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O Mal e a Morte em
The Lord of the Rings
Índice
Publicado entre os anos de 1954 e 1955, The Lord of the Rings, a principal obra
de John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973), seria por muito tempo alvo de críticas,
interpretações e polêmicas. Apesar disso, não recebeu grande atenção da crítica literária
especializada da época, que, em muitos casos, não a considerava digna de atenção.
Certas leituras arrevesadas e o gosto modernista cultivado a partir das primeiras
décadas do século XX parecem ser alguns dos motivos para esse desprezo da academia.
De fato, a obra tolkieniana apresenta características incomuns em uma época dominada
pelas vanguardas, em que a literatura, juntamente com as experimentações com a
linguagem e as inovações técnicas daí decorrentes, promovia um mergulho na
subjetividade e conhecia o indivíduo fragmentado, conforme revelado pelas novas
teorias psicanalíticas. Afastando-se dessas tendências, J.R.R. Tolkien desenvolve em
The Lord of the Rings uma longa narrativa, marcada pela complexidade do enredo e
grande número de personagens, ambientados em uma era remota e dispostos num tempo
predominantemente linear. Dessa forma, o autor tenta reconstruir um passado mítico da
humanidade, dialogando com as tradições das mitologias nórdica, germânica e greco-
latina, além dos textos medievais, como as novelas de cavalaria e as canções de gesta
(marcadas pelo espírito cristão), que ajudaram a construir o imaginário ocidental.
Contudo, deve-se ressaltar que, embora distante das experimentações técnicas a
maneira modernista, Tolkien era um escritor consciente do seu trabalho com a
linguagem. Pode-se dizer ainda que o seu modo de trabalhar a linguagem estava
intimamente relacionado à sua carreira de filólogo e professor em Oxford, o que sugere
que as suas preocupações estariam voltadas antes à busca do significado primitivo de
uma palavra do que para a tentativa de novas criações lexicais dentro da língua inglesa.
Ao buscar a palavra em sua origem, Tolkien procura abrir um caminho em busca dos
primórdios da própria linguagem e, assim, o falar e o escrever assumem freqüentemente
em sua obra um caráter mágico e performativo. A palavra é, então, traduzida em ação,
ou, nas palavras de Flieger:
he gives us back word, those tired old counters worn with use, and makes
them new again in their power variety and magic. He remembers for us what
we have forgotten, that spell is both a noun and a verb, that it means
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O que Tolkien constrói, então, é um mundo de linguagem, onde esta ocupa uma
posição fundamental. Conforme W. H. Auden, a primeira tarefa do construtor de um
mundo imaginário é a de encontrar nomes para todas as coisas e, caso haja mais de uma
língua, ele terá seu trabalho multiplicado pelo número de línguas existentes no mundo
inventado. Auden prossegue:
In the nominative gift, Tolkien surpasses any writer, living or dead, whom I
have ever read; to find the “right” names is hard enough in a comic world; in
a serious on success seems almost magical. Moreover, he shows himself
capable of inventing not only names but whole languages which reflect the
nature of those who speak them. (AUDEN, 2004, p.42)
Este universo de linguagem criado por Tolkien para constituir o cenário para
suas histórias é denominado Middle-earth (Terra-Média), um mundo construído com
grande minúcia de detalhes, compreendendo sua própria geografia, sua história e
diversas línguas – que representam os maiores esforços do autor como invenção
lingüística. Habitam ali seres abstraídos da tradição folclórica européia como magos,
elfos, trolls, anões e orcs, além de criaturas inventadas pelo próprio autor, como os ents
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Dessa forma, o crítico ressalta o valor do narrador e das narrativas, tanto orais
quando escritas, e acrescenta ainda que:
Deve-se, portanto, em primeiro lugar, indicar na obra a ser analisada quais serão as
principais características que a definem sustentando sua unidade fundamental.
Com a abordagem da obra sob a temática do Mal e da Morte e a investigação no
plano dos gêneros literários, pretende-se, também, dar início a uma tentativa de
interpretação geral, que será aprofundada na segunda parte dessa pesquisa com a análise
das principais personagens. Para isso, revisaremos de forma crítica textos de vários
autores que se preocuparam com esse tema e com o enquadramento de The Lord of the
Rings do ponto de vista dos gêneros literários, explorando inclusive as tentativas de
interpretação alegórica, além de elaborarmos algumas propostas de classificação da
obra.
The Lord of the Rings é dividido em seis livros, além de seis apêndices, com
várias informações sobre o universo criado pelo autor, e um Prólogo, que estabelece
uma ligação com o seu livro anterior – The Hobbit – e fornece mais algumas
informações detalhadas sobre os hobbits e o seu modo de vida, bem como sobre o
chamado Red Book of Westmarch, que seria a fonte de onde se traduziu The Hobbit e
The Lord of the Rings.
Logo no “Prologue” da principal obra de J. R. R. Tolkien é dito que: “This book
is largely concerned with Hobbits, and from its pages a reader may discover much of
their character and a little of their history.” (TOLKIEN, 1966b, p. 1). Mas o que seriam
hobbits? A palavra “hobbit” é, segundo a etimologia indicada pelo autor, uma forma
deturpada de holbytla, que significa “hole-builder” (TOLKIEN, 1966d, p. 456). Mas
isso pouco indica além do fato de que tais seres tinham o costume de construir e morar
em tocas com portas e janelas redondas. O lugar em que habitavam era conhecido como
Shire, uma área de economia predominantemente rural onde eles viviam sem maiores
preocupações com o que acontecia além de suas fronteiras. No “Prologue” de The Lord
of the Rings, eles são descritos assim:
As for the Hobbits of the Shire, with whom these tales are concerned, in the
days of their peace and prosperity they were a merry folk. They dressed in
bright colours, being notably fond of yellow and green; but they seldom
wore shoes, since their feet had tough leathery soles and were clad in a thick
curling hair, much like the hair of their heads, which was commonly brown.
Thus, the only craft little practised among them was shoe-making; but they
had long and skilful fingers and could make many other useful and comely
things. Their faces were as a rule good-natured rather than beautiful, broad,
bright-eyed, red-cheeked, with mouths apt to laughter, and to eating and
drinking. And laugh they did, and eat, and drink, often and heartily, being
fond of simple jests at all times, and of six meals a day (when they could get
them). They were hospitable and delighted in parties, and in presents, which
they gave away freely and eagerly accepted. (TOLKIEN, 1966b, p.2)
Acrescenta-se ainda que os hobbits poderiam ser considerados parentes dos seres
humanos e que, embora morassem em tocas, não tinham quaisquer relações com
animais que possuem o mesmo hábito, conforme sugere a comparação feita por Edmund
Wilson entre “hobbits” e coelhos (rabbits) (cf. WILSON, 2008).
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Essa primeira parte da viagem ocupa todo o Livro I de The Lord of the Rings –
conforme a divisão em seis livros proposta pelo autor. Ao fim dessa viagem, Frodo está
gravemente ferido, pois recebera o golpe de uma faca enfeitiçada de um dos Cavaleiros
Negros; e não se sabe o destino que será dado ao Anel. Além disso, Gandalf
desaparecera sem deixar vestígios, mistério que é resolvido logo no início da segunda
parte do enredo.
O Livro II tem início com a pequena comitiva já em Rivendell e Frodo
parcialmente recuperado do ferimento que recebera – ferimento que, até o fim do
romance, não chega a se curar completamente. Gandalf reaparece e conta que tinha sido
preso por Saruman, outro mago da mesma ordem que havia se corrompido e passara a
desejar o Anel para si.
Em Rivendell ocorre “The Council of Elrond” (Conselho de Elrond), realizado
na presença de personagens importantes que representam todos os povos livres da
Middle-earth. Nesse Conselho são prestados esclarecimentos a todos os presentes sobre
a situação atual: o aumento do poder de Sauron, a traição de Saruman, a natureza
maligna do Anel, bem como a necessidade de destruí-lo. A decisão tomada pelo
Conselho é a de que the One (o Um) deve ser destruído. Para isso, o objeto deverá ser
levado até Mount Doom (a Montanha da Perdição), no coração da terra de Mordor, o
reino do Inimigo. Surge então um impasse sobre quem seria o encarregado dessa terrível
missão. Porém, existe ainda uma difícil questão a respeito dessa jornada, pois a tarefa de
destruir o anel não poderia ser atribuída a contragosto, mas ser assumida de livre
vontade. De fato, personagens poderosos, como o mago Gandalf, recusam-se a carregar
esse fardo, com medo de que sejam corrompidos pelo poder do Anel e se transformem
em um novo Senhor do Escuro.
Esse impasse é resolvido quando Frodo se prontifica a levar o Anel para Mordor.
Além de Frodo, mais oito personagens se oferecem para ajudar na realização da difícil
empresa, formando-se, assim, uma comitiva formada por nove membros: Gandalf, o
mago; Strider, agora revelado como Aragorn, herdeiro do trono de Gondor; Boromir,
filho do regente de Gondor; o elfo Legolas; o anão Gimli; e os hobbits Frodo, Sam,
Pippin e Merry. O número nove, aliás, possui um significado especial, já que indica a
contraposição da “Sociedade do Anel” aos nove Cavaleiros Negros de Sauron.
A comitiva segue para o sul, viajando com muito cuidado e prevenindo-se contra
o assédio de lobos e pássaros espiões. A travessia das Misty Mountains (Montanhas
Sombrias) impõe-lhes uma escolha difícil que resulta, ao final da passagem pelas Minas
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reunindo um grande exército e em breve atacaria a Terra dos Cavaleiros. Diante dessa
situação, o rei decide levar seu povo até Helm’s Deep (Abismo de Helm), onde existia
uma fortaleza, na qual os Cavaleiros nunca tinham sido derrotados. Gandalf se separa
do grupo dizendo ter outra missão urgente a cumprir. Éowyn, sobrinha de Théoden,
expressa seu desejo de se juntar aos guerreiros e lutar na guerra contra Saruman. Mas
seu pedido não é atendido e ela recebe a missão de levar o seu povo em segurança,
especialmente as mulheres e as crianças, até as proximidades de Helm.
A chegada aos portões da fortaleza é apressada e a batalha contra os exércitos de
Isengard logo se inicia. Depois de um longo tempo de combate, quando as esperanças já
estavam diminuídas, Gandalf retorna acompanhado de Éomer e seus cavaleiros e, por
fim, Rohan consegue derrotar seus inimigos, com a ajuda de misteriosas árvores que
apareceram, de repente, perto do campo de batalha e que, mais tarde, também
desaparecem do local.
Após a batalha, o grupo viaja para Isengard e a encontra destruída, em grande
parte pela ação do próprio Saruman que a transformara em uma cópia de Mordor, e
também, pelo ataque dos ents à cidade. Próximo às ruínas de Isengard, os viajantes se
reencontram com Merry e Pippin, e Théoden maravilha-se ao avistar os hobbits, pois os
conhecia apenas de lendas. Durante a noite, o grupo de guerreiros que saíra do Abismo
de Helm ouve a narração dos eventos envolvendo os hobbits, os ents e o ataque a
Isengard.
No dia seguinte, o grupo de Gandalf prepara-se para uma última visita a
Saruman, que ficara refugiado em Orthanc, uma enorme torre no centro de Isengard.
Conforme Gandalf avisa, o mago traidor ainda dispõe de uma arma extremamente
ameaçadora: sua voz. E, quando se dá o encontro, o grupo de ouvintes escapa por pouco
de ser convencido pelas palavras de Saruman, que se mostra de fato um “corrupter of
men’s hearts” (TOLKIEN, 1966c, p. 204). Depois disso, Gandalf expulsa Saruman da
ordem dos magos e de sua torre, quebrando-lhe o cajado e tomando as chaves de
Orthanc. Então, Gríma, enfurecido, atira o palantír pela janela procurando atingir algum
dos guerreiros que lá estavam, mas seu gesto apenas revela o meio de comunicação
entre Sauron e Saruman.
Assim, os viajantes descobrem que havia um vínculo entre Isengard e Mordor,
que era mantido através daquele objeto semelhante a uma bola de vidro, chamada
palantír. Embora Gandalf esconda o palantír, Pippin não resiste à curiosidade e rouba o
objeto do mago para examiná-lo com mais cuidado. Dessa forma, o hobbit se revela ao
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Senhor das Trevas e Gandalf, preocupado, entrega o palantír a Aragorn e parte a cavalo
para Minas Tirith, levando Pippin consigo. Assim termina o Livro III de The Lord of the
Rings.
O Livro IV é relativamente mais estático em relação ao anterior, contendo um
número menor de eventos, e a história se volta novamente para Frodo e Sam, pouco
após a sua separação do restante do grupo. Perdidos em uma árida cadeia de montanhas,
eles são seguidos por Gollum, que acaba por convencer os hobbits de que pode guiá-los
até os portões de Mordor, o que faz sob um juramento de fidelidade feito em nome do
Anel.
A viagem até o portão norte da terra de Sauron é tensa e cheia de desconfianças
quanto ao guia. Sam se mostra especialmente hostil a Gollum, enquanto Frodo parece se
reconhecer na figura atormentada que agora os serve. Além de compartilhar de um
sentimento parecido em relação ao Anel, certas semelhanças físicas deixam claro que
Gollum foi outrora um hobbit, tendo sido gradualmente deformado nos séculos
passados nas escuras e úmidas profundidades da montanha onde viveu em companhia
de seu Precious (Precioso).
Ao chegarem a Mordor, deparam-se com uma entrada fortemente vigiada, o que
os obriga a seguir por um outro caminho, conhecido por Gollum. Seguindo pelas
encostas das montanhas que rodeavam Mordor, os três viajantes são surpreendidos por
um grupo de homens de Gondor, liderados por Faramir, irmão de Boromir. Os hobbits
são capturados, mas Gollum consegue escapar. Faramir descobre a missão de Frodo,
mas não tenta tomar o Anel para si, o que propicia uma relação mais amigável entre os
hobbits e os homens.
Retomando sua jornada, Gollum guia Frodo e Sam até uma passagem por dentro
da montanha – um escuro túnel onde morava a gigantesca aranha Shelob. Ela consegue
atacar o portador do Anel, injetando-lhe um veneno que o deixa imobilizado. Sam, por
sua vez, enfia a espada no ventre de Shelob, que foge para as profundezas do seu
esconderijo. Pensando que seu mestre havia morrido, o fiel amigo de Frodo toma para si
o Anel, com o objetivo de completar a demanda. Quando surgem alguns orcs, Sam se
esconde e ouve deles que, afinal, Frodo ainda vivia. Sam inicia então sua tentativa de
resgate de Frodo. Assim termina o Livro IV.
No Livro V a narrativa volta, mais uma vez, para os outros membros da comitiva
que saíra de Rivendell. Gandalf e Pippin, que ao final do Livro III haviam se separado
do restante do grupo, chegam a Minas Tirith, onde se apresentam ao regente Denethor e
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Pippin oferece os seus serviços ao reino de Gondor. O diálogo entre Gandalf e Denethor
é tenso, e Gandalf passa a desconfiar que havia outro palantír no palácio de Minas
Tirith. Depois disso, parte a procura de Faramir e retorna preocupado. Pippin permanece
na cidade.
Enquanto isso, o exército de Théoden e os outros membros da comitiva se
dirigem para Minas Tirith. Durante a viagem, Aragorn olha dentro da pedra de Orthanc
e mostra-se a Sauron, que o teme, reconhecendo-o como herdeiro daquele que um dia
foi capaz de derrotá-lo. Depois do confronto através do palantír, Aragorn decide tomar o
caminho conhecido como The Paths of the Dead (as Sendas dos Mortos), conforme lhe
indicavam as profecias referentes ao futuro rei de Gondor. Juntamente com Legolas,
Gimli e mais trinta cavaleiros vindos do norte, atravessa a Senda e convoca os mortos
para que os ajudem na luta contra Mordor.
Merry oferece os seus serviços a Rohan, tornando-se um guerreiro daquele reino
e caminhando para Minas Tirith ao lado do rei. Ao chegarem ao Templo da Colina,
encontram-se com Èowyn, vestida como um cavaleiro, mas sem poder ir à batalha. No
dia seguinte o sol não brilhou, pois Mordor havia encontrado um modo de encobri-lo
com nuvens escuras. Isso faz com que os Cavaleiros de Rohan se apressem para a luta.
Quando Merry é impedido de ir à guerra, um cavaleiro (Éowyn) oferece-se para levá-lo.
Em Minas Tirith, Denethor mostra-se muito aborrecido, dizendo que, dos dois
filhos, preferia ter perdido Faramir a Boromir, pois este lhe teria trazido o Anel. Faramir
é mandado novamente à batalha e retorna desacordado. Denethor, sem esperanças, vê na
possível morte do filho o fracasso da casa dos regentes. Ele decide incinerar-se e manda
que se faça uma pira para ele e para o filho. Enquanto Denethor é consumido pelas
chamas, Pippin consegue a ajuda de um soldado de Gondor e salva Faramir de ser
queimado vivo.
A cidade está cercada pelos exércitos de Mordor, quando chegam os Cavaleiros
de Rohan para ajudar a defendê-la, e, com eles, dissipa-se a escuridão. Durante a
batalha, Théoden cai sob seu cavalo, ficando mortalmente ferido. Éowyn e Merry
acorrem para salvá-lo do Senhor dos Cavaleiros Negros. Embora estivesse convencido
de sua invencibilidade (já que não poderia ser morto por homem algum), o nâzgul acaba
trespassado por Éowyn, morrendo assim pela mão de uma mulher. No momento de
maior desespero chegam Aragorn e sua companhia de espíritos das Sendas dos Mortos,
contribuindo decisivamente para o resultado da batalha.
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principal obra do professor de Oxford. Sua análise se detém sobre três elementos: a
Sombra (Shadow), os Espectros do Anel (the Ringwraiths) e, por fim, o Anel. Para
Shippey, a natureza do Mal, conforme demonstrada em The Lord of the Rings, é
ambígua, adaptando-se simultaneamente às visões do Mal de Boécio e dos
Maniqueístas.
Shippey explica que Boécio foi um político e filósofo romano para quem “there
is no such thing as evil: ‘evil is nothing’, is the absence of good, is possibly even an
unappreciated good” (SHIPPEY, 2003, p.140). Este conceito é ilustrado pela imagem da
Sombra, constantemente evocada durante a obra e que, por vezes se torna a própria
representação do Mal, ou mesmo de Sauron, pois, da mesma forma que a sombra é a
mera ausência de luz, o Mal é apenas a ausência do Bem. Em outras palavras, o Mal não
existiria, de fato, e tudo aquilo que é identificado com ele seria o resultado do
afastamento daquilo que é Bom. O Mal não poderia ser criado ou criar-se a si próprio,
mas seria antes o resultado do livre arbítrio de se afastar do Bem, como fizeram Lúcifer
ou Adão e Eva, na mitologia cristã.
Essa visão é afirmada várias vezes durante a obra, como por exemplo, quando
Frodo diz que:
The Shadow that bred them [orcs] can only mock, it cannot make: not real
new things of its own. I don’t think it gave life to the orcs, it only ruined
them and twisted them; and if they are to live at all, they have to live like
other living creatures. Foul waters and foul meats they’ll take, if they can get
no better, but not poison. (TOLKIEN, 1966d, p. 201)
Ou quando Elrond afirma: “For nothing is evil in the beginning. Even Sauron was not
so” (TOLKIEN, 1966b, p. 300).
A Sombra é mencionada logo no início do primeiro volume, em referência à
terra de Mordor, no verso: “In the Land of Mordor where the Shadows lie” (TOLKIEN,
1966b, p. vii). Contudo, mesmo sob a terrível sombra do inimigo, Sam consegue
encontrar algum consolo ao olhar uma estrela:
[…] There, peeping among the cloud-wrack above a dark tor high up in the
mountains, Sam saw a white star twinkle for a while. The beauty of it smote
his heart, as he looked up out of the forsaken land, and hope returned to him.
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For like a shaft, clear and cold, the thought pierced him that in the end the
Shadow was only a small and passing thing: there was light and high beauty
for ever beyond its reach. (TOLKIEN, 1966d, p.211)
Essa passagem nos dá elementos que corroboram a idéia de Shippey sobre o Mal
de acordo com a perspectiva de Boécio: o Mal corresponde à ausência do Bem da
mesma forma que a sombra é resultado da ausência de luz. Porém, para o comentador, a
obra tolkieniana também oferece subsídios para uma outra abordagem do problema: a
visão maniqueísta. Segundo essa vertente, o Mal teria uma existência própria e efetiva,
ao invés de constituir-se apenas como ausência do Bem. Dessa forma, Bem e Mal
seriam forças opostas e de grandezas equivalentes agindo sobre o universo; e, sendo o
Mal uma força externa ao indivíduo, este pode resistir a ela ou até mesmo combatê-la.
Como se pode notar, Boécio e os maniqueístas apresentam idéias opostas sobre o
Mal, mas ambas encontram-se fundidas na obra de J. R. R. Tolkien de modo a criar uma
visão paradoxal, mas ao mesmo tempo, complementar sobre o problema.
Os Ringwraiths podem ser considerados um símbolo dessa dupla visão sobre o
Mal. Shippey aponta a palavra wraith como um problema filológico, uma palavra de
origem incerta e com significados contraditórios. O autor cita duas definições para
wraith: “an apparition or spectre of a dead person: a phantom or ghost” ou “an
immaterial or spectral appearance of a living being” (SHIPPEY, 2003, p.148). Diante
dessas duas definições, surge a questão: Wraith refere-se a um ser vivo ou morto? Da
mesma forma, poder-se-ia perguntar se o Mal existe ou se é apenas a ausência do Bem.
Essas duas visões contraditórias encontram a sua materialização no Anel. O
estudioso explica que para entender a demanda de Frodo é necessário aceitar três
condições sobre a existência do Anel:
First [...] the Ring is immensely powerful, in the right or in the wrong hands.
[…] Second […] the Ring is deadly dangerous to all its possessors: it will
take them over, ‘devour’ them, ‘possess’ them. […] The Ring turns
everything to evil, including its wearers. There is no one who can be trusted
to use it, even in the right hands, for good purposes: there are no right hands,
and all good purposes will turn bad if reached through the Ring. […] But
finally […] the Ring cannot simply be left unused, put aside, thrown away: it
has to be destroyed, and the only place where it can be destroyed is the place
of its fabrication, Orodruin, the Cracks of Doom. (SHIPPEY, 2000, p. 113–
114)
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If evil was just the absence of good, then the Ring could never be more than
psychic amplifier, and all the characters would need to do would be to put it
aside, perhaps give it to Tom Bombadil: in Middle-earth we are assured that
would be fatal. Conversely, if evil were only an external force without echo
in the hearts of the good, then someone might have to take it to Orodruin,
but it would not need to be Frodo: Gandalf could take it or Galadriel, and
whoever did so would have to fight only with their enemies, not their friends
or themselves. (SHIPPEY, 2000, p. 142)
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Assim, a natureza dupla do Mal e do Anel se torna uma condição necessária para
o desenvolvimento coerente da narrativa. Todavia, diante dessa dualidade, não é
possível para Shippey estabelecer uma causa para o Mal. Além disso, outro elemento
parece não ter sido considerado pelo autor: a capacidade do Anel de prolongar a vida de
quem o possui.
Rose A. Zimbardo, em seu ensaio intitulado “Moral Vision in The Lord of the
Rings” (2004), adota uma visão do Mal que se assemelha à perspectiva de Boécio, mas
acrescenta ainda mais um elemento:
Evil in the romance vision is not an aspect of human nature but rather is the
perversion of human will. It results when a being directs his will inward to
the service of the self rather than outward to the service of the All. The
effect of such inversion is the perversion of nature, both man’s nature and
the greater nature of which it is a part. (ZIMBARDO, 2004, p.69)
O tópico apontado por Zimbardo é a oposição entre o self e o Todo (All). Para a
estudiosa, a harmonia do universo depende da vontade de cada indivíduo de se dedicar
ao Todo. Porém, quando esse indivíduo decide se elevar sobre o Todo, ele provoca o
Mal: “the rejection of the other and subjection of the All to the self, is the ultimate
negative power” (ZIMBARDO, 2004, p.73).
Uma proposta semelhante pode ser lida em Os arquétipos literários de E. M.
Meletínski (1998), quando o autor reflete acerca do embate entre o Bem e o Mal nos
mitos e nos contos populares:
evidente, um vez que a grande ambição de Sauron é subjugar os povos livres de Middle-
earth, ampliando os seus domínios em detrimento da liberdade dos outros. Em
contrapartida, as personagens centrais do romance lutam para manter a sua autonomia e
liberdade. Note-se que somente a luta pela defesa do “próprio” – que não significa
apenas o indivíduo, mas pode abranger todo o seu clã, tribo ou povo – é colocada
positivamente no romance, e qualquer coisa que ofenda a esse princípio, como as hostes
agressoras de Sauron e Saruman, são encaradas como o Mal. A contraposição entre o
“caos” e o “cosmos” é menos visível, contudo, pode ser identificada nos terríveis
monstros Balrog e Shelob, além do regente Denethor, cuja loucura, acarretada pela
suposta morte do filho, é o motivo do trágico episódio que termina com a sua própria
incineração.
Sobre a natureza do Mal e o que o origina, vimos até agora os efeitos do Poder e
o anseio de um indivíduo se sobrepor a outro. Contudo, deve-se considerar ainda outro
elemento fundamental. Esse elemento é tido por J. R. R. Tolkien como tema
fundamental de sua obra, conforme exposto em uma de suas cartas:
Mas devo dizer, caso perguntado, que a história não é realmente sobre Poder
e Domínio: isso apenas mantém as rodas girando; ela é sobre a Morte e o
desejo pela imortalidade. Que não mais é do que dizer que esta é uma
história escrita por um Homem! (TOLKIEN, 2006, p. 250)
A morte e a busca pela imortalidade, tomadas como tema central de The Lord of
the Rings, revelam o princípio gerador de todos os eventos narrados, além de ser o
ponto de partida para o esclarecimento de várias personagens, como, por exemplo, os
Nazgûl, antigos reis que se submeteram a Sauron em troca de poder e imortalidade,
transformando-se, porém em meros fantasmas, fantoches do grande inimigo. Dessa
forma, pode-se compreender o outro motivo pelo qual o Anel é cobiçado: pela sua
capacidade de prolongar a existência ou, nas palavras de Rose A. Zimbardo, “It arrests
time” (2004, p.74).
Essa capacidade de deter o tempo não é exclusividade do Anel Governante.
Deve-se considerar que isso também é possível para os três anéis concedidos aos elfos.
É esse poder que mantém e protege, por exemplo, Rivendell e Lothlorien. Todavia, o
poder desses três anéis também está subordinado ao poder do Um, o que os tornará
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inúteis após a destruição deste. No trecho seguinte, retirado de uma de suas cartas,
Tolkien explica a relação dos anéis élficos e o desejo de deter as mudanças naturais
provocadas pelo tempo:
And if that was not enough fame, there was also his prolonged vigour to
marvel at. Time wore on, but it seemed to have little effect on Mr. Baggins.
At ninety he was much the same as at fifty. At ninety-nine they began to call
him well-preserved; but unchanged would have been nearer the mark. There
were some that shook their heads and thought this was too much of good
thing; it seemed unfair that anyone should possess (apparently) perpetual
youth as well as (reputedly) inexhaustible wealth.
‘It will have to be paid for,’ they said. ‘It isn’t natural, and trouble will
come of it!’ (TOLKEIN, 1966b, p. 21 – grifo do autor)
Uma relação direta entre o Mal e a Morte é feita por Terry Eagleton em
Depois da Teoria. No início do último capítulo de seu estudo, “A morte, o mal e o não-
ser”, o pesquisador trata da natureza da existência humana difusa e indefinida: “A
consciência humana não é uma coisa em si, mas só é definível em termos daquilo para o
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Aceitar a falta de bases para nossa existência significa, entre outras coisas,
viver à sombra da morte. Nada ilustra mais graficamente quão
desnecessários somos do que nossa mortalidade. Aceitar a morte seria viver
mais plenamente (EAGLETON, 2005, p.284).
É nessa difícil relação com a morte que se encontra a origem do mal, pois é ela
que nos mostrará a natureza indomável da vida humana e a não aceitação da morte
levará ou à busca da segurança absoluta do nada ou a uma tentativa de negar esse nada,
o não-ser. Assim, Eagleton define duas formas do Mal, sendo a primeira a negação do
ser, que
Isso é o Mal como visto do ângulo daqueles que têm uma superabundância
de ser, mais do que uma insuficiência dele. Não podem aceitar a inominável
verdade de que a matéria viscosa e contagiosa contra a qual guerreiam,
longe de ser estranha, está tão perto deles quanto respirar. (2005, p. 292)
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it is a heroic quest, and thus akin to both the heroic period (Odissey) and to
the fairy-tale in which the hero goes off on an explicit adventure (to kill a
dragon, rescue a princess, bring back a treasure or a rare or impossible
object), and encounters incarnated adjuvants and opposants. (BROOKE-
ROOSE, 1981, p.235)
É preciso insistir no fato de que não se pode falar de alegoria a menos que
dela se encontrem indicações explícitas no interior do texto. Senão, passa-se
à simples interpretação do leitor; por conseguinte, não existiria mais texto
literário que não fosse alegórico, pois é próprio da literatura ser interpretada
e reinterpretada infinitamente por seus leitores. (TODOROV, 2007, p.81).
de gesta e dos romances medievais, chega até os nossos dias, culminando, de fato, no
romance de fantasia.
Freqüentemente, atribui-se à principal obra de Tolkien o título de “Saga do
Anel”, aproximando-a claramente das tradicionais sagas islandesas. Lin Carter
considera que existe, de fato, uma relação entre os escritos tolkienianos e essa variedade
antiga de narrativa. Contudo, seria essa relação de tal forma estreita que The Lord of the
Rings pudesse ser considerado uma obra do mesmo gênero?
André Jolles, em Formas Simples, propõe uma abordagem de gêneros como a
legenda, a saga, o mito e o conto de fadas (Märchen), baseada na idéia de que existiria
uma determinada disposição mental que daria origem à determinada forma simples. No
caso da saga, Jolles afirma que “Existe uma disposição mental em que o universo se
constrói como família e se interpreta, em seu todo, em termos de clã, de árvore
genealógica, de vínculo sangüíneo” (1976, p.69).
Adequar essa concepção a The Lord of the Rings é uma proposta especialmente
atraente, principalmente quando se tem em vista as árvores genealógicas e os anais
incluídos nos apêndices da obra. Porém, os laços sangüíneos não são a principal
motivação por trás de todos os eventos narrados. O sacrifício de Frodo não é por sua
família, mas antes para proteger seu lugar de origem – para o qual ele ainda nutre um
determinado afeto – ou pessoas amadas, com as quais nem sempre existe um vínculo
familiar. Quando se considera as outras personagens, a tentativa de se estabelecer laços
de sangue que impulsionem suas ações se torna ainda mais difícil.
De fato, não é a noção de família que é sustentada no decorrer da obra. Todavia
existe um elemento unificador que cria uma identificação entre as mais diferentes raças
e povos de Middle-earth, que é a noção de Free Peoples (TOLKIEN, 1966a, p.309) ou
Free Folk (Idem, p.315). Estes são os Povos Livres, todos reunidos para combater um
mal comum que recai sobre os seus destinos.
Para J. R. R. Tolkien, The Lord of the Rings poderia ser classificado como um
conto de fadas, de acordo com a sua visão muito particular sobre o gênero. Em seu
ensaio intitulado On Fairy-stories (1966a), o autor explica que a maioria dos contos de
fadas não tem nenhuma fada entre as suas personagens, tratando, ao invés disso das
aventuras de homens em um reino perigoso. Nesse reino, todos os elementos
maravilhosos ou sobrenaturais devem parecer verdadeiros, não contando com uma
credulidade voluntária por parte do leitor ou dos ouvintes. Assim, torna-se claro o
propósito de todo o universo geográfico, lingüístico, histórico e cultural criado pelo
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Outro ponto afirmado por Tolkien a respeito das histórias de fadas permite traçar
um paralelo entre sua formulação e a proposta de André Jolles sobre o conto de fadas.
Para J. R. R. Tolkien, as principais funções das histórias de fadas são: Recovery, Escape
e Consolation.
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[…] the “consolation” of fairy-tales has another aspect then the imaginative
satisfaction of ancient desires. Far more important is the Consolation of the
Happy Ending. Almost I would venture to assert that all complete fairy-
stories must have it. […] Since we do not appear to possess a word that
expresses this opposite – I will call it Eucatastrophe. The eucatastrophic
tale is the true form of fairy-tale, and its highest function. (TOLKIEN,
1966a, p. 85 – grifo do autor).
mundo real, mas são retratados de modo que venham a satisfazer uma noção de justiça
de seu público. Por esse motivo, é comum que, nessas histórias, os vilões sejam punidos
e os fracos e os tolos tenham sucesso, embora nem sempre possam ser considerados
exemplos de boa conduta moral.
Em The Lord of the Rings, pode-se dizer que essa disposição mental é apenas
parcialmente satisfeita, pois, se por um lado, vilões como Sauron, Saruman ou mesmo
Gollum são punidos, por outro, a máxima que diz “viveram felizes para sempre” não é
cumprida. Somente com muito sofrimento foi possível restabelecer a paz em Middle-
earth. Assim, Gondor e Rohan só encontram a paz após a morte de seus governantes;
Shire deve ser destruído para depois ser novamente reconstruído sob os cuidados dos
hobbits; e, finalmente, Frodo não pode permanecer em Middle-earth, o que acrescenta
uma grande sensação de perda ao final da narrativa.
Todavia, esse final não é incoerente com as idéias do autor, especialmente
quando se considera que, para Tolkien, o principal tema da obra é a Morte e a
Imortalidade. Com o final da Guerra do Anel, o duelo entre esses dois elementos é
resolvido. O início da Era dos Homens representa o triunfo da Mortalidade. Tolkien,
assim, reconstrói o universo dos contos de fadas e, ao mesmo tempo, reafirma os ritmos
de vida e morte, ascensão e ruína da epopéia clássica, conforme dispostos por Frye.
Conclui-se assim que o mais adequado é a classificação da grande obra de J. R.
R. Tolkien como romance de fantasia ou o seu enquadramento como uma forma
enciclopédica, sem que essas duas designações sejam mutuamente excludentes. As
tentativas de leitura como sátira ou alegoria tornam-se inadequadas, visto que não são
capazes de abarcar a complexidade do livro, nem de criar uma relação satisfatória entre
a alegoria e o objeto, ou evento, representado. Além disso, não se deve desprezar as
declarações do próprio autor que, como estudioso de literatura, também nos ofereceu
alguns caminhos para o entendimento de suas obras. E é somente através de uma leitura
adequada, o que não descarta a sua classificação de gênero, que se poderá buscar
compreender a totalidade do romance.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Understanding The Lord of the Rings: The Best of Tolkien Criticism. New York:
Houghton Mifflin Company, 2004. p. 31-51.
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Paulo: Abril, 1975. (Os Pensadores, 48)
JOLLES, André. Formas simples. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976.
TOLKIEN, J. R. R. The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring. New York:
Ballantine Books, 1966b.
_______. The Lord of the Rings: The Two Towers. New York: Ballantine Books,
1966c.
_______. The Lord of the Rings: The Return of the King. New York: Ballantine
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ZIMBARDO, Rose A. Moral Vision in The Lord of the Rings. In: ZIMBARDO, Rose
A.; ISAACS, Neil D. (Ed.). Understanding The Lord of the Rings: The Best of
Tolkien Criticism. New York: Houghton Mifflin Company, 2004. p. 68-75.
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André Luiz Rodriguez Modesto Pereira Profa. Dra. Karin Volobuef