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“Cerne de Cañon”
Tradução de Margarida Gandra
Ilustração de Benicio
Colaboração de
Carlos Natali
® 541003
CAPÍTULO PRIMEIRO
Ave Maria Puríssima
Primavera chuvosa.
Era como se a luz do mondo se tivesse escoado, e agora
só se pudesse dispor daquela claridade melancólica e úmida.
Daquela pequena suíte, hermeticamente fechada, ouvia-se o
rumorejar da chuva que caia lá fora, e parecia que tudo, não
só a luz do mundo, mas tudo o que nele caíste chegara a seu
termo.
Só a chuva era uma realidade.
Os dois padres esperavam a hora do jantar, quando então
desceriam ao pequeno restaurante daquele lugarejo francês
situado ao norte Paris, a uma distância relativamente curta,
perto da estrada de Amiens. Era primavera, chovia e nada
mais.
E isso parecia ser tudo.
Um dos padres, o que lia um jornal, parou de repente,
olhou o relógio e disse:
— Podíamos descer agora.
— Francamente, não me atrai nem um pouco a ideia de
jantar num lugar como este.
— Nem a mim, mas se não formos parecerá uma desfeita.
— É, você tem razão. Terminou de ler o jornal
— Não. Mas pode pegá-lo. Fará o que diz...!
— E o que diz?
— O mesmo de sempre.
— Esperava outra coisa.
— Na verdade, não. É sempre uma bobagem. Só dizem
mentiras.
— De qualquer forma, vou dar uma olhada.
E pegou o Jornal. O outro, depois de passar as mãos no
rosto num gesto mais de tédio que de cansaço, aproximou-se
da janela e ficou olhando a chuva através da vidraça.
— Você pode imaginar uma praia ensolarada, quente, de
águas azuis? — disse voltando-se companheiro que lia o
jornal.
— Tudo tem seu dia. Nossa missão agora é aqui. Logo
voltaremos à Itália. Ou a qualquer outro lugar onde haja
praias como as que está imaginando.
— Detesto este clima. Deprime-me.
— Não ficaremos aqui muito tempo. Além disso, este
hotel é bastante confortável.
— Mas bem menos que o Vaticano.
Começaram a rir os dois. O padre da janela voltou às suas
praias imaginárias, e o do jornal à leitura dos engodos
políticos e mentiras econômicas.
Quando chamaram à porta da suíte, os dois estavam
distraídos, tão absortos que a batida na porta os sobressaltou.
Trocaram um olhar, riram como que se desculpando
mutuamente pelo sobressalto, que evidentemente não tinha
cabimento, e o padre da janela fez um sinal ao outro e se
aproximou da porta.
— Quem é? — perguntou sem abrir.
— Ave Maria Puríssima — disse uma voz doce do outro
lado da porta, em ótimo francês.
O que estava com o jornal levantou-se de um pulo.
Olharam-se, e o que ficava mais longe da porta disse,
aborrecido:
— Que será que eles querem Não deviam vir à nossa
suíte!
— Pois estão ai, e se vieram é por alguma coisa, não?
Dito isto, abriu a porta. Não é fácil imaginar o que
pensava ver diante dele; mas está na cara que não esperava
encontrar-se com a boca de um silenciador apontada para
ele, pois teve o maior susto. Conteve-se e ficou imóvel. O
outro padre, de pé, junto à poltrona em que lia o jornal,
também não se movia, como o seu companheiro, olhava sem
compreender aquela mulher que, de revólver na mão, entrava
calmamente na suíte.
Era alta, forte, ruiva e míope, pois usava óculos fundos de
garrafa. Vestia uma velha capa mais do que passada da
moda. Com um gesto de sua mão branca e firme, mexeu com
o revólver provido de silenciador, indicando o fundo da
suíte. O padre que abrira a porta compreendeu e foi
recuando, sem perder de vista a gigantesca ruiva.
— Quem é você? Que deseja?
A ruiva levou o indicador esquerdo aos lábios.
Um dedo delicado, aristocrático, com esmalte claro,
elegante. Era uma bonita mão. Mão de artista, que não
combinava com aquela arma.
— É um assalto? — perguntou o outro padre.
A ruiva arqueou as sobrancelhas como que divertida.
Com a mão esquerda tirou os óculos seus verdes olhos,
enormes, que pareciam flutuar calmamente no mar do seu
rosto de feições graúdas e duras. A boca excessivamente
pintada de vermelho tinha um trejeito incomum numa
mulher, um ricto de crueldade.
— Mas... que quer? — insistiu o primeiro padre. — Se se
trata de dinheiro, diga; nós lhe damos o que temos. Mas
tenha cuidado com este revólver, minha filha...
A ruiva o encarou, atravessando-o com o olhar, de
maneira quase sinistra. O padre tremeu. Ela virou para ele o
escuro orifício do silenciador. Olhando-a nos olhos, viu
perfeitamente que ia morrer. Empalideceu e quis falar.
Plof, disparou a ruiva.
A bala penetrou a negra batina, precisamente sobre o
coração, com um estalido brando e tétrico, salpicando de
vermelho seu branco colarinho. Com um gemido, girou e foi
cair de bruços numa poltrona. Dai rolou para o chão, de cara
para cima, olhos abertos e a boca crispada... Do canto lhe
escorria um fio de sangue.
A ruiva virou o revólver para o segundo padre, tão
rapidamente que ele nem se deu conta do gesto, umedeceu os
lábios e engoliu saliva.
— Quem mandou você? — arquejou.
Plof.
Morreu tão depressa quanto o primeiro. Um tiro no
coração, que o fez cair sentado no sofá, escapando-lhe o
jornal de suas mãos crispadas, ficou sentado, a cabeça
inclinada para a frente como se quisesse continuar lendo o
jornal, ou talvez contemplar seu companheiro que o
precedera na última viagem.
A mulher observou-os por um instante. Tudo era silêncio.
Só se ouvia lá fora a chuva da primavera.
Apagou as luzes da suíte e aproximou-se da janela. Via a
chuva, a pequena esplanada onde se estacionavam os carros
dos hóspedes do hotel e a luz azulada que se difundia
tristemente, como adormecendo.
O rumorejar da chuva era simplesmente delicioso.
CAPÍTULO SEGUNDO
Morte de um agente da CIA
CAPÍTULO TERCEIRO
A mansão “Les Oiseaux”
CAPÍTULO QUARTO
Uma negra chamada Angela
CAPÍTULO SÉTIMO
Presa numa gaiola
1
Ver aventura “Estranho Funeral”, volumes 93 e 94 desta coleção. Disponível em
<www.savajo.blogspot.com>
— Ou seja, que se nega a dar-me de comer.
— Claro que não — disse Angela, voltando a acariciá-la.
— Eu me apaixonei por você, e durante um tempo comerá e
beberá à vontade, para que continue vivendo... para mim.
— Pelo visto, neste lagar o sexo tem que ser algo...
extravagante. E já que falamos nesse tema, que significam
para você estes dois? A impressão que me dão é de a
amarem, os dois, e que você provoca os ciúmes de um com o
outro. É verdade?
— Você é bem perspicaz — riu Angela. — Sim, Otto e
Kart estão muito apaixonados por mim, e sempre que fico na
cama mais tempo com um, o outro fica de mau humor.
— E você se diverte...
— Que culpa tem eu que sejam ciumentos?
— Claro. E agora serão ainda mais, por minha causa, já
que entendo que se você se apaixonou por mim não vai se
limitar a um amor... platônico, contemplativo.
Angela sorriu, inclinou-se e beijou suavemente a boca de
Brigitte, enquanto lhe acariciava os seios e o ventre com suas
grandes e bonitas mãos que pareciam de veludo. Brigitte não
se moveu, aceitando o beijo sem mostrar reação. Por um lado
da cabeça de Angela via Kurt e Otto que contemplavam a
cena, lívidos, imóveis. Os olhos míopes de Kurt pareciam de
peixe assombrado. Otto começou a mostrar um tique nervoso
num lado da boca.
Angela deixou de beijar Brigitte e se levantou.
— Não gosto de uma relação em que existe falta de
entusiasmo por alguma das partes — murmurou a negra. —
De modo que se quer continuar vivendo terá que se mostrar
mais acolhedora.
— Sinto muito — disse Brigitte, — mas terei que me
esforçar para adaptar-me à ideia. Nunca tive relações dessa
espécie. Jamais fui lésbica. No entanto farei o possível para
me mostrar complacente.
Angela concordou, soltando de repente uma gargalhada, e
se dirigiu para a porta dizendo:
— Darei ordens para que lhe deem alimento. Vamos,
queridos?
Otto e Kurt vacilaram, mas foram atrás dela Brigitte ficou
novamente só. Tinha fome e sede. Calculava que eram dez
da noite. Isto é, que havia passado, com efeito, dois dias
desde que os homens da CIA viram cair no rio a agente
“Baby”.
Dois dias durante os quais, apesar da fome e
principalmente da sede e das dores que sentia pelo corpo,
Brigitte empregara seus esforços na sentido de soltar-se das
amarras. Sua paciência era a da sobrevivência, e deste modo
conseguira ir afrouxando as ataduras da mão direita, que lhe
doía tanto que quase ficara dormente, além da esfoladura
onde as cordas roçavam com mais força. Se lhe dessem um
pouco mais de tempo acabaria por livrar uma mão. E com
uma mão livre ela conseguiria além do que se pode imaginar.
Não se passara nem meia hora da última visita de KAO,
quando a porta voltou a abrir-se entrando um par de jovens
cada um com uma bandeja.
— Oi! — saudou jovialmente uma delas. — Como vai,
senhorita Montfort?
— Regular, Gladys. E vocês como estão?
— Muito ocupados estes dias com a CIA e o serviço de
contraespionagem francês. Mas já passou. Trouxemos
comida e bebida, e temos ordens de ajudá-la a comer e
beber, mas não podemos soltá-la por nada desse mundo...
Tem fama de perigosa nesta casa, senhorita Montfort.
— Calúnias — sorriu a espiã. — Sou bem inofensiva.
— Está bem, está bem. Agora, se levantar a cabeça um
pouco mais podemos alimentá-la... Isso. Caramba, você é
muito bonita, de verdade.
— Obrigada, Sinclair. Digam-me uma coisa: onde estou?
Quero dizer, em que parte da casa está este quarto? Perto da
passagem?
— Que passagem? — exclamou Gladys.
Olhavam-na com autêntico interesse. Brigitte sorriu como
quem disse uma brincadeira
— A que há no porão — disse. — Oh, bom, vejo que não
me acreditam; deixem pra lá. De verdade, onde estou?
— Na gaiola — riu Gladys.
Brigitte olhou á sua volta. Gaiola? Não se via qualquer
uma janela, nenhuma abertura, nada. Era como estar dentro
de uma caixa, com a porta como única entrada. Mas não, não
devia estar na passagem, porque não sentia umidade. Em
troca, havia tal silêncio que bem podia ser que estivesse na
passagem...
— Parece que ela não sabe o que é a gaiola — disse
Sinclair.
— Não, não sei — admitiu Brigitte. — Que é?
— Vamos ver: como se chama este lugar?
— “Les Olseaux” — murmurou a espiã.
— Exato. Os pássaros. E para os pássaros existem
gaiolas. Aqui há muitos pássaros, por causa do bosque e do
rio... Onde se colocaria uma gaiola para os pássaros?
— Mas aqui não é uma gaiola, é um quarto.
— Certo. Mas antes foi uma gaiola, um videiro. É um
quarto construído no alto da mansão, no vértice mais alto do
telhado, e houve um tempo em que se acolhiam aqui, por
duas pequenas janelas, muitos pássaros que fugiam da
neblina. Até que finalmente um dos proprietários que se
foram sucedendo decidiu tapar as janelas, pois estava farto
de tanto passarinho. Assim é que ficou esse quartinho
isolado que nem a CIA, que esteve em todas as
dependências, pôde imaginar que existisse.
— Por isso continuam vindo tantos pássaros à casa —
murmurou “Baby”. — Certamente não são os que vinham no
tempo das janelas abertas, mas seus descendentes que se
sentem talvez impulsionados a procurar aqui algo que
ignoram.
— Talvez seja isso mesmo — concordou Sinclair.
— Digam-me uma coisa: que espécie de exército é o de
vocês?
Os dois jovens ficaram olhando para ela. De repente,
Gladys riu divertida.
— Somos soldados invencíveis de um exército
invencível... Se você participasse dele teria naturalmente
patente de general.
— Isso é bom... E qual a patente de vocês?
— Somos cadetes. Estamos aprendendo. Quando
formados, ser-nos-á atribuída alguma missão importante.
Embora o mais provável é ficarmos esperando fora da
mansão, como os que já aprenderam o necessário.
— Quer dizer que fora da mansão há jovens como vocês
que já são... soldados? Soldados preparados para quê,
Sinclair?
— Para que, eu não sei. Ou melhor, sei; não sei é onde
serviremos. Muitos esperam em vários cantos: Paris,
Londres, Nice, Cairo, Trípoli, Nova York, Madri, Buenos
Aires, Panamá... O ponto principal, porém, é a África,
porque ali se processarão as primeiras ações. Serão básicas,
para dar-nos a conhecer e conseguirmos enriquecer,
deixando assim de ser um problema o dinheiro.
— Em que consistirão essas primeiras ações? Guerras?
— Sim, mas guerras especiais que...
— Não está falando demais? — murmurou Gladys? —
Um dos testes para ingresso que tivemos foi o de saber
manter a boca fechada.
— Você tem razão — disse Sinclair. — Não sei como
conseguiu me fazer falar tanto.
— Eu o hipnotizei — sorriu Brigitte — Ora Gladys, que
diferença faz que eu saiba ou deixe de saber, se não sairei
viva de “Les Oiseaux”?
— Escute, nós vimos aqui para alimentá-la. Se insiste em
tentar tirar informações, iremos falar com Angela para que
decida sobre você. Estou avisando: mais uma palavra e fica
sem comida.
Brigitte olhou-os e passou a limitar-se a comer. Eles a
serviam muito gentilmente. Quando terminou, pediu que a
cobrissem com uma manta, pois passara muito frio nas duas
noites que se passaram. Foi atendida. E de novo ficou
sozinha, como que submersa num poço de silêncio. A
refeição e a quentura da manta começaram a fazer efeito. Foi
relaxando, cochilando... e finalmente adormeceu, talvez com
o pensamento de jamais ser encontrada pela CIA naquela
gaiola, mas se a achasse o Número Um...
***
Esteve muito tempo de pé na ponte, contemplando o local
da amurada que fora consertado provisoriamente a fim de
evitar a possível queda de outro carro no rio. Chovia
intensamente, mas ele estava alheio a tudo. Simplesmente
olhava aquelas águas que pareciam eriçadas devido à chuva.
Perto dele, dentro do carro, cujas amarelentas luzes
conferiam a tudo uma aparência fantasmagórica, esperavam
Simão-Paris, Simão II e Simão III.
Tudo era sombrio, inquietante, espectral. A chuva não
deixava ver nada à distância. Estavam envoltos pela chuva e
escuridão. Só havia as luzes do carro.
Ele finalmente se voltou e dirigiu-se ao carro, onde
sentou ao lado de Simão-Paris.
— Por que não me avisaram antes.
— Bem, senhor, francamente ninguém jamais pensou que
uma coisa dessas fosse acontecer com “Baby”... Estávamos
certos de que ela apareceria. Quero dizer que achamos que o
rio a arrastara, que talvez se encontrasse ferida, mas a
salvo...
— Mas agora estão convencidos de que está morta.
— O rio foi dragado e explorado de todo jeito até sua
confluência com o Sena, e não encontramos nada. Tampouco
em suas margens. Revistamos palmo a palmo, senhor, e a
única explicação é que ela foi arrastada para o mar.
— E essa mansão chamada “Les Oiseaux” foi revistada a
fundo?
— Completamente. Inclusive tivemos a ajuda do SDECE
com todos os meios disponíveis. Como sabe, um dos seus
mais altos dirigentes é amigo da “Baby”, o Monsieur Nez.
— Claro.
— Ele esteve na busca. Veio logo que soube da notícia...
Devíamos tê-lo avisado também, mas tínhamos a esperança
de encontrá-la e não desejávamos fazê-lo passar um mau
pedaço pelo susto. Sentimos muitíssimo, sabe disso.
Número Um assentiu com um gesto, e olhou os agentes
da CIA que, sentados na parte da frente, se viraram para ele.
Voltou seu olhar para Simão-Paris e em seguida para onde
devia estar a mansão, envolta na escuridão.
— Então — sussurrou, — ela dissera que não queria
contato por quarenta e oito horas, e apesar disso chamou-os
quando se haviam passado vinte e quatro horas apenas.
— Exato.
— Que sabem sobre esses dois alemães? Que
conseguiram com suas investigações?
— Eles moravam em Paris, num apartamento da Rua
Rivoli e estavam sempre pedindo informações sobre
esoterismo, psicologia, parapsicologia... Todas essas coisas.
Têm muito dinheiro, que lhes chega com regularidade,
achamos que da Suíça. Parece que resolveram dedicar-se aos
estudos dos poderes físicos e mentais do ser humano. Não há
na mansão nada que sugira a formação de um exército, nem
nada parecido. Digamos que topamos com um grupo de
excêntricos, só isso.
— De maneira — disse olhando diretamente nos olhos de
Simão-Paris — que você acreditou em tudo isto.
— Em tudo o quê? — desconcertou-se Simão-Paris.
— Em tudo o que se refere ao acidente. Acreditaram
realmente? Ela sai da mansão depois de chamá-los vinte e
quatro horas antes do combinado, joga o carro contra a
amurada e desaparece num rio insignificante. Uma morte
muito estúpida para ela.
— Nós presenciamos — murmurou Simão-Paris.
— Adeus — disse o Número Um. — E obrigado por
tudo.
Dispunha-se a sair do carro, mas Simão-Paris reteve-o
por um braço.
— Aonde vai? Está chovendo a cântaros e...!
— Voltem para Paris e esqueçam este assunto.
Desocupem a zona definitivamente. Eu me encarrego do
resto.
— De que resto?
— Vou encontrá-la.
CAPÍTULO OITAVO
Passagem secreta
AMEM
CAPÍTULO NONO
Este é o final