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L'OSSERVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL EM PORTUGUÊS

Unicuique suum Non praevalebunt


Ano XL, número 31 (2.067), sábado 1 de Agosto de 2009 Cidade do Vaticano Preço ; 1,00. Número atrasado ; 2,00

No Angelus em Les Combes, o Papa recorda a missão de salvação confiada aos sacerdotes Aborto e futuro

Os avós, depositários e testemunhas A crise


do dom
dos valores fundamentais da vida LUCETTA SCARAFFIA
O Papa confirmou a sua limites, ajudar Jesus na sua uas notícias recentes – a pro-
intenção de ir na próxima
Primavera a Turim, por
ocasião do ostensão do Santo
missão? É o Senhor que dá
a resposta: precisamente
colocando nas suas mãos
D messa de Obama de empe-
nhar-se pela redução do nú-
mero de abortos nos Estados Unidos
Sudário, assegurando-o ao «santas e veneráveis» o e a aprovação pela grande maioria
Cardeal Severino Poletto, pouco que eles são, os sa- na Câmara dos deputados da Itália
Arcebispo dessa Sede cerdotes, nós sacerdotes de uma moção a ser apresentada à
italiana, com quem almoçou tornamo-nos instrumentos Assembleia Geral das Nações Unidas
no domingo 26 de Julho em de salvação para muitos, contra o aborto como instrumento
Les Combes, depois do para todos! de controle demográfico – parecem
encontro com os fiéis que se Uma segunda indicação indicar que está a terminar uma fase
reuniram numerosos para a de reflexão vem-me da ho- histórica, iniciada nos anos 70,
oração do Angelus ao redor dierna memória dos Santos quando se difundiu a opinião de que
do chalé onde o Santo Padre Joaquim e Ana, pais de o aborto devia ser garantido como
transcorria as suas férias. Nossa Senhora e, portanto, direito de liberdade das mulheres e,
Mais de cinco mil pessoas avós de Jesus. Esta cele- portanto, considerado uma possibili-
participaram no encontro bração faz pensar no tema dade positiva no exercício de um di-
que teve sabor de despedida, da educação, que ocupa reito individual.
dado que no dia 29 Bento um lugar importante na Como eco desta convicção – con-
XVI se transferiu para a pastoral da Igreja. Em firmada devido à propaganda ideoló-
sua residência de Verão em particular, convida-nos a gica radical e feminista – o aborto
Castel Gandolfo. rezar pelos avós, que na difundiu-se como meio de controle
família são os depositários dos nascimentos nos países do Ter-
Prezados irmãos e irmãs e muitas vezes as testemu- ceiro Mundo, inclusive por intermé-
Bom domingo a todos nhas dos valores funda- dio das agências internacionais, e foi
vós! Encontramo-nos aqui mentais da vida. A tarefa propagado como instrumento para
em Les Combes, na aco- educativa dos avós é sem- garantir a liberdade das mulheres,
lhedora casa que os Sale- pre muito importante, e até quando era imposto pelo Estado.
sianos põem à disposição torna-se ainda mais quan- Hoje, a crise demográfica e as vozes
do Papa, onde estou a ter- do, por diversos motivos, de protesto€que se levantaram, sobre-
minar o período de des- os pais não são capazes de tudo por parte da Igreja católica –
canso no meio das bonitas assegurar uma presença que sempre lutou para que nas con-
montanhas do Vale de adequada ao lado dos fi- ferências mundiais o aborto não fosse
Aosta. Estou grato a Deus lhos, na idade do cresci- considerado oficialmente um método
que me concedeu a alegria destes dias ficando-nos nos Apóstolos, quando di- mento. Confio à salvaguarda de Santa de contracepção e um sinal de liber-
marcados por um verdadeiro repouso zem: onde poderemos encontrar o pão Ana e de São Joaquim todos os avós tação das mulheres – estão a suscitar
– apesar do pequeno acidente que vós para toda esta multidão? E ao lermos do mundo, concedendo-lhes uma bên- uma reflexão sobre a questão, que
bem conheceis, e também visível. sobre aquele jovem anónimo que dis- ção especial. A Virgem Maria, que – também envolve o feminismo.
Aproveito o ensejo para agradecer com põe de cinco pães de centeio e dois segundo uma bonita iconografia – De resto, já é evidente que não se
carinho àqueles que se preocuparam peixes, também nós dizemos esponta- aprendeu a ler as Sagradas Escrituras realizou o que se divulgava como
em estar ao meu lado com discrição e neamente: mas o que é isto para tama- no colo da mãe Ana, os ajude a ali- um bom motivo para apoiar a lega-
com grande dedicação. Saúdo o Car- nha multidão? Com outras palavras: o mentar sempre a fé e a esperança nas lização do aborto, ou seja, a garan-
deal Poletto e os Bispos presentes, em que sou eu? Como posso, com os meus fontes da Palavra de Deus. tia de que deste modo o recurso à
particular o Bispo de Aosta, D. Giu- interrupção da gravidez diminuiria
seppe Anfossi, a quem agradeço as pa- até ao seu desaparecimento, inclusive
lavras que me dirigiu. Saúdo cordial- graças à difusão sem impedimentos
mente o Pároco de Les Combes, as dos anticoncepcionais. Não só os
Autoridades €civis €e €militares, €as For- Após duas semanas passadas no Vale de Aosta abortos continuaram a ser pratica-
ças da ordem e todos vós, queridos
amigos, €assim €como €aqueles €que €es-
tão unidos a nós mediante a rádio e a
televisão.
Bento XVI em Castel Gandolfo CONTINUA NA PÁGINA 2

Hoje, neste domingo maravilhoso,


onde o Senhor nos mostra toda a bele- «Acabei de voltar da montanha. Não
za da sua criação, a liturgia prevê co- obstante o meu pequeno acidente, fo-
ram dias lindos. Mas agora sinto-me
NESTE NÚMERO
mo página evangélica o início do capí-
tulo 6 de João, que contém primeiro o feliz por estar em Castel Gandolfo, Página 2: Intervenção da Santa Sé
milagre dos pães – quando Jesus deu nesta bonita cidade, e espero passar sobre a pobreza e a falta de saúde.
de comer a milhares de pessoas com convosco algumas semanas», disse o Página 3: Homilia do Papa na cele-
apenas cinco pães e dois peixes; depois, Papa na tarde de quarta-feira 29 de bração das Vésperas, na Catedral de
o outro prodígio do Senhor que cami- Julho ao chegar à residência de Ve- Aosta.
nha sobre as águas do lago em tempes- rão à margem do lago de Albano,
proveniente do aeroporto de Roma- Página 4: Considerações de G. Valli-
tade; e enfim o discurso em que Ele se ni a respeito da obra «Human smo-
revela como «o pão da vida». Narran- Ciampino, onde foi recebido por di-
versas autoridades religiosas e civis, ke», de Nicholson Baker.
do o «sinal» dos pães, o Evangelista
sublinha que Cristo, antes de os distri- depois de ter transcorrido 16 dias no Página 5: Interpretações e mal-en-
buir, abençoou-os com uma prece de Vale de Aosta. Sucessivamente, o Pa- tendidos da última encíclica, segun-
acção de graças (cf. v. 11). O verbo pa foi acolhido na residência pelos do G. Crepaldi.
grego é eucharistein e remete directa- Cardeais Bertone, Secretário de Esta- Páginas 6-8: A «Caritas in veritate»
mente para a narração da Última do; Lajolo, Presidente do Governato- no discurso do Cardeal Bertone, no
Ceia em que, com efeito, João não rato; e Vallini, Vigário-Geral para a Senado da República Italiana.
menciona a instituição da Eucaristia, Diocese de Roma; por D. Viganò, Página 9: Relatório do Cardeal Staf-
mas sim o lava-pés. Aqui, a Eucaristia Secretário-Geral do Governatorato; ford sobre a figura do Cura d'Ars.
é como que antecipada no grande si- D. Semeraro, Bispo de Albano; D. Vilas pontifícias e do Observatório
nal do pão da vida. Neste Ano sacer- Corbellini, Presidente do Departa- do Vaticano. O Papa cumprimentou- Página 10: Conclusão dos trabalhos
dotal, como deixar de recordar que es- mento do Trabalho; o Pároco e o os e depois apareceu à janela do Pa- da XIII Assembleia Geral da KEK.
pecialmente nós, sacerdotes, podemos Presidente da Câmara Municipal de lácio pontifício para abençoar os fiéis Página 11: As Comunidades Eclesiais
reflectir-nos neste texto joanino, identi- Castel Gandolfo; os Directores das reunidos na praça adjacente. de Base no Brasil.
A crise do dom

Lucetta Scaraffia

Duas notícias recentes a promessa de Obama de empenhar-se pela redução do número


de abortos nos Estados Unidos e a aprovação pela grande maioria na Câmara dos
deputados da Itália de uma moção a ser apresentada à Assembleia Geral das Nações
Unidas contra o aborto como instrumento de controlo demográfico parecem indicar que
está a terminar uma fase histórica, iniciada nos anos 70, quando se difundiu a opinião de
que o aborto devia ser garantido como direito de liberdade das mulheres e, portanto,
considerado uma possibilidade positiva no exercício de um direito individual.
Como eco desta convicção confirmada devido à propaganda ideológica radical e
feminista o aborto difundiu-se como meio de controle dos nascimentos nos países do
Terceiro Mundo, inclusive por intermédio das agências internacionais, e foi propagado
como instrumento para garantir a liberdade das mulheres, até quando era imposto pelo
Estado. Hoje, a crise demográfica e as vozes de protesto que se levantaram, sobretudo
por parte da Igreja católica que sempre lutou para que nas conferências mundiais o
aborto não fosse considerado oficialmente um método de contracepção e um sinal de
libertação das mulheres estão a suscitar uma reflexão sobre a questão, que também
envolve o feminismo.

De resto, já é evidente que não se realizou o que se divulgava como um bom motivo
para apoiar a legalização do aborto, ou seja, a garantia de que deste modo o recurso à
interrupção da gravidez diminuiria até ao seu desaparecimento, inclusive graças à
difusão sem impedimentos dos anticoncepcionais. Não só os abortos continuaram a ser
praticados, também nos países onde a informação sobre os anticoncepcionais é vasta,
mas o fenómeno envolve faixas etárias cada vez mais baixas.

Por que as nossas sociedades não conseguem debelar este mal? Este seria o momento
adequado para formular tal pergunta e procurar respostas convincentes e não
ideológicas. A este propósito, podemos encontrar uma ajuda para entender tudo isto no
livro do psicanalista Claudio Risé (La crisi del dono. La nascita e il no alla vita,
Cinisello Balsamo, San Paolo, 2009, 160 páginas), segundo o qual "o aborto não nasce
só da malvadez ou distracção individual, ou do oportunismo de grupos políticos
inconscientes ou irresponsáveis. O aborto afirma o autor afunda as suas raízes num
terreno psicológico, cognitivo e afectivo muito maior e é alimentado pela maior
tentação regressiva, desde sempre presente na psique humana: a de matar o novo, o
desenvolvimento, a mudança, quando começa a tomar forma. Antes que nasça e te
obrigue a mudar com ele".

Com um longo percurso, que inicia nos mitos da época greco-romana para chegar à
tradição judaico-cristã, o autor redescobre o significado do nascimento nas tradições
religiosas, isto é, renovação e renascimento, ao qual frequentemente se opõe o medo:
"Matar o nascente, parar o tempo, naturalmente é também um modo de pensar
inconscientemente em vencer a nossa morte, detendo o tempo no qual ela está inserida".
Assim matam os recém-nascidos Cronos-Saturno (que paga esta pulsão negativa com a
melancolia e o pessimismo) e Herodes, ambos com a intenção de manter o poder que
julgam ameaçado, e também Medeia, que se sente omnipotente: porque sempre "do
nascimento de um novo ser humano se produz no mundo uma cisão entre adesão e
oposição à transformação". Com efeito, Jesus, que acredita e deseja a transformação,
recebe com alegria e afecto as crianças, anunciadoras do mundo novo.

O modelo cultural da sociedade ocidental moderna, onde o aborto se tornou um direito,


está fundado no controle das situações e na posse de pessoas e coisas, e olha com
suspeita para a confiança e o acolhimento, isto é, o dom. Com frequência, renuncia-se à
criança que nasce para possuir, "devorar, incorporar outras coisas: dinheiro,
comodidade, carreira, status, diversões". Além disso, não é a primeira vez escreve Risé
que "o homem constrói ídolos materiais, para se subtrair ao dom de si mesmo, que tem a
sua imagem viva no filho, na criança que nasce"; mas depois, sempre impelido pela
infelicidade e pela solidão, reabre o coração ao acolhimento.

Esperemos que as notícias citadas no início tenham resultado positivo e


verdadeiramente sejam os primeiros sinais de uma inversão de tendência: rumo a uma
abertura ao dom, à criança que nasce. E, por conseguinte, à esperança no futuro.

(©L'Osservatore Romano - 1 de Agosto de 2009)

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