente.
— Por exemplo, gostaríamos de saber sua opinião sobre o
que somos nós os seres humanos: bestas evoluídas ou seres
divinos em continua degradação?
— Caramba! — exclamou graciosamente Brigitte. —
Essa perguntinha é um sufoco.
Houve alguns risos à sua volta. Um rapaz de mais de um
metro e oitenta, louro quase albino, bonito e atlético, disse:
— As perguntas simples e as respostas idem não
interessam neste lugar, senhorita Montfort. Estamos aqui à
procura de alguma revelação mais ou menos importante
sobre o ser humano, daí não nos interessar o que se diz lá
fora. Claro que me refiro a coisas vulgares que gente vulgar
diz.
— Compreendo — disse Brigitte. — Mas, francamente,
no momento não conheço a resposta à sua pergunta.
— No momento? — saltou outro gato. — Quer dizer que
mais adiante espera encontrá-la?
— Ocorreu-me nesse minuto que talvez quando morra
saberei todas as respostas.
— Acredita então na vida após a morte!
— A morte não existe. O que há é uma transformação da
matéria e uma mudança de estado. Mas a energia que existe
em cada um de nós, isso existirá sempre.
— Ou seja, que somos eternos.
— Eternos como a energia do universo. Enquanto ela
viver nós estaremos vivos.
— Está me parecendo — interveio Kurt Hulm, — que sua
entrada no terreno filosófico é profunda demais para os
nossos discípulos.
— Realmente Achei que podia conversar nesse nível com
pessoas que me perguntam sobre a origem do ser humano.
Ou pensam que é mais fácil saber a origem do ser humano
que o seu destino?
Fez-se silêncio em volta da jornalista Por fim Otto ia
dizer alguma coisa, quando Angela se adiantou:
— A questão consiste em concentrar-se nas coisas desta
vida, não nas de antes ou depois.
— Talvez — disse Brigitte a fitá-la. — Mas
possivelmente se compreenderiam melhor as coisas
presentes se conhecêssemos um pouco o antes e o depois
— É possível — admitiu Angela. — Porém agora
estamos aqui, e é aqui que estão as coisas que nos
interessam. Nossas disciplinas, basicamente, estão
organizadas desse modo, senhorita Montfort.
— Não serei eu quem perturbe a ordem e o propósito de
suas aulas. Mas pelo menos me deixe responder o que penso
à primeira pergunta que me fazem. Eu, meus jovens, estou
plenamente convencida de que não somos bestas em
evolução. Me pergunto, Angela, se me permitiria agravar
minha degradação progressiva tomando uma taça de
champanha... Ou não é permitido beber champanha neste
encantador lugar?
Voltaram os risos.
— Champanha — disse Angela — é uma das coisas boas
da vida. Sempre a encontrará neste encantador lugar.
***
O quarto era austero, mas confortável, naturalmente com
calefação. Era evidente que tinham feito mudanças para
aumentar o número dos quartos, mesmo que ficassem
pequenos. O banheiro consistia numa pequena pia, vaso e
chuveiro. A cama era estreita e simples. No armário cabia o
imprescindível. Junto a ele, uma escrivaninha com uma
lâmpada dando para o centro da mesa...
Era tudo como se espera encontrar numa escola austera,
onde o que importa é o progresso mental, moral ou espiritual
dos alunos. No entanto, havia champanha na mansão, e o
jantar fora agradável e abundante. Quase cem pessoas
jantaram juntas naquela noite, repartidas em três mesas Na
maior delas sentara Brigitte acompanhando KAO e os alunos
que, ao que parecia, estavam mais adiantados nos estados de
“Les Olseaux”. A conversa versava sempre sobre o mesmo
tema de fundo, que ela finalmente ditara: que era o que mais
anseia o ser humano e como pode realizar-se.
Estava desconcertada e ao mesmo tempo quase assustada,
o que não lhe era frequente. Para assustá-la era preciso ser
verdadeiramente terrível, e ali não parecia haver nada disso.
No entanto pairava no ar alguma coisa, e no fundo dos olhos
daqueles jovens pressentia-se algo pavoroso, perverso,
malvado.
E como podia ser isto em jovens que pareciam dirigir
seus esforços no sentido de conhecerem o maior anseio do
ser humano e como realizá-lo?
Brigitte vestiu o único pijama que levava nesta viagem.
Tirou da valise um cigarro e o acendeu. Ficou olhando o
falso maço de cigarros que continha um rádio camuflado;
fora colocado na onda de Paris, isto é, a mesma que utilizava
Desmond Ambler quando já ferido se comunicou com Simão
II. A ideia era que se em qualquer momento ela encontrasse
dificuldades inesperadas que não pudesse resolver, pedisse
ajuda a Simão-Paris. Ele não poderia chamá-la em hipótese
alguma, pois se fosse num momento inoportuno podia
comprometê-la.
Se em quarenta e oito horas Simão-Paris não recebesse
notícias de Brigitte devia a CIA intervir diretamente. Até
então, e como era seu costume, “Baby” preferia trabalhar só,
evitando assim riscos para seus Simões, pois...
Bip-bip-bip, começou a soar o rádio no maço de cigarros.
Depois do primeiro susto inevitável, ela ficou a olhar o
rádio com expressão de aborrecimento. Será que Simão-Paris
não entendera suas ordens? Como se atrevia a desobedecer?
Mas imediatamente compreendeu que não era ele quem
chamava.
Devia ser Renzo Capavaro chamando pelo rádio de
Desmond Ambler, que desaparecera e que podia muito bem
estar com o amigo desaparecido. Mas poderia estar em mãos
de outras pessoas, e que Capavaro estivesse morto, como
Desmond Ambler...
Bip-bip-bip-bip, continuava chamando, abafadamente, no
maço de cigarros. Se respondesse podia meter-se numa
armadilha, pois identificariam sua voz. Mas se não
respondesse corria o risco de perder uma comunicação
importante, mensagem que solucionasse a situação.
Tomou uma súbita decisão intermediária: abriu o canal de
recepção do rádio, tirando um dos cigarros, mas não falou.
Se quisessem dizer alguma coisa, ela escutaria. Mas ninguém
disse nada.
Não se ouviu nada. Brigitte apertou os lábios, e seus
olhos adquiriram aquela gélida expressão que não
pressagiava nada bom. Sabia que a pessoa que manejava o
outro rádio fazia o mesmo que ela: esperar.
Enquanto esperava, tirou uma pistolinha do fundo falso
da valise, onde havia vários passaportes e dinheiro vivo, bem
como diminutas ampolas de drogas especiais preparadas nos
laboratórios da CIA.
Brigitte levantou a blusa do pijama e com um pedaço de
esparadrapo prendeu a pequena arma em baixo do seio
esquerdo. Desligou o rádio, deitou-se, e logo depois dormiu.
CAPÍTULO QUINTO
Uma passagem secreta na adega

Despertou-a o distante, amortecido e inconfundível piar


de alguns pássaros.
Abriu os olhos, e ficou olhando o teto. Pela pequena
janela alta que se abria para o pátio, divisava-se uma
claridade difusa, e Brigitte compreendeu que o céu estava
carregado de espessas nuvens que logo se transformariam em
copiosa chuva. Apesar disso os pássaros acolhiam o dia
alegremente nos telheiros da mansão. “Les Olseaux”. Os
pássaros. O nome encaixava bem com a mansão.
Olhou as horas. Oito e dez. Não fosse o tom leitoso das
nuvens, o dia seria visto mais escuro. Que clima detestável!
Mas ela não estava ali para protestar nem para ficar na cama.
Às nove horas aparecia na grande sala de reunião, onde
os alunos de KAO estavam em sua quase totalidade
conversando animadamente à espera de desjejum. Kurt Hulm
estava presente, mas não Otto Pfalzer e Angela.
— Estão indispostos, talvez? — interessou-se Brigitte.
— Não — replicou Kurt quase de mal-humor. — Estão
perfeitamente bem. Hoje você pode começar assistindo a
minha aula, que é a primeira.
— Com muito prazer. Obrigada, senhor Hulm.
— Mas estou convencido de que não precisa de aula nem
de exercício para afirmação de sua personalidade e confiança
em si mesma.
— A que se refere exatamente?
— Ao tema de hoje... Mas não falemos mais. Vejo-a
daqui a pouco.
A aula começou às nove e meia, nos subsolos da mansão,
que tinham janelas ao nível da base da casa, vistas de fora.
Onde Brigitte pensara haver depósitos para trastes velhos,
havia várias dependências, também aproveitando o espaço
térreo original da mansão. Eram quatro as salas de aula.
Separando duas salas de um lado e duas de outro, havia um
amplo corredor em cujo final estava a adega, que Brigitte se
propôs a visitar com calma, pois por experiência sabia que os
porões costumam guardar muitas surpresas.
A aula de Kart Hulm proporcionou-lhe também uma
surpresa. Sobre cada carteira havia um aparelho quadrado, de
uns quarenta centímetros de lado, e Brigitte tomou o que
estava na sua e olhou nele. Nada espacial
— Estou lindo esta manhã — disse um dos rapazes.
Ouviram-se risos. Kurt Hulm estava evidentemente de
mal-humor, e Brigitte atribuiu isso à ausência de Angela e
Otto. Não haveria alguma rivalidade do tipo sentimental
entre Otto e Kurt por culpa de Angela?
— Não se trata de encontrar essa beleza, Manfred —
disse Hulm. — A beleza física é algo que se vê com um
olhar, não admitindo controvérsias nem explicações.
Busquemos outra espécie de beleza. E já que foi o primeiro a
fazer comentário, mire-se no espelho e diga-me o que vê
nele. Sem gozação, por favor.
O rapaz se olhou, enquanto os outros alunos observavam
intrigados. Tão intrigados como a própria Brigitte, que
entendia naturalmente tratar-se da primeira aula com espelho
em “Les Olseaux”. Seria a mansão um quartel? A que
espécie de exército referira-se Desmond Ambler antes de
morrer? E a que bucha de canhão, e a que vitimas...? Onde
estaria Renzo Capavaro, se é que estava vivo?
— Bem, Manfred — insistiu Hulm, ante a demora do
rapaz em dizer alguma coisa. — Que está vendo?
— Francamente, só vejo um bonito homem disposto a
gozar a vida enquanto tiver fôlego.
Os risos se fizeram ouvir novamente. Kurt fechava a cara
e seu olhar posou em Brigitte.
— Senhorita Montfort, gostaria de repetir a tentativa de
Manfred?
— Contemplar-me no espelho?
— Exatamente.
— Faço isso diariamente e temo que a minha reação seja
idêntica à dele.
Agora riram todos. Até Kurt Hulm sorriu levemente.
— Tudo bem. Isso se presta a essa espécie de brincadeira,
mas estou falando sério. O exercício de hoje consiste em que
cada um se contemple durante todo o tempo da aula. Em
seguida conversaremos sobre isso. E para que compreendam
que não é nenhuma bobagem, a senhorita Montfort explicará
para nós em primeiro lugar suas experiências... For favor,
senhorita Montfort, quer ter a gentileza de se contemplar no
espelho e dizer o que vê?
Brigitte o fez com detalhe e em profundidade Era curioso,
mas logo começou a encontrar em seu rosto pequenos
detalhes que jamais notara; formas dignas de estudo,
particularidades de sua pele... Mas o que olhava
constantemente eram seus olhos, que iam ficando mais e
mais azuis e enormes...
E começou a ver algo novo. Algo que a surpreendeu. Se
bem que não foi algo que viu, mas sim que sentiu, de
repente. Levantou-se prontamente e olhou para Kurt Hulm.
Este levantou as mãos e murmurou:
— Não fale, por favor. Não diga nada. Permita-me que
lhe diga que você é a pessoa que mais facilmente encontrou
no espelho uma das muitas respostas que dele podemos
obter. Pode continuar a sua busca, se quiser, mas não diga
nada agora. Os demais, procurem essas respostas.
— Mas respostas... a que perguntas? — quis saber uma
das moças.
— Aí é que está — sussurrou Kurt Hulm. — A
contemplação de nós mesmos provoca interessantes
perguntas... e facilita as resposta. For favor, concentrem-se
todos em sua própria contemplação.
Brigitte deixou de olhar para Hulm e voltou ao espelho.

SEM PECADO CONCEBIDA

Pelo vidro da janela viu chegar o táxi de onde saltaram


duas freiras. Chovia naquela lúgubre noite que afogava o
lugarejo de Vitry-aux-Loges como num pântano, num poço
de eterna escuridão rasgada pelos fios brilhantes da chuva.
As fieiras correram graciosamente até a entrada do hotel,
enquanto o chofer do táxi saía do veículo, tirava um par de
malas e corria também para o hotel. Por uns minutos pareceu
que tudo fosse ficar assim, indefinidamente, mas finalmente
o chofer reapareceu, meteu-se apressado no táxi,
cumprimentou com um gesto e partiu.
A esplanada ficou novamente deserta, à mercê da chuva
incessante, monótona. Interminável. Na fachada do pequeno
hotel, cujo nome era “Lunette”, havia um rótulo luminoso
esverdeado que emitia um pisca-pisca, mas não
deliberadamente e sim devido a algum estrago na fiação.
A ruiva alta e forte, que tinha os óculos de fundo de
garrafa em sua mão, deixou a janela e voltou seu olhar para
os dois padres assassinados que jaziam no meio do quarto.
Era como se não tivesse acontecido nada, como se o tempo
não corresse. Certamente os cadáveres deviam conservar
ainda algum calor. Mas logo esfriariam. Para sempre.
A ruiva assassina sentou-se numa poltrona, empunhou o
revólver e fechou os olhos. Quando os abriu, três minutos
depois, podia ver bem melhor que antes na escuridão do
quarto. Foi até a porta, destrancou-a e voltou para a poltrona,
sempre com o revólver na mão. Ela sabia que o tempo
transcorria normalmente, mas a quietude, o silêncio e a paz
daquele lugar pareciam prolongá-lo.
Não fazia nem dez minutos que as freiras tinham chegado
quando soou a chamada à porta do quarto dos padres. A
ruiva não respondeu. Nem sequer se moveu.
Repetiu-se a chamada, e em seguida a porta foi
empurrada, deixando ver uma ampla faixa de luz procedente
do corredor. Ouviu-se um riso feminino e, recortadas na luz
do corredor, distinguiram-se perfeitamente as silhuetas das
duas freiras, que entraram rapidamente no quarto e fecharam
a porta.
Ficaram lá, emitindo risonhos maliciosos, e uma delas
disse de repente:
— Ave Maria Puríssima...
— Sem pecado concebida — disse a ruiva.
Levantou o revólver e atirou duas vezes, plof, plof,
metendo uma bala no coração de cada uma.
Uma delas nem suspirou; simplesmente caiu
redondamente no chão. A outra andou de costas, emitindo
um gemido fundo e dolorido, esbarrando na porta e caiu de
braços, ficando imóvel.
A ruiva levantou-se, foi trancar a porta e voltou para sua
poltrona. Olhou as horas e viu que eram só sete e quarenta e
nove da noite. Em muitos lugares do mundo aquela hora não
somente era dia como fazia calor, e as pessoas podiam
banhar-se em águas transparentes e mornas.
Enquanto que ali parecia que a vida e o mundo estavam
chegando ao fim. Era tanta a calmaria que a ruiva se deu
conta logo que se descuidasse iria dormir. Decidiu que o
melhor modo de manter-se acordada era pensar. Recordar.
***
Finalmente, Kurt Hulm decidiu dar por terminado o
experimento e pediu que deixassem de se contemplar no
espelho.
— Então? — perguntou. — Alguém obteve alguma
resposta?
— Bom — disse uma das alunas, — eu me perguntei o
tempo todo o mesmo de ontem, Isto é, qual o maior anseio
do ser humano e como satisfazê-lo, mas... não obtive
resposta alguma.
— Isso, querida Ingeborg, é simplesmente porque a
pergunte não se adequava a esta experiência. E quando a
pergunta é inadequada não devemos nos surpreender em ter
o silêncio por resposta, Carlo?
O atleta a quem dirigiu a pergunta balançou a cabeça
negativamente.
— Sinclair?
— Sinto muito, mas não obtive resultado.
— Bem... Alguém obteve uma resposta?
— Eu — disse Brigitte.
— Resposta a que pergunta? — interessou-se Hulm.
— Bom, na realidade não perguntava nada de concreto.
Só que de repente tive a sensação de que desejava saber onde
podia encontrar energia e conhecimentos suficientes para
que minha vida se desenvolvesse sempre por caminhos
proveitosos e felizes.
— E obteve resposta?
— Sim.
— Podemos conhecê-la?
— Certamente. Não seria justo que me permitissem
participar de suas aulas e eu lhes negasse minha possível
contribuição. A resposta que obtive foi que tudo quanto
pudesse precisar e quisesse procurar encontraria em mim
mesma, sempre.
Houve uns segundos de silêncio, enquanto todos,
inclusive Hulm, contemplavam com grande interesse a espiã
internacional. Por fim o alemão perguntou:
— Surpreendeu-se com essa resposta, senhorita Montfort.
— Na verdade, não. Para ser sincera essa tem sido minha
norma de vida. Por intuição sabia que esse é o modo de se
viver. Mas nunca surgira a pergunta ou o desejo de saber em
minha mente, e assim não procurava resposta alguma. No
entanto, contemplando meus olhos no espelho assomaram
quase simultaneamente a pergunta e a resposta. Não sei se
me explico bem.
— Muito bem. E quero dizer-lhe que só as pessoas
altamente evoluídas encontram perguntas e respostas. Esta
aula do espelho terá continuidade até que todos vocês aqui
presentes alcancem o nível da senhorita Montfort.
— E quanto tempo pode levar isso? — perguntou uma
aluna.
— Um segundo. Um século. Ou pode ser que não se
consiga nunca, Elaine. Não é uma questão de tempo ou de
manipulação de objetos ou instrumentos, mas sim de
crescimento interior, e isso é imprevisível. Alguém pode
estar submerso numa ignorância total da vida e de repente
alcançar a revelação. Uns demoram muito a chegar lá, outros
nunca o conseguem. Mas precisamos tentar. De acordo
— Posso me retirar? — pediu Brigitte. — Se se trata de
repetir a experiência...
— Vemo-nos ao meio-dia — sorriu Hulm. — Agradeço a
colaboração.
Brigitte deixou a sala de aula. Encontrou-se sozinha no
corredor, e depois de fechar a porta, esteve uns poucos
segundos sem ouvir nada. Em seguida começou a ouvir
rumor de vozes, que localizou rapidamente. O barulho vinha
das salas de aula, que tinham suas portas fechadas
Possivelmente Otto e Angela continuavam sem aparecer, e
os alunos esperavam conversando.
A ideia de Brigitte tinha sido localizar o escritório ou o
compartimento onde se instalava a diretoria de “Les
Oiseaux”, mas certamente não podia fazer isto se Angela e
Otto estavam lá por cima. De modo que decidiu dar uma
olhada no resto do subsolo e foi até o fundo, onde estava a
adega, conservada à temperatura ambiente. À direita, um dos
janelões que quase tocavam o teto e que vistos de fora
estavam à base dos muros permitia a entrada de uma luz
esbranquiçada que continuava pressagiando chuva.
Havia alguma coisa especial naquela adega.
Guiada por sua experiência, começou a percorrer
lentamente o local. Mesas enormes estavam repletas de
garrafas de vinho e de champanha, e por um momento teve a
tentação de abrir uma delas, mas desistiu. Iriam considerá-la
estranha demais...
Não parecia ter nada particular ali. Isso não a surpreendia,
pois sabia que nem todas as adegas escondem algo, nem ela
teria que acertar sempre.
O melhor era subir e procurar a oportunidade de meter o
nariz em alguma parte que contivesse indícios Interessantes.
E no exato momento em que se dispunha a dirigir-se à saída
da adega, ouviu a voz bem timbrada de Angela distante e
abafada. Então ela e Otto terminaram sabe-se lá o que, e
tinham ido dar aula.
O aparecimento deles na adega quase a pegou de
surpresa. Só no último instante, ouvindo suas vozes, é que
compreendeu que iam entrar na adega, e se escondeu
rapidamente detrás de uma das grandes estantes repletas de
garrafas.
—... o caminhão — dizia Angela. — Não pode haver
nenhum problema.
— Veremos o que diz Laforet — parecia conciliar Otto.
À medida que a gigantesca negra e o alemão se
deslocavam pela adega, Brigitte ia fazendo o mesmo, de
modo que sempre permanecia oculta pela estante.
Finalmente se detiveram no fundo da adega, e Otto agarrou
um suporte de uma das prateleiras apoiadas na parede e o
puxou.
Brigitte não se surpreendeu nem um pouco quando parte
da estante se abriu, como uma porta, com as suas garrafas.
Apareceu o princípio de uma passagem estreita, e uma gélida
corrente de ar penetrou na adega, fazendo-a estremecer.
Ao contrario do que esperava, Otto e Angela não
entraram pelo corredor, por ele veio um homem, e a porta
camuflada fechou-se outra vez. O recém-chegado era um
negro gigantesco, mais alto que a Angela uns seis ou sete
centímetros; o cabelo era encarapinhado e ele o usava bem
baixo. Vestia roupas comuns e uma capa impermeável para
proteger-se da chuva. Suas feições eram atraentes, mas com
uma expressão de dureza que chegava a parecer cruel.
As esperanças de Brigitte de se inteirar de alguma coisa
se frustraram, quando o negro e Angela começaram a falar
um idioma qualquer africano completamente desconhecido
por ela. Parecia que Otto também não entendia nada, mas por
breves comentários que lhe fazia Angela, de quando em
quando, via-se que estava a par do que conversavam.
Quanto a Brigitte, de tudo quanto falaram Angela e
Laforet — pois era esse o nome do negro — só chegou a
distinguir seu nome, e isso mesmo não muito claramente,
isto é, que os dois negros falaram dela e de um lugar
chamado Vitry-aux-Loges, se entendera bem.
E antes que pudesse obter mais informações ou tomar
qualquer iniciativa, simplesmente o gigante negro chamado
Laforet saiu da adega pela mesma porta por onde entrara,
desaparecendo na escuridão da passagem Angela e Otto
dirigiram-se para a porta da adega que levava ao corredor.
— Agora é melhor irmos dar as aulas — disse Otto. —
Comunicaremos depois a Kurt a decisão tomada com Laforet
— Certo. Ela está com Kurt?
— Sim Combinamos que a manteria ocupada em sua
primeira aula...
Continuavam falando dela, mas desapareceram corredor
adiante. A espiã ficou novamente sozinha e como que
mergulhada no silêncio.
Dispunha de diversas alternativas: dar uma olhada na
passagem secreta, subir e revistar o compartimento que
servia de controle das atividades da mansão, ou entrar numa
das classes, fingindo que acabava de sair da aula de Kurt
Hulm...
Optou por procurar o escritório, pois lhe parecia ser o
mais difícil de conseguir em circunstâncias normais.
CAPÍTULO SEXTO
A espiã é apanhada em flagrante

O mobiliário do gabinete era antigo, sobrecarregado, com


uma remota sensação de conforto acentuada pela chaminé
localizada à direita da entrada. Em frente à chaminé
encontrava-se uma mesa enorme, atrás da qual pesadas
cortinas ocultavam um janelão alto e largo. Uma estante
estava abarrotada de velhos volumes grossos, encadernados
com couro. Tapetes, quadros, poltronas... Tudo limpo, mas
dando a sensação de velho e empoeirado... menos o fichário
metálico colocado à esquerda da grande mesa do escritório.
Brigitte fechou a porta atrás dela, mergulhando
novamente naquele silêncio pesado, espesso, lúgubre e até
sinistro. Continuava pensando no negro Laforet. Talvez seus
companheiros da CIA o tivessem visto por ali, mas era de se
esperar que ele tomara suas precauções antes de entrar na
passagem que o levaria à mansão. E ela não podia utilizar o
rádio, pois seu desconhecido participante se inteiraria das
instruções que desse aos Simões...
Era melhor esperar um pouco mais.
O fichário.
Aproximou-se dele, percebendo imediatamente que
estava trancado com chave múltipla, isto é, que com uma
única chave fechavam-se todas as gavetas. Examinou a
pequena fechadura na parte superior e riu. Procurou na mesa
um grampo de prender papel e desdobrou uma das
extremidades. Introduziu o arame assim conseguido na
fechadura, experimentou durante uns segundos, retirou-o,
torceu-lhe a ponta nos dentes.
Mais dez segundos e a espiã tinha em mãos a pasta em
que constavam todos os dados sobre Renzo Capavaro. Havia
um total de nada menos que duzentas pastas suspensas
dentro das gavetas, e Brigitte localizou facilmente as de
alguns dos alunos com quem conversara na noite anterior e
nessa mesma manhã.
Mas dedicou sua atenção à de Renzo Capavaro. Estava ali
anotado que, com efeito, era homossexual. Ela lembrou
então as viagens de Desmond Ambler a Milão e sua
concordância imediata em ir ao encontro marcado por
Capavaro. Mas não vinha ao caso serem eles amantes ou
não. O que importava, e muito, era a sua mensagem a Simão
II, advertindo sobre “milhares de vítimas”.
Já era uma certeza que Renzo Capavaro saíra dali, de
“Les Oiseaux”, para o encontro com Desmond Ambler, a
quem deu o aviso; portanto ela estava na pista, na mesma
que ele quisera proporcionar a Desmond.
O ouvido apurado da espiã desencadeou os
acontecimentos que se seguiram. Ela ouviu um suave “clic”
de mecanismo em alguma parte, e se virou prontamente,
levantando a cabeça. Continuava só no gabinete, mas tinha
consciência, de que ouvira um som característico de
mecanismos metálicos. Procurou então à sua volta.
E encontrou.
Por cima da cortina que ocultava o largo janelão, entre
duas pregas, viu o olho negro que sem dúvida alguma estava
a observá-la. Pegou o atiçador da chaminé, aproximou-se da
cortina e afastou-a, deixando perfeitamente visível a pequena
câmara de televisão que exatamente naquele momento
voltava a girar sobre seu suporte engrenado para focar outro
ângulo do escritório.
Ou a viam ao vivo ou a estavam filmando e não tardariam
muito em saber que a convidada de “Les Oiseaux” estivera
praticando a tremenda descortesia de revistar o gabinete de
seus anfitriões. Já não haveria dissimulações.
Rapidamente, foi até a porta e a abriu cautelosamente...
Em vão, porque em frente à porta, imperturbável, estava
Roger, contemplando-a friamente. Cercavam-no dois jovens
cujo olhar sorridente fez ficarem de pé os cabelos da espiã
mais perigosa do mundo.
— Complicou a sua vida, Mademoiselle — sussurrou
Roger.
Brigitte não respondeu. Roger deu um sinal e os dois
lindos atletas deram um passo até ela, que estava pensando
rápido. Se tirasse seu pequeno revólver do esconderijo
habitual, teria que matar três homens antes que tivessem
tempo de reagir, o que era difícil demais. Se, em troca,
lutasse sem armas, eles confiariam em que poderiam
dominá-la sem nenhum risco, e não recorreriam a suas
armas. Já enfrentara centenas de adversários assim de
bobeira, e mais uma vez a agente “Baby” tirou partido de sua
inteligência superior, como estratégia.
A primeira coisa que fez foi fingir que ia voltar para o
gabinete, possivelmente para se trancar ali e em seguida
tentar escapar pela janela.
Mas o que na realidade tez foi começar a voltar, virar-se
de novo para eles e acertar o mais próximo com o atiçador
do fogo. A cabeça do atleta soou como se fosse um melão;
sem um gemido, com os olhos virados, despencou morto na
mesma hora.
Atingiu em seguida o baixo ventre de Roger, com um
tremendo pontapé, fazendo-o urrar de dor, saltar e cair de
joelhos, estatelando-se de cara sem tardança.
O outro atleta saltou sobre Brigitte, lhe sujeitou a mão
direita com sua esquerda, e com a direita pegou-a pelo
pescoço, rodeando-o completamente com seus longos e
fortes dedos.
— Quieta, ou quebro seu pescoço.
Sacudiu o braço de Brigitte, e o atiçador caiu no chão.
Depois de largar-lhe o pescoço, aplicou-lhe um tremendo
bofetão com a esquerda, fazendo-a sentar no chão.
— O que você fez vai lhe custar... — começou a dizer o
rapaz.
Viu as pernas de Brigitte, suas esplêndidas coxas, e viu a
mão direita dela arrancando da coxa esquerda aquele
pequeno objeto preso ali com um esparadrapo. Quando
compreendeu o que era, sobressaltou-se, arregalou os olhos e
levou a mão à cintura à procura do revólver.
Brigitte esticou o braço e disparou.
Plof.
O rapaz recebeu a bala no centro da testa, pareceu
tropeçar em alguma coisa, oscilou, braços molemente
pendurados, e se despencou para frente. Dois metros adiante,
no chão, Roger dera-se conta da situação, e seus olhos fora
de órbita fixaram-se em Brigitte, que se pôs de joelhos e
apontou para o fundo do corredor que levava à zona de
serviço, quando outro homem apareceu por ali, correndo e
empunhando um revólver, disparou de novo. O coitado
gritou, rodopiou e deslizou numa trágica demonstração de
patinagem.
E mais uma vez a iniciativa surpreendente da espiã
salvou-lhe a vida: em vez de correr e se trancar no escritório,
pôs-se de pé de um salto e correu para a zona de serviço,
pulando por cima do homem recém-derrubado com uma
segurança e agilidade que deixava Roger paralisado. Quando
por fim reagiu, começou a gritar:
— Ela vai para...!
Brigitte virou-se, numa encantadora pirueta, um giro
completo durante o qual disparou contra Roger, e continuou
a correr para o fundo, deixando Roger morto com uma bala
entre as sobrancelhas. Ela procurava a cozinha, onde o
pessoal seria multo mais fácil de manejar, naturalmente
pouco acostumado à luta.
A boa sorte da espiã parecia continuar em evidência, pois
quando estava a menos de cinco metros da grande porta da
cozinha esta se abriu, aparecendo um homem que, ao ver
Brigitte correndo para ele naquela velocidade e com um
revólver na mão, deu um grito e se afastou. Ela ia entrando
como uma bala, e o homem que estava detrás da porta
empurrou-a contra ela.
O choque foi grande, arrepiante, tremendo. A sensação
dela foi de que se partiam todos os seus ossos e que dentro
de sua cabeça explodira uma bomba. Teve a dolorosíssima
sensação de esbarrão, e soube vagamente que caia de costas,
mergulhou então na mais negra escuridão.
***
— De modo que continua viva — ouviu a voz, como um
eco longínquo de ressonâncias sinistras... — É uma mulher
surpreendente, senhorita Montfort, e muito perigosa. Só tem
feito mesmo pequenos favores à CIA?
À medida que soava a voz, as trevas que pareciam lhe
envolver a cabeça iam se dissolvendo, como fumaça ao
vento. De repente pôde ver com toda clareza a enorme
Angela, de pé junto a ela. Ladeavam-na Kurt e Otto.
Brigitte respirou fundo, devagar, enquanto seus olhos se
moviam com a precaução da experiência. Sabia que depois
de um grande choque até seus olhos podiam estar doidos.
Por sorte não acontecia isso. Encontrava-se deitada numa
cama, completamente nua e amarrada em forma de X. Não
era a primeira vez.
— Sua beleza chega a ser incômoda — sussurrou Angela.
Brigitte olhou de novo para ela, mas não se deu ao
trabalho de responder. Começava a perceber que lhe doíam
diferentes partes do seu corpo; eram sem dúvida os pontos
que maior impacto receberam do choque contra a porta da
cozinha. Não pôde evitar um sorriso um pouco sarcástico: a
agente “Baby” derrotada pela porta de uma cozinha. Uma
piada.
— Está achando graça do quê? — perguntou Angela um
tanto surpresa.
Também desta vez Brigitte não respondeu, limitando-se a
olhar as cordas que a prendiam à cama. Amarraram bem,
mas se lhe dessem tempo faria uma surpresa. Por sorte
aquela gente não sabia com quem estava lidando realmente.
— Uma pessoa tão extraordinária como você — disse
Angela, — bem poderia ser a agente “Baby”. Parece-lhe
razoável minha suposição, senhorita Montfort?
Não houve sequer uma crispação no rosto da espiã
internacional. Seus olhos azuis fixaram-se inexpressivamente
nos de Angela, e só.
— Sim — disse a negra, — estou certa de que você é a
agente “Baby”. E sabe por quê? Porque Renzo Capavaro me
disse. Sabe a quem me refiro, não? Ao homossexual que
fazia par com o agente da CIA chamado Desmond Ambler.
Lamentavelmente o senhor Ambler faleceu, mas não o
Capavaro. Gostaria de vê-lo?
— Sim
— Não — riu Angela. — Acho que não gostaria... Mas
eu considero conveniente que o veja: assim poderá ter uma
ideia do que pode lhe acontecer. Muita gente pensa que esses
homens são como mulherzinhas covardes, e isso está longe
da realidade. Na sua maioria são normas nos demais aspectos
de sua vida, e inclusive são destemidos. Temos o caso de
Desmond Ambler e do próprio Capavaro, outro valente. Tão
corajoso que, depois que o capturamos após sua entrevista
com Ambler, negou-se a dizer a verdade do seu estranho
comportamento. Queria convencer-nos de que seu encontro
com Ambler fora puramente pessoal, amoroso, compreende?
Mas já estávamos de olho nele, e não podíamos acreditar.
Principalmente sabendo que seu amigo era da CIA. Sabe o
que ele finalmente nos disse?
— Sim?
— Que os nossos projetos o assustaram; que uma coisa
era procurar estudar e adquirir recursos para se converter
num ser superior, e outra era transformar-se num criminoso
manipulador de bucha de canhão... Ao compreender a
realidade dos nossos projetos e estudos, assustou-se, ou
melhor, sua consciência fraquejou, não pôde resistir. E
arranjou uma oportunidade para ir ao “Les quatre routes”.
Quando o interpelamos, disse que só tinha ido tomar um
trago e estirar um pouco as pernas, mas nós sabíamos que ele
telefonara marcando um encontro. Advinha com quem?
— Com Desmond Ambler.
— Certo. Como deve compreender, para essa ocasião nós
o tínhamos muito bem vigiado, e quando foi ao encontro
saímos a procurá-los. Nós os queríamos vivos, mas Ambler
não foi nem um pouco razoável, e para detê-lo tivemos que
atirar. Renzo Capavaro preferiu entregar-se.
— De modo que foram vocês que mataram Desmond
Ambler.
— Coube-me essa honra — sorriu Angela. — Depois
trouxemos Renzo para cá, e ele nos disse que explicara tudo
a Desmond Ambler, e este achara que o melhor seria passar a
informação à Central, para que avisassem a agente “Baby”
Por sorte não teve tempo.
— Claro que teve — mostrou surpresa Brigitte. — Se
Ambler não tivesse passado a informação à Central eu não
estaria aqui.
— Você não está aqui por isso, mas sim para fazer
averiguações. Se soubesse a verdade não teria necessidade
de fazer tudo isso. Simplesmente teria vindo acompanhada
de cem homens para se apoderar da mansão e de todos nós.
Isso quer dizer que se Desmond Ambler pôde dizer algo pelo
rádio, deve ter sido muito pouca coisa...
— O suficiente para que eu esteja aqui na mansão
rodeada de homens da CIA.
— Sim, isso é verdade. Mas logo estará resolvido esse
pequeno contratempo, e isso graças a você, que vai dizer-
lhes por rádio que aqui não há nada inquietante e que devem
levantar o cerco.
— A troco de que vou fazer essa bobagem — sorriu com
desprezo Brigitte.
— De sua liberdade.
— Com quem acham que estão lidando? Não tem
cabimento que primeiro pretendam obrigar-me a dispensar
meus companheiros, e que depois me deixem ir ter com eles,
pois lhes diria a verdade e voltaríamos aqui para acabar com
todos vocês.
— É que jamais poderá dizer-lhes a verdade mesmo que a
deixemos livre, senhorita Montfort. Digamos que,
infelizmente, sofrerá um... acidente.
— Que espécie de acidente?
— Você vai ver. Esta noite, depois de se comunicar com
seus companheiros, você sairá daqui em seu carro a caminho
de Mereville. Lamentavelmente lá está o rio... e a velha e
simpática ponte. Sabe a que rio e pontilhão me refiro.
— Sim.
— Bem... Mas que azar! Seu carro se choca contra a
amurada da ponte e você cai no rio. Seu cadáver jamais será
encontrado.
— Não diga bobagem. O rio é pequeno e facilmente se
encontra um cadáver nele, principalmente vendo-se cair o
carro... Além disso, quem lhe garante que eu vou bater?
— Não será você quem dirige o carro, mas sim uma das
nossas belas jovens, usando suas roupas. Quando seus
companheiros da CIA chegarem ao local do acidente ela já
terá saído do carro e regressado para aqui sem nenhum
problema. Se não a encontram no carro acidentado, a
conclusão é simples: levaram-na as águas. E jamais será
achada. Supomos que a CIA não se conformará facilmente,
mas agora sabemos com certeza que o que Ambler pôde
dizer-lhes não é suficiente para que tomem decisões contra
nós. Uma coisa é certa: no futuro seremos mais cuidadosos e
tentaremos não cruzar o caminho da CIA. Em resumo,
senhorita Montfort, obrigada por ter vindo, deixando-nos
assim informados; vamos deixá-la até a noite, quando
chamará seus companheiros para dizer-lhes que tudo está
bem, que somos gente... honrada e tranquila, e que você
abandona “Les Oiseaux”
— Não farei semelhante coisa.
— Quer apostar — sorriu Angela. — Também
voltaremos a falar de Renzo Capavaro e da conveniência de
que o veja... mesmo sabendo que não vai gostar, isso eu
garanto.
Angela saiu do pequeno quarto que Brigitte não sabia em
que parte da mansão se localizava, e Otto e Kurt ali
permaneceram. Ela os olhou interrogativa.
— Não levarão isto avante, seja o que for.
— Se não levamos não será por sua causa, mas porque
não preparamos suficientemente o pessoal... Mas isso logo
saberemos.
— A que se refere?
— Estamos preparando...
— Cale-se — resmungou Otto. — Não vê que ela quer
saber demais?
— E que importa? Ela jamais poderá impedir nenhum de
nossos projetos, Otto.
— Em todo caso, é melhor calar.
Kurt Hulm permaneceu em silêncio, e Brigitte, depois de
olhar de um para outro, insistiu:
— Que é que estão tramando? Que significa isso de novo
exército e de milhares de vítimas? Que é bucha de canhão?
Kurt não respondeu. Otto se aproximou mais da espiã,
levantou o braço e bateu com força no ventre de Brigitte, que
teve de fazer um esforço para não gritar e deixar seu orgulho
ferido. O golpe parecia percorrer suas entranhas como um
ferro em brasa, mas permaneceu em silêncio.
— Você é dessa espécie de gente, hem? — arquejou Otto.
— Pois vamos ver quanto resiste!
O segundo golpe foi bem mais forte que o primeiro, mas
ela continuava impassível. Kurt riu, e Isto foi ruim para
Brigitte, pois Otto se enfureceu e bateu-lhe agora no rosto.
Seu lábio inferior partiu-se e começou a sangrar. Ela nem
pestanejou.
Possivelmente a coisa teria terminado muito mal para
Brigitte se finalmente não regressasse Angela...
acompanhada de um monstro que era carregado por dois dos
atléticos alunos de KAO.
— Aproximem-no para que o veja bem — disse Angela.
Eles o colocaram bem à vista da espiã, que o olhava de
modo inexpressivo, mas sentindo por dentro um espanto, um
horror e até repugnância, que lhe embrulhou o estômago.
Era evidente que aquilo era um homem, mas seu aspecto
era de monstro. Haviam-lhe cortado as pálpebras, não
podendo assim fechar os olhos; tinha a boca e os dentes
estraçalhados, os pómulos abertos a golpes e infeccionados;
seus cabelos foram arrancados, inclusive com o couro
cabeludo, em vários pontos; suas mãos pareciam desfeitas a
marteladas, e suas pernas balançavam, como se fossem de
trapo, quebradas sem dúvida em vários pontos. Era um
milagre o fato de aquele farrapo humano continuar com vida;
um milagre que ninguém podia desejar.
Ele quis falar, mas de sua boca brotaram sons que
pareciam chiados de ferros velhos oxidados.
— Está pedindo que o mate — disse Angela. — Passa o
dia rogando-nos esse favor. Bom senhorita Montfort, espero
que o tenha reconhecido.
Brigitte virou o rosto para o outro lado da cama. Angela a
agarrou pelos cabelos.
— Claro que o reconheceu — sussurrou. — É o lindo
Renzo Capavaro, homossexual e desportista. Ou que resta
dele. Gostaria que lhe fizéssemos o mesmo, senhorita
Montfort? Gostaria? — deu um forte puxão nos cabelos dela.
— Não... Não gostaria — murmurou Brigitte.
— Então, já sabe o que tem que fazer esta noite, é claro
que depois da chamada você morrerá. Mas, acredite, a morte
é muito melhor que as coisas que poderíamos fazer com
você. Além disso, segundo a sua crença, você não morrerá
nunca, não é assim? Enquanto a energia do universo estiver
viva você também estará... Não é essa a sua teoria, seu modo
de ver a vida.
— Sim.
— Então... por que se preocupar? Você faz a chamada
como eu lhe digo e depois... simplesmente ajudamos a
transformar sua matéria E sem qualquer estrago
desnecessário, eu lhe prometo.

CAPÍTULO SÉTIMO
Presa numa gaiola

Quando soou a chamada pelo rádio, Simão Paris virou-se


com expressão incrédula para o agente que o acompanhava,
sentado a seu lado ao volante do carro. Os dois ouviam
perfeitamente o zumbido da chamada, mas não queriam
acreditar.
— Se chama é porque está acontecendo o pior — disse o
agente da CIA.
— Talvez seja um dos rapazes chamando.
— Não creio, senhor. A ordem é de ninguém utilizar esta
onda enquanto “Baby” permanecer em “Les Oiseaux”. De
modo que se o rádio dá sinal é que ela está chamando.
Nenhum dos rapazes faria nada que pudesse prejudicá-la.
Simão-Paris concordou. Isso era uma das poucas coisas
de que podia ter certeza. Tirou o rádio do bolso interno e
atendou:
— Sim?
— Simão, sou eu — soou a voz de “Baby”,
inconfundível. — Não me faça perguntas agora, pois
disponho de pouco tempo. Estou falando de um banheiro...
Bem, vou sair daqui, pois estamos perdendo tempo.
— Que quer dizer?
— Nesta mansão só existem jovens encantadores que
pretendem converter-se em seres humanos superiores
estudando esoterismo e disciplinas mentias, digamos, pouco
comuns, nada mais. Renzo Capavaro esteve aqui com eles,
de fato, mas soube que, quando se encontrou com Ambler,
fazia dois dias que não vinha aqui. Despedira-se por uns
tempos, dizendo que precisava resolver um assunto
inesperado em Roma... e aqui ainda estão à sua espera.
— Quer dizer que nos enganamos de pista.
— Não, não. A pista era boa no sentido de que ele esteve
nesta mansão, mas o pessoal daqui não tem nada a ver com a
morte de Ambler e tudo o mais. Uma negra gigantesca e
encantadora e dois alemães de temperamento filosófico
montaram isso aqui com a finalidade de ganhar dinheiro, por
um lado, e realmente educar pessoas bem dotadas, por outro.
Nem preciso estar aqui outras vinte e quatro horas para
convencer-me de que estou perdendo tempo, de modo que
vou sair. Onde vocês estão?
— Perto da pousada “Les quatro routes”. Pareceu-nos um
lugar adequado, pois estamos perto de você, mas sem nos
deixar ver; podemos comer bem sem necessidade de
complicar a vida.
— Bem pensado. Bom, ocorreu-me uma ideia que
poderia orientar-nos melhor neste assunto. Vocês podem
esperar por mim à tardinha perto da mansão?
— Naturalmente. Você é quem manda
— Obrigada. Esperem-me em frente à mansão, do lado de
Mereville. Utilizem prismáticos para ver-me sair do carro e
depois, simplesmente, aonde quer que eu vá, sigam-me, mas
sem encurtar a distância, sem se aproximarem do meu carro,
está entendido?
— Certamente. Qual foi a sua ideia?
— É muito simples, mas pode dar certo. Posto que
Ambler e Capavaro se reuniram em “Les quatre...” Adeus!
A comunicação foi cortada bruscamente. Os dois se
olharam e Simão-Paris murmurou:
— Deve ter ouvido alguém se aproximando e teve que
desligar... Bom, já sabemos o suficiente. Iremos esperá-la
naturalmente.
***
Já estava escuro quando Simão V, que estava olhando
com os prismáticos na direção da mansão, viu sair o carro e
murmurou:
— Lá está.
— Tem certeza que é ela?
— Bem, não posso vê-la, mas é o carro que lhe
arranjamos.
— Agora é ficar aqui até que atravesse a ponte. Em
seguida ir atrás dela, mas mantendo distância. Afinal, não vai
pretender despistar-nos, ao contrário... Saiu algum outro
carro?
— Não — Simão V olhou novamente para a mansão. —
Nada.
— Ao longe as luzes do carro, supostamente conduzido
por “Baby” deram um sinal de pisca, e os dois sorriram.
— É ela, está claro que faz sinal para nós — disse Simão-
Paris.
Simão V deixou de lado os prismáticos, que já não eram
necessários, e ficou seguindo as luzes do carro que se
distanciava da mansão, aproximando-se da ponte. Viram
quando a tomou e, de repente, a brusca mudança de direção
do veículo.
— Mas o que faz...! — sobressaltou-se Simão-Paris.
O carro bateu forte contra a amurada da ponte e saltou
por cima, depois de parecer que ia ficar preso ali. As luxes
desapareceram um instante. Depois, de repente, ficaram
apontando para o céu carregado. Simão V deu partida ao
carro e dirigiu em alta velocidade na direção da ponte, em
cuja entrada se deteve. Os dois saíram como bala do carro e
correram para o local do acidente.
Quando chegaram viram o carro, a uns três metros, como
que encravado na correnteza do rio e com duas portas
abertas. Só se ouvia o rumor das águas do rio, não muito
largo nem profundo naquela parte, mas com pequenas fossas
e acelerações da corrente.
Os dois espiões se jogaram rapidamente, metendo-se sem
titubear na água e aproximando-se do carro, dentro do qual
não encontraram a agente “Baby”. A água entrava no
veiculo. No assento direito viram a valise, e Simão-Paris a
pegou.
— Meu Deus! — arquejou. — Deus!
***
Finalmente a porta do quarto se abriu e Angela apareceu,
sorrindo, muito satisfeita.
— Bem, já posso dedicar-lhe de novo minha atenção...
Sabe que a CIA não é tão viva como todo o mundo acredita?
Ou talvez seja porque somos mais inteligentes,
simplesmente. Não é verdade, queridos?
Otto e Kurt, que entraram atrás da negra, concordaram
com expressão tão elevada como a da própria Angela. Esta
se aproximou da cama onde “Baby” continuava amarrada de
pés e mãos, e passou a mão nos seios dela.
— Que pele tão deliciosamente suave... Francamente,
matá-la vai ser um desperdício, senhorita Montfort.
— Então não me matem — disse Brigitte.
— A verdade é que não estou querendo matá-la — riu
Angela... — Não tem sentido destruir uma obra de arte... que
pode proporcionar-nos tanto prazer. Que faria para conservar
a vida, senhorita Montfort?
— Qualquer coisa. Mas está me parecendo que não vou
viver muito, mesmo que você me permita. A menos que me
deem o que comer e beber.
— Tem razão! — voltou a rir a negra. — Nós a deixamos
muito abandonada nessas últimas cinquenta horas, mas é que
a CIA esteve metendo o nariz por aqui, compreende? Você
não pode imaginar, querida, o que aprontou ao cair no rio. Só
se vê gente da CIA. A impressão é que perderam o seu mais
precioso tesouro e querem recuperá-lo a todo custo. Estão
removendo tudo.
— Estiveram aqui — murmurou Brigitte.
— Certamente. Mas já os esperávamos e, além disso, sua
chamada pelo rádio, o que lhes disse, foi definitivo.
Compreendi que para esses homens o que você diz é
sagrado, e como falou que aqui não havia nada relacionado
com Ambler, eles acataram. Fizeram-nos algumas perguntas
com relação à sua estada de vinte e quatro horas aqui, se
sentia-se bem quando se foi... Milhares de perguntas, mas
todas nessa linha. Agora, já foram definitivamente da
mansão... mas continuam à sua procura. Ah, e mandaram vir
uns peritos que têm analisando o acidente; a ponte e o carro,
que ainda está lá. É claro que não encontraram nenhuma
sabotagem no carro, de modo que já chegaram à conclusão
de que foi uma falha sua na direção, dessas coisas que
acontecem, caindo no rio. Ponto final.
— Eu poderia comer alguma coisa? — insistiu Brigitte.
— Parece que não se interessa multo pelo que digo —
surpreendeu-se Angela. — Afinal estamos falando da sua
morte, e do muito que evidentemente é querida por tantos
homens!
— Entretanto falta um — murmurou a espiã.
— Sim. Quem?
Por um instante Brigitte esteve a ponto de se permitir a
satisfação de dizer-lhes que o homem que faltava na sua
busca era o Número Um, e que este não se conformaria com
as aparências, como faziam os demais, e que encontraria a
verdade, e arrasaria com a mansão, estando ela viva ou
morta. Ao Número Um só aceitaria a sua morte se lhe
mostrassem o cadáver. E mesmo assim, prosseguia a
investigação, como em outra ocasião Já tão distante em que a
recuperara para a vida, depois que todos a davam por morta e
a enterraram com música...1
— Quem? — insistiu Angela, olhando-a com firmeza.
— Um velho amigo do serviço secreto francês, do
SDECE Quando souber da minha morte num...
— Do SDECE? Um francês? Pois saiba que também há
gente deles à sua procura. Parece a CIA e o SDECE
chegaram a um acordo para procurá-la. Tem um baixinho,
narigudo e de olhos pequenos, que fez mil perguntas
enquanto olhava tudo como se estivesse fotografando. Você
o conhece?
— Não — mentia Brigitte, que sabia que Angela falava
de seu velho amigo Monsieur Nez. — Não. Mas se o SDECE
está por aqui ele também deve ter vindo.
— Quem é ele?
— Um francês do SDECE com quem tenho, relações.
— Compreendo. Mas tudo isso terminou, simplesmente
você já não existe, senhorita Montfort.

1
Ver aventura “Estranho Funeral”, volumes 93 e 94 desta coleção. Disponível em
<www.savajo.blogspot.com>
— Ou seja, que se nega a dar-me de comer.
— Claro que não — disse Angela, voltando a acariciá-la.
— Eu me apaixonei por você, e durante um tempo comerá e
beberá à vontade, para que continue vivendo... para mim.
— Pelo visto, neste lagar o sexo tem que ser algo...
extravagante. E já que falamos nesse tema, que significam
para você estes dois? A impressão que me dão é de a
amarem, os dois, e que você provoca os ciúmes de um com o
outro. É verdade?
— Você é bem perspicaz — riu Angela. — Sim, Otto e
Kart estão muito apaixonados por mim, e sempre que fico na
cama mais tempo com um, o outro fica de mau humor.
— E você se diverte...
— Que culpa tem eu que sejam ciumentos?
— Claro. E agora serão ainda mais, por minha causa, já
que entendo que se você se apaixonou por mim não vai se
limitar a um amor... platônico, contemplativo.
Angela sorriu, inclinou-se e beijou suavemente a boca de
Brigitte, enquanto lhe acariciava os seios e o ventre com suas
grandes e bonitas mãos que pareciam de veludo. Brigitte não
se moveu, aceitando o beijo sem mostrar reação. Por um lado
da cabeça de Angela via Kurt e Otto que contemplavam a
cena, lívidos, imóveis. Os olhos míopes de Kurt pareciam de
peixe assombrado. Otto começou a mostrar um tique nervoso
num lado da boca.
Angela deixou de beijar Brigitte e se levantou.
— Não gosto de uma relação em que existe falta de
entusiasmo por alguma das partes — murmurou a negra. —
De modo que se quer continuar vivendo terá que se mostrar
mais acolhedora.
— Sinto muito — disse Brigitte, — mas terei que me
esforçar para adaptar-me à ideia. Nunca tive relações dessa
espécie. Jamais fui lésbica. No entanto farei o possível para
me mostrar complacente.
Angela concordou, soltando de repente uma gargalhada, e
se dirigiu para a porta dizendo:
— Darei ordens para que lhe deem alimento. Vamos,
queridos?
Otto e Kurt vacilaram, mas foram atrás dela Brigitte ficou
novamente só. Tinha fome e sede. Calculava que eram dez
da noite. Isto é, que havia passado, com efeito, dois dias
desde que os homens da CIA viram cair no rio a agente
“Baby”.
Dois dias durante os quais, apesar da fome e
principalmente da sede e das dores que sentia pelo corpo,
Brigitte empregara seus esforços na sentido de soltar-se das
amarras. Sua paciência era a da sobrevivência, e deste modo
conseguira ir afrouxando as ataduras da mão direita, que lhe
doía tanto que quase ficara dormente, além da esfoladura
onde as cordas roçavam com mais força. Se lhe dessem um
pouco mais de tempo acabaria por livrar uma mão. E com
uma mão livre ela conseguiria além do que se pode imaginar.
Não se passara nem meia hora da última visita de KAO,
quando a porta voltou a abrir-se entrando um par de jovens
cada um com uma bandeja.
— Oi! — saudou jovialmente uma delas. — Como vai,
senhorita Montfort?
— Regular, Gladys. E vocês como estão?
— Muito ocupados estes dias com a CIA e o serviço de
contraespionagem francês. Mas já passou. Trouxemos
comida e bebida, e temos ordens de ajudá-la a comer e
beber, mas não podemos soltá-la por nada desse mundo...
Tem fama de perigosa nesta casa, senhorita Montfort.
— Calúnias — sorriu a espiã. — Sou bem inofensiva.
— Está bem, está bem. Agora, se levantar a cabeça um
pouco mais podemos alimentá-la... Isso. Caramba, você é
muito bonita, de verdade.
— Obrigada, Sinclair. Digam-me uma coisa: onde estou?
Quero dizer, em que parte da casa está este quarto? Perto da
passagem?
— Que passagem? — exclamou Gladys.
Olhavam-na com autêntico interesse. Brigitte sorriu como
quem disse uma brincadeira
— A que há no porão — disse. — Oh, bom, vejo que não
me acreditam; deixem pra lá. De verdade, onde estou?
— Na gaiola — riu Gladys.
Brigitte olhou á sua volta. Gaiola? Não se via qualquer
uma janela, nenhuma abertura, nada. Era como estar dentro
de uma caixa, com a porta como única entrada. Mas não, não
devia estar na passagem, porque não sentia umidade. Em
troca, havia tal silêncio que bem podia ser que estivesse na
passagem...
— Parece que ela não sabe o que é a gaiola — disse
Sinclair.
— Não, não sei — admitiu Brigitte. — Que é?
— Vamos ver: como se chama este lugar?
— “Les Olseaux” — murmurou a espiã.
— Exato. Os pássaros. E para os pássaros existem
gaiolas. Aqui há muitos pássaros, por causa do bosque e do
rio... Onde se colocaria uma gaiola para os pássaros?
— Mas aqui não é uma gaiola, é um quarto.
— Certo. Mas antes foi uma gaiola, um videiro. É um
quarto construído no alto da mansão, no vértice mais alto do
telhado, e houve um tempo em que se acolhiam aqui, por
duas pequenas janelas, muitos pássaros que fugiam da
neblina. Até que finalmente um dos proprietários que se
foram sucedendo decidiu tapar as janelas, pois estava farto
de tanto passarinho. Assim é que ficou esse quartinho
isolado que nem a CIA, que esteve em todas as
dependências, pôde imaginar que existisse.
— Por isso continuam vindo tantos pássaros à casa —
murmurou “Baby”. — Certamente não são os que vinham no
tempo das janelas abertas, mas seus descendentes que se
sentem talvez impulsionados a procurar aqui algo que
ignoram.
— Talvez seja isso mesmo — concordou Sinclair.
— Digam-me uma coisa: que espécie de exército é o de
vocês?
Os dois jovens ficaram olhando para ela. De repente,
Gladys riu divertida.
— Somos soldados invencíveis de um exército
invencível... Se você participasse dele teria naturalmente
patente de general.
— Isso é bom... E qual a patente de vocês?
— Somos cadetes. Estamos aprendendo. Quando
formados, ser-nos-á atribuída alguma missão importante.
Embora o mais provável é ficarmos esperando fora da
mansão, como os que já aprenderam o necessário.
— Quer dizer que fora da mansão há jovens como vocês
que já são... soldados? Soldados preparados para quê,
Sinclair?
— Para que, eu não sei. Ou melhor, sei; não sei é onde
serviremos. Muitos esperam em vários cantos: Paris,
Londres, Nice, Cairo, Trípoli, Nova York, Madri, Buenos
Aires, Panamá... O ponto principal, porém, é a África,
porque ali se processarão as primeiras ações. Serão básicas,
para dar-nos a conhecer e conseguirmos enriquecer,
deixando assim de ser um problema o dinheiro.
— Em que consistirão essas primeiras ações? Guerras?
— Sim, mas guerras especiais que...
— Não está falando demais? — murmurou Gladys? —
Um dos testes para ingresso que tivemos foi o de saber
manter a boca fechada.
— Você tem razão — disse Sinclair. — Não sei como
conseguiu me fazer falar tanto.
— Eu o hipnotizei — sorriu Brigitte — Ora Gladys, que
diferença faz que eu saiba ou deixe de saber, se não sairei
viva de “Les Oiseaux”?
— Escute, nós vimos aqui para alimentá-la. Se insiste em
tentar tirar informações, iremos falar com Angela para que
decida sobre você. Estou avisando: mais uma palavra e fica
sem comida.
Brigitte olhou-os e passou a limitar-se a comer. Eles a
serviam muito gentilmente. Quando terminou, pediu que a
cobrissem com uma manta, pois passara muito frio nas duas
noites que se passaram. Foi atendida. E de novo ficou
sozinha, como que submersa num poço de silêncio. A
refeição e a quentura da manta começaram a fazer efeito. Foi
relaxando, cochilando... e finalmente adormeceu, talvez com
o pensamento de jamais ser encontrada pela CIA naquela
gaiola, mas se a achasse o Número Um...
***
Esteve muito tempo de pé na ponte, contemplando o local
da amurada que fora consertado provisoriamente a fim de
evitar a possível queda de outro carro no rio. Chovia
intensamente, mas ele estava alheio a tudo. Simplesmente
olhava aquelas águas que pareciam eriçadas devido à chuva.
Perto dele, dentro do carro, cujas amarelentas luzes
conferiam a tudo uma aparência fantasmagórica, esperavam
Simão-Paris, Simão II e Simão III.
Tudo era sombrio, inquietante, espectral. A chuva não
deixava ver nada à distância. Estavam envoltos pela chuva e
escuridão. Só havia as luzes do carro.
Ele finalmente se voltou e dirigiu-se ao carro, onde
sentou ao lado de Simão-Paris.
— Por que não me avisaram antes.
— Bem, senhor, francamente ninguém jamais pensou que
uma coisa dessas fosse acontecer com “Baby”... Estávamos
certos de que ela apareceria. Quero dizer que achamos que o
rio a arrastara, que talvez se encontrasse ferida, mas a
salvo...
— Mas agora estão convencidos de que está morta.
— O rio foi dragado e explorado de todo jeito até sua
confluência com o Sena, e não encontramos nada. Tampouco
em suas margens. Revistamos palmo a palmo, senhor, e a
única explicação é que ela foi arrastada para o mar.
— E essa mansão chamada “Les Oiseaux” foi revistada a
fundo?
— Completamente. Inclusive tivemos a ajuda do SDECE
com todos os meios disponíveis. Como sabe, um dos seus
mais altos dirigentes é amigo da “Baby”, o Monsieur Nez.
— Claro.
— Ele esteve na busca. Veio logo que soube da notícia...
Devíamos tê-lo avisado também, mas tínhamos a esperança
de encontrá-la e não desejávamos fazê-lo passar um mau
pedaço pelo susto. Sentimos muitíssimo, sabe disso.
Número Um assentiu com um gesto, e olhou os agentes
da CIA que, sentados na parte da frente, se viraram para ele.
Voltou seu olhar para Simão-Paris e em seguida para onde
devia estar a mansão, envolta na escuridão.
— Então — sussurrou, — ela dissera que não queria
contato por quarenta e oito horas, e apesar disso chamou-os
quando se haviam passado vinte e quatro horas apenas.
— Exato.
— Que sabem sobre esses dois alemães? Que
conseguiram com suas investigações?
— Eles moravam em Paris, num apartamento da Rua
Rivoli e estavam sempre pedindo informações sobre
esoterismo, psicologia, parapsicologia... Todas essas coisas.
Têm muito dinheiro, que lhes chega com regularidade,
achamos que da Suíça. Parece que resolveram dedicar-se aos
estudos dos poderes físicos e mentais do ser humano. Não há
na mansão nada que sugira a formação de um exército, nem
nada parecido. Digamos que topamos com um grupo de
excêntricos, só isso.
— De maneira — disse olhando diretamente nos olhos de
Simão-Paris — que você acreditou em tudo isto.
— Em tudo o quê? — desconcertou-se Simão-Paris.
— Em tudo o que se refere ao acidente. Acreditaram
realmente? Ela sai da mansão depois de chamá-los vinte e
quatro horas antes do combinado, joga o carro contra a
amurada e desaparece num rio insignificante. Uma morte
muito estúpida para ela.
— Nós presenciamos — murmurou Simão-Paris.
— Adeus — disse o Número Um. — E obrigado por
tudo.
Dispunha-se a sair do carro, mas Simão-Paris reteve-o
por um braço.
— Aonde vai? Está chovendo a cântaros e...!
— Voltem para Paris e esqueçam este assunto.
Desocupem a zona definitivamente. Eu me encarrego do
resto.
— De que resto?
— Vou encontrá-la.

CAPÍTULO OITAVO
Passagem secreta

Graças à manta e ao jantar, sentia-se bem melhor. Ao


meio-dia também lhe deram o que comer. E à tarde, mas
então um dos jovens que a serviam prestou atenção às cordas
que a prendiam e verificou que com um pouco mais de
esforço a prisioneira teria a mão direita livre.
Sem violência, mas com firmeza, Brigitte foi amarrada
mais solidamente que antes, e não ficou só nisso. Quando
mais tarde Angela apareceu no viveiro estava visivelmente
aborrecida
— De maneira que você queria tentar a fuga, hem? Isso
não me agradou nem um pouco, minha querida.
— Que esperava você? — replicou Brigitte. — Que eu
ficasse parada, esperando que decidissem sobre minha vida e
minha morte?
— Está bem. Eu te compreendo. Mas ficamos certos que
podíamos entender-nos bem, eu e você, e estive a ponto de
perdê-la por atender a outros assuntos. Me disseram também
que você pergunta demais.
— Sim. Mas ninguém me responde.
— Não? — Angela sorriu e se sentou na beira da cama.
— Que gente antipática, não?
— Talvez você pudesse ser simpática. Afinal, pretende
que sejamos grandes amigas. E há outro detalhe no qual
talvez eu possa intervir. Pelo que entendi vocês começam a
ter dificuldades financeiras.
— E você pode fazer algo nesse sentido?
— Sou muito rica, Angela. Poderia lhe por em mãos, em
menos de vinte e quatro horas, um bilhão em dinheiro vivo.
— Você está brincando... Pretende fazer-me acreditar que
tem um bilhão de francos.
— De francos? Eu me referia a dólares.
— Você pode conseguir um bilhão de dólares?
— Em vinte e quatro horas.
Angela ficou parada, olhando com firmeza a espiã
americana. De repente sorriu.
— E você me daria esse dinheiro, ou uma parte dele, se
eu fosse... simpática com você?
— Poderíamos chegar a um entendimento
— Onde tem esse dinheiro?
— Espalhados pelos principais bancos de todo o mundo...
e em lugares secretos.
— Parte dele na França?
— Pouco. Mas na Suíça poderia conseguir imediatamente
um pouco mais de cinquenta milhões de dólares. E quando
digo imediatamente, é imediatamente mesmo: entro no
banco, apresento um cheque e saio dali com esse dinheiro
Muito simples. Deve compreender que prefiro presenteá-la
com esse dinheiro e ser sua amiga, que passar mal... ou
morrer.
— É compreensível. Que é que você quer saber? Que tem
estado perguntando, exatamente?
— Por exemplo, sobre esse exército que Capavaro
mencionou a Ambler, de que se trata? Que exército é esse e
onde está?
— Você viu parte dele. Ele é formado por esses jovens
que fazem seus estudos neste quartel... insólito. Está
lembrada que nossa pergunta chave refere-se aos desejos do
ser humano?
— Sim... O que mais almejam e como conseguir realizar.
— Isso é a chave de tudo. Trata-se de contentar aqueles
que servirão de bucha de canhão. Eu explico... Qual o
melhor modo de trazer as pessoas submissas a você?
— Mantê-las felizes, contentes?
— Exatamente. Porque a submissão pode-se processar
através do medo, mas corre-se o risco de se rebelarem e
eliminarem o opressor. Já pelo amor o manejo se toma fácil.
E para isso meus soldados estão aprendendo não técnicas de
armas e de castigos, mas sim técnicas de controle. Estou
formando soldados que saberão como ganhar a confiança e a
amizade das pessoas. Para isso há dois caminhos essenciais.
Um deles é ser superior à massa, saber como manipulá-la,
manejá-la, para que acate suas decisões. Se, além disso, que
é o que se aprende aqui, tem-se algum recurso especial para
deixar as pessoas contentíssimas conosco, melhor ainda. E
vamos buscando essa coisa, a satisfação do desejo do ser
humano. E quando atingirmos essa meta, saberemos que o
nosso controle será completo. Enquanto isso, enquanto se
processam as buscas, temos que nos conformar com as
técnicas comuns para manejar a nosso critério os que serão
bucha de canhão, a fim de que façam sempre o que nós
queremos.
— E o que é que vocês querem?
— Transformar toda a massa humana em bucha de
canhão.
— Mas isso é absurdo... Hoje em dia, se acontece ama
guerra importante, as armas a serem utilizadas são tais que...
— Você fala de um possível confronto entre Estados
Unidos e União Soviética — cortou Angela. — Eu me refiro
a países com menor poder destrutivo, que não têm armas
sofisticadas. Mais precisamente a África, onde me esperam
vários contratos para converter em bucha de canhão milhares
de pessoas. Eu explico. Suponha que M e V entrem em
guerra, o que M ganhe. Em seguida invadirá o país vencido,
não é assim? O comum nesses casos é o povo se submeter ao
vencedor. Certo?
— Sim.
— Conosco não seria assim, porque meus soldados
convenceriam a população a lutar até morrer, opondo-se à
invasão.
— Você quer dizer que os civis lutariam contra as tropas
invasoras?
— Exatamente.
— Mas isso é impossível.
— Não, não é. Meus soldados são treinados para
convencer a massa a lutar contra quem lhe cause danos. Não
lhe parece viável? Seu país é invadido, sua casa... O lógico
não é você lutar contra o invasor? Os meus soldados fazem a
cabeça da população para que enfrentem o invasor.
— Isso seria um massacre! Como poderia uma população
composta de mulheres, crianças e velhos vencer um invasor
armado e treinado para a guerra?
— Bom, nunca se sabe. E afinal por que não tentar?
Imagine o presidente de V, que perdeu a guerra contra M e já
não tem tropas nem armas, fazendo um esforço derradeiro no
sentido de surpreender o invasor, enviando toda a população
contra ele. Seria um suicídio coletivo. E isso é o que eu
ofereço a uns tantos dirigentes africanos que já me pediram
“soldados”. Mando-lhes gente preparada para manipular o
seu povo de modo a se tornar bucha de ganhão se perder a
guerra que planeja contra outro país.
— Então, isso é o que ocasionaria milhares de vitimas!
— É, mas isso não importaria nem um pouco ao
vencedor.
— Mas é loucura... Uns poucos rapazes não poderiam
manipular a esse ponto uma população.
— Logo o saberemos, depois do teste.
— Que teste?
— O que vamos realizar numa pequena localidade
francesa não muito distante daqui, perto de Pithiviers. Seu
nome é Vitry-aux-Loges. Esta mesma noite um amigo meu
chamado Eden Laforet vai ocupar esse povoado com trinta
homens armados. Cortarão as comunicações e se
comportarão como um exército invasor vitorioso, isto é,
submeterão todos os habitantes de Vitry-aux-Loges, que
sofrerão as consequências de um domínio: morte, roubo,
violação... Ai entram os meus “soldados”, manipulando a
população para um contra-ataque, para que se oponha ao
invasor. Se meus seis soldados que já estão a caminho de
Vitry-aux-Loges obtiverem sucesso, conseguindo fazer com
que a população enfrente os trinta homens armados e bem
treinados de Laforet, é que estamos na rota certa.
— Esse Laforet... é um mercenário?
— Digamos que é um homem que sempre esteve
guerreando. E que sabe escolher seus homens, naturalmente.
— E os soldados que você enviou? Quem são?
— Você não conhece. Não são dos que viu aqui. São dos
que já saíram daqui, bem preparados, e que agora vão ser
postos à prova. Chegarão em Vitry-aux-Loges
separadamente e se instalarão lá. Quando houver a ocupação,
eles começarão a manipular as pessoas, a convencê-las de
que devem enfrentar os invasores... E estou certa de que
conseguirão. Estudamos bem a coisa, e usamos de muitos
meios que transformarão nossos soldados em personas
gratas, das que se escutam sem receio.
— Que quer dizer?
— Dois deles estão disfarçados de padres e hospedados
no Hotel Lunette. Chegarão em seguida duas freiras e um
rapaz e uma moça, realmente encantadores. Estes se
apresentam ali como recém-casados, de passagem para Paris,
mas que vão pernoitar no hotel.
— E se a coisa der certo, você já tem contratos com
alguns dirigentes africanos que querem se meter em alguma
guerra e que ficariam encantados em poder contar com esses
soldados que convencem a população a servir de bucha de
canhão, se necessário.
— Essa é a ideia — sorriu Angela. — Bem, fiz o que me
pediu; já lhe expliquei tudo. Agora você vai me facilitar
esses cinquenta milhões de dólares?
— Já, já, seria impossível, pois os bancos estão fechados.
— Amanhã então? Vamos à Suíça e você me entrega esse
dinheiro?
— Certamente. Já disse que quero viver.
— E viverá, graças ao meu carinho por você. Não quer
também ser amável e carinhosa comigo?
— Naturalmente que sim. Mas já lhe disse que não tenho
experiência nesse tipo de relação...
— Aposto que sim! — sorriu sonoramente Angela.
Tirou rapidamente a túnica branca, e Brigitte teve uma
das grandes surpresas de sua vida. Apesar dos seios que
faziam aquela criatura parecer mulher, tratava-se de um
homem.
Sem maiores considerações saltou sobre a espiã, tirando-
lhe de um puxão a manta. Brigitte não conseguia sair do seu
estado de choque.
— Vou fazê-la gozar tanto que... — de repente afastou-se
exclamando — Que houve?
Viu o sangue que brotava por um lado da boca da espiã, e
ficou olhando sem compreender.
— Mas...
— Me... envenenaram — disse ofegante, com olhar turvo.
— Disseram que não queria... dividir você comigo... e que...
me matariam. Não permitem que... você e eu... Oh, meu
Deus, meu estômago... estou morrendo... sinto... que...
morro...
O corpo estremeceu todo, e Angela gritou e saltou da
cama. Foi até a porta, abriu e gritou chamando alguém, e
voltou imediatamente para junto de Brigitte, que continuava
tendo convulsões.
— Foram eles — arfava... — Otto e Kurt Me mataram
para... separar-nos...
Dois jovens apareceram na porta e, a uma perdem de
Angela, precipitaram-se para a cama e desataram Brigitte.
Angela gritou:
— Rápido, rápido... Levem-na para a enfermaria.
Tiraram-na às pressas dali para uma diminuta antessala
que estava fechada por uma sólida porta secreta que dava
para um corredor elevado, tendo ao fundo uma portinha de
acesso ao telhado, para reparos. Perto estava o descanso da
escada que descia para o primeiro andar. Chegaram correndo
ao amplo corredor, seguidos pelo grotesco personagem de
nome Angela. Quando chegaram ao saguão apareceram
correndo Otto e Kurt, muito alterados.
— Que houve? — exclamou Otto. — Que está
acontecendo, Angela?
— Venham à enfermaria comigo! — ordenou a criatura.
Num instante estavam todos na enfermaria. Angela dando
ordens para que o médico acudissem imediatamente. Um dos
jovens saiu correndo à sua procura e o outro ficou sem saber
o que fazer, junto à maca em que fora posta Brigitte.
— Mas o que foi que houve — insistiu Otto.
Angela fuzilou-o com os olhos.
— Dupla asquerosa — arfou. — Tenho suportado vocês
porque precisava do seu dinheiro e da sua ajuda para levar a
cabo os meus planos. Mas já não preciso... vou ter mais
dinheiro que o que vocês jamais sonharam, e nunca mais
porão as mãos em cima de mim, efeminados do diabo...!
Otto não teve nem tempo de manifestar surpresa. Angela
tinha agarrado um bisturi de uma prateleira e, de um só
golpe, degolou o alemão com toda facilidade, como se seu
pescoço fosse de manteiga. Um jorro de sangue brotou do
talho, e Otto, com os olhos quase fora das órbitas foi caindo
para diante, esguichando sangue para todo lado. Kurt Hulm
gritou como um rato, e quis sair correndo da enfermaria, mas
Angela agarrou-o pelo colarinho, detendo-o, e em seguida
atraindo-o para cravar-lhe brutalmente o bisturi nos rins.
Kurt soltou um autêntico berro de porco no sacrifício, e
tentou ainda escapar. Mas Angela deu-lhe a volta e enfiou o
bisturi, agora em pleno coração. Os óculos saltaram-lhe do
rosto, deixando bem à mostra as feições desfiguradas,
deformadas pela careta de agonia e espanto. E Angela
cravou-lhe novamente o bisturi no coração, empurrando-o,
em seguida, derrubando-o, enquanto gritava, por sua vez,
porque o susto fora grande, sobressaltando-a enormemente.
O susto de ver Brigitte golpeando com uma mão o jovem
que estava ao seu lado, em plena cabeça, derrubando-o como
se fosse um boneco, um simples fantoche. Angela
contemplava-a com expressão aterradora, compreendendo a
verdade, o engodo de que fora vítima.
— Maldita... Me enganou!...
A espiã apertou os lábios, deu um passo na direção de
Angela, e descarregou-lhe um golpe com a mão que, se a
tivesse alcançado na testa, como ao rapaz, possivelmente a
teria matado também. Mas ela pôde se esquivar daquele
golpe, e lançou-se sobre Brigitte, com todo o ímpeto do seu
corpo gigantesco, pesado e poderoso. A colisão foi
tremenda, e enquanto Angela rodeava Brigitte com seus
braços, segurando assim também os dela, foram chocar-se
contra as vitrinas com instrumentos cirúrgicos. Os vidros se
despedaçaram, a vitrina ficou oscilando perigosamente, e as
duas giraram pelo chão. Angela conseguiu ficar em cima, e
arquejou:
— Você agora vai ver. Vou destroçá-la com meu!...
Brigitte não pôde deixar de gritar quando, de um modo
absolutamente brutal, Angela violou-a.
Querendo acomodar-se melhor sobre ela, soltou o cerco
em volta do corpo.
Brigitte lutou como pôde, girou a cabeça e viu bem junto
dela a cabeça com as feições desfeitas de Kurt Hulm. Um
pouco mais distante, sobressaindo do seu coração, viu o cabo
do bisturi. Estirou um braço, pegou-o. A afiadíssima lâmina
penetrou a fronte esquerda de Angela. Todo o seu corpo
tremeu forte, e em seguida ficou imóvel.
Brigitte empurrou-a para um lado. Angela ficou estendida
de cara para cima, ao lado de Kurt Hulm, seus olhos tão
arregalados quanto os dele, no horror da morte que a
surpreendera.
O bisturi atingira-lhe o cérebro, causando morte
instantânea.
A espiã levantou-se, viu penduradas num cabide umas
batas brancas e tratou de vestir rapidamente uma delas,
correndo em seguida para a porta da enfermaria. Acabava de
sair quando se encontrou com dois jovens acompanhados de
um homem de meia idade, que sem dúvida alguma devia ser
o médico. Até aquele momento não o vira em parte alguma.
Não lhes deu tempo nem de se surpreenderem. Ao rapaz
da direita dedicou um pontapé acertadíssimo no baixo
ventre, e ao outro, que não sabia o que fazer, um tremendo
tsuki no peito, um direto que quase lhe paralisou o coração,
fazendo-o virar os olhos, dar um suspiro e cair de costas. O
médico, que se voltara disposto a sair correndo, foi apanhado
de surpresa. Brigitte passou-lhe uma rasteira, fazendo-o
estatelar-se no chão; quando tentou refazer-se e levantar-se,
recebeu um pontapé no queixo que o deixou desacordado.
Brigitte usou de astúcia evitando correr na direção do
grande portão da mansão. Procurou o pequeno descanso por
onde se descia para os subsolos, vazios naquele momento; as
aulas haviam terminado e todos os alunos se achavam nos
salões, conversando...
Não teve nenhum problema para chegar lá embaixo,
percorrer todo o corredor e alcançar a adega. Acendeu as
luzes e foi à prateleira que continha o truque, manobrando do
mesmo jeito que vira Otto fazer. Abriu a porta camuflada.
Sentiu a corrente de ar, fria e úmida. Ao mesmo tempo ouviu
uma explosão surda, provavelmente de grande potência, já
que era audível naquela parte da casa. O barulho viera lá de
cima e era inquietante.
Ia correr para o fundo do túnel, sem saber onde levava,
quando de repente viu, junto ao suporte que movera, várias
conexões de fios rompidos. Ficou olhando sem compreender.
Eram fios elétricos que, ao que parecia, ela arrancara ao
puxar o suporte... Naquele exato momento começou a sentir
um leve cheiro de gás, e o alarme ecoou em seu cérebro: era
gás venenoso.
Correu sem pensar pela escura galeria. Foi deixando para
trás o ponto de luz que era a entrada, cada vez mais
surpreendida de que ninguém a perseguisse; parecia ter
deixado para trás somente o silêncio e a quietude da morte.
Várias vezes teve que ir retificando a marcha ao se chocar
ou roçar na parede. Corria há uns quatro minutos quando
voltou a tropeçar. Desta vez, porém, não encontrou caminho
por mais que procurasse. Compreendeu que chegara ao final
do túnel secreto que sem dúvida fora construído quando se
edificava a mansão “Les Oiseaux”. Tateou até encontrar um
vão. Mas não se saía por ali. Era o começo de um lance de
degraus; subiu rapidamente até que sua cabeça tocou o teto.
Um teto de madeira e não de pedra.
Apoiou os ombros contra ele e empurrou. Um leve estalo
e o teto se moveu. Terminou de levantar a tampa e de subir
os degraus, e no momento em que, através de uma pequena
vidraça suja de uma janela, olhava a chuva e lhe ouvia o
rumorejar, a luz de uma lanterna focou seu rosto.
Brigitte ficou imóvel e respirou fundo. Deu-se conta que
se encontrava num pequeno telheiro a uns quatrocentos ou
quinhentos metros da casa.
E ali estava alguém, naturalmente.
Moveu-se a lanterna e a pessoa se aproximou da espiã,
internacional. Brigitte distinguia confusamente a alta silhueta
masculina.
— Eu tinha certeza de que você não estava morta.
— Um! — exclamou ela. — De onde você saiu?
— Deve ser muito mais interessante saber de onde você
saiu.
Brigitte atirou-se nos braços do Número Um, que a
rodeou com seus braços como se quisesse absorvê-la,
encravá-la nele para sempre. Ele estava ensopado pela
chuva, e ela tremia de frio por não usar mais que uma
simples bata, mas não estavam ligando para isso. Beijaram-
se. Lá fora a chuva continuava caindo, mas aos poucos
afinava.
— Onde deixou o carro? — perguntou Brigitte.
— Perto da pousada “Les quatre routes”, onde me
encontrei com os Simões. Entregaram-me suas coisas e eu as
coloquei no meu carro. Mas como acharam que era melhor
me trazerem no carro deles para conhecer o terreno... Assim
é que o carro ficou lá.
— Mas... eles foram embora?
— Eu decidi ficar e dar uma olhada pelos arredores à
espera de encontrar uma maneira de entrar na mansão. Vi
este telheiro a uns quatrocentos metros da casa e me
perguntei o que podia haver aqui dentro... Agora já sei.
Como ficaram as coisas na mansão?
— Matei os que deviam morrer para evitar muitas outras
mortes. Vou explicar tudo, mas agora você precisa me ajudar
a chegar a um povoado chamado Vitry-aux-Loges! Vamos
buscar seu carro?
— É melhor você ficar aqui — decidiu o Número Um. —
Sozinho vou mais depressa. Enquanto isso você pode
descansar. Espero estar de volta em vinte minutos... Ou pode
ser que chegue alguém pelo túnel?
— Não sei. Já devia ter vindo alguém... Mas houve uma
explosão... Dentro da casa, quero dizer. E em seguida senti o
cheiro de gás. Acho que a explosão foi provocada por mim,
quando abri a porta do túnel. Devia haver ali um sistema de
segurança que eu não usei. Meu Deus, não me surpreenderia
ter feito disparar um dispositivo que espalhou gás pela
mansão, matando todos eles! Devia ser um recurso de fuga
de Angela, para se algum dia tivesse de fugir
precipitadamente...
— Logo nos inteiraremos disso. E pensando bem, prefiro
que venha comigo. Demoraremos um pouco mais, porém me
sentirei mais tranquilo. E quando eu estiver dirigindo para
esse lugar chamado Vitry-aux-Loges, você pode secar-se e
vestir-se. Sua mala está no carro, como lhe disse.
— Você precisa localizar o Hotel Lunette.

AMEM

À entrada do Hotel Lunette parou um carro.


Colocando-se a um lado da janela, a ruiva pode ver sair
do veículo o casal de jovens, dando para distinguir a faixa de
tule branca atada na antena... Tule, que sugeria casamento. O
casal de noivos chegara.
A mulher que matara os dois padres e as duas freiras
afastou-se da janela e foi na direção da porta do quarto onde
esfriavam os quatro corpos. Abriu a porta e saiu para o
corredor, deixando-a trancada.
Pôs os óculos e esperou.
Não se ouvia nada, não aparecia ninguém. Passaram-se
quase cinco minutos. Chegaram vozes do vão da escada,
onde em seguida apareceu um carregador com duas malas.
Atrás dele dois lindos jovens, meigos, sorridentes, de mãos
dadas. O rapaz que trazia a bagagem abriu-lhes a porta do
quarto, deixou-os entrar e, em seguida entrou com as malas.
Saiu imediatamente, fechando a porta e sorrindo
maliciosamente. Dirigia o olhar para a imóvel ruiva, esteve a
ponto de dizer alguma coisa, mas resolveu voltar para baixo.
Novamente sozinha no corredor, a ruiva se dirigiu à porta
do quarto dos recém-chegados e bateu com os dedos na
madeira.
Dentro se ouviam risos, muito próprios para a ocasião,
conforme as aparências. A porta se abriu e apareceu o rapaz,
sem receio algum, sorridente. Certamente pensara que seria o
carregador quem chamava, porque seu rosto mostrou uma
leve expressão de surpresa.
— Sim?
A ruiva adiantou a mão armada com o revólver. O jovem
assustou-se e empalideceu. Retrocedeu quando a visitante
ordenou com um movimento do revólver. Ela entrou, fechou
a porta, contemplou a noiva que, em pé no meio do quarto, a
olhava com olhos muito abertos, expressando uma inocência
que fez a ruiva apertar os lábios.
— Quem é você — perguntou o noivo.
A ruiva o fitou, apontando-lhe o coração com o revólver e
disparou. Plof. Ele tossiu, deu um salto violento para trás e
foi cair de costas perto da cama. A noiva olhou para todos os
lados como que enlouquecida; parecia a ponto de correr para
a janela... e a ruiva atirou de novo. Plof. Um grito
entrecortado, um giro, uma queda de bruços sobre a cama,
com uma bala no coração.
— Amém.
Guardou o revólver na bolsa, saiu do quarto e desceu para
o saguão do hotel, atravessando-o tranquilamente. Poucas
pessoas a notaram. Saiu para o bar externo do hotel. Um
garçom se aproximou.
— Em que posso servi-la?
— Em nada. Obrigada. Vêm-me apanhar agora mesmo
com um carro.
Na verdade, um carro apareceu das sombras e parou
diante do hotel. A ruiva correu para de, abriu a porta e
sentou-se ao lado do condutor. O carro partiu.

CAPÍTULO NONO
Este é o final

O veículo partiu, distanciando-se do Hotel Lunette, e a


ruiva tirou a peruca e os óculos. Em seguida livrou-se dos
recheios que deformavam parcialmente seu rosto... Em
menos de um minuto a senhorita Brigitte Montfort recuperou
sua aparência.
— Chamou os meus Simões pelo rádio?
— Claro — disse o Número Um. — Já entraram na
mansão... e encontraram Renzo Capavaro numa cela ao lado
do túnel.
— Não vi isso.
— Pois estava lá, morto. Encontraram também o rádio de
Desmond Ambler nos aposentos ocupados por essa anomalia
chamada Angela. Descobriram cerca de cem cadáveres. Tal
como pensou, havia realmente um dispositivo que liberou
tanto gás que todos os ocupantes da casa morreram. É claro
que a tal Angela não queria que ninguém ficasse vivo para
explicar seus planos, se ela tivesse que fugir às pressas. Que
fez com esses “soldados” que tinham que fazer a cabeça da
população de Vitry-aux-Loges para que se rebelasse contra a
ocupação das tropas mandadas por esse Laforet?
— Matei os seis. Não eram mais que assassinos...
Divertiam-se manipulando gente inocente para que se
autoimolassem enfrentando mercenários ou tropas regulares
bem treinadas... Você encontrou um bom lugar para esperar
o caminhão.
— Se vier por esta estrada, sim. Encontrei um bom lugar.
— Pois vamos lá. Está claro que virá por aqui.
Mais um minuto e Número Um parava o veiculo entre
uns pinheiros, apagando todas as luzes e desligando o motor.
A estrada passava a uns trinta metros, espelhando com a
chuva que continuava caindo, mas agora bem fina e escassa.
Brigitte tirou de sua valise o tripé para câmara fotográfica
e o secador de cabelo; montou seu tubo-fuzil, em cuja boca
introduziu três pequenas cápsulas. Era só esperar.
Passados vinte minutos, apareceu o caminhão, grande,
completamente fechado, aproximando-se lentamente, vindo
da estrada 152, como eles dois haviam calculado. Ela baixou
o vidro da janela, apontou para o caminhão com o tubo-fuzil
e disparou.
A trinta metros de distância o caminhão, repleto de
mercenários implacáveis, que iam a Vitry-aux-Loges,
dispostos a cometer os piores horrores para testarem os
soldados de Angela, tornou-se imediatamente uma enorme e
belíssima bola de fogo azulada, logo se avermelhando e
lançando para o céu baforadas de fumaça... Saiu da estrada, e
quando capotava o tanque de gasolina explodiu. Nada restou.
Brigitte guardou seus apetrechos e murmurou:
— Por favor, amor, leve-me a algum lugar em que haja
sol...

Você também pode gostar