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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO

GRANDE DO SUL – UNIJUÍ

ULISSES STEFANELLO KARNIKOWSKI

A CRIATURA GOLLUM E A CRIAÇÃO DE PERSONAGENS NO


CINEMA

Ijuí

2012
ULISSES STEFANELLO KARNIKOWSKI

A CRIATURA GOLLUM E A CRIAÇÃO DE PERSONAGENS NO CINEMA

Monografia apresentada ao Curso de Comunicação


Social – Publicidade e Propaganda da Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
– UNIJUÍ, como requisito parcial à obtenção do título de
bacharel em Publicidade e Propaganda.

Orientador: Celestino Perin

Ijuí

2012

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ULISSES STEFANELLO KARNIKOWSKI

A CRIATURA GOLLUM E A CRIAÇÃO DE PERSONAGENS NO CINEMA

Monografia apresentada ao Curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da


Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - Unijuí

Data de aprovação:___/___/___

Banca Examinadora:

________________________________________
Profº Celestino Perin (orientador)

________________________________________
Profª Lisandra Portela Steffen (arguidora)

________________________________________
Profª Melissa Gressler Wilm (suplente)

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AGRADECIMENTOS

A minha mãe, por tudo que me ensinou.

A minha Vênus, por ser o pilar que me mantém em pé.

Ao meu pai, pelo incentivo a cultura.

E a todos que me ajudaram em minha trajetória até aqui.

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Dedico esse trabalho ao meu grande amigo cuja humanidade felina está fazendo
falta para todos que a presenciaram.

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SUMÁRIO

Introdução 7

1. A Respeito de Personagens: Conceitos 9

1.1. A Respeito de Personagens: A Criação 15

2. O início da criação em cinema, o roteiro 27

2.1. Processos do Cinema: o Personagem do Roteiro à Prática 35

3. Forjando a Criatura Gollum

3.1. Advinhas no Escuro: Gollum de Tolkien 44

3.2. A Domesticação de Sméagol: Gollum no Cinema 53

Conclusão 61

Referências 63

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como temática a criação de personagens no cinema,


utilizando-se como base a criação do personagem Gollum dos filmes O Senhor dos
Anéis a Sociedade do Anel, O Senhor dos Anéis as Duas Torres e O Senhor dos
Anéis o Retorno do Rei; filmes vistos de uma forma ampla e não específicos. Para
se entender a criação de personagens fez-se um estudo iniciando-se nos conceitos
de personagens, os estudos à respeito da criação, até os processos
cinematográficos que são responsáveis por levar os personagens a tela, iniciando-se
pelo roteiro.
O primeiro capítulo é dividido em duas partes e em sua primeira parte busca
demonstrar através de diversos teóricos como Beth Brait, Antonio Candido e outros,
as diversas teorias e conceitos à respeito do tema e de como o personagem se
insere em seu universo. A segunda etapa procura demonstrar, principalmente
através do estudos de Linda Seger, como ocorre a criação de personagens no
espaço das palavras, ou escrito, servindo tanto para a literatura, roteiros, redações
ou qualquer meio.
O segundo capítulo, também dividido em duas partes, aborda as etapas
cinematográficas responsáveis pela criação de um personagem, iniciando-se pelo
roteiro através dos estudos de Syd Field, em uma visão conceitual-internacional e
com Doc Comparato em uma visão conceitual-nacional. A segunda etapa objetiva o
estudos dos processos que partem do roteiro e são responsáveis por “dar vida” ao
personagem.
O terceiro capítulo visa estudar a criação do personagem Gollum, visto que
mesmo que a visão do estudo seja a criação cinematográfica, o personagem em
questão foi criado na literatura e não no roteiro, apesar de apresentar pequenas
diferenças, fez-se necessário o estudo do personagem Gollum nas obras de Tolkien,
tendo como base para análise o primeiro capítulo do presente trabalho.
A segunda etapa do terceiro capítulo aborda o tema em sua amplitude,
observando os processos que levaram a criação do personagem, desde os
processos artísticos e conceituais, passando pelo trabalho do ator, até chegar na
animação final.
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Utilizou-se como metodologia para a realização deste trabalho, pesquisa
bibliográfica em teóricos acerca de personagens e cinema. Utilizando-se ainda as
ferramentas audiovisuais que compõe os filmes “O Senhor dos Anéis”, tendo como
corpus, tanto os discos dos filmes propriamente ditos, quanto seu material extra,
disponibilizado em sua “Versão Estendida”.
As problemáticas que se procuraram responder com este trabalho foram,
primeiramente, a de como se dá a construção de personagens no cinema, tendo
como base o personagem Gollum dos filmes “O Senhor dos Anéis”. Em um segundo
momento, as problemáticas mais específicas que se procuraram responder foram a
do que é um personagem e como ele se constrói e por fim, quais são as etapas que
levam a sua criação no cinema.
Tem-se como justificativa para a elaboração deste trabalho, a crescente
necessidade de se entender como ocorre os processos de criação de personagens,
processos que podem fazer entender melhor a própria natureza humana e suas
relações com o meio em que vive; dada ainda a relativa falta de materiais
desenvolvidos na área seguindo a visão mais próxima a comunicação e ao cinema.
Ainda, o trabalho tem fundamentação no fato de estudar um dos personagens mais
importantes da literatura mundial recente, tendo em vista que O Senhor dos Anéis foi
um dos livros mais lidos do século passado, apresentando uma importância vital
para a formação da sociedade leitora mundial e criadora de um estilo próprio de
literatura e ficção-fantasia medieval.

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1. A RESPEITO DE PERSONAGENS: CONCEITOS

Para se iniciar a abordagem acerca da criação de personagens, faz-se


necessária uma reflexão sobre seus conceitos e sua contextualização no universo
acadêmico, visto que, o próprio dicionário não apresenta uma definição exata e total
que possa compreender a amplitude que envolve conceitualmente o tema.

Conforme o dicionário de língua portuguesa apresenta, personagem é


“pessoa fictícia de obra literária ou teatral” e ainda “representação de um ser
humano numa obra de arte” (PRIBERAM). A difícil definição do que de fato é um
personagem é dada, principalmente, por este poder ser apresentado em diferentes
meios artísticos ou representativos e através das mais diversas formas.

O formalismo russo ajudou nessa tarefa ao dar forma e estrutura acadêmica


ao estudo do personagem, principalmente quando começa a “considerar, a priori, o
personagem como um signo e, consequentemente, escolher um ponto de vista que
constrói esse objeto, integrando-o no interior da mensagem, definida como um
‘composto’ de signos linguísticos” (BRAIT, 1985, p.45).

A necessidade de entender o personagem no contexto (entende-se o meio)


em que é apresentado é de vital importância para que possa ser estudado em sua
amplitude e complexidade. Conforme complementa Beth Brait ao dizer que é a partir
dessa visão que se “apresenta a noção semiológica de personagem não como um
domínio exclusivo da literatura, mas pertencente a qualquer sistema semiótico.”
(BRAIT, 1985, p.45).

Em qualquer meio ou forma que se apresente um personagem é, acima de


qualquer elemento, uma representação fictícia de algo. Tal representação é muitas
vezes confundida com o real e seu caráter ficcional passa a ser deixado de lado
quando o personagem é apresentado em seu contexto, seja literário,
cinematográfico ou qualquer outro meio.

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Essa leitura ingênua da mensagem em que o personagem é apresentado não
leva em conta sua função de representatividade, sendo assim, “esquece-se que o
problema do personagem é antes de tudo linguístico, que não existe fora das
palavras”, mas é justamente essa representatividade que afirma o seu poder.
Portanto, “recusar toda relação entre personagem e pessoa seria absurdo: as
personagens representam pessoas, segundo moralidades próprias da ficção”
(DUCROT e TODOROV apud BRAIT, 1985, p. 10).

O caráter ficcional de um personagem é o que determina sua verdadeira


força, sendo o que explica sua estreita relação com o ser humano, já que é a partir
das características propriamente humanas que um personagem é apresentado.

O poder da ficção mostra-se tão grande em qualquer representação que em


muitos casos torna-se muito tênue a sua separação com a realidade. Assim
percebe-se que “a ficção ou mimesis reveste-se de tal força que se substitui ou
superpõe a realidade” (ROSENFELD, 1968, p.29).

A contribuição de um personagem passa a ser vital para a ficção, pois é a


partir justamente do personagem, que a ficção passa a tomar forma e passa a ser
assimilada. O papel da representatividade do personagem é o de sustentar a ficção.
É portanto, “a personagem que com mais nitidez torna patente a ficção, e através
dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza” (ROSENFELD, 1968, p.21).

Tendo como exemplo o romance, se entende e percebe com muita clareza o


papel do personagem na assimilação da ficção e, por conseguinte, da história ou da
mensagem final, visto que é justamente ele que faz a ligação e a relação com o
leitor: “não espanta, portanto, que a personagem pareça o que há de mais vivo no
romance; e que a leitura deste dependa basicamente da aceitação da verdade do
personagem por parte do leitor” (CANDIDO, 1968, p.54).

A interpretação e a aceitação do leitor ou do receptor da mensagem que o


personagem deve passar é a ponte entre o real e o ficcional, e a forma que o
personagem se mostra é através de seus atos e de seus desejos e ambições
refletidos em sua fala, ou diálogo. “Embora seja apresentado ao público em forma
semelhante às condições reais, o diálogo é concebido de dentro das personagens,
tornando-as transparentes em alto grau” (ROSENFELD, 1968, p.31).

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A transparência do personagem é o que torna a ficção em que ele é
apresentado tão envolvente, visto que é justamente nela que podemos entender e
perceber o ser humano em seus mínimos detalhes e peculiaridades, tornando o
personagem peça fundamental para essa reflexão. “Antes de tudo, porém, a ficção é
o único lugar em que os seres humanos se tornam transparentes à nossa visão, por
se tratar de seres puramente intencionais sem referência a seres autônomos; de
seres totalmente projetados por orações” (ROSENFELD, 1968, p.35).

O papel do personagem no entendimento e na reflexão da humanidade e


suas relações se dá, também, principalmente pela natureza humana do personagem
e da forma que é apresentado, sendo sempre relacionado diretamente aos maiores
anseios e desejos do homem, visto que, a personagem deve dar “a impressão de
que vive, de que é como um ser vivo. Para tanto, deve lembrar um ser vivo, isto é,
manter certas relações com a realidade do mundo, participando de um universo de
ação e de sensibilidade que se possa equipar ao que conhecemos na vida”
(CANDIDO, 1968, p.65)

A ficção e sua função de representatividade, toma muitas vezes, um caráter


tão poderoso que, como já foi mencionado, fica muito difícil separar realidade e
imaginação, visto que “boa parte dos leitores (ou público), porém, põe o mundo
imaginário quase imediatamente em referência com a realidade exterior à obra, já
que as objectualidades puramente intencionais, embora tendam a prender a
intenção, são tomadas em sua função mimética, como reflexo do mundo empírico”
(ROSENFELD, 1968, p.42).

Essa mescla entre realidade e ficção é feita na maioria das vezes intuitiva e
não-intencional, mas em muitos casos é feita de forma inteiramente intencional,
fazendo do personagem uma “válvula de escape” do mundo real. Os personagens
tornam-se, assim, uma reflexão de si mesmo na esperança de concretizar feitos até
então impossíveis, ou ainda conhecer lugares e vivenciar feitos já acontecidos,
quase como em um jogo de faz-de-conta.

A literatura é extremamente rica nesse sentido por abrir a maior possibilidade


de imaginação, percebendo assim, “o leitor contempla e ao mesmo tempo vive as
possibilidades humanas que sua vida pessoal dificilmente lhe permite viver e

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contemplar, visto o desenvolvimento individual se caracterizar pela crescente
redução de possibilidades” (ROSENFELD, 1968, p.46).

Conforme Rosenfeld ainda aponta, “é precisamente a ficção que possibilita


viver e contemplar tais possibilidades, graças ao modo de ser irreal de suas
camadas profundas, graças aos quase-juízos que fingem referir-se a realidades sem
realmente se referirem a seres reais; e graças ao modo de aparecer concreto e
quase-sensível deste mundo imaginário nas camadas exteriores” (ROSENFELD,
1968, p.46).

O pano de fundo de um personagem e local em que este se apresenta é o


enredo ou história, que está inserido, não existindo, portanto, personagem sem
história ou história sem personagem: “o enredo existe através das personagens; as
personagens vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos
do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o
animam” (CANDIDO, 1968, p.54).

Sendo um ser ficcional, o personagem é criado à partir de um ponto ou


referência e por conseguinte, o mesmo ocorre com seu enredo. “A ideia de
reprodução e invenção dos seres humanos combina-se no processo artístico, por
meio dos recursos de linguagem de que dispõe o autor” (BRAIT, 1985, p.18).
Percebe-se que o personagem exerce uma relação estrutural com a história ou pano
de fundo que é criado, sendo feito através de um recorte, ou uma visão de mundo de
quem o cria.

Segundo Aristóteles discorre sobre este ponto, o recorte e seleção do criador


sobre o personagem deve ser feito tomando por objetivo sua relação com seu
enredo. Assim, seleciona-se o necessário dando maior ênfase a determinada ação
ou sentimento, sem se perder ao tentar demonstrar o todo. “Não é ofício do poeta
narrar o que realmente acontece; é, sim, representar o que poderia acontecer, quer
dizer: o que é possível, verossímil e necessário” (ARISTÓTELES apud BRAIT, 1985,
p.30). Ou seja, personagem não é o que somos mas o que queremos ou
poderíamos ser.

Um personagem deve ter uma linha a que seguir, um rumo, tanto de forma
pessoal e sentimental, quanto com sua relação com o enredo, visto que a ideia que

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temos do personagem varia, mas o seu rumo, o seu destino e linha de ação
permanece sempre o mesmo, independente da leitura que se faz.

Sendo a literatura o local em que o personagem se constrói, é fácil perceber o


seu estado de coerência com a sua própria vida. “No romance, podemos variar
relativamente a nossa interpretação da personagem; mas o escritor lhe deu, desde
logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva de sua
existência e a natureza do seu modo de ser” (CANDIDO, 1968, p.59).

O limite ou rumo do personagem é claramente uma questão intencional e


direcional por parte de quem cria para dar uma relação mais próxima possível entre
personagem e enredo, já que “a natureza da personagem depende em parte da
concepção que preside o romance e das intenções do romancista” (CANDIDO,
1968, p.74).

Essa linha de ação que o personagem segue é o que nos transmite sua
transparência e nos permite uma profunda imersão no mundo ficcional. É justamente
sua coerência que o difere do ser humano ou conforme Candido afirma que,
“podemos dizer que a personagem é mais lógica, embora não mais simples, do que
o ser vivo” (CANDIDO, 1968, p.59).

A seleção feita pelo autor ou criador do personagem o remete a determinadas


funções dentro da história ou enredo, tais funções feitas e exercidas de forma a
reforçar a sua natureza e sua importância com o universo ficcional que está inserido.
A direção que o personagem toma é refletida em suas ações, sua personalidade e
seus desejos e motivações.

O aspecto lógico e direcionado faz com que fique mais verossímil e nítida a
assimilação da história, para tanto, “uma personagem deve ser convencionalizada.
Deve, de algum modo, fazer parte do molde, constituir o lineamento do livro. A
convencionalização é, basicamente, o trabalho de selecionar os traços, dada a
impossibilidade de descrever a totalidade duma existência” (CANDIDO, 1968, p.75).

As funções do personagem no enredo aumentam a sua capacidade de


representação do mundo real e reforçam o poder do personagem em refletir as mais
distintas peculiaridades humanas. “Tanto o conceito de personagem quanto a sua
função no discurso estão diretamente vinculados não apenas à mobilidade criativa
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do fazer artístico, mas especialmente à reflexão a respeito dos modos de existência
e do destino desse fazer” (BRAIT, 1985, p.28).

Ainda, pode-se perceber três grandes grupos em que os personagens se


organizam dentro do enredo, o protagonista ou personagem principal, que é o
centro das ações da história; o coadjuvante ou personagem secundário, que é o
grupo de personagens que dão suporte a acompanham o protagonista dentro da
história; e, o antagonista, o personagem que se opõe ou tenta impedir o
protagonista de conseguir o que quer.

O protagonista é o personagem que concentra as ações e funciona como


núcleo para a história. É a partir dele que se dá o enredo. A função de protagonista
nem sempre fica centrada em apenas um personagem, apesar de assim ser na
maioria das vezes, pode ser também que um grupo de personagens concentrem a
história e seja deles que partem as principais ações para o desenrolar da trama.
Ou conforme aborda Doc Comparato sobre as funções e o que é o
personagem principal ou protagonista, “o protagonista é a personagem básica do
núcleo dramático principal; é o herói da história. Este protagonista pode ser uma
pessoa, um grupo de pessoas, ou qualquer coisa que tenha capacidade de ação e
de expressão” (COMPARATO, 2000, p.122).
Protagonista é, portanto, o personagem centro, a “espinha dorsal” da história,
não sendo raro que acabo por, muitas vezes, dar título à obra. Syd Field resume o
protagonista como personagem do qual partem as idéias e as atuações principais
que compõe o enredo, ou como segue, “o personagem principal – ele é o
personagem que planeja coisas, que age” (FIELD, 1995, p.18).
O personagem secundário é o personagem que dá suporte à história, é o
grupo formado por todos aqueles personagens que funcionam como base para que
o protagonista tenha relações e pareça mais verossímil, visto que o personagem se
constrói também através de suas relações. Segundo afirma Comparato, “o ator
secundário ou coadjuvante é a personagem que está ao lado do protagonista.
Geralmente, o ator secundário nasce à medida que vamos construindo o drama”
(COMPARATO, 2000, p.122).
Por fim, o antagonista é o personagem oposto ao protagonista, aquele que
tenta se impor e tenta impedir que o personagem principal atinja seu objetivo, seja

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porque seus desejos e metas são conflitantes ou por qualquer outro motivo.
Conforme Comparato resume, “o antagonista é o contrário do protagonista, o seu
oponente” (COMPARATO, 2000, p.135).
O antagonista é na história quase tão importante quanto o personagem
principal, porém não é apresentado com o mesmo número de detalhes que este. Na
maioria dos casos, principalmente em histórias maniqueístas, o antagonista
representa a maldade, o mal que assola o mundo e que precisa ser destruído, mas
não é uma regra. Em muitos casos o antagonista pode não ser uma pessoa ou um
ser vivo, podendo acontecer de o que se opõe ao personagem ser uma doença, um
desastre natural ou qualquer elemento que imponha barreiras aos objetivos do
protagonista.
Conforme o escritor Doc Comparato aponta sobre a importância do
antagonista sem este precisar ao menos ser apresentado em sua totalidade na
trama, “o antagonista deve ter o mesmo peso dramático que o protagonista, mas
não é necessário desenvolvê-lo com a mesma profundidade dramática”
(COMPARATO, 2000, p.136).

1.1. A RESPEITO DE PERSONAGENS: A CRIAÇÃO

Criar personagens é uma tarefa que envolve uma imensa mística devido à
grande dificuldade de reflexão sobre seu processo de execução, fazendo este
parecer, muitas vezes, que é uma atividade apenas sentimental e não racional.
Primeiramente, independente do formato final que o personagem seja apresentado,
literatura, cinema, publicidade ou teatro, a criação inicial se dá da mesma maneira:
através da linguagem escrita.

Como foi visto anteriormente, se o personagem é um signo pertencente a um


enredo fictício, sua criação depende basicamente do universo que engloba esse
enredo e o entendimento do escritor acerca desse universo. Para que um
personagem seja verossímil, ou convincente, ele deve ter uma relação natural com
sua história, visto que o seu ponto de partida é justamente o enredo, conforme

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Seger resume ao explicar que, “personagens não surgem do nada. Eles são um
produto do meio em que existem” (SEGER, 2006, p.17).
O meio ou contexto é o que dá formato ao personagem, sendo que este meio
está vinculado ao enredo e a sua história. Percebe-se que “os contextos que mais
influenciam as personagens são a cultura, o período histórico, o local em que vivem
e sua profissão” (SEGER, 2006, p.17), fazendo, conforme já apontado, uma
referência direta do personagem ao mundo real para que a ficção seja totalmente
assimilada e para que o enredo faça sentido ao se apresentar.
As influências culturais do personagem com relação ao seu enredo
determinam diretamente sua caracterização e sua natureza. É onde e como vivem
que definirá suas atitudes, desejos e conflitos. “Todos esses aspectos de ordem
cultural terão grande influência na caracterização das personagens, determinando
seu modo de pensar e falar, seus valores, aspirações e emoções” (SEGER, 2006,
p.18).
Entender o universo do personagem é a etapa inicial para que o escritor o dê
forma e este comece a adquirir verossimilhança. Sendo assim, “a pesquisa é o
primeiro passo na criação de qualquer personagem. Ela é necessária para garantir
que as personagens e o contexto em que estão inseridas façam sentido e pareçam
verdadeiros” (SEGER, 2006, p.13).
A pesquisa por parte do escritor é importante não só para conferir veracidade
ao personagem, mas também para conferir-lhe profundidade e ainda facilitar o
processo de criação e de sua visualização. De acordo com Seger, “sem uma
pesquisa adequada, o processo de redação do roteiro torna-se em geral muito
demorado, e pode ser bastante frustrante” (SEGER, 2006, p.30).
Emergir e adentrar no universo do personagem através da pesquisa é de
extrema importância, ainda mais se o próprio universo do escritor for diferente deste.
As informações culturais adquiridas dessa forma podem beneficiar a tal ponto de
remodelar totalmente a idéia inicial que se tinha sobre o personagem em prol de
uma idéia mais convincente e coesa.
É importante assimilar o máximo possível em termos de costumes, relações
entre as pessoas de uma sociedade entre si e entre povos diferentes e até mesmo
elementos como o vestuário, a culinária, a tecnologia e relações comerciais, ou seja,
a própria cultura aumenta a percepção e a curiosidade do escritor. Em suma, “a

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pesquisa abre caminho para a imaginação que dará vida à personagem” (SEGER,
2006, p.34).
Criar um personagem é conseguir perceber as nuances contidas no ser
humano e, assim, conseguir transferir essas diferentes características para o enredo
onde estará inserido esse personagem. Conforme Seger ainda explica que “a maior
parte do material utilizado pelos escritores na criação de uma personagem surge da
observação de pequenos detalhes” (SEGER, 2006, p.36).

O processo de entender o personagem leva o escritor a ir além da história


que será contada, é preciso entender o passado do personagem, a história que o
levou até o enredo em que ele é apresentado. Seger denomina essa história de
backstory, que funciona como alicerce para o enredo principal, tornando o
personagem muito mais profundo e verossímil.

Todas as nossas atitudes ocorrem por algum motivo, algo nos levou até onde
estamos, e visto que, personagens são uma representação de elementos humanos,
com eles não é diferente. Seger demonstra isso ao apontar que, “as personagens
nascem na mente do escritor, e dele recebem um determinado conjunto de atitudes
e experiências. A backstory ajuda o escritor a descobrir quais dessas atitudes e
experiências são essenciais para que possa criar uma personagem completa”
(SEGER, 2006, p.62).
Mesmo que se possa obter uma backstory extremamente coesa e reveladora
sobre as origens e a natureza de um personagem, ela não necessariamente fará
parte do enredo principal, mas essa tarefa, aliada ao processo de pesquisa é vital
para que o personagem “ganhe vida”. Conforme Seger afirma que, “mesmo que a
maior parte das informações reunidas jamais apareça diretamente no roteiro, o autor
precisa acreditar na importância do trabalho de pesquisa, pois é justamente isso que
vai conferir profundidade às suas personagens” (SEGER, 2006, p.14).
A base formada com as informações reunidas através da pesquisa e pela
conseguinte backstory criada com essa pesquisa é o que realmente determina o
poder de representação de um personagem, a maior parte do trabalho do escritor
está justamente na elaboração e não na história ou enredo propriamente dito.
Conforme Seger demonstra, “o que o público vê é apenas a superfície do trabalho

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do autor – talvez menos de dez por cento de tudo o que ele conhece acerca de sua
personagem” (SEGER, 2006, p.14).

Na medida que a história e o passado do personagem vão sendo criados, ele


começa a tomar forma e a parecer mais nítido, começa a aparecer de forma lenta
mas concreta e verossímil. “Encontrar a backstory envolve um processo de
descoberta. Você começa a fazer perguntas sobre a personagem. Em seguida, volta
ao passado e tenta descobrir o que aconteceu e que poderia ter influência sobre as
decisões e as ações do presente” (SEGER, 2006, p.64)

O passado do personagem é importante para dar coesão à história, porém, é


no presente que ele se concretiza. O enredo que o personagem é apresentado
forma o presente e é justamente onde suas características e ações são reveladas.
Conforme Seger explica, “é o presente – o agora – que possui carga dramática. O
que aconteceu no passado já não é mais tão dramático, embora possa influenciar o
comportamento atual da personagem” (SEGER, 2006, p.68).

O enredo demonstra a backstory do personagem através das ações deste,


sendo que em muitos casos o passado se revela pelas ações do próprio
personagem. Tal possibilidade dá mais dinâmica ao enredo, conforme Seger define,
“o público precisa saber somente o necessário para compreender o que está
influenciando a personagem, e perceber, através do seu comportamento atual, a
presença desse passado” (SEGER, 2006, p.69).
O poder que a backstory tem de dar profundidade ao personagem é enorme,
mas ela não age sozinha na sua construção, diversos outros elementos se somam
para embasar o universo em que o personagem se encontra, e é tal universo que
definirá o quanto o passado influenciará na trama. “A backstory de cada personagem
será diferente. A biografia, por si só, nem sempre lhe trará informações relevantes”
(SEGER, 2006, p.63).
Outro ponto fundamental na elaboração e na criação de um personagem é
entender de que forma ele pensa sobre os acontecimentos do enredo. Quais são
suas convicções, filosofias e como ele entende o restante das pessoas e do mundo
que o cerca enquanto o enredo se desenrola. Segundo Barry Morrow resume ao
dizer que, “metade do trabalho de criar uma personagem se resume à psicologia”
(apud SEGER, 2006, p.77).
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Porém, esse “trabalho psicológico” não quer dizer um aprofundado estudo da
mente humana, mas sim, entender a natureza do personagem para que ele tenha
coerência em suas ações, tendo uma linha de pensamento e de convicções para
que possa seguir.
Conforme Seger explica, “em geral, não é uma circunstância particular que
determina o perfil psicológico da personagem. Na verdade, o que define é a maneira
como ela reage a determinadas circunstancias” (SEGER, 2006, p.79).
Circunstâncias essas que dão formato à história e tornam mais fácil a relação entre
ser humano e personagem. O personagem se faz quando entra em conflito com
determinados elementos ou acontecimentos.
Seger cita Sigmund Freud para demonstrar o entendimento psicológico que
se deve ter acerca do personagem e ainda, reforçar o poder que o passado, ou a
backstory pode exercer sobre o personagem:

Quando Sigmund Freud formulou suas teorias, ele percebeu a tremenda


influência que os acontecimentos passados têm em nossa vida presente.
São eles que moldam nossas ações, atitudes, e até nossas fobias. Freud
percebeu que os acontecimentos traumáticos do passado são as causas
dos complexos e neuroses do presente. Ele acreditava que a origem de
muitos comportamentos anormais estava ligada à repressão desses
acontecimentos (FREUD apud SEGER, 2006, p.79).

E ainda, a autora complementa sobre os conflitos que são criados para que o
personagem possa definitivamente demonstrar sua natureza, ao dizer que,
“enquanto essas questões (do passado) continuarem mal resolvidas, continuarão a
exercer um certo controle sobre o desenvolvimento da pessoa (ou personagem),
muitas vezes, de caráter negativo” (SEGER, 2006, p.80).
Com relação às convicções e valores do personagem, o papel dos
acontecimentos passados são fundamentais para determiná-los, porém, sendo os
personagens representações humanas, não seguem um “código de honra” rígido,
apresentando ações e pensamentos que parecem fugir de sua natureza para melhor
se adaptar em determinadas situações. “Muitos fatores em nossas vidas, apesar de
não serem conscientemente conhecidos por nós, dirigem nossos comportamentos.
Essas forças podem nos levar a agir de modo a contrariar não só nossos valores,
como também nossa própria identidade” (SEGER, 2006, p.87)
Acontecimentos são fundamentais em um enredo para que o personagem
possa ter conflitos ou paradoxos dos quais tenha de enfrentar e poder, assim, se
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demonstrar e fazer aparecer sua personalidade e forma de pensar, nem sempre
esses conflitos são perceptíveis, sendo muitas vezes elementos da backstory do
personagem que o direcionam e delimitam suas ações. Conforme Seger ainda
complementa, “essas forças inconscientes se tornam mais poderosas quando são
reprimidas ou negadas. (...) Quando reprimidas, possuem um potencial ainda maior
de acarretar problemas para as pessoas” (SEGER, 2006, p.88).
Sobre a necessidade de se aproximar o personagem do pensamento ou
sentimento humano, Seger demonstra que, “as pessoas não têm muita lógica, são
imprevisíveis. Fazem coisas que nos surpreendem, nos espantam, e alteram todas
as ideias pré-concebidas que tínhamos sobre elas” (SEGER, 2006, p.45). Assim,
faz-se necessário que o personagem tenha também paradoxos, que não seja
apenas um signo que acumula filosofias e morais lineares, sem ter nenhum tipo de
conflito consigo ou com o mundo, visto que não seriam verossímeis ou
convincentes.
Conforme Seger ainda reforça o poder e a necessidade de se criar
personagens com conflitos paradoxais, reforçando o seu poder de
representatividade, ela afirma que “assim, como na vida, esses paradoxos
geralmente são a base para se criar uma personagem fascinante e única” (SEGER,
2006, p.45).
Criar personagens paradoxais e conflitantes não quer dizer que estes sejam
inconsistentes, ao contrário, isso é necessário para que estes não sejam enfadonhos
e para que, justamente, prendam melhor a atenção de seu público, apresentando a
relação de mistério e dúvida presentes nas relações humanas. Visto que “os
paradoxos não negam as consistências, mas simplesmente as reforçam” (SEGER,
2006, p.45).
Personagens lineares são pouco interessantes, sendo muito mais
interessantes que tenham elementos e detalhes, mesmo que sejam apenas
peculiaridades, que não condizem de forma obvia com sua natureza (entende-se
profissão, crença, cultura ou a sociedade em que vive). Segundo aponta Leonard
Tourney, “as personagens ficam mais interessantes se forem compostas de
características variadas, se combinarem elementos conflitantes, paradoxais” (apud
SEGER, 2006, p.45).

20
Seja qual for o processo ou o enredo que o personagem se apresenta, este
precisa ser convincente, e para ser convincente o personagem deve ter
consistência, deve ser explorado ao máximo em sua história e pensamento sobre o
mundo. A consistência do personagem se dá através de uma linha de ações que
este deve seguir, não rígida ou linear, como visto, mas coerente para se encaixar em
seu enredo. Conforme Seger apresenta e aborda acerca de um personagem
consistente:

As personagens precisam ser consistentes. Isso não significa que elas


devam ser previsíveis ou estereotipadas. Apenas quer dizer que as
personagens, assim como as pessoas, possuem uma certa essência em
suas personalidades, que define quem realmente são, e o que devemos
esperar de suas atitudes. Se uma personagem se desviar dessa essência,
pode se tornar inverossímil, algo totalmente sem sentido, ou que não
acrescenta coisa alguma (SEGER, 2006, p.42).

Os valores e crenças, ou seja, a personalidade de um personagem, são


transmitidos na história através de suas atitudes no presente em que a trama se
encontra. São os atos que definem o que ou quem o personagem é e quais suas
consequências terá no final da história. À respeito do que Seger aponta sobre a
necessidade de o personagem apresentar uma personalidade coerente que será
demonstrada através de seus atos, entende-se que “as atitudes comunicam as
opiniões, os pontos de vista, e as diferentes posições que cada personagem assume
em determinadas situações. Assim, têm o papel de definir as personagens, de
conferir-lhe profundidade, ao mostrar o modo como encaram a vida” (SEGER, 2006,
p.48).
A personalidade e as crenças de um personagem são fruto da relação deste
com seu enredo, sendo uma resposta natural aos acontecimentos anteriores e
presentes de sua história. Porém, tais valores, podem ser também um reflexo dos
valores do próprio escritor, sendo que ocorrem de forma intencional ou não,
podendo ser de tal forma que “os valores transmitidos por uma personagem podem
ser uma oportunidade que o escritor encontra para expressar suas próprias crenças”
(SEGER, 2006, p.52).
Em caso de o personagem não ser um signo com objetivos críticos, ou não
apresentem valores e morais próprios do escritor, sua personalidade se dá de tal
forma para que se adapte de forma mais adequada à sua história. Conforme Seger
21
resume ao dizer que, “em outros casos (que não sejam intencionais), a observação
feita pelo escritor o leva à conclusão de que esses valores, interesses, filosofias e
crenças se ajustam a uma determinada personagem, embora não necessariamente
exprimam o pensamento do autor” (SEGER, 2006, p.52).
Além de serem coerentes, os personagens devem ser únicos, seja na forma
de falar ou se expressar (diálogo), seja na forma de agir ou de pensar, todo
personagem deve se distinguir dos outros que estão inseridos em seu enredo. A
diferenciação do personagem não se dá apenas na forma ou aparência física, mas
principalmente na sua personalidade e em seus atos.
Dois personagens de uma mesma história devem se apresentar de forma
diferente, mas que mesmo assim, possa estabelecer uma relação entre ambos
durante a trama, essa diferença não necessariamente ocorre com crenças e atos
diretamente opostos, mas apenas detalhes ou pequenas singularidades. Acerca do
que apresenta Seger, percebe-se que, “o comportamento, isto é, a maneira de cada
um fazer as coisas, é o que distingue duas pessoas que podem ser fisicamente
muito semelhantes. As pessoas possuem características distintas, pequenos
detalhes que as tornam singulares, especiais” (SEGER, 2006, p.54).
Conforme foi especificado, para que os personagens se diferenciem estes
devem apresentar um conjunto de valores e atos distintos, sendo que além destes,
um personagem deve apresentar um conjunto de qualidades e proficiências que o
diferem dos demais e o dê um sentido de estar presente no conjunto de
personagens da trama. Ainda entende-se que, “as qualidades da personagem não
existem de forma isolada. Uma personagem consistente possui certas qualidades
que, por sua vez, implicam em outras qualidades” (SEGER, 2006, p.43), formando
um grupo único e consistente de elementos que diferem um personagem dos
demais.

Além de valores e crenças, um personagem deve ter uma representação


física, tal representação é apenas imagética e serve para facilitar a visualização do
signo representativo que é o personagem. Um personagem envolve em sua
natureza um caráter interior, sua personalidade, e um caráter exterior, sua aparência
e atos. Conforme resume Seger, “a construção de uma personagem envolve tanto a
criação de um perfil exterior, que traduz suas características físicas e seu modo de

22
agir, como também a compreensão de sua dinâmica interior, isto é, suas
características psicológicas” (SEGER, 2006, p.77).

A descrição física de um personagem não se dá de forma literal, nos mínimos


detalhes, apenas o que é necessário para a história é apresentado. Essa descrição
ainda tem o poder e a função de reforçar os demais elementos internos do
personagem, trabalhando assim, com a experiência e com a bagagem cultural que o
público possui para utilizar a forma física como alicerce para entender como o
personagem é e como ele vive. Sobre a descrição física de um personagem, Seger
aponta que “é algo evocativo, isto é, que sugere outros aspectos da personagem. A
partir da descrição que o escritor apresenta o leitor já começa a imaginar e
acrescentar outras características à personagem” (SEGER, 2006, p.40).

Seger ainda reforça sobre a diferenciação dos personagens e da necessidade


de se entender e apresentar uma boa relação interna e externa para que o
personagem seja convincente e coeso, ao voltar à necessidade de se fazer uma
relação figurativa e simbólica entre o personagem e o ser humano afirmando que:

Entender que as pessoas são iguais no que concerne a alguns de seus


desejos básicos, mas ao mesmo tempo diferentes quanto ao modo como
reagem aos acontecimentos da vida, pode ser a chave para a criação de
personagens dotadas de várias facetas, com uma vida interior e exterior
bastante ricas (SEGER, 2006, p.104)

Percebendo-se que um personagem deve ser diferente e único, abre a


discussão da necessidade de o personagem possuir conflitos e relações em seu
enredo. Os atos de um personagem, a apresentação de sua personalidade e seu
diálogo só se dão de forma que estes sejam postos em referência à outros
personagens. Conforme isso entende-se que, “as pessoas raramente existem de
forma isolada: ela existem em função de seus relacionamentos” (SEGER, 2006,
p.105).
A criação de um personagem ocorre em função de seus conflitos e
relacionamentos, suas características ou aspectos interiores e exteriores são
elaborados de forma que o personagem se adapte à história e possa estabelecer de
forma única e verossímil suas relações com outros personagens. As qualidades de

23
um personagem devem ser criadas ou escolhidas de forma que reforce ao máximo
seus relacionamentos, ou conforme explica Seger, “a criação de personagens
individuais é feita de acordo com a escolha de certas qualidades capazes de
provocar o máximo de vibração no relacionamento” (SEGER, 2006, p.106).
Os relacionamentos do personagem ocorrem pela necessidade deste ser
apresentado a diferentes conflitos. O conflito é o que faz a obra, é o que constrói o
enredo, uma história só tem sentido quando conflitos são apresentados para que o
personagem possa resolvê-los. As tensões entre diferentes personagens, entre si ou
entre diferentes elementos da história, estabelecem a relação de verossimilhança e
reforçam o desejo do público de ficar preso à obra até o fim para que possam
presenciar a dissolução ou a concretização dos conflitos.
Entendendo que uma história e um enredo não ocorrem sem a formulação de
um conflito, a relação ou relacionamento acontecem de forma que a trama faça
sentido. Conforme Seger afirma, “o conflito é um elemento essencial em
praticamente toda obra de ficção. A maioria das histórias baseia-se no conflito para
criar a tensão, o interesse e o drama. (...) O conflito dá início à história, mas é
resolvido no fim” (SEGER, 2006, p.106).
Sem o conflito uma história não tem sentido, não possibilita ao personagem
fazer a relação de representatividade que lhe é imposta para que se torne verossímil
e, a diferenciação dos elementos físicos e morais ou, externos e internos, dos
personagens é vital para que estes tenham a tensão necessária e construam a
trama de forma mais convincente. Ou conforme explicado, “o conflito surge dos
contrastes que existem entre as personagens. Podem ter origem nas diferenças de
ambição, de motivação ou experiência, ou ainda nos diferentes desejos, objetos,
atitudes, e valores que sejam diametralmente opostos entre si” (SEGER, 2006,
p.114).
Como visto os personagens são divididos em grupos dentro do enredo de
acordo com suas ações e que, cabe ao personagem principal a maioria das ações e
o peso da história que se desenrola em função de si, de seus atos e desejos. Porém
os personagens coadjuvantes ou secundários, muitas vezes, têm elementos em sua
construção que os fazem “roubar a cena” e parecerem tão importantes e
interessantes quanto os principais, quando não os superam.

24
Na maioria das vezes o personagem secundário está mais livre dentro da
história, não tendo a mesma relação de obrigatoriedade de resolver os conflitos e os
problemas do enredo quanto o protagonista, ou personagem principal. Segundo
explica Dale Wasseman, “muitas vezes as personagens coadjuvantes tornam-se
mais interessantes que as principais, pois não tem a obrigação de levar a história
adiante. Pelo fato de elas não assumirem essa obrigação, é possível torná-las mais
pitorescas e envolventes” (apud SEGER, 2006, p.134).
Nem sempre é planejado ou programado pelo escritor o tamanho do carisma
que o personagem coadjuvante terá com o leitor, mas a forma com que o próprio é
construído e se apresenta o torna mais leve e agradável, opondo-se ao peso que o
personagem principal possui para a resolução da trama. Conforme Seger explica ao
afirmar que, “há vários casos em que as personagens coadjuvantes acabam
tomando conta da história, e tornam-se mais importantes do que o autor pretendia a
princípio” (SEGER, 2006, p.134).
Para que o personagem coadjuvante tenha profundidade e coesão em seus
atos, o seu processo de criação é praticamente o mesmo do personagem principal,
porém com menos detalhes. Características internas e externas, como desejos,
medos, aparência e a personalidade, tudo se encaixa também para o personagem
secundário; ou conforme Seger cita, “muitos dos princípios usados na criação dos
personagens principais também se aplicam às personagens coadjuvantes. Elas
também precisam ser consistentes, possuir atitudes, valores e emoções próprias”
(SEGER, 2006, p.133).
A criação de personagem é, antes de tudo, atribuir características do ser
humano e de suas relações aos personagens. É através dessa atribuição que os
personagens atingem o nível dramático para ocorrer o seu envolvimento com o leitor
ou público. Mesmo que o personagem seja um animal, uma criatura mitológica ou
até mesmo um objeto, para que ele se concretize como personagem é necessária
essa atribuição de atributos, ou seja, é necessário dar a eles uma personalidade.
Seger explica isso ao afirmar que “a técnica de acrescentar e enfatizar os
atributos humanos é o que confere amplitude às personagens humanas. Porém, o
fato de se enfatizar os aspectos não-humanos das personagens não-humanas
dificilmente as reforça” (SEGER, 2006, p.193).

25
Em suma, a criação de personagem é um processo de conceber atributos
propriamente humanos e conceber relações entre eles, dependendo do ponto de
vista do escritor, ou conforme Moacyr Scliar explica, “Em última análise, os
personagens de ficção vêm da imaginação do escritor. Não é a capacidade de bem
retratar que faz um escritor de ficção, mas sim a capacidade de imaginar
personagens e de criar situações” (SCLIAR apud BRAIT, 1985, p.84).
Candido ainda complementa ao demonstrar que o potencial do personagem
está ligado à limitação de seu criador, quando diz que, “o vínculo entre o autor e a
sua personagem estabelece um limite à possibilidade de criar, à imaginação de cada
romancista, que não é absoluta, nem absolutamente livre, mas depende dos limites
do criador” (CANDIDO, 1968, p.68).
Seger finaliza ainda dizendo que a criação de personagens é um processo de
observação e sensibilidade, para o escritor o ato deve ser ininterrupto e deve
também fazer parte de seu dia-a-dia visto que a sociedade é sua inspiração, quando
afirma que, “o processo de criação de uma personagem é algo contínuo. Mesmo
quando não estão escrevendo, os escritores precisam guardar certos detalhes, olhar
para a realidade em busca de inspiração e ideias” (SEGER, 2006, p.59).

2. O INÍCIO DA CRIAÇÃO EM CINEMA, O ROTEIRO

Assim como os personagens, todo filme tem seu início em uma criação
literária, também denominada roteiro. É a partir dele que o filme surge e têm sua
estrutura delimitada, visto que, para se iniciar um estudo sobre a criação de
personagens no cinema, faz-se necessária uma visão, mesmo que breve, acerca da
construção de um roteiro e seus diferentes elementos.
O filme engloba diversas formas artísticas a partir de uma história que é
estruturada pelo roteiro, ou conforme Syd Field conceitua o filme, “o filme é um meio
visual que dramatiza um enredo básico; lida com fotografias, imagens, fragmentos e
pedaços de (outros) filme (s)”. E ainda ele conceitua o roteiro como, “roteiro é uma
história contada em imagens, diálogos e descrições, localizada no contexto da
estrutura dramática” (FIELD, 1995, p.2).

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O roteiro é como uma obra literária ou romance, ela conta uma história sobre
algum determinado personagem, ou apresenta-o sobre uma trama ou enredo
elaborando diferentes ações e relacionamentos e tentando atingir algum objetivo, ou
como Field determina, “o roteiro é como um substantivo – é sobre uma pessoa, ou
pessoas, num lugar, ou lugares, vivendo sua ‘coisa’. (...) A pessoa é o personagem,
e viver sua coisa é a ação. (FIELD, 1995, p.2)
Um roteiro se assemelha a uma obra literária também na questão da
possibilidade de manipulação acerca do material ficcional que se está criando
Porém, como um filme é uma atividade colaborativa e depende de muitas opiniões
para ser executado, um roteiro está sujeito à diferentes fatores humanos,
principalmente quando se diz respeito à representação dos personagens pelos
atores.
Ou conforme Comparato ainda define que o roteiro “assemelha-se também ao
romance na possibilidade de manipular a fantasia na narração, já não na sua
capacidade de jogar com o espaço e o tempo de forma mais fidedigna, mas sim
inclusive no fato de não depender da representação humana” (COMPARATO, 2000,
p.19). Sendo que a principal diferença entre o escritor e o roteirista está em seus
objetivos e formas de agir sobre sua trama, visto que, “o romancista escreve,
enquanto o roteirista trama, narra e descreve” (COMPARATO, 2000, p.20).
Um roteiro não é necessariamente condizente apenas a um filme, podendo
expandir-se sobre toda e qualquer ferramenta audiovisual que se siga necessária a
sua apresentação ou como Comparato define, roteiro é “a forma escrita de qualquer
projeto audiovisual. Atualmente o audiovisual abarca o teatro, o cinema, o vídeo, a
televisão e o rádio” (COMPARATO, 2000, p.19)
A função de um roteirista é a de criar um guia para o filme, além de criar a
história à partir de diferentes fontes. Seger e Whetmore definem a importância do
roteirista ao afirmar que:

“O roteirista começa com uma página em branco e precisa criar a história,


imaginar personagens e começar a longa visualização do processo (...) e
todos que dali pra frente seguirem o mesmo caminho deverão interpretar e se
basear nesse plano original” (SEGER e WHETMORE, 2009, p.19)

Os autores ainda complementam dizendo que o roteiro é uma ferramenta o


material-guia que todos devem seguir à partir de escrito ou finalizado, conforme

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segue, “a principal função do roteiro não é ser uma peça literária, mas sim servir
como um guia para o trabalho que deve ser feito” (SEGER e WHETMORE, 2009,
p.45).
Uma história vai muito além do roteiro, ela é a representação de todos os
elementos que se somam para que ela possa ser construída, entendendo-se
também a história como produto final de um filme ou como Field explica, “uma
história é um todo e as partes que a compõem – a ação, personagens, cenas,
sequências, Atos I, II, II, incidentes, episódios, eventos, música, locações, etc. – são
o que a formam. Ela é um todo” (FIELD, 1995, p.2).
O roteiro segue uma estrutura básica, um paradigma como define Syd Field,
sendo que este paradigma torna-se uma forma estrutural e conceitual que o roteiro
possa seguir, não influenciando na história ou no enredo final, é uma linha narrativa
ou como ele explica, “o paradigma é uma forma, não fórmula; é o que mantém a
história coesa. A espinha dorsal, o esqueleto e a história é que determinam a
estrutura; a estrutura não determina a história” (FIELD, 1995, p.8), ou conforme
ainda complementa acerca do que é o paradigma, “um paradigma é um modelo,
exemplo ou esquema conceitual” (FIELD, 1995, p.3)
. Syd Field divide o paradigma em três atos para que possam formar a versão
total do enredo. O Ato I, ou apresentação; o Ato II ou confrontação e o Ato III ou
resolução. O paradigma é uma estrutura para organizar o enredo apresentado no
roteiro, é uma maneira de se ter o controle maior sobre quando e como apresentar
as ações e os personagens dentro da história. O Paradigma é, portanto, a
reformulação estrutural de todo o roteiro ou conforme determina, “início, meio e fim;
Ato I, Ato II e Ato III. Apresentação, confrontação, resolução – as partes que compõe
o todo” (FIELD, 1995, p.6).
O Ato I é a apresentação, o início da história, sendo onde é apresentado o
personagem principal e onde são também traçados seus objetivos na trama.
Conforme Syd Field ilustra, “o Ato I, o início, é uma unidade de ação dramática com
aproximadamente trinta páginas e é mantido coeso dentro do contexto dramático
conhecido como apresentação” (FIELD, 1995, p.4).
O Ato II é onde a história se desenrola e as principais ações, as relações e os
principais confrontos são executados, é o miolo da história e o seu desenvolvimento.
É a confrontação entre personagem principal e seus antagonismos dentro da

28
narrativa, é onde ocorre os conflitos que determinarão o destino da história.
Conforme o autor aponta, “o Ato II é uma unidade de ação dramática de
aproximadamente sessenta páginas, vai da página 30 à página 90, e é mantido
coeso no contexto dramático conhecido como confrontação” (FIELD, 1995, p.5).
O Ato III é a parte final da história, seu desfecho ou onde os conflitos e
desejos dos personagens se concretizam e tem uma resolução. Como Syd Field
determina que, “o Ato III é uma unidade de ação dramática que vai do fim do Ato II,
aproximadamente na página 90, até o fim do roteiro, e é mantido coeso dentro do
contexto dramático conhecido como resolução” (FIELD, 1995, p.5)
Field ainda complementa demonstrando o papel do paradigma como guia
para o roteirista, uma forma de se saber que caminhos seguir e de que forma seguir.
Conhecer a história em sua estrutura básica é fundamental para o seu desenrolar,
saber como os personagens são apresentados, como ocorre suas relações e
conflitos e, principalmente, como esses conflitos são resolvidos ou como determina
ilustrando ao dizer que é “por isso um paradigma é tão importante – ele lhe dá
direção. Como um mapa de estradas” (FIELD, 1995, p.96).
Segundo o autor um roteiro deve ter ainda um elemento que ligue os três atos
e condicione o roteiro para frente, dando um motivo e uma melhor visualização das
ações do personagem e de como as decisões são tomadas e do porquê a história
toma rumos diferentes e a trama de fato ocorre, esse elemento é o ponto de virada
também chamado plot point. Conforme Syd Field explica, “O PONTO DE VIRADA
(plot point) é um incidente, ou evento, que ‘engancha’ na ação e a reverte noutra
direção” (FIELD, 1995, p.96).
Comparato vai além da estruturação básica do roteiro, concebendo a ele uma
visão mais externa e mais expansível, indo até o seu nível sentimental e até a sua
mensagem moral. Ele determina três pontos distintos, mas que juntos formam o todo
de uma história, Logos, ou a estrutura; Patos, ou a história em si e o ethos, que é o
que o roteiro deixa, sua mensagem.. Conforme o próprio autor aponta e determina,
“um roteiro deve possuir três aspetos fundamentais: Logos; Pathos; Ethos”
(COMPARATO, 2000, p. 20).
Logos é a estrutura do roteiro, estrutura esta semelhante ao que Field aponta.
É a forma e como o roteiro é construído ou conforme Comparato afirma, “O logos é

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essa palavra, o discurso, a organização verbal de um roteiro, sua estrutura geral”
(COMPARATO, 2000, p.21).
Pathos é a ação, o drama, a história em si. É o enredo e seus personagens,
as relações entre estes e todo o cenário que é construído; é a vida dos personagens
e da história. Conforme o autor determina, “Pathos é o drama, o dramático de uma
história humana. É portanto, a vida, a ação, o conflito quotidiano que vai gerando
acontecimentos” (COMPARATO, 2000, p.21).
Ainda, o ethos é a mensagem final que o roteiro transmite, sobre o que e o
que ele quer dizer. Quais implicações para se entender a realidade o roteiro pode
ter, visto que é uma representação da realidade, todo roteiro diz alguma coisa no
nível ético e moral. Como Comparato afirma, “O ethos, a ética moral, o significado
último da história, as suas implicações sociais, políticas, existentes e anímicas”
(COMPARATO, 2000, p.21).
Comparato ainda divide a criação e tudo que compõe um roteiro em seis
partes, ou em seis estruturas, sendo a primeira a ideia, a segunda o conflito, a
terceira o personagem, a quarta etapa a ação dramática, a quinta o tempo dramático
e a sexta e última a unidade dramática.
A primeira etapa, ou a ideia é o ponto de partida de um roteiro, ou sobre o que
ou quem ele irá falar. É o assunto ou o motivo da concepção de um enredo. É a
etapa inicial ou como Comparato determina que, “Um roteiro começa sempre a partir
de uma ideia, de um fato, de um acontecimento que provoca no escritor a
necessidade de relatar” (COMPARATO, 2000, p.22).
A segunda etapa, ou o conflito é o corpo ou o motivo do enredo, as forças que
atuam e de que forma atuam. O conflito é o que dá sentido à trama e determina o
motivo de os personagens estarem ali presentes. Como o autor demonstra, “Conflito
designa a confrontação entre forças e personagens através da qual a ação se
organiza e se vai desenvolvendo até o final. É o cerne, a essência do drama”
(COMPARATO, 2000, p.95).
O conflito é o que compete à história, é o seu sentido, o porquê de tudo estar
sendo apresentado, a questão dramática de uma história e a força conflitante entre
os personagens. Syd Field ainda contribui ao afirmar que “todo drama é conflito.
Sem conflito não há personagens; sem personagem, não há ação; sem ação, não há
história; e sem história, não há roteiro” (FIELD, 1995, p.5).

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A terceira etapa apresentada por Comparato diz respeito ao personagem.
Personagem, como já foi visto, é que age dentro de uma história, é através dele que
o enredo é contado e se apresenta. O autor ainda afirma que “as personagens
sustentam o peso da ação e são o ponto de atenção mais imediato para os
espectadores” (COMPARATO, 2000, p.24).
Syd Field ainda afirma que o personagem é a alma de um roteiro é a quem
compete construir a história, ou conforme afirma, “o personagem é o fundamento
essencial de seu roteiro. É o coração, alma e sistema nervoso de sua história. Antes
de colocar uma palavra no papel, você tem que conhecer o seu personagem”
(FIELD, 1995, p.18).
O personagem é junto com o conflito ou ação, o sentido e o centro da história.
Sem personagem não há ação e sem ação não há história, como Field determina
que, “ação é o que acontece; personagem, a quem acontece. Todo roteiro dramatiza
ação e personagem. Você tem que saber sobre oque é o seu filme e o que acontece
a ele ou ela” (FIELD, 1995, p.11).
Field ainda afirma a importância maior dos atos de um personagem em um
filme, visto que os atos serão propriamente demonstrados e não apenas descritos
como ocorreria na literatura, sendo assim, no cinema os atos dos personagens terão
muito mais ênfase, acima de tudo um personagem é o que suas ações determinam,
como segue, “a essência do personagem é a ação. Seu personagem é o que ele faz.
Filmes são um meio visual e a responsabilidade do escritor é escolher uma imagem
que dramatize cinematograficamente o seu personagem” (FIELD, 1995, p.22).
Em um roteiro, assim como em qualquer meio, a ação dramática do
personagem está no presente, sendo que os acontecimentos apenas influenciam as
ações do “agora”. Visto que no cinema a construção de personagens é um trabalho
conjunto, escritor e ator devem dar ênfase às ações e não a backstory ou ao
passado do personagem. Segundo aponta Frank Pierson, “o escritor tem que saber
sobre as personagens o mesmo que os atores precisam saber para poder encená-
las. (...) O que aconteceu às personagens não é importante; o que importa é o modo
como elas se sentiram a respeito desses acontecimentos” (apud SEGER, 2006,
p.63).
Mesmo as descrições de um personagem devem condizer com a essência de
seus atos e de sua posição no universo de sua trama. A descrição física e o que a

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acompanha, como trejeitos e movimentos, auxilia na concepção de um personagem,
visto que tudo o que possa contribuir para a construção principal, que é a do ator,
deve ser explorado no roteiro.
Como Seger determina:

“Nos roteiros especialmente a descrição física pode ser reforçada, sempre


que tratar de algo que possa ser encenado. (...) algo que um ator possa fazer,
por exemplo, um determinado movimento, um jeito de olhar ou balançar os
ombros, algum trejeito com a cabeça ou um modo especial de andar. Tudo
isso ajuda na descrição física da personagem e dá pistas ao ator sobre como
construir seu papel” (SEGER, 2006, p.41)

A quarta etapa colocada por Comparato é a ação dramática, ou a forma que o


conflito e as ações entre os personagens são demonstrados através do roteiro.
Conforme o próprio autor aborda, “a maneira como vamos contar esse conflito
básico, vivido por aqueles seres chamados personagens. (...) De que maneira
vamos contar essa história. A isso se chama ação dramática” (COMPARATO, 2000,
p.25).
A quinta etapa é o tempo dramático ou o quanto é necessário para que as
ações e os personagens se apresentem no enredo. É também a etapa em que são
elaborados os diálogos dos personagens, tendo em vista o quanto é necessário para
que cada um possa se expressar. De acordo com Comparato o tempo dramático diz
respeito a “quanto tempo terá cada cena. Isto é, colocamos os diálogos nas cenas e,
através deles, começamos a dar ao trabalho uma forma de roteiro” (COMPARATO,
2000, p.26).
O diálogo é parte fundamental da trama, pois é a forma que um personagem
possui de se mostrar e determinar quem é, e quais suas ambições dentro da
história, de acordo com Field, “o diálogo tem que comunicar informação ou os fatos
da sua história para o publico. Tem que mover a história para adiante. Tem que
revelar o personagem” (FIELD, 1995, p.24).
A apresentação do diálogo no roteiro deve ser bem elaborado, condizendo
com a natureza e a essência de cada personagem. Seger ainda faz uma
diferenciação do que compete ao escritor e o que compete ao ator na criação e na
elaboração do diálogo ao afirmar que, “embora não seja função do autor colocar no
roteiro as pausas, os gestos, ou as trocas de olhar entre as personagens (tudo isso
cabe aos atores), ainda assim ele precisa definir muito bem a essência da

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personagem, de uma forma que ultrapasse as generalidades” (SEGER, 2006,
p.148).
A sexta e última etapa apresentada por Comparato é a unidade dramática, ou
a construção das cenas. A cena é a unidade ou a separação organizada onde as
ações são demonstradas, os atos são divididos por cenas, ou como o autor resume
a sexta etapa, “é o momento em que a unidade dramática, a cena, se torna
realidade” (COMPARATO, 2000, p.27).
Syd Field faz um estudo muito oportuno das cenas e suas composições,
definindo-as como elemento estrutural mais importante do roteiro, sendo onde as
ações são isoladas e organizadas, ou como determina, “a cena é o elemento isolado
mais importante de seu roteiro. É onde algo acontece – onde algo específico
acontece. É uma unidade específica de ação – e o lugar em que você conta sua
história” (FIELD, 1995, p.112).
Segundo ele, uma cena possui dois elementos principais e sua forma em que
é estruturada para contar a história que se deseja e para visualizar melhor o
momento da ação, o lugar e o tempo, ou onde e quando a ação irá ocorrer.
Conforme o próprio autor aborda, “Toda cena tem duas coisas: LUGAR e TEMPO”
(FIELD, 1995, p.113).
O primeiro elemento, o lugar ou onde a ação está ocorrendo determina a
locação em que o personagem estará, o local de onde está comunicando. Ou como
o autor explica e exemplifica, “Onde sua cena acontece? Num escritório? Num
carro? Na praia? Nas montanhas? Numa rua apinhada? Qual é o local da cena?”
(FIELD, 1995, p.113).
O segundo elemento é o tempo ou quando o personagem está comunicando
suas ações dentro da cena, se é dia, noite, madrugada, em suma, a que horas a
ação ocorre, ou como segue a afirmação do autor, explicando que “o outro elemento
é o tempo. A que horas do dia ou da noite sua cena acontece? De manhã? À tarde?
Tarde da noite?” (FIELD, 1995, p.113).
Em suma, toda a história ou enredo do cinema surge e se dá a partir do
roteiro, visto que, é por isso que a sua clara execução e demonstração do
personagem e de suas ações irão conduzir o filme até o final, de forma mais direta
ou não, a base do filme, o que o sustenta, é o roteiro, ou como Syd Field afirma,

33
“tudo se relaciona num roteiro, por isso torna-se essencial introduzir os componentes
de sua história desde o início” (FIELD, 1995, p.60).

2.1. PROCESSOS DO CINEMA: O PERSONAGEM DO ROTEIRO À


PRÁTICA

Como foi visto, o cinema se inicia através da linguagem escrita, ou seja, no


roteiro. E é justamente no roteiro onde o personagem é criado, juntamente com seu
enredo, história, backstory, conflitos, relações, características internas e externas.
Mas até aí, um personagem, para cinema, não está pronto. Para melhor
entendimento da criação de personagens cinematográficos, faz-se necessária a
análise dos processos que levam um filme até a tela.

Antes de mais nada, o cinema é uma arte colaborativa, onde diversos


profissionais somam forças para ver o filme se realizar como produto final. O
personagem é a representação máxima dessa força colaborativa, onde praticamente
todos os artistas envolvidos no filme dão uma parcela, mesmo que pequena, para
sua execução após o roteiro e até o vídeo final.

O roteiro, como visto, é o alicerce para que os profissionais possam se apoiar,


mas não é algo rígido. Praticamente tudo no cinema tem início no roteiro, e os
processos que levam o texto escrito à imagem em movimento no vídeo são
complexos e extremamente sinérgicos, conforme Seger e Whetmore explicam os
processos, o papel do roteiro e ainda, denominam os profissionais envolvidos na
arte de fazer cinema, eles abordam que:

A trajetória do roteiro para a tela é longa, árdua, e contará com uma


boa parcela de colaboração, ou pelo menos é isso que se espera.
Quando isso acontece, todos – produtores, diretores, atores,
production designers, compositores e muitos outros – vão contribuir
ao longo do caminho para embelezar e lapidar as ideias originais,
acrescentando novas camadas aos personagens e à história. No

34
entanto, todos estarão apenas interpretando e enriquecendo o roteiro
original (SEGER e WHETMORE, 2009, p.19)

Seger e Whetmore apontam, primeiramente, a figura do produtor como


profissional responsável por manter a ideia do filme intacta, é ele o responsável pela
ligação entre todos os demais profissionais envolvidos e também, faz a ligação com
o público do filme. Segundo aponta o produtor Richard Zanuck, “o produtor é como o
regente de uma orquestra. Certamente ele não sabe tocar todos os instrumentos,
mas sabe bem como cada instrumento deve soar” (apud SEGER e WHETMORE,
2009, p.55).
O produtor é um dos poucos, juntamente com o diretor, que acompanha o
processo como um todo, desde o início, com o roteiro, até o final, além da pós-
produção, acompanhando também o filme em sua divulgação, mas sua tarefa
principal é manter o foco e a identidade do trabalho desde sua criação. Conforme
abordam os autores, “em todo caso, uma vez que o roteiro esteja terminado, torna-
se dever do produtor proteger a visão original à medida que o projeto passa para a
fase de produção. Com frequência, o produtor se torna responsável por moderar as
disputas em torno do roteiro” (SEGER e WHETMORE, 2009, p.60).
Porém, o produtor David Puttnan aborda que a maior responsabilidade do
profissional está com o público, com o espectador do filme. O trabalho só terá
sucesso se for bem aceito por seu público, por isso, dá-se a necessidade de o
produtor estar atento a ele, ou conforme aponta Puttnan, “desde o início, a coisa
mais importante é que você (produtor) representa o público ao qual o filme se dirige”
(apud SEGER e WHETMORE, 2009, p.57).
Seger e Whetmore apontam que o trabalho do produtor não é perceptível por
um elemento em especial, mas sim, pelo produto final como um todo que é o filme,
conforme abordam, “o legado dos produtores fica registrado nos filmes que levam
seus nomes. Assim como os roteiristas, os diretores e todos os outros colaboradores
do filme, é essa a obra que eles deixam para a posteridade” (SEGER e
WHETMORE, 2009, p.78).
Além do produtor, o profissional mais importante de todo o processo de se
fazer um filme é o diretor. Ele é responsável por coordenar a todos os outros
profissionais, é ele quem concentra todas as responsabilidades e decisões para que

35
a prática do filme aconteça. Diferente do produtor, o diretor é mais prático e técnico,
ele é quem de fato realiza o filme, coordenando atores, câmeras e demais
elementos técnicos e artísticos.
O trabalho do diretor parte do roteiro, e é a partir dessa ferramenta que o
diretor começa a formatar e a incluir sua visão no filme, o filme nada mais é do que
uma interpretação do diretor, em forma de imagem, do roteiro. Como segue a
afirmação de Seger e Whetmore, “naturalmente, tudo começa com o roteiro, mas é o
diretor que precisa encontrar a imagem, construí-la, deixá-la clara e dar-lhe forma”
(SEGER e WHETMORE, 2009, p.103)
O diretor é o principal responsável pelo “fator humano” presente em um filme,
sendo quem dita também o ritmo do filme e da narrativa, é através de sua visão que
a história é contada. Conforme o diretor Norman Jewison aponta, “o diretor está
sempre manipulando (coordenando) as pessoas, seja o ator, o operador de câmera,
som, iluminação, compositor ou roteirista. Ele tenta manipular todos para que se
adequem à sua interpretação, à sua visão” (apud SEGER e WHETMORE, 2009,
p.90).
Mais do que coordenar as tarefas, o diretor é aquele cuja imersão dentro do
universo da história é mais acentuada, visto que todos seguem sua visão, esta deve
ter unidade e apresentar o ritmo certo para cada cena em seus mínimos detalhes. O
diretor deve aprender e entender tudo sobre o universo apresentado no roteiro para
reforçar a verossimilhança e a aceitação por parte do público. Segundo resumem
Seger e Whetmore, “o diretor deve aprender muito sobre a outra cultura (que será
retratada no filme) para apresentá-la com autenticidade na tela” (SEGER e
WHETMORE, 2009, p.96).
É pelo diretor que passam todas as discussões criativas a respeito do filme, é
ele quem intermedia os artistas, dando a eles um rumo para seguir, ditando seu
ritmo e apresentando o aspecto motivacional, mas sem, também, perder o fator
criativo e o talento de cada um. Ou seja, “as pegadas de um diretor devem produzir
uma faísca colaborativa, aquela sinergia que impulsiona um clássico do roteiro para
a tela. Ao longo do caminho deve ser travada uma série de discussões criativas”
(SEGER e WHETMORE, 2009, p.90).
Após o roteiro escrito, é função do diretor pensar o filme e os personagens em
seu aspecto visual, visto que é justamente essa a contribuição do cinema em

36
detrimento à literatura. Sendo o roteiro um instrumento técnico a ser seguido, a
grande maioria dos aspectos narrativos elaborados no filme sai das ideias e da
forma com que o diretor interpreta a trama proposta pelo roteiro, ou conforme Seger
e Whetmore citam, “quando o roteiro chega à fase de produção, o diretor começa a
‘ver o filme’ em termos visuais. Nesse momento crucial, a arte de dirigir vem à tona.
Os bons diretores farão escolhas visuais criativas que enriquecerão o roteiro e darão
vida à história” (SEGER e WHETMORE, 2009, p.99).
O diretor deve pensar o filme em seu âmbito de narrativa geral, mas deve
principalmente construir as cenas de forma única e vislumbrar cada detalhe que as
compõe, ou conforme segue, “quer seja uma imagem para o filme todo ou para uma
única cena, cada decisão deve ser cuidadosamente refletida, deve levar em conta as
várias camadas que constroem o significado do filme” (SEGER e WHETMORE,
2009, p.101).
O papel do diretor é o de contar a história através de imagens, trabalhando,
para isso, cena a cena, orientando os atores para que possam melhor representar
os personagens e os demais profissionais artísticos para que o filme ocorra da
melhor forma. De acordo com Seger e Whetmore, “as decisões de um diretor
envolvem um processo intuitivo que procura perceber os ritmos básicos para cada
cena e para a história. Esse processo se aplica aos personagens bem como a todo o
filme” (SEGER e WHETMORE, 2009, p.103).
A contribuição do diretor para a criação dos personagens não fica apenas
restrito ao trabalho junto às câmeras, sendo importante também no processo de
design, principalmente nas questões externas já abordadas que englobam o
universo do personagem. Esse processo de design pode incluir os desenhistas,
maquiadores, estilistas de figurino e mais recentemente, animadores gráficos, cada
vez mais frequentes em filmes com atores reais.
Porém, o trabalho mais visível e presente por parte do diretor é, de fato, com
os atores. Esse trabalho de construção se dá de forma onde os dois contribuem com
interpretações e ideias para tentar transformar o ator no personagem que é descrito
no roteiro. Segundo o diretor Norman Jewinson aborda sobre o processo de criar os
personagens em colaboração com os atores, “é muito importante se encontrar e
falar sobre o personagem. Você (diretor) diz aos atores como vê o personagem. Se

37
eles discordam de você, permita que demonstrem isso” (apud SEGER e
WHETMORE, 2009, p.107).
O ator é o profissional que personifica o personagem, é através dele que o
personagem se mostra e se concretiza, através de ações o ator empresta seu corpo
para o processo de criação. O diretor é quem orienta e mostra para o ator o caminho
para que ele possa chegar ao melhor resultado, visto que “o ator é a pessoa mais
vulnerável no set e cabe ao diretor tirar o máximo de seu desempenho, em meio às
incertezas e inseguranças que o ator sente” (SEGER e WHETMORE, 2009, p.115).
Conforme o diretor e ator Ron Howard explica a sinergia entre os dois
profissionais, para que independente do processo e da forma de trabalho, consigam
chegar ao resultado final: contar a história de forma coerente e atrativa; “os
processos de dirigir e atuar são bastante semelhantes. Os atores estão procurando
dar autenticidade a uma cena, buscando algo de diferente que viabilize a
representação da cena para se contar a história” (apud SEGER e WHETMORE,
2009, p.115).
A criação do personagem no cinema tem a influência direta da opinião e da
visão do ator sobre o roteiro, visto que é ele quem será o personagem, o modo que
se veste, o modo que fala , se locomove e se relaciona com os demais. O ator deve
resumir, através de seu corpo e de suas ações, tudo o que engloba a essência do
personagem, como desejos, medos, aspirações e a personalidade.
A maneira com que o ator trabalha é extremamente sentimental e perceptiva
com relação ao ser humano e sua forma de relacionamentos e atitudes, sendo que
esse trabalho ocorre de forma altamente exigente em termos físicos e mentais por
parte do profissional. Conforme Seger e Whetmore explicam, “os atores trabalham
com suas emoções, experiências, traumas, sentimentos e lembranças. Corpo e voz
se tornam instrumentos em fina sintonia para expressar o personagem" (SEGER e
WHETMORE, 2009, p.128).
Conforme percebido, o ator é um profissional diferente de todos os outros,
visto que sua contribuição na construção do personagem e no processo geral de se
fazer cinema é totalmente oposto, já que ele é o instrumento de seu trabalho. Ou de
acordo com Seger e Whetmore, “considerando-se que o ator é um instrumento, ele
está numa posição muito diferente das outras pessoas que colaboram para a
produção do filme” (SEGER e WHETMORE, 2009, p.128).

38
Os autores ainda apontam que o ator é o profissional principal para o sucesso
do personagem e para que este seja bem assimilado e pareça verdadeiro, “atuar
não tem a ver simplesmente com fazer, tem a ver com estar. Tem a ver com o
empenho para que o momento soe verdadeiro, para que o público realmente
acredite que o ator é o personagem” (SEGER e WHETMORE, 2009, p.145).
O profissional responsável por utilizar a câmera de forma tal que a atuação
seja explorada da forma mais convincente e atrativa para que o personagem fique
mais interessante e seja melhor assimilado, é o diretor de fotografia. É ele o
responsável por sugerir ângulos, formas de captação, iluminação e cores que
ajudem a contar a história da melhor maneira possível. Conforme Seger e Whetmore
explicam o processo de trabalho do diretor de fotografia:

A maioria dos diretores começa com uma cena máster, onde todos os
atores são incluídos numa só tomada. Então a mesma cena é filmada
várias vezes, enquanto a câmera se move para fazer tomadas em
planos médios, planos próximos ou primeiros planos. Durante o
processo de edição, cada tomada é projetada na tela e as decisões
criativas são tomadas, a fim de se resolver qual delas aparecerá na
versão final (SEGER e WHETMORE, 2009, p.109)

O diretor de fotografia é extremamente técnico, pois trabalha com a parte


física do cinema, como equipamentos de câmeras e de iluminação, mas também
seu trabalho exige muito da intuição e interpretação, visto que ele constrói, junto
com o diretor, a montagem das cenas. “No meio do caos, o diretor de fotografia
trabalha ao lado do diretor na montagem de cada cena. Dessa colaboração resultará
a interpretação visual do roteiro, que no final determinará o sucesso ou o fracasso
do filme” (SEGER e WHETMORE, 2009, p.108).
A fotografia deve estar totalmente relacionada com a arte do filme, arte esta,
trabalhada pelo designer ou desenhista de produção. O trabalho de ambas as áreas,
fotografia e arte conceitual ligam-se no filme, pois, são justamente quem criam a
ambientação da trama onde o personagem se apresenta. A arte cria cenários,
figurinos, estuda a paleta de cores que o filme terá, cria também maquetes e
bonecos que possam auxiliar a produção, e a fotografia deve mostrar a arte somada
ao personagem (ator) na tela através do filme concretizado.
A arte é o que cria a “alma” do filme, sendo através dela que se pode
identificá-lo e capaz de percebê-lo como um trabalho único. Percebendo-se que o
cinema é imagem, a necessidade de que esta imagem seja a mais bela possível e
39
que possa ser efetuada em suas mínimas peculiaridades como unidade de cores e
elementos e objetos dispostos na cena a fim de reforçar a história contada pelo
personagem, é vital para a verossimilhança e a aceitação do filme.
De acordo com o desenhista de produção Ferdinando Scarfiotti aborda sobre
a função e a necessidade de um alto nível de abstração que o seu trabalho exige, “o
production designer (desenhista de produção) é na verdade um idealizador da
produção, aquele que quase literalmente sonha o filme” (apud SEGER e
WHETMORE, 2009, p.176).
Outro trabalho artístico que tem influência direta na construção do
personagem que será demonstrado na tela é o trabalho estético, dos quais se
destacam o figurino e a maquiagem. Ambas as construções se fazem sobre o ator
para que este chegue mais próximo ao entendimento que se construiu no roteiro
para a caracterização física do personagem.
O trabalho estético é uma ilusão, uma ferramenta que direciona o olhar e a
interpretação do espectador e realmente transforma o ator no personagem,
tornando-o mais convincente, ou conforme a figurinista Marilyn Vance aborda, “quem
trabalha com desenho de figurinos precisa saber fazer alguém parecer ótimo. (...)
Insinuamos que ali tem algo de maravilhoso. (...) De muitas maneiras, a silhueta é
uma ilusão. Ela passa aquela sensação que se deseja comunicar na tela” (apud
SEGER e WHETMORE, 2009, p.185).
Vance ainda aponta que é vital entender o personagem em todos os seus
aspectos elaborados na criação literária (roteiro) para que possa ser melhor
caracterizado, sejam esses aspectos internos (personalidade), ou externos
(características físicas), mas aponta que são os desejos e aspirações que mais
influenciam e refletem em como o personagem irá se vestir, conforme segue, “para o
figurinista tudo na vida tem uma apresentação psicológica. Todos nos expressamos
através do que usamos” (apud SEGER e WHETMORE, 2009, p.182).
Ainda, a maquiagem é outro elemento fundamental na caracterização de um
personagem no cinema. Seja feita de forma simples para retratar um trabalhador do
cotidiano atual, seja uma maquiagem complexa repleta de próteses de borracha,
silicone, perucas ou apliques para retratar seres mitológicos, o resultado final deve
ser de tal forma que o personagem fique totalmente adaptado ao contexto ficcional a
que pertence.

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A maquiagem perfeita é aquela que passa imperceptível, ou seja, que
consegue ter êxito na tarefa de imersão do público na trama do filme e transformar,
de forma verossímil e convincente, o ator no personagem. De acordo com o
maquiador Peter Robb-King, “uma boa maquiagem é um verdadeiro recurso para a
produção. Mas não é algo que o público deva notar. O melhor elogio para um
maquiador é quando os atores parecem bons porque ficaram perfeitos no papel”
(apud SEGER e WHETMORE, 2009, p.198).
Além da questão estética que encobre o ator, o filme possui um elemento que
é responsável por aumentar e potencializar o clima e as ações, o som. A parte
sonora de um filme, ou a edição de som, envolve desde sons ambientes e de atos
que os personagens façam até a música que dará corpo ao sentimento de cada
cena ou personagem em específico.
A edição de som começa no princípio de todo filme, em sua história escrita,
ou o roteiro. É a partir daí que as cenas são construídas e sua parte sonora é então
imaginada e elaborada junto com cada ato ou passagem. Conforme o editor de som
Robert Grieve exemplifica, “alguns sons nascem do próprio roteiro: um rádio ligado
no carro ou o som de um trovão, quando o personagem se aproxima do castelo do
Drácula” (apud SEGER e WHETMORE, 2009, p.201).
Ainda, o som é usado para, além de ilustrar os atos de um personagem, criar
a atmosfera necessária para a cena, potencializando os sentimentos envolvidos e
ainda, deixando mais claro o ritmo da cena, sendo mais acelerado ou mais lento. “E
depois, há os sons que acrescentamos para realçar a atmosfera sugerida pelo
roteiro” (GRIEVE apud SEGER e WHETMORE, 2009, p.201).
Como os demais elementos que compõe o filme, o som não pode se
sobressair à cena, deve mesclar-se ao filme de tal forma que passe despercebido
mas que mesmo assim, potencialize os sentimentos e atos envolvidos. Ou conforme
Robert Grieve ainda explica seu processo de edição de som, “ao escolher os sons,
tento pensar em algo que acrescente um tom psicológico à história sem chamar
muita atenção para si mesmo. Devemos operar num nível subliminar e realçar a
atmosfera que o diretor e o roteiro determinam” (apud SEGER e WHETMORE, 2009,
p.201).
A música se encaixa nessa contribuição para potencializar o filme, mas não
pode “fazer” o filme. É uma ferramenta de suporte para a atuação e para as cenas

41
procuradas pela parte da fotografia envolvidas no filme. Ou como Davis Raskin
afirma, “a música não pode salvar um filme, mas pode ajudar a dar a ele uma
unidade. Pode dizer ao público, de modo subliminar, o que está acontecendo” (apud
SEGER e WHETMORE, 2009, p.261).
Outro ponto que deve destaque em um filme é o dos efeitos especiais. São
eles que criam o surreal e que tornam a fantasia realidade. Os efeitos especiais são
utilizados para que o impossível se torne possível dentro do filme e para que o
público se envolva com a história assimilando melhor a ficção.
Nem todos os efeitos especiais são grandiosos ou altamente elaborados,
custando milhões para serem realizados. Existem diversas formas de efeitos
especiais, ou conforme Ken Ralston aponta que, “em um nível mais simples, os
efeitos especiais incluem fumaça, fogo e explosões. Os efeitos mais complexos
envolvem fundos azuis, miniaturas, pinturas, aumento óptico, gráficos
computadorizados, animação, etc” (apud SEGER e WHETMORE, 2009, p.206).
O objetivo dos efeitos especiais é o de tornar qualquer coisa possível e os
avanços da animação gráfica auxiliam e muito o processo da criação ficcional.
Segundo Huntley Baldwin resume perfeitamente o papel dos efeitos especiais e
mais precisamente da animação em um filme:

As pessoas reais destroem o clima da fantasia, pois nos lembram que o


gigante é faz-de-conta. A fantasia permite que as pessoas acreditem em
certas coisas que, em outras circunstâncias, seriam rejeitadas como meros
exageros. A animação ajuda a desenvolver a fantasia e faz com que o
espectador lide com as histórias em um nível simbólico, e não em nível
racional (apud SEGER, 2006, p.199).

Como visto, os efeitos de animação atuam quando o fator humano de um


filme, ou os atores, não são capazes de transcrever o que o roteiro pede, atuando
como é na literatura, em um patamar muito maior de um símbolo, do que o que
fazem os atores. Uma animação é um símbolo e assim deve ser interceptada, dentro
de sua função no enredo e não, de forma lógica.
Por fim, o processo que é responsável por combinar tudo o que foi feito em
um filme é a edição. É através dela que um filme toma a forma que é, depois,
representada na tela. Conforme Seger e Whetmore definem o trabalho dos editores
finais de um filme, “os editores trabalham com diferentes níveis de expressão,
significado, ângulo de câmera, sombras, movimentação de câmera, ênfase e

42
perspectiva. No fim, tudo é combinado em uma versão final” (SEGER e
WHETMORE, 2009, p.221).
A edição deve ser feita de tal forma que as cenas e o trabalho dos atores
sejam demonstrados da melhor forma possível e do melhor ponto de vista,
valorizando, assim, todo o trabalho que é feito para que um filme se concretize. Ou
como a editora Carol Littleton resume seu trabalho, “meu trabalho é realçar o roteiro
e ter certeza de que tudo ficará claro na versão final. Tenho que decidir o que incluir
e quanto de foco cada coisa receberá” (apud SEGER e WHETMORE, 2009, p.222).

3. FORJANDO A CRIATURA GOLLUM

3.1. ADVINHAS NO ESCURO: GOLLUM DE TOLKIEN

Ao se entender que mesmo a criação de personagens no cinema tem início


no âmbito literário (no caso o roteiro) e ao somar o fato de o personagem analisado
ter nascido na literatura propriamente dita, nas obras do escritor J. R. R. Tolkien, faz-
se necessária uma primeira análise dos aspectos do personagem no seu enredo de
origem e a contextualização de sua história e de sua criação.
O personagem analisado, Gollum, está presente em dois livros do escritor J.
R. R. Tolkien: primeiramente em “O Hobbit”, onde é apresentado, e após, em “O
Senhor dos Anéis” (aqui tratado como volume único, apesar de ser dividido
comercialmente, também, em três partes). Gollum é, nas duas obras, um
personagem secundário, ou coadjuvante, mas que possui um enredo e um arco de
ações próprio, principalmente no segundo livro, onde está de forma mais presente e
tem ações decisivas para a história.
Gollum é apresentado em “O Hobbit”, livro que tem como personagem
principal o hobbit Bilbo Bolseiro. Hobbits são membros de uma raça criada por
Tolkien de criaturas acomodadas e muito pequenas, conforme ele descreve, “sua
altura é variável, indo de 60 centímetros a 1 metro e 20 centímetros na nossa
medida” (TOLKIEN, 2002, p.2); que amam comida, bebida, erva de fumo e conforto,

43
ou conforme o autor, “eles riam, comiam e bebiam, frequentemente e com
entusiasmo, gostando de brincadeiras a qualquer hora, e também de cinco refeições
por dia. Eram hospitaleiros e adoravam festas e presentes” (TOLKIEN, 2002, p.2).
O papel do personagem Gollum na trama de “O Hobbit” é extremamente
pequeno e o seu encontro com o personagem principal, Bilbo, serve apenas para
que este adquira (roubando de Gollum) o - Um Anel - do qual dá o título ao segundo
livro. Já na trama de “O Senhor dos Anéis”, Gollum é muito mais ativo ao tentar
retomar o anel e tendo ao final papel fundamental na destruição deste.
Resumidamente, a trama de “O Senhor dos Anéis” gira em torno de um anel
de poder (chamado de o Um Anel) construído há milhares de anos por um senhor do
mal, Sauron, para dominar o mundo. Após a quase destruição de Sauron pelo
príncipe Isildur, seu anel, no qual estava todo seu poder e maldade, causou a morte
do príncipe e se perdeu; sendo encontrado muitos anos depois pelo amigo de
Gollum, Déagol.
Gollum, que na época era um hobbit chamado Sméagol, foi corrompido pela
maldade do Um Anel e cego de vontade de possuí-lo, matou seu amigo e tomou o
anel para si. O anel, além de tornar quem o usa invisível, dá uma vida muito mais
longa do que o normal. Sméagol passou a se esgueirar e a se esconder de todos em
sua vila, recebendo o apelido de Gollum graças ao som que fazia em sua garganta.
Gollum então fugiu e se escondeu em uma caverna no coração de uma
montanha. Lá foi definhado pelo anel, transformado em uma criatura horrível,
mesquinha e asquerosa. Não só sua mente, mas seu corpo foi também deformado
pelos longos anos que passou com o anel, deixando de lembrar o hobbit que fora
outrora. Foi então que Bilbo Bolseiro, personagem principal de “O Hobbit” encontra e
rouba o anel de Gollum, do qual chama o Um Anel de “meu precioso”.
Em “O Senhor dos Anéis” o personagem principal é o sobrinho de Bilbo,
Frodo Bolseiro, que deve destruir o Um Anel para que o senhor do mal, Sauron, não
retome sua força e controle o mundo. Gollum aparece na trama tentando reaver o
anel roubado por Bilbo, acompanhando Frodo até a destruição deste. Sendo que no
fim, Frodo é corrompido pelo mal e é Gollum quem, acidentalmente, destrói o anel.
Por ser um personagem secundário, A relação de Gollum com a trama de “O
Hobbit” e de “O Senhor dos Anéis”, como visto, é muito mais liberdade de ações e

44
de sentimentos, apesar deste apresentar uma linha tão ou mais complexa quanto à
do personagem principal.
Em “O Hobbit”, Gollum não é desenvolvido com uma backstory tão grande
quanto é apresentado em “O Senhor dos Anéis”, visto que nem mesmo seu nome
real, Sméagol, é mencionado, mas seus elementos e o modo de fala e aparência
física já são apresentados.
Tolkien descreve assim pela primeira vez o personagem Gollum, “ali no fundo,
na beira da água escura vivia o velho Gollum, uma pequena criatura viscosa”
(TOLKIEN, 2009, p.72). Tolkien leva em conta o grande tempo que Gollum passou
com o Um Anel escondido em um lago nas profundezas da montanha e
constantemente o relaciona com seres abissais ou com um ser semelhante a um
anfíbio.
Porém, esse tempo que pertence a backstory do personagem não fica
evidente mesmo porque Tolkien descreve da seguinte forma, “não sei de onde veio,
nem quem ou o que ele era. Era um Gollum – escuro como a escuridão, exceto por
dois grandes olhos redondos e pálidos no rosto magro” (TOLKIEN, 2009, p.72).
É demonstrada uma grande influência do local em que o personagem vive em
sua composição e sua deformação física, a necessidade de tentar enxergar no
escuro reflete no que, por exemplo, os olhos de Gollum se transformaram, além da
descrição vista, Tolkien faz a seguinte descrição sobe os seres que viviam sob a
montanha: “há seres estranhos vivendo nos lagos no coração das montanhas: (...)
enquanto seus olhos iam crescendo, crescendo, crescendo, de tanto tentarem
enxergar no escuro” (TOLKIEN, 2009, p.72).
Fica evidente que em “O Hobbit” Gollum tem um papel apenas de um
antagonista simples, visto que aparece durante apenas um capítulo na história toda;
sua função em “O Hobbit” é claramente, apenas fazer com que Bilbo consiga o Um
Anel, mas a forma como age já dá pistas de sua natureza.
A primeira vez que Gollum se apresenta, ou se demonstra, ou seja, a primeira
vez que ele é descrito através de seu diálogo, sua forma de falar já demonstra sua
essência, ou conforme segue a descrição de Tolkien quando Gollum encontra Bilbo
pela primeira vez, “- que beleza e que moleza, meu preciossso! Acho que temos um
lauto banquete; pelo menos um bom bocado para nós, gollum!” (TOLKIEN, 2009,
p.73).

45
Através das primeiras palavras de Gollum já dá para entender como ele
pensa e como o Um Anel exerce poder acima de sua personalidade, visto que ele
parece constantemente conversar com o anel, ou seu “precioso”, quase como uma
segunda consciência. Ainda fica evidente a forma característica que Tolkien dá a
Gollum, o diferenciando de outros personagens através do diálogo, quando Gollum
força o “s” nas palavras ou troca algumas letras.
Ainda, em sua primeira apresentação, Gollum demonstra o motivo de seu
apelido, ou o som estranho que faz com a garganta, que Tolkien descreve da
mesma forma que se escreve o nome, “gollum”. Conforme Tolkien demonstra, “e
quando ele dizia gollum, fazia um ruído horrível na garganta, como se estivesse
engolindo alguma coisa” (TOLKIEN, 2009, p.73).
Tolkien ainda reforça a questão do nome ou da personalidade do
personagem, fazendo mais uma referência à forma em que ele chama o anel, sendo
a mesma forma como ele chama a si mesmo, ou conforme segue, “era assim
(através do som de sua garganta, que tinha conseguido este nome, embora sempre
chamasse a si mesmo ‘meu precioso’” (TOLKIEN, 2009, p.73).
Essa “confusão” que Gollum faz consigo mesmo através de seu nome,
confundindo sua própria personalidade com a do Um Anel, traz a questão de que
Gollum possui uma ligação de dependência do anel e demonstra ainda resquícios do
longo tempo em que Gollum só tinha o Um Anel para o fazer companhia nas
profundezas da montanha em que vivia.
Os elementos da backstory de Gollum são pouco trabalhados em “O Hobbit”,
sendo que, além da forma como conseguiu seu nome, a única referência feita é a de
que Gollum conseguiu o Um Anel em seu aniversário, visto que o personagem o
relaciona como, justamente, um presente de aniversário.
Tolkien apenas apresenta pistas sobre quem é Gollum ou como ele conseguiu
o Um Anel, conforme o autor descreve um trecho ou diálogo de Gollum, “- meu
presente de aniversário! Chegou pra mim no dia do meu aniversário, meu precioso”
(TOLKIEN, 2009, p.81). Tolkien ainda complementa dizendo que “assim ele sempre
dissera a si mesmo. Mas quem pode saber como Gollum conseguiu aquele
presente, em priscas eras, nos dias antigos quando ainda havia anéis desse tipo
espalhados pelo mundo?” (TOLKIEN, 2009, p.81).

46
Quem de fato Gollum é ou o que aconteceu a ele e ainda, como conseguiu o
anel de poder só são revelados em “O Senhor dos Anéis”. Percebendo que a
aparição de Gollum em “O Hobbit” termina com o personagem perseguindo Bilbo
para reaver o Um Anel, mas sem sucesso, Tolkien faz assim uma ligação para que
Gollum vá atrás do anel em “O Senhor dos Anéis”.
Conforme segue o trecho com a última aparição de Gollum em “O Hobbit”,
trecho do qual representa o diálogo do personagem ao ter o anel roubado e
fracassar em reavê-lo, “- ladrão, ladrão, ladrão! Bolseiro! Nós odeia ele, nós odeia
ele, nós odeia ele prá sempre!” (TOLKIEN, 2009, p.87).
O ódio de Gollum sobre o nome Bolseiro fica evidente desde então e este
passa a persegui-lo para resgatar o Um Anel, fato que passa a ocorrer então em “O
Senhor dos Anéis”, quando Gollum segue o protagonista da história, o sobrinho de
Bilbo, Frodo Bolseiro. Além desse fato, outra questão importante sobre o
personagem que só se apresenta em sua plenitude em “o Senhor dos Anéis” é a sua
backstory.
Conforme abordado no primeiro capítulo, a backstory não precisa ser
demonstrada no texto ou no enredo, mas sim através da suas “entrelinhas” e dos
atos do personagem, porém, Tolkien a demonstra, mesmo que de forma breve,
através de outro personagem contando a história de Gollum, como ele conseguiu o
anel, o que ele de fato é, qual era seu nome real e como chegou até o coração da
montanha em que vivia quando Bilbo o encontrou em “O Hobbit”.
Tolkien aborda em “O Senhor dos Anéis” a história de Gollum, e inicia
contando o contexto em que Gollum vivia e como era seu povo, muito antes de
conseguir o anel ou do tempo em que a história principal se passa, demonstrando
que antes de se tornar a criatura Gollum, ele era um hobbit, ou como descreve da
seguinte forma, “- muito depois, mas ainda há muito tempo, vivia nas margens do
Grande Rio, na borda das Terras Ermas, um pequeno povo de mãos ágeis e pés
silenciosos. Acho que eram semelhantes aos hobbits” (TOLKIEN, 2002, p.54).
Tolkien então demonstra que Gollum era de uma família muito rica e
respeitada entre seu povo, família esta muito grande e governada pela avó, uma
anciã muito sábia e, demonstra pela primeira vez, o nome real de Gollum, Sméagol.
Conforme Tolkien descreve, “o elemento mais curioso e mais ávido de conhecimento
dessa família se chamava Sméagol” (TOLKIEN, 2002, p.54).

47
Gollum ou Sméagol era um indivíduo muito curioso, fato talvez que sirva para
Tolkien abarcar na personagem o desejo incontrolável por possuir o anel. Sméagol
era também descrito como muito interessado por história ou pela origem e pelo
surgimento das coisas que o rodeavam. Ou conforme Tolkien ainda coloca, "ele se
interessava por raízes e origens; mergulhava em lagos fundos, fazia escavações
embaixo de árvores e plantas novas, abria túneis em colinas verdes” (TOLKIEN,
2002, p.54).
Outro fato que Tolkien coloca durante a descrição da backstory da
personagem, é o de que mesmo Sméagol sendo um indivíduo curioso e inteligente,
sua ambição era enorme, conforme ele complementa a descrição acima fazendo
uma alusão à perda da vontade que Sméagol tinha de apreciar as coisas belas e
naturais: “com o tempo, deixou de olhar os topos das colinas, as folhas nas árvores,
e as flores se abrindo no ar: sua cabeça e olhos só se dirigiam para baixo”
(TOLKIEN, 2002, p.54).
A forma com que Sméagol consegue o anel de seu amigo Déagol demonstra
o ponto chave para a mudança de personalidade do personagem e é o ponto crucial
em que ele começa, de fato, a se transformar na criatura Gollum. Conforme é
descrito que Sméagol “tinha um amigo chamado Déagol, parecido com ele, de olhos
mais penetrantes, mas não tão rápido ou forte” (TOLKIEN, 2002, p.54).
Sméagol e Déagol estavam pescando quando Déagol vê algo brilhando no
fundo da água e desce para apanhá-la, eis que tal coisa brilhante é o Um Anel.
Tolkien constantemente o relaciona como algo muito bonito e sedutor aos olhos,
gerando a cobiça de todos que o vêem, ou como descreve quando Déagol o
encontra, “E veja só! Quando limou a lama, viu em sua mão um lindo anel de ouro,
que brilhava e resplandecia ao sol. Seu coração se alegrou” (TOLKIEN, 2002, p.55).
Ao ver Déagol com o anel, Sméagol se encheu de ciúme e, primeiramente, o
pediu como presente de aniversário, mas Déagol, que já o tinha presenteado,
resolveu ficar com o anel para si, Sméagol então o matou e pegou o anel. Conforme
Tolkien descreve, “e segurou Déagol pela garganta e o estrangulou, porque o ouro
era tão brilhante e bonito. Depois pôs o anel em seu dedo” (TOLKIEN, 2002, p.55).
Percebendo a relação que o próprio personagem faz com o momento em que
adquiriu o anel, ele mesmo interpreta que ganhou o anel em seu aniversário,

48
conforme descrito em “O Hobbit”, ignorando o fato de que matou seu amigo para
adquiri-lo ou por ganância.
Tolkien demonstra, assim, o poder que a habilidade que o anel dava, de ficar
invisível, tornou Sméagol mesquinho e este passou a roubar, fora então expulso de
seu povo por sua avó, pois ele trazia a maldade consigo, e “sua avó, querendo paz,
expulsou-o da família e o pôs para fora de sua toca” (TOLKIEN, 2002, p.55).
Então Gollum fugiu para se esconder nas profundezas de uma montanha, a
mesma montanha em que se encontrou com Bilbo em “O Hobbit”, e levou o Um Anel
consigo, ou conforme Tolkien descreve, “encontrou uma pequena caverna, da qual
corria o riacho escuro; e fez o caminho rastejando, como uma larva entrando no
coração das montanhas; e sumiu de todo o conhecimento”. (TOLKIEN, 2002, p.56).
Ao contar a backstory Tolkien demonstra todos os problemas do passado que
levaram o personagem Gollum a agir de tal forma, a perseguir o personagem
principal, Frodo e o motivo de tamanha dependência pelo anel, visto que este foi
corrompido por ele. Como é abordado no primeiro capítulo, a backstory não é a
história propriamente dita, mas determina os atos e ações dos personagens no
presente do enredo. E é exatamente isso que ocorre com Gollum.
A descrição física de Gollum em “O Senhor dos Anéis” revela muito de sua
personalidade, sendo que ele constantemente, assim como em “O Hobbit”, é
relacionado com criaturas nojentas e viscosas, potencializando seu caráter maligno.
Conforme segue a primeira descrição propriamente dita de Gollum em “o Senhor
dos Anéis” como atuante do enredo principal e se apresentando como personagem
de fato:

Descendo a face de um precipício, íngreme e quase lisa ao que


parecia ao luar pálido, uma pequena figura negra vinha com suas
finas pernas abertas. Talvez suas mãos e pés moles e pegajosos
estivessem encontrando fendas e apoios que um hobbit jamais
poderia ter visto ou usado. (...) ele estava simplesmente descendo
com patas viscosas (...) semelhante a um inseto (TOLKIEN, 2002,
p.643).

Tolkien se mantém fiel até mesmo na forma em que o personagem se


apresenta através de seu diálogo de “O Hobbit” para “O Senhor dos Anéis”,
reforçando a verossimilhança do personagem e o mantendo coeso dentro do
enredo, inclusive com os ruídos e o “s” forçado que é habitual na fala de Gollum. Ou
como ele demonstra em uma passagem onde o personagem conversa consigo
49
mesmo, “- ach, sss! Cuidado meu precioso! Devagar se vai ao longe. Não devemos
arriscar nossso pessscoço, devemos, precioso? Não precioso - gollum” (TOLKIEN,
2002, p.644).
Gollum é um personagem extremamente conflitante, sendo que é antagônico
ao personagem principal, mas também apresenta um conflito pessoal muito grande,
onde demonstra ter praticamente duas personalidades em sua mente, fato
demonstrado quando fala constantemente sozinho e quase não apresenta pronomes
singulares em sua fala, apenas “nós”, como se estivesse alguém em sua companhia.
Os paradoxos de Gollum ficam evidentes, quando ao encontrar Frodo, é
preso pelo personagem e forçado a guia-lo ao local em que o anel será destruído.
Gollum vê então um dilema onde, apesar de querer reaver o anel, é forçado a ir até
o local em que o que tanto busca, será destruído.
Porém aí, o personagem, ou sua personalidade, é dividido basicamente em
dois, visto que ao jurar levar Frodo, ele utiliza seu nome real, “Sméagol”, ao invés do
habitual “precioso” ou até mesmo “Gollum”, e ainda sua própria maneira de falar
muda, perdendo os ruídos e ficando muito mais clara, conforme o próprio Tolkien,
demonstrando que se trata de um personagem praticamente distinto, uma divisão
entre Sméagol e Gollum. Ou conforme segue, “- Sméagol – disse Gollum de repente
e numa voz clara, abrindo completamente os olhos e lançando a Frodo um olhar
estranho – Sméagol vai jurar pelo Precioso” (TOLKIEN, 2002, p.649).
Durante o restante da jornada o personagem demonstra mudanças em sua
forma de falar, demonstrando o seu conflito interno, como se as duas
personalidades distintas, Gollum e Sméagol dominassem sua mente, por vezes
falando cheio de ruídos e mais para si do que para outros personagens e por vezes
de forma, não perfeita, mais muito clara.
Conforme segue os exemplos em um trecho onde ele pede um pouco de
comida a Frodo, “sssim, sssim, água boa – disse Gollum. – Bebam, bebam,
enquanto pudermos! Mas o que é isso aí precioso? É mastigável? É gostoso?”
(TOLKIEN, 2002, p.653). E, “Hobbits bonzinhos! Sméagol prometeu. Vai passar
fome. Pobre do magro Sméagol!” (TOLKIEN, 2002, p.653).
Além do seu aspecto sombrio e maligno, caráter que assumiu ao se tornar a
criatura Gollum, resquícios da personalidade de Sméagol ainda são vistas,
principalmente quando Tolkien utiliza um toque de humor para demonstrá-la, como

50
na passagem acima e ainda mesmo em “O Hobbit” quando, ao responder uma
charada feita por Bilbo, Gollum diz “- barbada, barbada! – chiou ele. – Dentess!
dentess!, meu precioso; mas nós só tem seis!” (TOLKIEN, 2009, p.74).
No decorrer da jornada, Gollum passa de antagonista para coadjuvante, visto
que ao invés de impor barreiras ao personagem principal ou protagonista, ele o
ajuda em sua tarefa. Fato que não dura muito, pois o personagem constantemente
oscila entre ajudar Frodo e o colocar em situações de perigo.
No fim da jornada, Gollum tem um papel extremamente importante, e de
coadjuvante, passa a protagonizar a história junto com Frodo, até o momento de sua
morte. Durante o desfecho da jornada principal de “O Senhor dos Anéis”, Frodo é
corrompido pelo anel e desiste de o destruir, Gollum então surge e luta com ele pelo
anel, até que consegue o arrancar junto com o dedo de Frodo, que estava invisível
graças ao poder do anel. Afoito de tanta felicidade, Gollum começa a comemorar e a
pular segurando o dedo de Frodo juntamente com o anel, até que escorrega do
penhasco e cai no local onde este deveria ser destruído, morrendo e destruindo o
Um Anel.
Conforme segue a última descrição de Gollum feita através de seu diálogo no
momento em que este comemorava reaver o seu “precioso” que buscava a tanto
tempo:

- Precioso, precioso, precioso! – gritava Gollum. – Meu precioso! Ó, meu


Precioso! – E assim, no momento em que erguia s olhos para se regorjizar
com sua presa, deu um passo grande demais, tropeçou, vacilou por um
momento na beirada, e então com um grito agudo caiu. Das profundezas
chegou seu último gemido, Precioso, e então ele se foi” (TOLKIEN, 2002,
p.1003).

3.2 A DOMESTICAÇÃO DE SMÉAGOL: GOLLUM NO CINEMA

Gollum é um personagem que não é humano, mesmo outras raças que


aparecem nos filmes, como elfos, anões e os próprios hobbits, tem em sua
constituição, características humanas, podendo ser interpretados por atores reais;
mas não Gollum. A idéia de que fazer o personagem através de computação gráfica
daria mais liberdade e, como já foi abordado, transmitiria mais verossimilhança aos
51
movimentos e a constituição de que de fato é um personagem pertencente à história
e não “um ator simplesmente vestido e maquiado”.
Sendo um personagem tão importante para o desenrolar da história, houve
um cuidado muito grande por parte da produção do filme para que Gollum fosse um
personagem extremamente verossímil. Sua importância no enredo é tanta que
chega ao ponto de ser vital ou como o co-produtor do filme Rick Porras define que,
“por mais bem sucedido que Peter (o diretor do filme) seja ao contar a história, se
Gollum não desse certo, tudo teria desmoronado como um castelo de cartas” ¹.
O personagem é extremamente icônico e sua representação na literatura
influenciou diversas formas artísticas por muito tempo, dado a isso, sua
representação passa a ser muito importante e o peso de se fazer esse trabalho
aumenta, conforme comenta Richard Taylor, supervisor criativo da oficina da Weta,
que produziu o personagem, “Gollum virou quase um exemplo da arte fantástica no
século XX” ².
O trabalho, após o roteiro, foi elaborado a partir de desenhos conceituais, e
como toda criação de personagem no cinema, foi fruto do trabalho de vários artistas
e profissionais, como comenta Barrie M. Osborne, produtor dos filmes, “Gollum
evoluiu com o tempo” e ainda complementa ao dizer que, “ele começou cedo, nos
desenhos inspirados por Alan Lee e John Howe” ³.
A criação do aspecto físico e visual do personagem Gollum se deu de forma a
seguir a descrição do personagem na literatura, como aborda Bem Wootten,
desenhista/escultor da Weta, “ele é um magricela, com mãos e dedos longos,
cabelos que parecem uma teia, olhos enormes e infelizes” 4. E é sobre essa visão
que o personagem foi construído (ver Figura 1).

a 16
¹ : Entrevistas presentes no Box O Senhor dos Anéis Versão Estendida, As Duas Torres, Disco 3. 52
Fig. 1 (Desenho conceitual de Gollum pelo artista John Howe)

Além dos desenhos conceituais do personagem, visto que ele é uma


representação que deverá ser semelhante à realidade, foram feitas, para se
perceber o personagem em todo o seu aspecto visual, diversas esculturas, ou como
aponta John Howe, desenhista conceitual dos filmes: “embora tenhamos feito
esboços de Gollum, às vezes, a maior parte do processo ocorreu na sala de
esculturas” 5 (ver Figuras 2ª e 2b).

Fig. 2a (Escultura conceitual para o busto de Gollum)


a 16
53
¹ : Entrevistas presentes no Box O Senhor dos Anéis Versão Estendida, As Duas Torres, Disco 3.
Fig. 2b (Escultura conceitual para o corpo de Gollum)

Para se entender o personagem em seu aspecto visual, foram feitos diversos


estudos, tanto em aspectos relevantes como movimentos, quanto a aspectos
propriamente físicos, como aparência, forma dos olhos, dos pés, mãos e estrutura
básica, conforme é dito pelos responsáveis pela tarefa de criar o personagem, “ao
todo produzimos 200 desenhos e 100 maquetes de Gollum” 6.
Visto que Gollum é um personagem do enredo, e ainda por cima, de extrema
importância, sua interpretação como tal se dá da mesma forma que qualquer ator
real, ou como aborda o diretor Peter Jackson, “filmes vivem ou morrem com o
elenco. (...) Qualquer ator, de certa forma, mataria o filme se fosse o ator errado. O
mesmo valia para Gollum” 7.
No princípio, Gollum seria um personagem feito apenas digitalmente, com o
ator Andy Serkis atuando somente como seu dublador. Porém sua atuação reverteu
o quadro e modificou consideravelmente a maneira como o personagem foi
construído para o cinema. Como aborda o diretor Peter Jackson ao contar como a
atuação de Serkis remodelou o personagem, “ele (Andy Serkis) chegou e fez um
teste memorável. Conseguiu produzir uma voz estranha” 8.
Peter Jackson complementa ao contar que “o interessante foi que, para criar a
voz ele tinha de se retorcer, fazer caretas e era assim que ele achava a voz. Ele
fazia o personagem mesmo”. E ainda aponta que “naquele teste, percebi uma coisa,
que nunca tinha me ocorrido: que a voz, as expressões faciais e a energia estão
ligados”. Peter Jackson ainda coloca que “usar Andy Serkis no set como referência
física para Gollum, na verdade fez com que o personagem fosse recriado” 9.
a 16
54
¹ : Entrevistas presentes no Box O Senhor dos Anéis Versão Estendida, As Duas Torres, Disco 3.
A partir desse ponto, Serkis não seria usado apenas como dublador, mas,
além de sua voz, seus movimentos e expressões seriam a base para a criação da
animação, que viria a se tornar o personagem Gollum. Barrie M. Osborne, produtor
comenta a escolha do diretor ao contar que “Peter se convenceu de que usaria o
ator não só para dublar, mas para se transformar naquela personalidade. A atuação
10
animada e uniforme por trás de Gollum viria de Andy” .
Após, o próprio design do personagem mudou, o que antes era a imagem
escolhida para representar Gollum, passou a receber características do ator, como
se pode ver na imagem da Figura 4, a evolução do personagem e como as
proporções físicas do ator foram mantidas. Ainda nas imagens das Figura 5a e 5b,
se pode ver a diferença visual das esculturas do design inicial e o final, com as
características do ator.

Fig. 4 (O conceito inicial do personagem e a sua evolução já com as proporções do


ator Andy Serkis)

Fig. 5a (Escultura com as feições iniciais do personagem)

a 16
¹ : Entrevistas presentes no Box O Senhor dos Anéis Versão Estendida, As Duas Torres, Disco 3. 55
Fig 5b (Escultura com as feições de Andy Serkis)
Diversos fatores influenciam um ator na criação de um personagem após este
ser elaborado no roteiro. Com relação a voz de Gollum, Andy Serkis, afirma que
“meus gatos em casa influenciaram na criação da voz de Gollum, porque, depois de
se lamberem eles ficam com bolas de pelo. Isso se tornou: ‘Gollum. Gollum’(fazendo
o som característico do personagem)” 11.
Percebe-se uma clara diferenciação do que é descrito literalmente da voz de
Gollum, quando faz o som característico que o deu seu apelido. No livro o som é
descrito como se Gollum engolisse algo, já para Serkis, em sua construção, faz com
que o personagem pareça estar expulsando algo preso em sua garganta, fazendo
assim uma relação mais fácil de se identificar e até mesmo de se realizar, visto que
existe a relação com a bola de pelos dos gatos.
Com relação aos movimentos que Serkis deu ao personagem, Brian Van’t
Hul, diretor de fotografia de efeitos visuais, explica o processo ao dizer que “ele
estava lá atuando para melhorarmos a marcação, as linhas e que fosse, no que
chamamos de ‘referência de animação’” 12.
Joe Letteri, supervisor de efeitos visuais, comenta o processo denominado
motion capture, responsável por capturar os movimentos de Serkis por câmeras e
enviar para o computador, para que então, os animadores possam utilizar como
base, “motion capture é colocar pontinhos na roupa que o ator usa”, Andy Serkis
complementa, “os pontinhos são referências às articulações no meu corpo e seriam
captados por câmeras por todo lado” 13 (ver Figuras 3a e 3b).

a 16
¹ : Entrevistas presentes no Box O Senhor dos Anéis Versão Estendida, As Duas Torres, Disco 3. 56
Fig. 3a (Andy Serkis atuando com a roupa que transfere seus movimentos para o
computador)

Fig. 3b (Atuação de Serkis, à direita, e o resultado com um modelo do personagem,


à esquerda)

Peter Jackson justifica a escolha da técnica para a produção e para a criação


do personagem ao apontar que “motion capture é uma técnica que poupa tempo e
fornece um elemento de realidade que às vezes não se consegue na animação”.
Podendo assim, valorizar o trabalho do ator e aumentar a verossimilhança do
personagem.
Além dessa técnica, para os momentos em que o personagem Gollum deveria
interagir com outros personagens, foi elaborada a técnica chamada roto-animação,
a 16
¹ : Entrevistas presentes no Box O Senhor dos Anéis Versão Estendida, As Duas Torres, Disco 3. 57
que consiste em sobrepor o personagem desenhado digitalmente sobre o ator,
conforme a imagem da Figura 6.
Apesar de os movimentos de Gollum adquirirem aspectos mais realistas,
levando-se em conta que o personagem não é humano, muitas vezes seus
movimentos tinham que ser modificados ou refinados para que tornassem mais
verossímeis ao personagem, ou como Jason Schleifer, animador sênior da Weta
comenta, “para as cenas onde Andy fazia algo que nós queríamos, combinávamos o
14
máximo possível, mas refinávamos o movimento para ser Gollum” .
Peter Jackson comenta a contribuição de Serkis para o papel ao afirmar que,
“ele (o ator Andy Serkis) chegou num contexto em que ninguém acreditava precisar
dele. Só da voz dele, quero dizer. Mas aos poucos, percebemos que não dava para
15
ficar sem ele. E isso é uma prova da contribuição dele para o personagem” .
Gollum é a demonstração de que, para se criar um personagem em cinema,
muitas forças devem se somar em prol de um objetivo em comum, visto que o
personagem passou por diversos profissionais até chegar à tela, desde desenhistas,
figurinistas e maquiadores nas cenas onde é demonstrado o tempo em que ainda
era um hobbit, compositores e diversos outros, como afirma o diretor Peter Jackson:

O que Gollum tem de maravilhoso é que ele é o momento máximo de


grandes talentos que se espalharam pela produção toda. Começou com o
roteiro, com o design, passando depois para atuação e para a atuação e para
a pós-produção, onde fizemos a voz, a finalização, a animação, a composição
16
e, no fim, Howard Shore teve de compor musica para Gollum.

Por fim, a criação de Gollum no cinema demonstra uma quebra de um


paradigma e coloca uma nova forma de se criar personagens. Onde desta forma, a
animação digital passa a agir como um recurso, uma maquiagem para a aparência
do ator, mas a essência de sua atuação permanece e a valoriza, podendo ser
expandida com movimentos mais verossímeis nos quais não seria capaz de efetuar.
Ou seja, o personagem Gollum, se configura como um marco na história do cinema,
onde diversos profissionais somam esforços para que a criação final seja
concretizada.

a 16
¹ : Entrevistas presentes no Box O Senhor dos Anéis Versão Estendida, As Duas Torres, Disco 3. 58
CONCLUSÃO

Pode se concluir com o presente trabalho que, antes de qualquer coisa, um


personagem é um signo que procura representar o ser humano em alguns aspectos
específicos e cuja ambientação é um universo ficcional e próprio, também
denominado enredo. O poder de representatividade de um personagem faz-se tão
grande que em muitos casos ele passa a ser utilizado como uma “válvula de escape”
do mundo real, servindo como meio de se vivenciar situações que em nossas vidas
não conseguiríamos.
Os processos de criação de um personagem envolvem diversos fatores que
tem como foco a observação do real, ou de certas situações que possam servir de
inspiração para que ocorra o processo representativo; tais como, trejeitos, modo de
fala, peculiaridades físicas, diferenças culturais, hábitos, crenças e valores.
A criação de personagens no cinema é, em sua etapa inicial, feita da mesma
forma que a criação literária apesar das diferenças entre estrutura de um romance e
um roteiro. Em um segundo momento a criação passa a sofrer a ação e a influência
de diferentes artistas e profissionais, visto que o cinema é uma arte colaborativa e o
personagem é quem carrega o cinema, quem faz o intermédio entre o enredo e o
espectador.
A respeito da criatura Gollum, pode-se concluir que se trata de um
personagem extremamente rico, influente e complexo em sua estruturação literária.
Ele quebra paradigmas ao oscilar entre diversas funções dentro da história e
também ao apresentar uma dualidade incrível e apaixonante onde seu conflito
interno é altamente poderoso, criando um arco paralelo dentro da história e o
colocando, em alguns casos, à frente do personagem principal como foco do leitor.
O personagem Gollum apresenta uma trajetória extremamente definida e
diferenciada nas obras de Tolkien. Sua riqueza está no fato de representar ao
mesmo tempo, o que há de mais sombrio e conflitante, o que há de melancólico na
cobiça e na dependência ao se apegar a algo para a natureza humana.
Gollum é um personagem que no início pertencia a mesma raça do
personagem principal, fazendo-se assim uma relação de similaridade entre os dois

59
e, mesmo após ser corrompido pelo poder do anel, ainda apresentava atos que
lembravam muito mais o hobbit que fora do que a criatura que se tornara.
Tal fato é o ponto mais explorado nos filmes, a dualidade do personagem, o
conflito de um personagem que se divide em dois opostos, Gollum e Sméagol,
maldade e bondade. A criação do personagem nos filmes remete de forma mais
óbvia que Gollum é um hobbit que fora destruído física e mentalmente pelo poder e
pela maldade que estão contidos no anel. Fato ainda demonstrado na relação que
se fez ao pensar o personagem em sua estrutura física, lembrando muito mais um
hobbit decrépito do que a criatura anfíbia e soturna que se faz parecer nos livros.
O trabalho que levou o personagem para a tela e a incrível contribuição do
ator Andy Serkis ao dar uma verossimilhança estupenda à um personagem animado
fez brotar uma nova forma de se pensar e de se criar personagens para o cinema,
fazendo com que a aparência do ator deixasse de ser pré requisito para que possa
vivenciar o personagem. A partir do que foi feito com Gollum, personagens exigem
do ator apenas sua parte técnica, a habilidade pura de atuar, explorando
movimentos, expressões faciais e a entonação da voz.
Pode-se, por fim, concluir que o personagem Gollum revolucionou a literatura
em “O Hobbit” e em “O Senhor dos Anéis” ao quebrar paradigmas ao se relacionar
com seu enredo e ao se tornar um símbolo de um antagonista que pode ter a
adoração do público sem fazer com que o protagonista perca seu ideal. E ainda,
Gollum ajudou a fazer história no cinema ao ir fundo na mais pura definição do que é
de fato o cinema, uma arte colaborativa. Gollum explorou todos os aspectos da
criação de um personagem cinematográfico, passando pela criação artística-
conceitual, como desenhos e esculturas, pelo trabalho do ator e ainda pela
animação gráfica. Percebe-se assim, que Gollum é sem dúvida um dos mais
completos personagens já criados no cinema.

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REFERÊNCIAS

Livros:

BRAIT, Beth. A personagem. 2. ed. São Paulo: Editora Ática, 1985.

CANDIDO, Antônio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1968.

COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. São Paulo: Rocco, 2000.

SEGER, Linda e WHETMORE, Edward J. Do Roteiro para a Tela. São Paulo:


Bossa Nova, 2009.

SEGER, Linda. Como Criar Personagens Inesquecíveis. São Paulo: Bossa Nova,
2006. 236 p.

FIELD, Syd. Manual do Roteiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

TOLKIEN, J.R.R., O Hobbit. Sao Paulo : Martins Fontes, 2009. - 297 p.

TOLKIEN, J. R. R., O Senhor dos Anéis. Sao Paulo : Martins Fontes, 2002.

Audiovisual:

Filmes: Box O Senhor dos Anéis Versão Estendida

Sites:

PRIBERAM, Dicionário Online de Língua Portuguesa. Acessado em 30/10/12, as


22:00h. Disponível em <http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=personagem>.

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