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Desde a primeira publicação de O Senhor dos Anéis em 1954-55, muitos leitores consideram a
escassez de personagens femininas na trilogia de J.R.R. Tolkien não só uma desilusão, mas também uma
grave falha no seu trabalho. Edith L. Crowe resume isto quando escreve: "O aspecto mais problemático
de Tolkien é, de fato, a decepcionante baixa porcentagem de mulheres em suas mais conhecidas e amadas
obras, O Hobbit e O Senhor dos Anéis". Outros críticos interpretam a falta de mulheres em O Senhor dos
Anéis como indicativa de uma técnica fraca, ou uma misoginia latente no personagem de Tolkien. Uma
escritora antiga, Catherine Stimpson, com a sua crítica, afirma que as mulheres de Tolkien são
construídas sobre "o mais banal dos estereótipos". Mais recentemente, Patrick Curry observa que o
Senhor dos Anéis estaria "seriamente empobrecido" sem as suas personagens femininas, mas ele admite
que a apresentação de Tolkien sobre as mulheres representam um "paternalismo, se não o patriarcado que
não se pode ignorar ". Ao contrário, ao tentar justificar os retratos de Tolkien sobre a feminilidade,
estudiosas como Crowe insistem que ele "só refletia as suas fontes e o seu tempo". Aqueles com
perspectivas semelhantes argumentam que, como as mulheres desempenharam papéis centrais em poucos
textos medievais, teria sido inapropriado, para a remodelação moderna de Tolkien de materiais
tradicionais, em enfatizar ou expandir substancialmente os papéis femininos. Tais acadêmicos questionam
que, uma vez que a maior parte da vida de Tolkien era anterior aos avanços dos estudos sobre as mulheres
contemporâneas e a teoria de gênero, não pode se esperar que seus trabalhos reflitam uma abordagem
feminista de personagens femininas.
Concentrando-se no significado das personagens femininas existentes nas obras de Tolkien, ao invés
de sua infrequência, Helen Armstrong, no entanto, afirma que “Apesar da convencionalmente, mesmo
doutrinariamente, centrar os aspectos masculinos em seu mundo, Tolkien contrariou este mesmo sistema,
ao criar heroínas ativas". De acordo com tais pontos de vista, Lisa Hopkins escreve que "O poder muitas
vezes se encontra nas mãos de uma mulher nas obras de Tolkien" e que "as mulheres em Tolkien não são
retratadas apenas à luz das suas relações com os homens". Embora Crowe admita que as leituras de
Tolkien como as de um "feminista oculto" sejam insustentáveis, ela afirma: "Tolkien exibe atitudes em
relação ao poder que são bastante compatíveis, se não idênticas, as atitudes de muitos que se definem
como feministas". Estudos de perspectivas feministas semelhantes compreendem que o pequeno número
de mulheres de Tolkien tem uma série de papéis a desempenhar e cuja a importância é
extraordinariamente desproporcional aos seus números. A sua própria escassez parece investi-las com um
ar de singularidade e de status quase talismático, e em alguns casos a sua feminilidade é a própria fonte da
sua força.
Procurando apoiar as leituras das mulheres de Tolkien como personagens fortes e autoritárias com
uma importância narrativa fulcral, alguns escritores situam as obras de Tolkien dentro dos contextos de
épicos clássicos, tipologias cristãs, arquétipos psicológicos ou construções contemporâneas de gênero.
Por exemplo, Mac Fenwick encontrou ecos de Circe e Calypso, de Homero, em Galadriel e paralelos
entre Shelob, a aranha gigante de Tolkien, e Cila e Caribdis, da mitologia grega. Por mais evocativo que
as ligações clássicas sejam, ao limitar o seu único estudo a estas duas personagens femininas
diametralmente opostas, Fenwick não consegue explicar o motivo ao longo da trilogia de Tolkien das
mulheres como forças emponderadas. Além disso, embora analogias convincentes possam ser feitas entre
Galadriel e a virgem Maria, tais aplicações da tipologia cristã são pouco promissoras para explicar a
autoridade de outras mulheres na trilogia de Tolkien. Peter Goselin usa os arquétipos do mito de Jung
para descrever a relação polar entre as personagens femininas de Tolkien como uma manifestação do
anima (aspecto inconsciente) feminino, mas novamente usa apenas Galadriel e Shelob para exemplificar
esta dimensão do poder das mulheres. Outros estudos analisam as formas em que as mulheres de Tolkien
operam dentro de uma maior construção de gênero de princípios masculinos e femininos. Deste ponto de
vista, Melanie Rawls explica que seu Princípio Feminino não é o negativo do Princípio Masculino, mas é
outro tipo de ser, igual a outro, em estatura e poder. Esta diversidade acrescenta dimensão e complexidade
aos seus personagens, pois dançam a dança do complementaridade.
No entanto, por mais valiosos que estes exames sejam para compreender a variedade de recursos,
alusões e funções narrativas das mulheres nas obras de Tolkien, suas discussões são periféricas aos
principais interesses e objetivos do autor, e nenhuma explora plenamente as características
multiplicadoras do poder das mulheres de Tolkien em sua obra mais famosa, O Senhor dos Anéis. A força
extraordinária das personagens femininas na trilogia podem ser explicadas, no entanto, dentro de um
contexto de relevância para a história de Tolkien - a das literaturas heroicas germânicas medievais que
desempenharam um papel tão crucial na vida pessoal e profissional do autor. Apesar do autor ter
registado com frequência a sua aversão à erudição, procurando identificar as fontes originais para
trabalhos posteriores, não somente as suas personagens femininas, mas toda sua ficção da Terra Média
possuem sua herança na literatura e na cultura da Idade Média. Muitos estudos têm reconhecido junto a C.
W. Sullivan que a "narrativa tradicionalmente padronizada" de Tolkien pode ser melhor compreendida
"não através das lentes dos métodos críticos modernos, mas através daquelas dedicadas ao estudo de
obras anteriores". A ficção da Terra Média de Tolkien reflete "uma dependência sobre desenvolvimentos
medievais sobre o motivo e o tipo narrativo que preserva e destaca aspectos da tradição e ao mesmo
tempo os estende"; as origens medievais enriquecem a textura narrativa de Tolkien. Por detrás de cada
cenário e de cada personagem em seus escritos sobre a Terra Média, se encontra uma história literária,
mitológica, e linguisticamente complexa".
Além de tais reconhecimentos gerais dos antecedentes medievais no trabalho de Tolkien, está um
reconhecimento da sua dívida particular para com os textos germânicos medievais. Embora falar de textos
do norueguês arcaico, do islandês antigo, e as culturas anglo-saxónicas como fontes diretas para O
Senhor dos Anéis, possa deturpar as realizações de Tolkien, poucos estudiosos negam que as ressonâncias
literárias de tais culturas infundem a trilogia de Tolkien. Como é bem atestado por educação profissional,
bem como pelas suas cartas pessoais, Tolkien possuía um apreço duradouro pela literatura medieval do
norte europeu. Cedo na história da educação de Tolkien, Charles Moorman chegou ao ponto de afirmar
que "A maior influência individual sobre o trabalho de Tolkien são os eddas e as sagas do norte", uma
declaração ecoada pelo comentário posterior de Lynn Bryce de que "Ao longo de sua vida, obras do
antigo nórdico continuaram a ter um profundo apelo à imaginação de Tolkien". Mesmo quando
argumenta a dívida de Tolkien para com a literatura clássica, Fenwick reconhece a validade de uma
declaração anterior, quando admite "é inegável que para Tolkien o norte era realmente uma direção
sagrada e que a maior parte do seu empreendimento imaginativo é baseado no conhecimento íntimo de
uma vida com a literatura do antigo nórdico". Atestando especificamente a relevância do material nórdico
antigo para a estética literária de Tolkien, T. A. Shippey identifica uma "combinação de orgulho,
ferocidade e tristeza" germânica como uma "nota" que Tolkien frequentemente visava" nas suas obras
sobre a Terra Média. Mais recentemente, Gloriana St. Clair comentou: “O conceito de destino nas obras
do norte, a necessidade de coragem, uma concepção do mal, a tragédia da mortalidade, a desgraça dos
imortais e o paradoxo da derrota são temas comuns à literatura nórdica e ao O Senhor dos Anéis.”
Origens mitológicas
A palavra "valquíria" vem do norueguês arcaico valkyrja, significando "determinante da batalha" ou
"escolhido dos mortos". Refere-se a uma figura feminina semidivina cujas associações religiosas pagãs
derivam de sua posição como uma donzela de batalha sob o comando de Odin. Assim como as dísir,
outras figuras femininas estreitamente aliadas ao nórdico antigo, as valquírias são caracterizadas como
armadas, poderosas, sacerdotais. Elas funcionam como organizadoras dos destinos e intermediárias entre
os homens e a divindade. Jenny Jochens descreve a função mitológica tradicional das valquírias quando
afirma: “A pedido de Óðinn, elas selecionam os homens destinados a cair em batalha e recompensam a
vitória aos sobreviventes. Como tal, formam uma ligação importante entre o mundo divino e o mundo
humano. Tendo retirados os heróis da vida humana, as valquírias continuam a cuidar deles no mundo
divino, onde os servem bebidas.
Na poesia germânica heroica, algumas mulheres valquírias também formam relações convincentes
com heróis masculinos que alteram o curso dos acontecimentos no mundo humano. Helen Damico
explica que a autoridade para estabelecer tais relações reside nos atos das valquírias em escolher o herói
em batalha, de colocar sobre ele a tarefa de moldar sua identidade heroica, de investi-lo com uma energia
incansável que garanta a vitória na batalha e, então, se necessário, de acompanhá-lo ao além. Além disso,
através de sua interação arquetípica com guerreiros caídos em batalha, as valquírias oferecem a morte,
encarnam o contato com ela; sua função semirreligiosa e sacerdotal, lhe dá tremendo poder como
repositório dos medos e ambivalências dos homens.
Na literatura nórdica antiga, as figuras valquírias são comumente apresentadas em aspectos
distorcidos, seja como "seres ferozes e elementares", que às vezes "requerem apaziguamento artificial",
ou como "guardiãs benevolentes", que servem o herói tanto na corte como no campo de batalha. O
aspecto sombrio e malévolo da valquíria é geralmente considerado um remanescente da concepção mítica
primitiva, enquanto a figura benevolente é considerada um desenvolvimento da mitologia e literatura
germânicas posteriores. Embora o termo do inglês arcaico wælcyrge, linguisticamente equivalente ao
norueguês arcaico valkyrja, apareça consistentemente apenas em referências a "criaturas que são
malévolas, destrutivas, corruptas e associadas à matança", os escritores anglo-saxões tenderam a retratar
mulheres em textos heroicos usando convenções associadas as figuras tanto benevolentes quanto
malévolas das valquírias do antigo nórdico. Em seu artigo seminal Beowulf: Os Monstros e os Críticos,
Tolkien expressa sua consciência aguda de tais paralelos entre o antigo nórdico e as práticas literárias do
inglês arcaico quando ele salienta sobre o "temperamento heroico fundamentalmente similar da antiga
Inglaterra e Escandinávia". Como um produto deste legado germânico comum partilhado pelos povos
escandinavos e anglo-saxões medievais, este reflexo associado as valquírias permite que as personagens
femininas inglesas antigas, tais como Wealhtheow, Judith e Juliana de Beowulf sejam consideradas
figuras “valquirizadas”. Apenas assim, através de suas associações com tradições valquírias, as mulheres
de Tolkien tomam seus modelos dessas mesmas mulheres heroicas germânicas. Sejam suas apresentações
de Galadriel, Shelob, Éowyn, e Arwen baseadas em uma resposta direta às personagens valquírias na
literatura nórdica antiga, ao reflexo valquíria que ele reconhece no retrato de mulheres da literatura
inglesa antiga ou para uma combinação destes, é irrelevante. O que é relevante para os propósitos deste
estudo é que as mulheres de Tolkien carregam características valquírias carregando conotações culturais
medievais, que Tolkien adapta às atitudes modernas heroicas, culturais e morais promovidas em seus
textos.