Você está na página 1de 61

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL


CINEMA E AUDIOVISUAL

A PONTE INVISÍVEL ENTRE O PERSONAGEM E O ATOR:


O CINEMA DE KLEBER MENDONÇA FILHO

THIAGO FREITAS ROSESTOLATO

Niterói, 2022
THIAGO FREITAS ROSESTOLATO

A PONTE INVISÍVEL ENTRE O PERSONAGEM E O ATOR:


O CINEMA DE KLEBER MENDONÇA FILHO

Monografia apresentada ao Curso de


Graduação em Cinema e
Audiovisual da Universidade
Federal Fluminense, como requisito
parcial para obtenção do grau de
Bacharel em Cinema e Audiovisual.

Orientadora: Prof. Dra. Denise Mancebo Zenicola

Niterói, 2022
João Luiz Vieira
AGRADECIMENTOS

Como é bom poder agradecer!

Mais uma etapa da minha vida é conquistada. Um ciclo agora é fechado para que
outro possa se abrir, e isso só foi possível pela minha persistência e determinação!

À Deus! À espiritualidade!

Aos meus pais, Marcia Regina Freitas e Edson Rodrigues Rosestolato, que me
possibilitaram que eu chegasse até aqui. Todas as minhas conquistas também são
suas. Obrigado por me apoiarem em minha jornada artística!

À professora doutora Denise Mancebo Zenicola, pelo trabalho de orientação e por


me auxiliar na floração de minha grande paixão pelo universo da atuação.

À Amanda Gabriel e Leonardo Lacca, por se disponibilizarem a compartilhar os


seus saberes de forma tão gentil e atenciosa.

Ao grande ator Wilson Rabelo e ao professor Eduardo Valente, por me


direcionarem até a Amanda e ao Léo de maneira extremamente solícita.

A todos os professores que até aqui passaram pela minha vida e que contribuíram
para a formação do meu ser artístico, político e social. É apenas a partir da
existência de vocês que o mundo se transforma. Obrigado pela educação
transformadora!

À minha família, minha companheira, meus amigos, meu espírito protetor e a


todos os seres que estão aqui me auxiliando na jornada da vida!

Gratidão!
`

O ator deve trabalhar a vida inteira, cultivar seu espírito, treinar


sistematicamente os seus dons, desenvolver seu caráter; jamais deverá
se despertar e nunca renunciar a este objetivo primordial: amar sua
arte com todas as forças e amá-la sem egoísmo.

(Constantin Stanislavski)
RESUMO

A presente pesquisa consiste em um estudo sobre o processo de preparação de alguns dos atores
e atrizes nos longas-metragens O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019),
ambos do realizador pernambucano Kleber Mendonça Filho. A parte inicial da pesquisa possui
como foco analisar o personagem no roteiro e o personagem no filme, utilizando fundamentos
de teóricos das artes cênicas para refletir sobre a arte da atuação. A partir disso, através de uma
entrevista realizada com os preparadores de elenco Amanda Gabriel e Leonardo Lacca, cumpre-
se o objetivo maior de entender como ocorreu o processo de preparação desse elenco que
interpretou os personagens centrais dessas narrativas.

Palavras-chaves: Atriz. Ator. Personagem. Preparação de elenco. Kleber Mendonça Filho.


ABSTRACT

This monograph aims to study and reflect about the process of casting preparation of some of
the actors and actresses of the feature films O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau
(2019), both of the pernambucano film director Kleber Mendonça Filho. The beginning of the
research has to focus in analysis of the characters on the script and the characters on the film,
taking fundamentals of the performing arts theorists to discuss about the art of acting. After
that, through of an interview realized with the actors prepare Amanda Gabriel and Leonardo
Lacca, the biggest objective was understood how happened the process of the actor’s
preparation that interpret the papers of center characters of theses narratives.

Keywords: Actor. Actress. Character. Cast preparation. Kleber Mendonça Filho.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................1

1. O ROTEIRO COMO EBULIÇÃO DE ALGO


QUE IRÁ SE TORNAR................................................................................................... 4
1.1 - Do texto para a tela: a ponte invisível entre o.................................................7
personagem do roteiro e o personagem do filme
1.1.2 – O Som ao Redor (2012) - João e Bia........................................7
1.1.3 – Aquarius (2016) - Clara..........................................................14
1.1.4 – Bacurau (2019) - Michael e Lunga.........................................21

2. A PONTE INVISÍVEL ENTRE O PERSONAGEM E O ATOR:


UMA CONVERSA SOBRE PREPARAÇÃO DE ELENCO PARA CINEMA...........29
2.1 – Entrevista com Amanda Gabriel e Leonardo Lacca.....................................29

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................51

FILMOGRAFIA..............................................................................................................53

ENTREVISTA CONCEDIDA AO AUTOR..................................................................53


1

INTRODUÇÃO

Em “A ponte invisível entre o personagem e o ator: O cinema de Kleber Mendonça


Filho”, busquei compreender como efetuou-se o processo de preparação dos atores e atrizes em
três dos filmes premiados do diretor pernambucano: Som ao redor (2012), Aquarius (2016) e
Bacurau (2019). Nesse sentido, o trabalho de atuação ganha aqui um importante espaço de
debate, possuindo como o principal pensamento: atuar é viver.
Em uma de minhas primeiras idas ao teatro, assisti à história de uma mulher nordestina
que possuía uma filha deficiente e que precisava, nesse sentido, mudar-se para o Rio de Janeiro
em busca de ajuda. Era um monólogo sensível, profundamente tocante e que me fez chorar rios
de lágrimas. Acabou a peça e o ator foi agradecer a plateia. Mesmo o artista sendo carioca, ele
agradeceu com o sotaque nordestino muito forte de seu personagem e, aos poucos, ele começou
a transitar na linguagem até retornar para o seu eu. Após aquele momento, eu me apaixonei
completamente pela a arte de atuar. Essa é a minha principal motivação da pesquisa, em
acreditar na potência de um ator em dar vida à uma criação para que a sua magia possa tocar
pessoas.
Não obstante, no decorrer de minha formação acadêmica e profissional, me deparei com
um número muito pequeno de artigos e pesquisas acadêmicas acerca do processo de nascimento
e preparação, ou construção, do personagem no intérprete. Esse assunto se torna ainda menos
mencionado se o colocarmos sobre o prisma da arte cinematográfica. No Brasil, ainda se sabe
muito pouco sobre as diversas técnicas que são aplicadas nos atores e atrizes para que se consiga
interligar a ponte invisível existente entre o personagem e eles. Assim, se existem poucas
pesquisas sobre preparação e direção de atores em cursos de graduação em cinema pelo Brasil,
entende-se que essa deficiência talvez possa encontrar a sua raiz dentro da própria matriz
curricular dos cursos. Até o momento da conclusão desta pesquisa, algumas universidades
como a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF) e Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) não possuem sequer a disciplina de
direção de atores em sua grade curricular obrigatória e isso é algo bem preocupante. Aliado a
isto, há também a escassez de teóricos das artes cênicas que são apresentados para os alunos no
decorrer da disciplina de preparação de atores no próprio curso de cinema da UFF. O estímulo
é pequeno e o debate menor ainda.
Além disso, especialmente em produções pequenas, não é sempre que os esforços são
direcionados para que seja realizado a contratação de um preparador ou preparadora de elenco.
2

Assim, muitos dos atores e atrizes são simplesmente “jogados” dentro dos sets pelos diretores
e diretoras sem antes ter compreendido por completo a natureza de sua personagem. São tirados
deles o direito da pré-produção, privilégio este que toda a equipe técnica consegue usufruir
plenamente. Ao meu ver, assim como um longa-metragem depende de um orçamento para ser
realizado, o sucesso de um filme também depende da performance do ator ou atriz dentro da
realidade fílmica por ele representado.
Nesse contexto, durante a minha formação, sempre me perguntei: como os atores e atrizes
que foram responsáveis por interpretar os personagens de Kleber Mendonça Filho conseguiram
atingir àqueles determinados resultados de atuação? Quais foram as técnicas e os métodos
aplicados por parte dos preparadores de elenco e pelo próprio Kleber? A partir de qual momento
intérprete e personagem viraram um só e como? Espero que essas respostas possam ajudar o
leitor a entender o universo da atuação e os seus múltiplos desdobramentos dentro da arte
cinematográfica.
Para respaldar a análise que objetivei realizar, iniciei a minha pesquisa através de um
estudo aprofundado em cima de alguns dos personagens de cada um dos três filmes aqui
recortados. Primeiramente, uma análise focada no personagem do roteiro foi feita como forma
de entender a sua trajetória, os seus desejos, emoções, sentimentos e todos os seus
atravessamentos interiores que são, involuntariamente, expressos em suas ações. Para isso,
consultei o roteiro desses filmes disponibilizados no livro “Três Roteiros: O Som ao Redor,
Aquarius, Bacurau”, escrito pelo próprio Kleber Mendonça Filho. Além do livro conter o
roteiro de ambas as obras, ele ainda traz ressalvas sobre os filmes, tendo sido um importante
motor de saber para esta pesquisa. Ainda nesse mesmo capítulo, aproveitei as questões
levantadas sobre os personagens para refletir um pouco sobre a arte da atuação. Para isso,
utilizei como base alguns estudos de teóricos das artes cênicas como Constantin Stanislavski,
Peter Brook, Eugenio Barba, Bertolt Brecht e Jerzy Grotowski. Pretendo lançar mão também
de meus próprios conhecimentos que pude adquirir com a prática em tempos em que venho me
profissionalizando em cinema e nos estudos do trabalho da atriz e do ator. 1
Em O Som ao Redor (2012), os personagens analisados foram João e Bia, estes
interpretados por Gustavo Jahn e Maeve Jinkings. Em Aquarius (2016), o estudo foi
direcionado à Clara, esta interpretada por Sônia Braga. Já em Bacurau (2019), os personagens

1Em 2019, escrevi e dirigi o meu primeiro curta-metragem profissional com o auxílio do edital do Centro
Técnico Audiovisual (CTAv), na qual realizei um intenso trabalho de preparação com os atores e atrizes. O filme
está em processo de distribuição no presente ano de 2022 com o nome de “Espectro”. Participei também de
um curso de imersão do Método Fátima Toledo, na qual compreendi e vivenciei as técnicas da preparadora de
tanto sucesso que são baseadas na bioenergética, uma psicoterapia corporal.
3

examinados foram Lunga e Michael, estes interpretados respectivamente por Silvero Pereira e
Udo Kier. A vontade era de pesquisar todos os personagens, mas como o projeto é uma
monografia, recortes fazem-se necessários.
Nesse contexto, essa primeira parte da pesquisa preparou o terreno para que possa ser
desenvolvida a segunda parte, esta focada no trabalho do ator e atriz que interpretaram os papéis
dos personagens analisados. Neste segundo capítulo, o intuito é compreender como esses
artistas chegaram nesses personagens e de que forma Amanda Gabriel e Leonardo Lacca, em
conjunto com o realizador Kleber Mendonça Filho, os auxiliaram nesse processo. Para então,
foi realizada uma entrevista com ambos os profissionais, aonde eles compartilharam sobre os
seus processos preparação, os exercícios realizados, as técnicas aplicadas e os resultados
obtidos, além de trazerem as suas próprias dificuldades e aprendizados em seus trabalhos. A
troca possibilitou o entendimento de que, dentro do processo de preparação, o ator deve estar
sempre livre e presente para que a sua interpretação consiga ser realizada com vida e
visceralidade. Para tal, o preparador ou a preparadora deve respeitar os próprios processos
interiores de cada ator ou atriz, e a sua função caminha muito mais pelo âmbito da escuta do
que pela imposição de ideias ou técnicas.
4

1. O ROTEIRO COMO EBULIÇÃO DE ALGO QUE IRÁ SE TORNAR

A maioria dos personagens são criados contendo dentro de si um interior complexo e


conflituoso assim como nós, seres humanos, somos em vida. Ao estudar alguns dos manuais de
roteiro para cinema, percebe-se que a maioria dos autores sempre defendem que todo o
protagonista precisa ser empático, ativo e possuir um objeto de desejo. Dentro dessa premissa,
ele deve dispor de um arranjo de dois aspectos principais: uma caracterização e o verdadeiro
personagem, ou o seu exterior e interior. Segundo Robert McKee 2, em seu livro “Story”,
caracterização é:

Caracterização é a soma de todas as qualidades observáveis de um ser humano, tudo


o que pode ser descoberto através de um escrutínio cuidadoso: idade e QI; sexo e
sexualidade; opção de casa, carro e vestimenta; educação e trabalho; personalidade e
nervosismos; valores e atitudes – todos os aspectos da humanidade que podem ser
conhecidos quando tomamos notas sobre alguém todo dia (MCKEE, 2006, p. 105).

Nesse sentido, já o verdadeiro personagem, é um outro aspecto deste que se esconde atrás
da máscara da caracterização e que se revela apenas em momentos pontuais. No interior do seu
personagem, quem realmente ele é? Por trás de suas facetas sociais, como verdadeiramente ele
se comporta? A chave para entender essas respostas pode se encontrar dentro do próprio desejo
do sujeito. Esse conhecimento acerca do personagem é obtido na maioria dos manuais de
roteiro, só que sobre a óptica de diferentes classificações nominais. Entretanto, a realidade é
que o personagem não precisa ter propriamente um objeto de desejo, ou uma necessidade
dramática, responsável por guiar toda a estrutura de um filme. Ele pode estar passando por um
momento de turbulência emocional que o impeça de desejar, e isso é algo que acontece também
na própria vida pois, assim como escreveu Stanislavski3 :

Alguém que esteja passando por um drama emocional pungente é incapaz de referir-
se a ele coerentemente, pois em determinado momento as lágrimas o sufocam, a voz
falha, a tensão dos sentimentos confunde os pensamentos, o aspecto miserável

2 Robert McKee, nascido em 20 de janeiro de 1941 na cidade norte-americana de Detroit, é um professor de


escrita criativa. Estudou na Universidade de Michigan, onde concluiu o Bacharelado em Literatura Inglesa. O
seu livro “Story: Substance, Structure, Style and The Principles of Screenwritining”, publicado em 1997, tornou-
se uma obra de referência sobre a escrita.
3 Constantin Stanislavski, nascido em Moscou em 1863, foi importante ator, diretor, professor e pesquisador do

teatro, conhecido por ter sido pioneiro em sistematizar o trabalho da atriz e do ator. Em 1897 funda o Teatro
de Arte de Moscou, no qual inicia suas pesquisas que deram origem ao seu sistema.
5

desorienta aqueles que o veem e os impede de compreender a causa verdadeira do seu


sofrimento (STANISLAVSKI, 2008, p. 115).

Nesse sentido, ao pensar em conflito, grande parte das pessoas assimilam a palavra
imediatamente à porradaria e bomba. Poucas são as que pensam no conflito interno que,
curiosamente, torna-se a motivação principal dos conflitos externos.
Uma vez, um dos meus amigos roteiristas indagou uma pergunta que me deixou
profundamente reflexivo: “quem é Robert Mckee para ditar regras sobre como escrever um
filme sendo que nem ele mesmo chegou a escrever um? Quer dizer que se eu não seguir as suas
regras o meu filme vai ser um fracasso? Claro que não!”. Seguramente, o meu amigo estava
certo. Reduzir o cinema à uma fórmula é a mesma coisa que limitá-lo, algo que não se encaixa
dentro de uma arte que possui como essência a criatividade e a liberdade.
Mesmo assim, fica difícil de negar que é sempre interessante quando identificamos que
o conflito do personagem é forte e impactante. Indubitavelmente, na vida, todos nós possuímos
conflitos que nos desestabilizam e nos fazem agir de maneira por hora contraditória. Esse deve
ser um dos princípios básicos da existência humana que, possuindo a liberdade como uma
condição inerente, pode optar por tomar decisões capazes de gerar desavenças entre os
envolvidos.
Dentre esses conceitos, Newton Cannito e Leandro Saraiva, importantes escritores
brasileiros da contemporaneidade, relatam: “se um roteiro fosse uma construção, as cenas
seriam os tijolos” (CANNITO; SARAIVA, 2009, p.169). Em cada cena, há um embate do
personagem, interno ou interpessoal, que é resultado, ou não, do drama central. Esse conflito é
responsável por gerar mudanças nas engrenagens da cena, ou seja, o ponto de partida de uma
cena nunca deve ser o mesmo do ponto de chegada. Até mesmo quando o personagem diz um
simples “sim”, “não”, ou “talvez”, isso já é o suficiente para alterar todo o seu estado civil, ou
pelo menos as suas sensações momentâneas. Mesmo que seja mínimo esse movimento, essa
curva da cena é o que é responsável por jogar a ação dramática para frente. Esse é um conceito
narrativo que é pensado pelos roteiristas para estar no texto e, consequentemente, ser aplicado
e reproduzido no filme.
Para isso, os preparadores de elenco precisam estar sempre atentos nessas perspectivas
da cena ao receberem um roteiro. Logo, precisam conhecer sobre narrativa e, o mais importante,
sobre a arte da vida. Assim, o núcleo cênico passa a ser trabalhado em cima desse conflito, que
gera mudanças no personagem e em seu entorno. Essa é uma concepção importante para gerar
profundidade e pessoalidade no personagem presente na tela, além de também não desperdiçar
6

toda a operação estrutural que outrora fora pensada pelo escritor. Stanislavski já dizia que “não
pode haver atuação, movimento, gesto, pensamento, fala, palavra, sentimento e etc, sem a sua
devida perspectiva. A mais simples entrada ou saída para levar a cabo uma cena tem de ter uma
perspectiva e um propósito final” (STANISLAVSKI, 2008, p.239).
Assim são os personagens de Kleber Mendonça Filho, pensados para serem profundos e
com engrenagens interiores que refletem em seu exterior. Entretanto, Kleber destaca que
precisamos entender também que o personagem presente no roteiro nem sempre é apresentado
no filme da mesma forma, sendo ele apenas um instrumento de ebulição, ou um ponto de
partida, para o que emerge no filme. A partir de seu livro, ele escreve:

Os dois filmes que existem para o roteiro – o filme escrito e o filme feito – dividem
as mesmas liberdades, da tentativa de organizar e da necessidade de descontruir e
improvisar. Tudo deve ser permitido: ignorar o texto ou tê-lo como carga magna, o
que for melhor dependendo do momento. Por vezes, são os atores que defendem o
roteiro. Em outras, são eles que pedem para abandoná-lo, e eu posso concordar
(FILHO, 2020, p. 10).

Fica claro, portanto, que é apenas após o contato do ator ou atriz com o universo do seu
personagem que este último recebe o seu verdadeiro delineamento. Essas nuances finais
geralmente são definidas de acordo com a forma como o personagem afeta o ator em vida, ou
o ator pessoa. Assim, após um entendimento acerca da história e do sujeito que irá interpretá-
la, o ator pode trazer elementos de sua vida na busca da composição do seu personagem. Esse
modelo de encenação contemporâneo baseado na liberdade de interpretação, de acordo com o
trecho acima, é a forma adotada por Kleber para conduzir a sua narrativa.
Nesse contexto, antes mesmo do intérprete ser livre para viver o seu personagem,
primeiro ele precisa entender como este pensa e age dentro de seu próprio universo da história
e quais são as suas engrenagens interiores que o movem durante a sua trajetória. Para isso, este
primeiro capítulo será reservado para entender essas questões, além de também abordar
brevemente o universo narrativo de cada filme, iniciando sempre cada subcapítulo com a
sinopse do filme investigado.
Com base na análise dos próprios roteiros contidos no livro “Três Roteiros”, do autor
Kleber Mendonça Filho, busquei entender a maneira como alguns dos personagens do
realizador se apresentavam dentro do texto, levando sempre em consideração o que acontece
na história. À posteriori, assisti aos filmes e observei atentamente a forma como aqueles
personagens foram levados à tela pelos atores e atrizes, estando sempre atento nas performances
7

e nas caracterizações. Assim, aproveitei o debate sobre atuação para refletir um pouco sobre a
arte de atuar e as suas múltiplas técnicas, utilizando como base os meus estudos sobre alguns
teóricos das artes cênicas.
As obras analisadas foram O Som ao redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019),
ambas escritas e dirigidas por Kleber Mendonça Filho e, a última, em parceria com o cineasta
Juliano Dornelles 4. No primeiro, o foco é nos personagens João e Bia. No segundo, na
protagonista Clara. No terceiro, em Michael e Lunga. Os três filmes possuíram a preparação de
elenco realizada por Amanda Gabriel e Leonardo Lacca, que foram os responsáveis por
interligar a ponte invisível entre os personagens contidos no texto na vida do ou da intérprete,
processo este que será melhor esclarecido apenas no segundo capítulo da pesquisa.

1.1 – Do texto para a tela: a ponte invisível entre o personagem do roteiro e o personagem
do filme

1.1.2 – O Som ao Redor (2012) – João e Bia

A vida dos residentes de uma rua de classe média do Recife toma um rumo inesperado
quando uma empresa de segurança particular é contratada para trazer paz entre os moradores.
Para alguns deles, a presença de guardas cria mais tensão do que alívio. A partir dessa sinopse,
Kleber Mendonça Filho construiu um instigante filme que fala sobre aristocracia e,
consequentemente, exploração. Em suas palavras:

O Som ao Redor (2012) traz duas formas de violência. A primeira é a do aspecto


cotidiano que Recife partilha com as outras grandes cidades do Brasil, ou seja, um
traço comum de delinquência que acomete aos centros urbanos na esfera dos roubos
de automóveis, dos assaltos à mão armada, das invasões de domicílio e de outras
violências endêmicas. Essa violência atualiza uma outra violência, que tem como raiz
a formação histórica do Brasil. Na orla marítima do Recife, desenha-se um painel da
vida de seus moradores na área dominada pela família de seu Francisco, que
transforma o bairro da cidade moderna num bolsão na qual valem as regras que
definem o poder patriarcal do senhor de engenho e sua tutela sobre tudo o que se passa
a sua volta (FILHO, 2020, p. 23).

4 Juliano Dornelles de Faria Neves, nascido em Recife em 1980, é um diretor de cinema e roteirista brasileiro.
Alguns de seus trabalhos foram Mens Sana in Corpore Sano (2011) e Bacurau (2019).
8

Essa mesma violência silenciosa e discreta presente no filme – não apenas neste longa-
metragem, mas também nos outros dois – se reverbera nos personagens de formas distintas e
pontuais. Assim o tema da urbanização presente no filme age diretamente sobre eles, criando
diversas situações que atravessam a vida e a trajetória de cada personagem.
Logo nas primeiras cenas do roteiro conhecemos João, um homem branco com os seus
trinta e poucos anos de idade. Há sete anos atrás, João estava afastado de Recife para estudar
na Alemanha, informação esta de sua história pregressa que, certamente, influenciou na
formação pessoal do João que nos deparamos no filme. Neto de Francisco, um aristocrata que
detém mais da metade dos imóveis do bairro, João trabalha como corretor de imóveis à serviço
de seu tio Anco, filho de seu avô. Esse elemento é narrativamente importante, pois contextualiza
o espectador no trabalho de João: ele serve apenas para ser um instrumento de perpetuação dos
privilégios de sua família rica.
É a família aristocrática de Francisco que gere a dominância no bairro e João,
teoricamente, deveria se sentir potente por ser esse homem “importante”. Entretanto, ele odeia
o seu trabalho e se sente esgotado, e esse é o ponto principal para entender o interior do seu
personagem e a maneira como ele se expressa à posteriori no filme. João está em um momento
emocionalmente instável em sua vida, o que o faz agir de maneira melancólica e sem potência.
A sua viagem para a Alemanha revela toda a fuga da realidade que o seu personagem tanto
deseja e a sua saudade de lá indica a sua melancolia em relação ao presente.
Nessa crise de aceitação de seu próprio universo interno, João não suporta mais a sua
família e, então, passa apenas a fingir que se importa nas suas relações interpessoais. Diante
desse peso, João comenta e passa a falar sempre do banal, nunca sobre ele mesmo. Entre as
suas características, as que mais se destacam são a sua impotência e a sua indisposição de lidar
com o mundo ao seu redor.
Nesse contexto, Gustavo Jahn 5 se apropria do texto para dar vida e mais profundidade
ainda para João. Agora, o conceito de caracterização interna e externa que fora abordado no
início do capítulo e que é utilizado pelos roteiristas para criar personagens, aqui, também será
utilizado para ilustrar o personagem que irá imergir de dentro do ator. Para Stanislavski:

Se não usarmos nosso corpo, nossa voz, um modo de falar, de andar, de nos
movermos, se não acharmos uma forma de caracterização que corresponde à imagem,

5Gustavo Jahn, nascido em Florianópolis em 1980, é um ator e diretor de cinema brasileiro. Dirigiu o curta-
metragem Etérnau (2006) e, mais tarde, Triangulum (2009). Seu primeiro trabalho de destaque foi atuando em
O Som ao Redor (2012).
9

nós, provavelmente, não poderemos transmitir a outros o seu espírito interior, vivo.
Sem uma forma externa, nem sua caracterização interior nem o espírito de sua imagem
chegarão ao público. A caracterização externa explica e ilustra e, assim, transmite aos
espectadores o traçado interior do seu papel. (STANISLAVSKI, 2008, p.27).

Utilizando esse pensamento de Stanislavski como um âmago, quando vamos observar


João na tela, conseguimos enxergar plenamente todas as caracterizações internas do seu
personagem reverberadas em suas ações, diálogos e, principalmente, em seu corpo. Como foi
dito anteriormente, João é um personagem melancólico que não se vê encaixado na posição que
está, o que o deixa profundamente insatisfeito e sem forças para lutar. Por isso, o seu
pensamento está sempre em outro tempo e nunca no presente. É como se João estivesse ali pelo
simples motivo de estar e sem nenhuma presença, tornando-o uma marionete na mão da vida e
de sua própria família.
Nesse cenário de indisposições, muito dos diálogos do personagem João que estão
contidos no roteiro não foram reproduzidos na cena por Gustavo Jhan. Essa é uma escolha que
fica fácil de entender após analisarmos o interior do seu personagem: a pessoa que está triste
tende realmente a falar menos, seja por medo ou impotência, pois “cada indivíduo desenvolve
uma caracterização exterior a partir de si mesmo e de outros” (STANISLAVSKI, 2008, p.32).
Assim, a opção de cortar alguns diálogos condiz para o modelamento de todo o amalgama
melancólico interior de João.
Esse processo também se sucedeu no corpo de Gustavo Jahn, uma vez que toda a
insegurança de seu personagem foi reverberada também em seus ombros e em sua caixa
torácica. No filme, é possível notar que os ombros de Gustavo sempre estão levemente curvados
para frente, em um movimento singelo de proteção ao tórax. O indivíduo que possui medo
protege o coração com o corpo, é uma defesa corpórea natural presente na vida como uma forma
de exemplificação de que corpo e mente são uma unidade que não se separam. Assim, os
impulsos provenientes da mente podem se reverberar no corpo de maneira automática, algo que
Stanislavski já teria pensado:

A energia, aquecida pela emoção, carregada de vontade, dirigida pelo intelecto, move-
se com orgulho e confiança, como um embaixador numa missão importante.
Manifesta-se na ação consciente, cheia de sentimento, conteúdo e propósito, que não
pode ser executada de modo desleixado e mecânico, mas deve ser preenchida de
acordo com os seus impulsos espirituais. Fluindo pela rede do nosso sistema muscular,
10

despertando os nossos centros motores interiores ela nos incita à atividade exterior
(STANISLAVSKI, 2088, p. 87).

Logo, o peso da existência de João é exercido sobre os seus ombros e corpo como um
impulso proveniente do interior de seu personagem. Consequentemente, o seu olhar acaba se
voltando para o chão com mais frequência e a unidade corpórea João, como um todo, se fecha
da mesma forma que o seu interior se afrouxa. Nesse contexto, entende-se que o processo de
caracterização física pode acontecer de dentro para fora, em um movimento involuntário de
expressão dos sentimentos. Entretanto, é importante pensar também que, assim que essa forma
corporal é tecida pelo ator, essa caracterização externa também pode se refletir novamente no
interior do personagem, algo parecido com a lei de ação e reação de Isaac Newton. Esse
pensamento serve para o reforço da seguinte reflexão: corpo e mente são uma unidade que
nunca atuam separadamente e que devem estar sempre em sintonia na arte da atuação, conceito
este que também é destacado por Eugenio Barba6:

Existe um aspecto físico do pensamento, uma maneira particular de mover-se, de


mudar de direção, de saltar: o seu “comportamento”. A dilatação não pertence ao
físico, mas ao corpo-mente. O pensamento deve atravessar a matéria tangivelmente,
não apenas manifestar-se no corpo em ação, mas atravessar o obvio, a inércia, o que
surge automaticamente na nossa frente quando imaginamos, refletimos, agimos
(BARBA, 1994, p. 126).

Em paralelo com a narrativa de João, conhecemos também a vida de Bia, uma dona de
casa com seus trinta e poucos anos e que mora no mesmo bairro de João, apesar de nunca cruzar
fisicamente com ele. Em sua vida aparentemente tranquila, ela passa o dia em casa faxinando,
fumando maconha, levando os filhos para o curso de inglês e se masturbando com a máquina
de lavar roupas. Entretanto, toda a sua paz é perturbada por Nico, o cachorro da vizinhança que
fica latindo o dia todo. Nesse contexto, Bia começa a alimentar dentro de si uma profunda raiva
pelo cachorro e ela entende que, para conseguir o tão sonhado silêncio e sossego que almeja,
ela precisa provocá-lo. É uma troca violenta, mas que Bia está completamente disposta a
realizar, o que revela toda a perversidade presente na natureza de sua personagem. Sempre
muito tensa, ansiosa e arrogante, as suas ações para acabar com o latido de Nico vão desde

6Eugenio Barba, nascido em Brindisi em 29 de outubro de 1936, é um autor italiano, pesquisador e diretor de
teatro. Fundador e diretor de Odin Teatret, criador do conceito da Antropologia Teatral, fundador e diretor do
Theatrum Mundi Ensemble e criador da ISTA (International School of Theatre Anthropology).
11

drogar o cachorro até torturar a sua audição com um aparelho sonoro eletromagnético. Assim,
ela opta pelo caminho mais perverso para resolver os seus problemas: a violência.
No ciclo familiar, Bia é igualmente insatisfeita. Sua relação com Ricardo, seu marido, é
conflituosa e pautada pela dificuldade de comunicação. Com os seus filhos, Fernanda e Nelson,
ela não consegue ser afetuosa, pois a sua tensão em relação à vida não a permite. Com sua irmã,
Bethânia, ela já até saiu nos cabelos. A realidade é que Bia se sente intensamente aflita e cercada
de pessoas e animais na qual não possui a menor paciência para conviver e, então, ela sente
raiva, e isto é o que define a sua caracterização interna.
Na busca de atingir essa personagem dentro de si, Maeve Jinkings 7 se apropria de Bia e,
logo em uma das primeiras cenas do filme, já somos apresentados à uma personagem de
olheiras profundas e de face tensa e aflita. Essa aflição também se reverbera em seu corpo,
quando observamos que a sua disposição no espaço acontece sempre de maneira inquieta e
apreensiva. É um corpo que não consegue atingir nunca um estado de relaxamento e, por isso,
ele se enrijece. Isso revela que a constituição física de Maeve, de fato, se expandiu
subjetivamente ao ponto de funcionar como um meio de reverberação de sua mente, que
também nunca consegue relaxar por conta dos latidos contínuos de Nico. Peter Brook 8, um
diretor de teatro e cinema britânico, discorre sobre essa ideia:

Em primeiro lugar, um ator deve trabalhar o seu corpo, para que este se torne aberto,
receptível e unificado em todas as suas respostas. Então, necessita desenvolver suas
emoções para que elas não existam apenas no estado mais bruto – emoções toscas são
a manifestação de um mal ator. Ser um bom ator significa ter desenvolvido dentro de
si próprio a capacidade de sentir, apreciar e expressar um leque de emoções
abrangendo desde as mais brutas às mais refinadas. Finalmente, um ator deve
desenvolver seu conhecimento e, posteriormente, sua compreensão, até atingir o
ponto em que sua mente precisa entrar em jogo, em seu estado de aleta máxima, para
que possa apreciar o significado daquilo que está fazendo. (BROOK, 1995, p.308).

Para viver Bia, Maeve Jinkings teve que sentir na pele as sensações que foram disparadas
em seu corpo pelo sentimento de raiva de sua personagem. Afeto este que fora trazido,

7 Maeve Jinkings Melo Silva, nascida em Brasília no dia 4 de agosto, é uma atriz brasileira que já atuou em
diversas produções, ganhando em Amor, Plástico e Barulho (2012) o prêmio de “melhor atriz” no 47º Festival
de Brasília.
8 Peter Stephen Paul Brook, nascido em 21 de março de 1925 em Turnham Green, é um diretor de teatro e

cinema britânico. Estudou no Magdalen College, na universidade de Oxford. Um dos mais respeitados
profissionais de teatro da atualidade. Brook propõe um teatro de caracterização psicológica dos personagens
que torne visível a “invisível” alma humana.
12

certamente, pela Maeve pessoa, pois “o ser humano é muito mais interessante e talentoso que
o ator” (STANISLAVSKI, 2008, p. 53). Nesse sentido, essa raiva vai sendo alimentada em seu
interior até o momento em que ela atinge a ira, que acontece quando a faxineira que trabalha
em sua residência quebra acidentalmente o aparelho utilizado para torturar o cachorro. Após
este incidente, Bia desconta toda a sua arrogância e raiva na mulher, o que indica que ela não
sabe lidar com os seus sentimentos e, por isso, ela os expressa de maneira autoritária e grosseira.
Uma cena marcante que revela as interferências da atriz no texto é quando Bia solta uma
risada no momento em que os seus filhos praticam violência verbal em uma refeição noturna
da família. Essa é a única cena em que a sua família está reunida para jantar e o riso é uma
rubrica que não está presente no roteiro. Entretanto, essa é uma ação que condiz muito com Bia,
uma vez que a sua personagem de fato enxerga a violência como algo natural e,
consequentemente, ação passível de deboche. Essa foi uma contribuição que, além de manter o
sentido da cena, enriqueceu-a a partir do momento em que fora estabelecido uma dialética entre
os acréscimos da atriz e o respeito ao texto, assunto este que é muito debatido por Peter Brook
no teatro:

Devemos respeitar o texto? Acho que existe uma dupla atitude muito saudável, com
o respeito de um lado e o desrespeito de outro. A dialética entre ambos é o ponto
chave. Quando se fica apenas em um dos lados, perde-se a possibilidade de captar a
verdade. E os melhores espetáculos ocorriam quando todo o elenco estava sensível ao
máximo, fazendo com que a peça se assemelhasse àquelas esculturas de fios de arame
esticados, formando um padrão complexo; quando os fios não estão bem esticados,
não se percebe o padrão (BROOK, 1995, p.132-133).

A partir de que momento o ator consegue propriedade e espaço para poder exceder o
texto? Se partirmos da perspectiva de que atuar é viver, logo, atuar é criar e, consequentemente,
transformar a partir da performance do intérprete. O fato é que o personagem só nasce a partir
do momento em que ele ganha carne e osso, ou seja, a partir das contribuições do ator ou da
atriz. São eles que são os responsáveis por trazerem os elementos de sua vida para o papel.
Entretanto, esses elementos não devem ser unicamente do ator, pois o que é preciso para atuar
são emoções análogas a do personagem, e não emoções pessoais. Aproveitando a reflexão sobre
esse assunto, essa é uma ideia muito debatida por Stanislavski e que, aqui, merece destaque e
ponderação. Conhecido como atuar com perspectiva, esse conceito diz que o ator deve ter duas
linhas paralelas de perspectiva: a perspectiva do papel e a perspectiva do ator, que “está próxima
13

da perspectiva do papel, porque ocorre paralela a ela” (STANISLAVSKI, 2008, p. 238).


Segundo ele:

O ator é rachado em dois pedaços quando está atuando. Vocês se lembram do que
disse Tommaso Salvani sobre isso: o ator vive, chora, ri, em cena, mas enquanto chora
e ri, ele observa as suas próprias lágrimas e alegrias. Essa dupla existência, esse
equilíbrio entre a vida e a atuação é o que faz a arte [...]. Essa divisão não prejudica a
inspiração. Pelo contrário, uma coisa estimula a outra. Além disso, em nossa vida real,
nós levamos uma existência dupla. Isso, entretanto, não nos impede de viver e sentir
emoções fortes (STANISLAVSKI, 2008, p. 237).

É apenas após o momento em que o ator medita intensamente sobre o seu papel, sentindo
que é uma pessoa viva dentro dele, que se abre para ele a perspectiva extensa e convidativa do
seu personagem. Nesse contexto, o ator estuda a trajetória do seu papel para, assim, entender o
propósito final de uma cena, uma sequência ou de um filme. Stanislavski chama esse propósito
final de superobjetivo, que seria identificável apenas após a análise da perspectiva. Toda cena,
ato, ou filme possui uma perspectiva, um objetivo final. Assim, “numa peça, toda a corrente
dos objetivos individuais, menores, todos os pensamentos imaginativos, sentimentos e ações
do ator devem convergir para a execução do superobjetivo da trama” (STANISLAVSKI, 2015,
p. 323). Para o diretor russo, o ator deve atuar desde a primeira cena pensando nesse objetivo
final de unidade para que ele sinta o passo a passo de suas transformações em que ele, ator,
reconhece, mas ela, personagem, não. O autor escreve sobre o resultado desse tipo de
preparação:

Somente estudando uma peça em seu todo e avaliando sua perspectiva geral é que
podemos entrosar corretamente os diferentes planos, dispor num arranjo cheio de
beleza as partes componentes, amoldá-las em formas harmoniosas e bem acabadas em
termos de palavras (STANISLAVSKI, 2008, p. 241).

Nesse sentido, utilizando como exemplo um filme hipotético sobre uma personagem que,
ao final da narrativa, entrará em depressão e irá se matar. Se o ator que irá interpretar esse papel
possuir conhecimento deste superobjetivo, quando ele for interpretar uma cena alegre no início
da história, essa cena será vivida por ele com muito mais intensidade e presença do que o
normal, uma vez que ele, ator, possui o conhecimento de que esse momento é extremamente
valioso e único para a sua personagem. Na medida em que esse papel hipotético for avançando
a personagem, como figura de um filme, não possui nenhuma ideia de perspectiva, pois não
14

sabe o que o futuro lhe reserva. Ao mesmo tempo, o ator que interpreta o papel tem de ter isto
constantemente no espírito, se mantendo sempre em perspectiva. Por outro lado, sabendo disso,
o intérprete consegue também ser mais econômico no sentido de não soltar as rédeas logo na
primeira cena, e sim ir desenvolvendo o seu papel pouco a pouco durante a linha do tempo
narrativa. Por isso é importante possuir a perspectiva do papel e a perspectiva do ator:

A sua própria perspectiva como pessoa que interpreta o papel é necessária para ele
para que possa, a qualquer momento em que estiver em cena, avaliar os seus poderes
interiores de criação e sua capacidade de exprimi-los em termos exteriores [...]. Não
podemos esquecer uma qualidade importantíssima inerente à perspectiva. Ela dá
amplitude, ímpeto, embalo, às nossas experiências interiores e às nossas ações
exteriores, coisas de extremo valor para a nossa realização criadora
(STANISLAVSKI, 2008, p. 246).

Portanto, enquanto mais o ator sentir a sua relação do momento presente com o todo,
maior será a sua coerência e a sua capacidade de atenção na cena. Entretanto, isso deve ser
estudado à priori pelo ator para que, no momento em que ele estiver atuando, esse pensamento
esteja apenas em seu subconsciente, preenchendo as lacunas cênicas de maneira natural e
intuitiva. Essa observação é importante, pois o ator precisa viver a cena no presente, sem se
importar com as técnicas e métodos que aprendeu e que podem te atrapalhar na ação, prendendo
o ator em um outro tempo de vida.

1.1.3 – Aquarius (2016) - Clara

Uma jornalista aposentada defende o seu apartamento, onde viveu a vida toda, do assédio
de uma construtora. O plano é demolir o edifício Aquarius e dar lugar a um grande
empreendimento. Partindo dessa sinopse, Aquarius (2016), o segundo longa-metragem de
Kleber Mendonça Filho, é um filme que retrata além da trajetória de Clara, a única moradora
do edifício, e perpassa por temas como a verticalização acelerada e a especulação imobiliária.
Ismail Xavier 9, professor de cinema que escreveu o prefácio do livro aqui citado de Kleber,
reflete sobre isso:

9 Ismail Xavier, nascido em 9 de junho de 1974, é um teórico no campo de estudos cinematográficos e


professor de cinema brasileiro, considerado um dos mais importantes pesquisadores da sua área. Atualmente,
é professor no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA-USP, com mais de 70 artigos em diferentes
idiomas publicados.
15

Instala-se um vale-tudo em nome da rentabilidade, sem respeito às pessoas e ao


ambiente, para quebrar a resistência corajosa dessa única proprietária que se recusa a
vender seu apartamento em nome de um forte princípio de caráter pessoal. Clara
transforma essa batalha em uma questão de vida ou morte, reagindo com firmeza
diante das investidas da imobiliária bem como as da sua filha, que não concorda com
a sua atitude, e as de seus antigos vizinhos, à espera de que ela ceda. O tema da
violência aqui aparece em função do fenômeno da verticalização nas edificações na
orla marítima do Recife, semelhante a outros casos pelo Brasil afora nas grandes
cidades litorâneas (FILHO, 2020, p.23 apud XAVIER).

Uma outra ponderação importante a ser realizada em Aquarius (2016) é sobre o desfecho
do filme finalizado, que se apresentou de maneira diferente do final escrito no roteiro. Kleber
destaca que existem finais que dão certo, mas que funcionam apenas no texto. Dessa forma, a
montagem de imagem e som, outra vez, termina sendo uma edição de texto poderosa (FILHO,
2020, p.13). Isso tudo é capaz de gerar um ritmo e impacto narrativo que não era esperado por
antes. Assim, os seus filmes ganham a sua própria marca, pois o seu modo de criar é esse:
pautado na liberdade artística sem fortes apegos e egoísmos. Em seu livro, ele escreve:

Em Aquarius, uma decisão curiosa: mantive neste livro o final originalmente escrito,
que não chegou a ser filmado, já que uma outra conclusão foi encontrada no processo
de montagem, suspeita que me rondava desde o começo da produção. Esse desfecho
escrito talvez tenha algum valor de leitura dentro daquela história, um desdobramento
dramático que ainda mantém forte sintonia com o universo humano e emotivo de
Aquarius, meu thriller-melodrama (FILHO, 2020, p.20).

Portanto, no cinema de Kleber Mendonça Filho, de acordo com o autor, o seu produto
final pode se modificar muito em função das diversas variantes existentes na arte
cinematográfica. No caso de Aquarius (2016), a grande transformação aconteceu a partir da
filmagem da última cena presente no filme finalizado, a cena 144, que diz: “filmados em
MACRO10, estilo natureza selvagem, cupins vivos na sala de reunião, carpete, mesa e cadeiras.
Imagens de Horror” (FILHO, 2020, p. 216). Embora essa não seja a última cena do roteiro
escrito, o gosto de Kleber por filmes de terror e a sua grande habilidade que possui em
transformar um texto em uma imagem alucinante, na hora da montagem, acabaram por resultar

10Uma lente macro é excelente para a filmagem de planos detalhes, permitindo que a imagem amplie
praticamente qualquer coisa. É uma ótima forma de explorar os mundos em miniatura, podendo transformar,
metaforicamente, um inseto em um dinossauro.
16

em um outro caminho narrativo que não era esperado por antes. No que diz respeito ao som,
uma trilha sonora é adicionada e a “cereja do bolo” definitivamente colocada. Isso indica o
poder da imagem e do som em alterar o texto e o cineasta, assim sendo, precisa estar aberto à
essas interferências e modificações da pós-produção.
Dentro desse universo fílmico, conhecemos a personagem principal, Clara, uma viúva de
sessenta e cinco anos que vive a vida com muita coragem e sem medo das consequências.
Jornalista na área de música, Clara estudou por alguns anos fora do país e, durante o tempo
cronológico da narrativa, está escrevendo um livro sobre cenas musicais em cidades periféricas
e portuárias. Sobrevivente de um câncer que lhe fez retirar uma de suas mamas em uma
mastectomia essa, sem dúvidas, é a sua principal cicatriz, em todos os sentidos. Esse evento de
sua história pregressa modelou a Clara que conhecemos no tempo fílmico: uma mulher forte e
extremamente combatente, estando sempre disposta a fazer de tudo para alcançar os seus
objetivos.
Clara vive uma verdadeira guerra com Geraldo, Diego e a “Pinto Engenharia”, que
comprou todos os apartamentos do edifício Aquarius para construir um hotel de luxo no local.
O apartamento de Clara é o único que falta para ser vendido e eles passam, então, a apelar de
diversas maneiras para fazer com que essa mulher venda a sua residência. Entretanto, Clara é
firme e afrontosa e, mesmo diante das ardilezas de Diego para perturbar a sua paz, ela se
mantém tranquila e serena em meio ao caos, e ela é muito boa nisso.
O motivo de Clara não querer vender o seu apartamento vai além da sua paixão pelo
espaço físico de sua residência. O que realmente a prende no edifício é o carinho e a memória
afetiva que ela possui do local: por ser o mesmo lugar que criou os seus filhos e que viveu
grandes momentos ao lado de Adalberto, seu marido, Clara não quer se desfazer dessas
lembranças. Eliminar desses momentos seria, para ela, a mesma coisa que morrer, o que revela
uma grande característica interna de sua personagem, que é o seu grande afeto por coisas
imateriais da vida.
Na família, é muito próxima de seu irmão, Antônio, e de seu sobrinho, Tomás. Apesar
de possuir três filhos, Martin, Ana Paula e Rodrigo, eles não são muito presentes e raramente a
visitam, o que faz Clara sofrer pela ausência dos filhos. Eles ainda não a apoiam de continuar
morando no edifício, o que a deixa ainda mais desapontada e se sentindo uma louca nessa
solitária jornada de resistência. Assim sendo, em vez de possuir uma família unida e
romantizada para lhe proteger, o principal símbolo de proteção de Clara é Roberval, um salva-
vidas da praia de boa viagem que faz toda uma operação de guerra para que Clara possa dar o
seu mergulho diário na praia. Segundo Ismail Xavier: ao longo do roteiro, ele (Roberval) terá
17

esse papel de proteção especial em relação à “dona Clara” a quem ele julga temerária, com
razão (FILHO, 2020, p. 34 apud XAVIER). Mergulhar nas águas salgadas de um lugar
conhecido internacionalmente pelos seus violentos ataques de tubarões revela uma outra
característica desta personagem: ela está disposta a arriscar até mesmo a sua própria vida em
nome de seus desejos. Por isso ela age sempre com firmeza contra as investidas da construtora
para preservar a sua vontade de continuar morando no edifício Aquarius: internamente, ela é
uma mulher franca e leal com os seus sentimentos.
No decorrer da narrativa, Clara vai ficando desestabilizada com os ataques de Diego,
chegando até a delirar e a presenciar um episódio de paralisia de sono. Após muito tempo
resistindo para não contra atacar, Clara descobre uma papelada passível de incriminar a
construtora, além de se deparar com um dos apartamentos do edifício Aquarius cheio de cupins
colocados intencionalmente por Diego. Ao final, toda a sua passividade se transforma na grande
cena final do filme repleta de raiva, ódio e horror.
Para dar vida à essa personagem complexa e rodeada de conflitos, a atriz Sônia Braga 11
foi a grande responsável por materializar Clara em sua pele. De maneira parecida com O Som
ao Redor (2012), após estudar a personagem Clara no roteiro de Aquarius (2016) e,
posteriormente, analisar a performance da atriz no filme finalizado, percebe-se que muito dos
diálogos presentes no filme também foram cortados ou não reproduzidos por Sônia. Esse
elemento, como dito anteriormente, além de possuir a sua raiz na liberdade em que Kleber
Mendonça Filho costuma a oferecer para os seus atores, também possui grande relação com o
domínio que Sônia desenvolveu do subtexto de sua personagem, conceito este que foi muito
estudado por Stanislavski. Segundo o autor, subtexto:

É a expressão manifesta intimamente sentida de um ser humano em um papel, que


flui ininterruptamente sob as palavras do texto, dando-lhes vida e uma base para que
existam. O subtexto é uma teia de incontáveis, variados padrões interiores, dentro de
uma peça e um papel, tecida com “ses mágicos”, com “circunstâncias dadas”, com
toda sorte de imaginações, movimentos interiores, objetos de atenção, verdades
maiores e menores, a crença nelas, adaptações, ajustes e outros elementos
semelhantes. É o subtexto que nos faz dizer as palavras que dizemos numa peça
(STANISLAVSKI, 2008, p. 164).

11Sônia Maria Campos Braga (Maringá, 8 de junho de 1950) é uma atriz, cantora, apresentadora e produtora
brasileira, naturalizada estadunidense. Foi indicada ao Golden Globe, BAFTA e Emmy.
18

Entende-se, portanto, que o subtexto, ou a ideia que está por trás, é a motivação interior
do dizer de um personagem. Embora existam diferentes variações nominais para esse conceito,
o que importa é: essa ideia que está por trás dos diálogos é a verdadeira responsável por guiar
o ator ou atriz no discurso. Assim, ao contrário do intérprete decorar exatamente a fala que está
no roteiro, ele pode entender o sentido essencial do texto para, então, reproduzi-lo da sua
maneira. Stanislavski escreve sobre os resultados de repetir automaticamente as falas:

A consequência é que os atores adquirem o hábito da fala mecânica em cena, a


enunciação impensada, de papagaio, das falas decoradas sem nenhuma consideração
pela sua essência interior (STANISLAVSKI, 2008, p. 161).

Sônia Braga, ao não seguir à risca os diálogos contidos no roteiro, mas trilhando a ideia
principal da fala de cada cena, opta pelo domínio do subtexto para reproduzir o seu discurso
com maior veracidade e naturalidade. Isso não quer dizer que a atriz não reproduziu os diálogos
contidos no roteiro, mas que ela os adaptou de acordo com a sua visão artística, política, ética,
social, sempre pensando no interior de sua personagem na qual ela, anteriormente, estudou e
conheceu muito bem. Nesse sentido, em relação à palavra, o intérprete precisa assimilar
significado para ela, com todas os seus conteúdos interiores, para que a mesma se torne
significativa. Os sentimentos, pensamentos e imaginação precisam dar vida a ela. Para
Stanislavski:
Uma palavra pode despertar no ator todos os cinco sentidos. Basta a gente se lembrar
do título de uma música, do nome de um pintor, de um prato, de perfumes prediletos
e assim por diante, para imediatamente ressuscitar as imagens visuais e auditivas, os
sabores, odores ou as sensações táteis que a palavra sugere (STANISLAVSKI, 2008,
p. 165).

Eugenio Barba, na mesma linha, também reflete sobre esse assunto, alegando que o
significado nunca deve ser dissociado da ação, ou da palavra, uma vez que falar também é agir:

Um ator, por exemplo, cumpre determinada ação que é resultado de uma improvisação
ou de uma interpretação pessoal do personagem. É natural que dê à ação um valor
bem preciso, que associe a ela determinadas imagens, intenções e objetivos. Mas se o
significado que o ator deu a ação tornar-se impróprio quando esta é introduzida no
contexto, ele pensará que deve abandoná-la e esquecê-la. Acredita que o matrimônio
entre a ação e significado associado a esta seja insolúvel (BARBA, 1994, p. 127).
19

O que se pode concluir com esse pensamento é que nunca se deve usar na interpretação
uma palavra sem alma ou sem sentimento. Ela não pode se separar das ideias e da ação, pois
precisam andar juntas e dialogando entre si. Para Stanislavski, isto indica que a palavra falada,
o texto de uma peça, não vale por si mesma, porém adquire valor pelo conteúdo do subtexto e
daquilo que ele contém (STANISLAVSKI, 2008, p.165).
Para reproduzir as palavras com propriedade e naturalidade, por exemplo, como fez Sônia
Braga ao dar vida à Clara, um outro caminho é através das circunstâncias imaginárias, conceito
este desenvolvido por Stanislavski e que pode auxiliar o ator no domínio das ideias que estão
por trás. A fim de esclarecer como funciona essa ideia, ele escreve:

Quando consideramos algum fenômeno, quando visualizamos para nós mesmos


algum objeto, algum acontecimento, ou evocamos mentalmente experiências da vida
real ou imaginária, não só reagimos a eles com nossos sentimentos, mas também os
passamos em revista diante da nossa visão interior (STANISLAVSKI, 2008, p. 176).

Em outras palavras, circunstâncias imaginárias é justamente a criação de uma memória


visual para facilitar o ator a dar vida ao seu discurso. Nela, antes da intérprete conhecer as
palavras, primeiro ela precisa fazer delas uma imagem mental, formando para si mesma as
imagens que a sua imaginação sugere. Quando a atriz está preenchida disto, o roteiro torna-se
um simples guia, e não uma carta magna endossada. Paulo Chustov, um ator russo que fez parte
dos experimentos de Stanislavski, declara como se sentiu após dar vida à uma personagem
entendendo, de fato, a função do subtexto e das circunstâncias imaginárias descritas pelo
mestre de artes cênicas:

Foi aí que eu pude apreciar devidamente aquelas palavras que me haviam impingido.
Passei a estima-las como se fossem minhas. Apossei-me delas com gosto, rolei-as
embaixo da língua, pesei cada som, deliciei-me com todas as suas entonações. Agora,
eu já não precisava delas pela despejar um relatório mecânico, para servirem de
veículo à minha voz ou à minha técnica, mas apenas como propósito atuante de
obrigar meu ouvinte a importância do que eu estava dizendo. Assim que as palavras
se tornaram minhas, fiquei inteiramente à vontade no palco. Plantei uma palavra
depois da outra na consciência do meu objeto e com elas fui transmitindo uma
conotação esclarecedora após outra (STANISLAVSKI, 2008, p. 174).

A partir desse depoimento de Paulo Chustov, os efeitos práticos da utilização dessas


ferramentas ficam mais fáceis de serem visualizados. Isso não quer dizer que Sônia Braga optou
20

por esses caminhos para alcançar a fluidez e a naturalidade da palavra em que ela conseguiu
atingir interpretando Clara, isso pode ter acontecido ou não. Contudo, o que fica claro com isso
é que, no cinema de Kleber Mendonça Filho, os diálogos nunca são decorados.
Em Aquarius (2016), percebe-se também que Sônia Braga, em sua performance, possui
um extremo conhecimento sobre as pausas, reproduzindo o seu discurso sempre de uma
maneira que forneça forma ao seu conteúdo. Como é possível observar no filme, ela é uma atriz
com bastante domínio de palavração, entonação e escuta, o que faz com que o sentido de sua
fala seja transmitido para ator que está contracenando de uma forma mais direta e clara. Isso é
algo que a própria atriz trouxe consigo mesma, é do seu processo. Porém, ao analisar as
engrenagens interiores de sua personagem, entende-se que essa é uma atitude muito condizente
com Clara, uma vez que ela é essa personagem que possui intensa lucidez e clareza em suas
ações. Isso é algo que também foi estudado muito por Stanislavski e esclarecido em seu sistema.
Segundo ele, existem dois tipos de pausas: a pausa lógica e a pausa psicológica:

As pausas lógicas unem as palavras em grupo (ou orações) e separam esses grupos
um dos outros. Essa divisão em orações e a leitura de um texto de acordo com ela, nos
obrigam a analisar as frases e chegar à sua essência. Se não fizermos isto, não
poderemos saber como dizê-las. Esse hábito de falar por partes tornará a linguagem
mais graciosa quanto à forma, inteligível e profunda quanto ao conteúdo, pois os
obrigará a sempre concentrar a mente no sentido essencial do que estiverem dizendo
quando em cena. Enquanto não conseguirem isto, não adianta tentar a execução de
uma das principais funções das palavras, que é transmitir o subtexto
(STANISLAVSKI, 2008, p. 180-181).

É a pausa lógica que determina o sentido do discurso. Para isso, é necessário que o ator
faça um estudo cuidadoso das regras da linguagem, buscando entender corretamente as linhas
fonéticas da fala. Por exemplo, “o símbolo fonético de uma interrogação requer uma resposta;
o ponto de exclamação pede compaixão, aprovação ou protesto; dois-pontos pedem uma
consideração atenta daquilo que lhes segue; e assim por diante” (STANISLAVSKI, 2008, p.
184). Um outro exemplo é quando um intérprete eleva a linha fonética antes de uma vírgula
para garantir, então, que o seu ouvinte espere pacientemente a continuação da comunicação. O
fato é que as pausas dão ao ator e ao público tempo para experimentar plenamente as sensações
causadas pela palavra, oferecendo para cena mais vida ainda. Nessa mesma linha, há também
as pausas psicológicas, que são:
21

Enquanto a pausa lógica modela mecanicamente as medidas, frases inteiras de um


texto, contribuindo assim para que elas se tornem compreensíveis, a pausa psicológica
dá vida aos pensamentos, frases e orações. Ajuda a transmitir o conteúdo subtextual
das palavras. Se a linguagem sem a pausa é inteligível, sem a pausa psicológica não
tem vida. A pausa lógica é passiva, formal, inerte; a psicológica, inevitavelmente,
transborda atividade e riquíssimo conteúdo interior. A pausa lógica serve ao nosso
cérebro, a psicológica aos nossos sentimentos (STANISLAVSKI, 2008, p.192-193).

Portanto, enquanto a pausa lógica está mais associada à gramática, a pausa psicológica
está mais correlacionada com a emoção do ator no momento cênico. Nela, há um silêncio
eloquente e as palavras são substituídas pelo olhar, a expressão facial e os movimentos singelos
carregados de insinuação. Todos esses elementos dão corpo às palavras. Por exemplo, após
alguma conjunção verbal, é impossível realizar pausas lógicas. Porém, a pausa psicológica não
hesita em romper essa regra e introduzir uma parada ilegal (STANISLAVSKI, 2008, p. 194).
O autor reflete que ela, ainda, consegue substituir a pausa lógica sem destruí-la:

Para esta última, reserva-se um curtíssimo período de tempo, mais ou menos definido.
Se esse período é aumentado, até mesmo a mais lógica das pausas tem de ser logo
transformada numa pausa psicológica ativa, cuja extensão é indeterminada. Esta pausa
não se preocupa com o tempo. Dura tanto quanto for preciso para cumprir os objetivos
de uma ação ou outra (STANISLAVSKI, 2008, p.194).

Qual é o objetivo maior com esses recursos? É de expor o subtexto de um papel por meio
das palavras. Para Stanislavski:

O ouvinte não é afetado apenas pelos pensamentos, impressões, imagens que ligam
às palavras, as inflexões, os silêncios, que preenchem tudo o que as palavras deixaram
por exprimir. Por si mesmas, as entonações e as pausas têm o poder de causar um forte
efeito emocional no ouvinte (STANISLAVSKI, 2008, p. 197).

1.1.4 – Bacurau (2019) – Michael e Lunga

Num futuro recente, Bacurau, um povoado do sertão de Pernambuco, some


misteriosamente do mapa. Quando uma série de assassinatos inexplicáveis começam a
acontecer, os moradores da cidade tentam reagir, mas como se defender de um inimigo
desconhecido e implacável? A partir dessa sinopse apocalíptica, Kleber Mendonça Filho e
22

Juliano Dornelles constroem um filme que toca em temas como o imperialismo estadunidense
e as explorações que a sociedade brasileira sofre desde 22 de abril de 1500. Em suas palavras:

Curiosamente, muito foi escrito e dito sobre a visão futurista do filme para o Brasil.
De fato, ela existe, está lá, mas eu e Juliano construímos Bacurau em cima de erros,
agressões e violências históricas que têm mascarado a sociedade brasileira e também
o mundo. Se existia um engenho de cana-de-açúcar e suas hierarquias sociais e raciais
escondido nas ruas urbanas em O Som ao Redor, talvez exista uma versão
microscópica das guerras do Vietnã e Canudos em Bacurau (FILHO, 2020, p.18).

O realizador destaca o poder político de sua obra, algo que se encontra muito
presente nas entrelinhas de seus filmes. Assim sendo, Michael e sua tropa foram batizados de
“bandoleros shocks” que, segundo a mídia, são amantes do tiro que passaram a ver em países
distantes oportunidades de usar livre e apaixonadamente suas armas de fogo (FILHO, 2020, p.
223). Esses bandoleros estrangeiros passam a possuir como alvo o pequeno vilarejo de Bacurau
para praticar o tiro e dominar o povo por meio da violência algo que, involuntariamente, é
político por si só.
Entre as estratégias narrativas adotadas em Bacurau (2019), a utilização da digressão
audiovisual foi de extrema importância para aumentar o impacto da chegada dos bandoleros na
cidade, elemento este que foi introduzido de forma tão precisa no filme que aqui merece ser
destacado. Newton Cannito12 e Leandro Saraiva13 no livro “Manual de Roteiro, ou Manuel, o
primo pobre dos manuais de cinema e tv” destacam que a digressão é um recurso utilizado pelo
narrador para afastar a atenção do espectador sobre alguma ação da história principal
(CANNITO; SARAIVA, 2009, p.82). Dessa forma, o roteiro pode começar com um tema
secundário pouco importante para a trama, ou refletir sobre um assunto que foge da narrativa
principal e, quando a estória já se encontrar em um determinado ponto de envolvimento, a trama
central pode aparecer de maneira inesperada e com muito mais força. Em suas palavras:

Outra forma de intervenção do narrador é a digressão, que funciona dentro do drama


quando pode ser entendida pelo espectador como um “comentário”. Assim como um
narrador de um romance pode abandonar sua história – sobre, por exemplo, uma

12 Newton Cannito é um cineasta, roteirista e escritor brasileiro. Doutor em Cinema e TV pela Universidade de
São Paulo, foi um dos criadores e roteirista-chefe do seriado 9mm: São Paulo (2008), exibido pela Fox Brasil. A
série recebeu o prêmio da APCA de melhor programa de teledramaturgia da TV brasileira.
13 Leandro Saraiva é um roteirista e diretor, além de crítico de cinema. Trabalha atualmente na ACERE FC como

coordenador de dramaturgia.
23

família que planta uvas na serra gaúcha – para tecer comentários a respeito do modo
como o cultivo da uva foi levado de continente a continente, um narrador
cinematográfico pode fazer uma digressão audiovisual. (CANNITO, SARAIVA,
2009, p. 82).

Assim, Bacurau (2019) começa com o tema da “guerra da água” permeando a ação inicial
dos personagens: há a transposição do rio São Francisco, a citação das mortes realizadas por
Lunga para conseguir água para Bacurau e a chegada do caminhão pipa de Erivaldo furado de
tiros. A forma como a narrativa guia o espectador no começo faz com que o mesmo realmente
acredite que o filme irá se tratar sobre isso. É somente após a chegada dos motoqueiros na base
dos bandoleros armados que nós entendemos realmente sobre o que se trata o filme.
Consequentemente, através desse recurso narrativo, a apresentação de Michael e de sua tropa
de maneira tardia e “escondida” ganha muito mais impacto do que se eles já estivessem sido
introduzidos na história desde o início.
Nesse cenário de guerra, Michael é quem lidera a tropa dos bandoleros, na qual passam
a jogar um violento jogo que o vencedor será quem matar mais pessoas em Bacurau. Na busca
de conseguir mortes e marcar pontos, Michael é um líder perverso, xenofóbico, frio e
extremamente violento. No decorrer da narrativa, ele vai se mostrando cada vez mais um
personagem totalmente ignorante em relação à cultura brasileira, elemento este que será o
principal motivo de sua derrota. Com forte inclinação nazista, ele não apenas apoia Josh – um
dos membros dos bandoleros – por ter assassinado uma criança no vilarejo de Bacurau, como
também decide dar para ele, por unanimidade, um ponto a mais pela morte, o que revela toda a
sua faceta doentia.
Com o auxílio de seu ego inflado, Michael se sente sempre seguro nos espaços que habita,
e sua segurança encontra a sua base em seu grande senso de superioridade presente em sua
caracterização interna. Nesse contexto, ele vai se revelando um personagem intensamente
imprevisível: ele se separa do bando por conta própria no dia do ataque na cidade, atira
aleatoriamente na parede e no chão e ainda termina por matar um dos membros de sua equipe
quando percebe que está perdendo a batalha. Seja por uma questão de dignidade de morte ou
em nome da violência gratuita, o fato é que as suas ações finais, baseadas em sua natureza
perversa, tornam-se parte de seu caráter egocêntrico e individualista.
24

14
Para dar vida a esse personagem cruel, Udo Kier é o ator responsável por interpretar
Michael em Bacurau (2019). Assim sendo, ele conseguiu criar um personagem estranho e
controverso pois, embora Michael seja caracterizado pela violência, curiosamente, a
performance de Udo se desenvolveu de uma maneira oposta à essa caracterização interior.
Dessa forma, ao analisar o filme cuidadosamente, nota-se que o ator optou por utilizar toda a
superioridade e poder de seu personagem de uma outra maneira. Ao invés de gritar e dar rédeas
soltas à sua voz para aterrorizar os seus parceiros de cena, o seu discurso é, na grande maioria,
estável e tranquilo. Quando vai realizar algum tipo de intimidação, a sua ameaça é serena e
paciente, o que acaba por gerar um impacto ainda mais poderoso.
Nesse sentido, os seus diálogos caminham para ir na contramão da cena, sendo
responsável, portanto, por enriquecer e complexificar ainda mais o seu personagem no filme.
Essa forma de atuação baseada na atuação contrária é algo que Bertolt Brecht15 desenvolveu
muito em seus estudos, na qual ele chamou de Grande Método ou Dialética. Para tal, o
dramaturgo e teórico propôs que as cenas fossem concebidas por meio do que ele chamou de
Verfremdungseffekt, ou efeito de estranhamento, criando rupturas na identificação emocional
do espectador com a ação (JUGERO, 2016, p. 7). Nas palavras do dramaturgo alemão:

O ator deve ler o seu papel com uma atitude de espanto e contradição. Ele deve
compreender as características e saber avaliar, não só o desenrolar dos
acontecimentos, como também o comportamento do personagem que irá interpretar,
ele não pode aceitar nada como dado, que “não poderia deixar de acontecer dessa
maneira”, que “era de se esperar em virtude do caráter dessa pessoa”. Antes de
memorizar as palavras ele deve memorizar o que lhe causou espanto e o que sentiu
ser contraditório. Isto deve ser feito porque o ator deve manter esses momentos na sua
representação (BERCHT, 1967, p. 162 apud JUGERO, 2016).

Nesse sentido, os personagens contraditórios são os responsáveis por gerar os mais


interessantes movimentos, pois incitam no espectador uma curiosidade responsável por
despertar a sua imaginação. Essa contradição também pode vir através dos gestos, pois o

14 Udo Kier, nascido na Alemanha em 14 de outubro de 1994, é um ator conhecido, principalmente, por seu
trabalho em filmes de terror e exploitation. Em sua carreira, já atuou em centenas de produções, incluindo em
parceiras com cineastas consagrados como John Carpenter, Lars Von Trier, Quentin Tarantino, Dario Argento e
outros.
15 Eugen Bertholt Friedrich Brecht, nascido em 10 de fevereiro de 1898 em Augsburg, no leste de Berlim, foi um

destacado dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX. Seus trabalhos artísticos e teóricos
influenciaram profundamente o teatro contemporâneo, tornando-o mundialmente conhecido a partir das
apresentações de sua companhia “Berlinder Ensemble”, realizadas em Paris durante os anos 1954 e 1955.
25

objetivo é instigar uma crítica construtiva, fugindo de encenações nas quais os personagens são
imutáveis e vítimas do destino, almejando viabilizar uma nova atitude no espectador (JUGERO,
2016, p. 8). Para Brecht, “todo sentimento deve se refletir no exterior, isto é, deve ser
transformado em gestus” (BRECHT, 1967, p.164 apud JUGERO, 2016). É assim que Udo
consegue oferecer para Michael muito mais poder de ameaça: indo na contramão da cena.
Observando a atuação por esse prisma, contraste torna-se conflito interno que,
consequentemente, gera imprevisibilidade ao personagem.
Nessa perspectiva, o contraste também pode ser encontrado entre a maneira de se
reproduzir um discurso e a forma de se realizar um gesto. Ao assistir ao filme, percebe-se que,
ao mesmo tempo em que Udo Kier possui uma fala tranquila, o seu olhar amedrontador e sua
expressão facial é capaz de fazer com que qualquer um sinta medo. Assim, os seus movimentos
gestuais intimidadores vão na contramão de seu volume e entonação vocal. Isso possui uma
relação com o conteúdo interior de seu papel, o que acaba por tornar os seus gestos providos de
sentido. Entendendo a ação gestual sobre esse ponto de vista, nota-se que nenhum gesto deve
ser feito em função do próprio gesto. Ele deve possuir sempre um propósito, pois a ação
significativa exclui automaticamente as poses e os resultados assim perigosos
(STANISLAVSKI, 2008, p. 79).
Portanto, os gestos de um ator ou atriz devem pulsar unicamente através do seu papel em
um movimento transparente e delicado. O intérprete deve ter tanto a ideia quanto a motivação
do movimento bem claros, para que ele o realize com um estímulo interior à ação. Ainda sobre
esse assunto, Stanislavski escreve:

Busquemos antes adaptar essas convenções do palco, essas poses e gestos, à execução
de algum objetivo vital, à projeção de alguma experiência interior. Então, o gesto
deixará de ser apenas um gesto, convertendo-se em ação real, dotada de conteúdo e
propósito. Precisamos é de ações simples, expressivas, com um conteúdo interior.
(STANISLAVSKI, 2008, p. 86).

Nesse sentido, trazendo essa reflexão para a arte cinematográfica, a utilização do gesto
torna-se ainda mais precisa, uma vez que um plano detalhe ou uma lente fechada pode ser capaz
de captar qualquer nuance de atuação que até mesmo o próprio intérprete pode não perceber.
Do outro lado da moeda, Lunga, ou Adailton Santos do Nascimento, é a personagem
responsável por combater Michael e os bandoleros. Ela é uma justiceira que representa o
cangaço, porém sobre o prisma de Bacurau (2019). Da mesma maneira que Lampião tinha os
26

seus companheiros de luta, Lunga possui Raolino e Bidé como os seus aliados que fazem a sua
proteção e potencializam a sua força. No filme, nos deparamos com uma personagem que mora
junto com os seus comparsas em um forte isolado no meio do sertão pernambucano. O motivo
é que Lunga está sendo caçada pelas autoridades do governo e, por isso, precisa se esconder em
um lugar protegido. Porém, a sua conjuntura precária de moradia a deixou em uma condição
análoga a um animal faminto, fazendo com que toda a sua raiva e sede de vingança seja
intensamente potencializada. Portanto, assim que Lunga chega à cidade de Bacurau para ajudar
a comunidade a reagir aos ataques dos bandoleros, as suas emoções estão à flor da pele e Lunga
está pronta para entrar em ação.
Sempre estratégica, humilde, ágil e combativa, Lunga conhece o território de Bacurau
perfeitamente, como um vietnamita na guerra do Vietnã, e esse é o principal motivo pelo qual
ela e o vilarejo derrotam os estrangeiros. Seu senso de justiça presente em sua caracterização
interna a transforma em uma cangaceira sanguinária e extremamente violenta. Entretanto, sua
violência é mais reacionária, o que faz com que os seus ataques sejam muito mais agressivos
do que os de Michael, que pratica a violência de uma forma mais arbitrária, por diversão ou
esporte.
A única descrição física que possuímos de Lunga no roteiro é “pulsos, mãos e dedos
repletos de anéis e pulseiras” (FILHO, 2020, p. 276). Entretanto, quando chegamos ao filme,
conhecemos uma Lunga totalmente caracterizada em seu exterior, o que revela a potente
apropriação que o ator Silvero Pereira 16 realizou ao vestir a sua personagem no filme.
Consequentemente, ao caracterizar a sua personagem com um figurino e acessórios chamativos,
Silvero, como ator pessoa, automaticamente adquiriu uma nova forma externa capaz de gerar
encanto pessoal nos olhos do espectador. Atrás desse tipo de criação, pode haver ternura,
sutileza, graça ou ousadia, e a soma disso tudo é uma enorme capacidade de seduzir
(STANISLAVSKI, 2008, p. 329).
Nesse sentido, Silvero poderia ter se encantado pela beleza exuberante de sua
personagem e, consequentemente, acabar se perdendo nessa forma de caracterização que,
isolada, é pobre de conteúdo interno. Acerca deste tema, Stanislavski escreve:

A maioria dos atores, antes de cada representação, se vestem e maquilam para que a
sua aparência exterior se assemelhe à do personagem que vão representar. Esquecem-
se, entretanto, da parte mais importante, que é a preparação interior. Por que dedicam

16Silvero Pereira, nascido em Mombaça em 20 de junho de 1982, é um ator e diretor brasileiro. Iniciou a
carreira artística com 17 anos e é formado em artes cênicas pelo Instituto Federal do Ceará
27

uma atenção assim especial à sua aparência externa? Por que não põem maquilagem
e uma indumentária na alma? (STANISLAVSKI, 2015, p.315).

Porém, mesmo com um figurino marcante, ao observar a performance de Silvero em


Bacurau (2019), percebe-se que o personagem no filme foi inteiramente banhado por
faculdades interiores que foram concedidas pelo próprio ator. Essa é a junção perfeita para
personagens que são chamativos em seu exterior pois “a caracterização, acompanhada de uma
verdadeira transposição, é uma grande coisa” (STANISLAVSKI, 2008, p. 60). Assim sendo,
uma das principais características que Silvero concedeu à Lunga foi uma grande consciência
corporal: o personagem é capaz de movimentar o seu corpo de uma forma muito ágil, seja para
simplesmente passar por uma extensa tubulação como faz em uma das cenas, ou seja para entrar
em combate com os estrangeiros. O fato é que Lunga se transforma em uma indivídua
extremamente argilosa e flexível, e essa é uma característica que condiz muito com o interior
de uma personagem combativa e estratégica.
Essa questão da consciência corporal teve a sua primeira semente lançada por
Stanislavski em seu método das ações físicas. Nesse método, o autor propõe o uso de exercícios
corporais com o objetivo de incitar sensações no corpo e, consequentemente, atingir emoções,
uma vez que esta não é possível de se atingir de uma maneira direta. Mais tarde, Jerzy
Grotowski 17 utiliza as ações físicas de Stanislavski para desenvolver as suas próprias técnicas
corporais. Para isso, “um dos elementos que destaca é o impulso, descrevendo-o como algo que
vem do interior e gera a ação, como se antes mesmo de ser visível no exterior a ação já existisse
dentro do corpo do intérprete, não em um nível racional, mas físico” (ALMEIDA, 2016, p. 15
apud BONFITTO, 2013).
Sendo um impulso interior, entende-se que o treinamento corporal o responsável por
colocar as sensações na pele do ator, tornando a ação mais verdadeira. É um processo que,
diferentemente de o que tem sido falado até então, é de fora para dentro. Além disso, o exercício
físico também é interessante para tornar o corpo mais ágil e, fisicamente, mais eficiente em
cena. Com eles, os atores conseguem agir com um ritmo e tempo corporal mais rápido, algo
impossível para um corpo destreinado. Nas palavras de Stanislavski:

17Jerzy Marian Grotowski, nascido em 11 de agosto de 1933, foi um diretor de teatro polaco e figura central no
teatro do século XX, principalmente no teatro experimental ou de vanguarda. Em seu livro “Em busca de um
teatro pobre”, Grotowski leva as últimas consequências as ações físicas elaboradas por Stanislavski, buscando
um teatro mais ritualístico, para poucas pessoas. Um dos seus assistentes e responsável pela divulgação de seu
trabalho foi Eugenio Barba.
28

Sem exercício todos os músculos definham e, reavivando as suas funções,


revigorando-os, chegamos a fazer novos movimentos, a experimentar novas
sensações, a criar possibilidades sutis de ação e expressão. Os exercícios contribuem
para tornar a nossa aparelhagem física mais móvel, flexível, expressiva e até mais
sensível (STANISLAVSKI, 2008, p. 71).

Nesse sentido, o trabalho corporal perpassa muito pelo processo de produção de energia,
que é gerada pelo corpo e transportada até a mente, ativando-a. É também através dos exercícios
corporais que podemos vivenciar sensações já vividas em algum momento de nossas vidas. A
parir deles, o ator consegue viver a experiência de uma forma mais concreta, visível ao olho nu,
por isso Eugenio Barba alegou que “os exercícios corporais são sempre exercícios espirituais”
(BARBA, 1994, p.128).
29

2. A PONTE INVISÍVEL ENTRE O PERSONAGEM E O ATOR: UMA


CONVERSA SOBRE PREPARAÇÃO DE ELENCO PARA CINEMA.

Para este segundo capítulo, a preparadora de elenco Amanda Gabriel e o preparador


Leonardo Lacca, ambos os profissionais que trabalharam na preparação dos atores dos filmes
aqui recortados, foram entrevistados simultaneamente e de maneira online. Nesse sentido, a
entrevista funcionou quase como uma conversa, conservando como assunto principal o
universo da atuação para cinema. Assim sendo, após alguns dos teóricos das artes cênicas terem
sido debatidos aqui, o foco passa a ser direcionado para a prática, uma vez que este último é
quem determina a credibilidade do primeiro.
Haja vista que cada profissional possui as suas próprias ferramentas de trabalho, o
objetivo com essa entrevista foi de compreender, de uma maneira geral, como funciona o
processo de preparação dos atores e atrizes de cada um dos profissionais. Para fazer com que a
conversa tangencie os assuntos debatidos do primeiro capítulo, com base em um roteiro
previamente escrito, foram realizadas quatro linhas de perguntas.
Da mesma forma que o capítulo inicial dessa monografia foi organizado, a primeira linha
de perguntas foi reservada para que o filme O Som ao Redor (2012) seja discutido. Para tal,
entender como ocorreu o processo de preparação dos atores Gustavo Jahn (João) e Maeve
Jinkings (Bia) foi o assunto principal do início da conversa. Logo após, o foco foi em Aquarius
(2016) e na personagem principal do filme, Clara, interpretada magnificamente pela atriz Sônia
Braga. Em seguida, o recorte foi o premiado Bacurau (2019), na qual as perguntas foram
direcionadas para que a performance de Udo Kier (Michael) e Silvero Pereira (Lunga) fossem
debatidas. Por fim, no último momento da conversa, as perguntas fugiram um pouco do espaço
fílmico de Kleber e passaram, de uma maneira geral, a possuir como temática principal alguns
dos conceitos dos teóricos das artes cênicas.

2.1 – ENTREVISTA COM AMANDA GABRIEL E LEONARDO LACCA

Os integrantes da sala online foram apresentados, o autor agradeceu a disponibilidade de


ambos e, então, inicia-se uma conversa:

Thiago – Entrando na primeira linha de perguntas, Maeve Jinkings deu à Bia mais raiva e falta
de paciência do que a personagem no roteiro. Ela se apresenta como uma mulher tensa na face,
30

sempre muito aflita e preocupada. Mas o que mais me chamou atenção é a maneira como Maeve
conteve a sua raiva por Nico dentro dela, quase como uma bomba prestes a explodir. Dito isso,
como foi o treinamento de Maeve Jinkings durante o processo de preparação para atingir as
emoções contidas de Bia? Quais foram os métodos e processos individuais que a atriz trouxe e
que contribuíram para o nascimento de sua personagem? Houve a presença de exercícios
físicos?

Leonardo – Sempre costumo a pensar que O Som ao Redor (2012) foi a minha faculdade de
cinema, para mim pelo menos. É muito difícil lembrar pontualmente de alguma coisa, mas acho
que é importante falar que eu e Amanda nos tornamos uma dupla a partir desse momento por
sermos amigos. Nós fomos desenvolvendo uma amizade por nos escutarmos e por termos muita
vontade de fazer filmes. Nós já participamos de várias empreitadas muito loucas que, hoje, não
fazem mais sentido, mas que naquele momento faziam. Então, eu acho que enxergo como uma
coisa concomitante do tipo: “vamos participar de um filme?”. Então, nós fazíamos e
aprendíamos fazendo.

Amanda – Eu trabalho assim até hoje amigo (risos).

Leonardo – Pois é... A Amanda tem formação em artes dramáticas... Ela se formou mesmo
como atriz na faculdade. Já eu não tenho essa formação de ator.

Amanda – Eu sou atriz e arte educadora...

Leonardo – Eu não tenho essa formação de ator, mas eu percebi que a minha vontade de fazer
filme sempre foi por conta dos atores. Eu acho que, até hoje, a minha forma de trabalhar é,
como a Amanda falou, se sentindo próximo com o ator. Por exemplo, na preparação de Udo
Kier, a primeira coisa que eu fiz foi ficar amigo dele.

Amanda – Para a personagem de Maeve, acho que nós temos que começar por Eletrodoméstica
(2005). A personagem de Maeve já existia. Então, é uma personagem que tem um curta que me
diz muito sobre o que é essa personagem. Então, me vem muito de como eu, hoje, 11 anos
depois de O Som ao Redor (2012), consigo nomear ferramentas que antes eram muito intuitivas.
Mas se eu for te dizer de forma muito prática como era a preparação, era juntar pessoas em uma
sala, ler as cenas, conversar sobre elas e fazê-las. Isso incluiu uma participação extremamente
31

ativa de Kleber, que também é roteirista, e acho que isso é uma característica de quase todos os
diretores que eu já trabalhei na vida. Trabalhando com ele, ficou evidente para mim que o
processo de preparação é o último tratamento de um roteiro. É o momento que aquele roteiro é
posto a prova, porque o roteiro não é um filme.
A gente tem, por exemplo, uma questão de linguagem, porque a gente sai da linguagem
escrita para traduzir para a linguagem audiovisual. O roteiro é uma linguagem escrita que
pretende virar audiovisual. Então, ele é cheio de limitações, ao começar por as frases serem
escritas uma em cima da outra, quando na vida não necessariamente é assim. Roteiro é ponto
de partida e não de chegada.
Então, desde O Som ao Redor (2012) até hoje, eu entendo que o meu trabalho é um
trabalho de análise. É um trabalho em cima do roteiro e de mapeamento de temas. Isso eu só
fui nomear depois quando eu encontro, em seguida, com Jurij Alschitz, que é um pedagogo e
diretor russo ainda vivo. O Jurij fala uma coisa muito bonita em um livro que se chama “40
questões para um papel” e acaba nomeando uma coisa que eu fazia muito intuitivamente. Ele
diz algo que é: “nenhum ator da contemporaneidade pode trabalhar apenas em cima da
construção psicológica de um personagem. Os personagens são discursos. Personagens são
temas, que estão incluídos naquele personagem. Foi então que eu descobri que o meu trabalho
tem muito a ver com isso
Para mim, então, no trabalho da análise - e eu acho que essa é uma resposta que é válida
para todos os processos, o que eu preciso entender é quais são os temas daquele filme e os temas
que tocam aquele ator enquanto artista político, social, ético, subjetivo, vivo, neste mundo... Aí
eu sobreponho essas duas coisas. Então, quando você encontra essa ponte que eu chamo de
“mapa”, você pega o “mapa do roteiro” e o “mapa do indivíduo”, você sobrepõe e é nos
cruzamentos que a gente encontra aonde que começa a ativar. Logo, quando você encontra os
temas, você ativa o desejo do ator sobre o que ele quer falar. Aí você ativa a memória, e tudo a
partir disso, pois a memória é algo que não se acessa de forma direta. Stanislavski no fim de
sua carreira descobre isso.
Uma das coisas mais comuns no processo de leitura e análise, e eu tenho certeza que isso
vai acontecer com todos os atores em algum momento da preparação, é alguém levantar e dizer:
“gente, acabei de lembrar de uma história que não tem nada a ver com isso, mas...”. Na verdade,
essa história tem a ver sim, porque não foi à toa que você lembrou. Então, hoje eu chamo esse
processo de mapeamento afetivo. Para mim, a análise é o mapeamento dos afetos do ator em
relação a aquele roteiro.
32

Em O Som ao Redor (2012), o que a gente fazia era quase um consultório médico. A
gente ensaiava 12 horas por dia e com horas marcadas porque eram quase 80 personagens em
núcleos separados. Nunca mais fiz isso na minha vida. Fiz isso uma vez, mas não quero fazer
mais. Então, a gente tinha o “hora a hora” das sequências, das cenas, dos núcleos, e parecia um
consultório: encerrava um e entrava outro. A gente ensaiava assim: lendo e conversando sobre
a cena.
O Kleber tem uma coisa muito maravilhosa: sempre que ele fala sobre o que é uma cena,
ele diz com outras palavras o que já está escrito. O Kleber sempre traz algo a mais. Seja uma
história pessoal dele, seja uma metáfora, seja algo que ele ouviu, seja uma piada... Quando ele
traz metáforas é forte porque ela é a natureza do trabalho do artista. A linguística não se encerra
essencialmente no signo. É essencial trabalhar em cima de metáforas com atores, porque elas
são os tipos de direcionamentos que te liberta, ao invés de te prender. Para conversar com um
ator você não pode ser muito direto, por isso metáforas são perfeitas. Então, o nosso processo
foi basicamente esse: Kleber sempre contava algo sobre aquela cena que não estava escrito no
roteiro e a gente começava a fazer. Fazia, repetia... O Kleber ensaiava com o Final Draft aberto
reescrevendo diálogos. Então, a partir do momento em que ele ouvia o diálogo que ele já tinha
escrito saindo da boca do ator ele começava a ter novas ideias. O processo de ensaio foi
basicamente esse.
Quanto à Maeve especificamente, existia a personagem da Eletrodoméstica (2005), que
é um filme que já falava sobre aquela personagem. Então, é a partir da análise sobre o que
significa essa personagem e quais são os temas que ela encara que a gente começa a trabalhar
nas cenas. Já em relação a emoção e como se atingir a elas eu, pessoalmente, não tenho a menor
pretensão de atingir emoção no processo de ensaio. Acho bem ruim quando acontece porque
gera uma expectativa péssima para que aquilo se repita no set, e nunca se repete. Uma cena só
pode acontecer na presença da luz, câmera, som... Uma cena não acontece no ensaio!
Então, passamos muito por instigar esses estados emocionais e conversar sobre os temas.
Logo, por exemplo, vinha muito naturalmente a figura da mãe, pessoas que te irritam e outras
coisas, e aí cada ator tem um processo muito particular de como chegar a estados emocionais.
Nenhum desses dois atores é tema de sua pesquisa, mas estar presente na cena final do
assassinato do Francisco em O Som ao Redor (2012) é uma lição para entender como os atores
funcionam de uma forma diferente. Irandhir estava em um estado e Solha (Waldemar José)
estava em outro. Solha terminava uma cena super tensa e dava uma gargalhada. Irandhir ia,
voltava, respirava, mantia-se aquecido, e nenhum de nós pediu nada disso. Cada ator sabe como
atingir.
33

Acho que métodos específicos e ferramentas específicas servem apenas para pesquisa de
grupo. Como, por exemplo, um grupo se reúne e quer estudar Meisner, ou Grotowski. Um ator,
na vida, nunca é só um desses métodos. Ele é um apanhado das experiências dele próprio. Até
os atores não profissionais também possuem os seus próprios métodos de ler o mundo, de se
relacionar com ele e de acessar suas próprias emoções. Já os atores talvez façam isso de uma
forma mais inconsciente. Ele treina tanto, exerce tanto e faz na prática tantas vezes, que já não
pensa mais e o corpo passa a executar a tarefa automaticamente.
O Som ao Redor (2012) não teve nenhuma preparação física, ele foi feito especialmente
em cima da análise de cena, no sentido: “levanta! Vamos fazer! Isso é uma brincadeira! É um
jogo! Isso são palavras! A gente não tem que acertar, o roteiro é que tem que provar que está
certo”.

Leonardo – Uma coisa que você falou me lembrou de autoconhecimento. Cada ator deve
possuir consigo uma forma de autonomia para se autoconhecer e, talvez, uma pessoa que não é
profissional não parou para se conhecer nesse ponto. Então, o desafio é: “opa, a partir de agora
a gente vai tentar se conhecer em determinado aspecto da sua vida para entrar nesse jogo”.

Amanda – Mas é uma sabedoria que ela tem...

Leonardo – Exato! O momento da preparação é um momento de estabelecer confiança e uma


relação. Eu gosto muito dessa questão do mapa dos afetos porque é uma abertura. Todo mundo
se deixa tocar e se dispõe a se colocar. Eu acredito em tudo que a Amanda disse, não só como
preparador, mas como diretor, roteirista e realizador. Por mais que você imagine, quando os
atores começam a falar, as ideias começam a surgir. Eu já vi projetos que nem estavam
próximos de filmar, mas que contrataram duas pessoas que nem se sabe se vão ser de fatos os
atores escalados, e essas pessoas começam, então, a ler. Escutar já é o necessário para mudar
completamente. Para quem escreve, escutar e ver se funciona é um processo que já é muito rico
por si só. Kleber me ensinou uma coisa que é muito forte, que é deixar as pessoas confortáveis,
sempre. Do figurino ao local que o ator está, ele precisa estar bem. Esse cuidado e atenção é
necessário.

Amanda – É a partir do encontro com o ator que o personagem começa a existir. Quando você
pede para os atores fazerem alguma coisa, eles fazem e ainda te entregam algo que você nem
tinha imaginado, e que muitas vezes é melhor do que você queria. Para mim, isso é uma coisa
34

que eu intuía, mas foi somente depois de O Som ao Redor (2012) que isso virou algo em que
eu peguei como referência para a vida inteira. É no cruzamento entre personagem do papel e
personagem ator que surge o personagem do filme. Muitas vezes, o Kleber ficava no ensaio
observando quem é quem, entendendo o que cada um pensa e as suas histórias individuais e
que, em algum momento, ele pode trazer para o filme. Muitas vezes ele guardava nos ensaios
e usava só no set, que é a hora que realmente importa.

Thiago – Sem dúvidas, o mais importante é tratar o ator como pessoa. O ator tem que estar tão
treinado ao ponto de você não precisar ficar tentando atingir emoções, pois elas chegarão a ele
instantaneamente. Por exemplo, se formos falar do João, lendo o roteiro, percebi que muitos
dos diálogos contidos no roteiro não foram mencionados por Gustavo Jhan no filme. Isso revela
o apropriamento certo do ator para o personagem, pois João é um melancólico sem potência e,
geralmente, pessoas tristes possuem menos vontade de falar. Como foi esse processo para
Gustavo?

Amanda – Vamos pensar: por que Kleber traz o Gus (Gustavo Jahn), um ator que não é
pernambucano, para fazer o João? Com certeza, existe algo em Gustavo que o Kleber conseguia
classificar “isso aqui é o João”. Existe algo que é da personalidade do Gustavo Jahn, que é o
que faz ele ser convidado para fazer o João.
Uma coisa muito linda é o pico de fetiche que existe na relação do diretor com os atores.
Isso é algo histórico e existe na Vouvelle Vouge inteira também. É um apaixonamento com a
personalidade que faz com que diretores e atores trabalhem várias vezes nos mesmos filmes.
Isso também é uma característica de Kleber: se você pegar O Som ao Redor (2012) até Bacurau
(2019), você conseguiria identificar atores que estão em todos os seus filmes. Kleber gosta de
se cercar de pessoas que ele gosta de trabalhar e que ele sabe que possui um diálogo artístico
direto.
No meio disso tudo, existe também um grande mito que diz que o trabalho do ator tem
que ser necessariamente físico. No teatro, isso faz muito sentido, mas não para o cinema. Muito
diferentemente de Aquarius (2016), que é um melodrama enquanto linguagem, ou do Bacurau
(2019), que é um filme de gênero, O Som ao Redor (2012) era um filme muito brechtiano. É
um filme sobre gestos, sobre observação e denúncia. Uma cena que diz isso é quando João vai
questionar Pacote, o lavador de carros, sobre o carro arrombado de sua namorada. Nessa cena,
existe uma rubrica que indica a chegada de um carro de polícia na rua enquanto eles estão
conversando. Então, no extra campo, escutamos o som da sirene policial. Logo, o roteiro
35

descreve que Pacote pega o pano que estava no balde e coloca sobre o ombro. Aquele homem
preto, vestido daquela forma, na rua, conversando com um homem branco de classe média alta
precisa dizer que está trabalhando. Esse é um gesto completamente brechtiano.
O que Brecht fazia no teatro o que ele chama de suspensão, onde os atores paravam no
gesto, e ralentavam, e seguravam, no cinema se faz isso com o plano, com a câmera. Por isso
eu acho que O Som ao Redor (2012) é extremamente brechtiano também no personagem: eles
representam funções sociais, e a gente os desenha para entender as dinâmicas sociais de um
Brasil colonial. Cada personagem desse é muito maior socialmente do que individualmente nas
suas psicologias individuais. Isso vale para Maeve, isso vale pra João.

Thiago – Conversando sobre gesto, isso realmente me tocou pois O Som ao Redor (2012) é um
filme que possui o olhar como algo muito acentuado. Bia sempre com um olhar de tensão. João
com um olhar recaído. Clodoaldo, com um olhar de raiva e ódio. Esses olhares, muitas vezes
complementados com o gesto ou o silêncio, agiram como se fossem uma outra camada do filme
em que não é falada e que alimenta uma tensão nas entrelinhas. Visto isso, como vocês encaram
o olhar na atuação? Qual a melhor maneira de desenvolvê-los em tempos em que “falar com o
olhar” tornou-se algo extremamente valorizado no cinema?

Amanda – Olhar é gesto fílmico, não do ator. É filmar alguém olhando e mostrar o que ele está
olhando. É decupagem, não é atuação. Isso é uma coisa que eu escuto até hoje, pois não adianta
o ator estar pensando na coisa certa, com a emoção certa, se a câmera não está posicionada e se
não existe uma relação daquele olhar com o que ele está vendo. É gesto fílmico na decupagem
e na montagem. Um personagem só se encerra na montagem. Você muda um personagem
inteiro na montagem. Tanto que eu penso personagens como “peças coringas de quebra-
cabeça”: você não pode fechar o seu personagem porque você não sabe o que ele vai virar. Ele
precisa estar aberto para ser encaixado em qualquer canto. Então, olhar é gesto fílmico. Um
olhar em um plano aberto não me diz nada. O olhar só vale se eu tenho um plano próximo e,
depois, o contra plano do olhar.
Agora, um olhar ativo e vivo, pra mim, é resultado de escuta. O olhar, por si só, não é
nada. Quem escuta olha e esse é um fato fisiológico. Eu sou uma preparadora que pensa cinema,
não atuação, então eu preciso refletir sobre como direcionar e desenhar o olhar em um quadro.
Então, eu costumo a pensar em termos de vetores: para onde o seu direcionamento está
apontando? Para onde o seu corpo aponta? Para onde o seu nariz aponta? Só aí você pode
desenhar ritmos e fluxos, pensando vetores dentro do quadro.
36

Leonardo – Eu admiro muito atores e atrizes porque é uma profissão baseada no desapego. É
possível mudar tudo mesmo na montagem. O controle sobre o personagem como elemento é
mínimo. Se você for ver o processo de seleção que, pra mim, eu já não gosto de usar a palavra
“teste”, mas a gente usa pra facilitar, são processos muito difíceis. Me lembro de uma vez em
que eu e Amanda estávamos no casting de O Som ao Redor (2012). Então, a Amanda chegou e
disse para mim: “ah, bota a cara na câmera para ver se funciona”. As vezes tem isso!

Amanda – Foi com o Formiga (Sebastião Formiga)! Nós não o víamos funcionado nos ensaios
e o teste tinha sido incrível! Então, nós pensamos: “gente, o que está acontecendo? Nós não
estamos o reconhecendo!”. Logo, o Pedro chegou com a câmera para a gente ensaiar e acontece
essa mágica do cinema, que é você olhar fora da câmera e não parecer tão bom, mas quando
você olha na câmera é genial!

Leonardo – O que ao vivo parece incerteza, vira mistério na câmera, essa é a mágica da atuação
no cinema. Eu acho que, inclusive, o montador deveria ganhar o crédito de preparador de elenco
também! No caso de Kleber e em O Som ao Redor (2012), ele sempre falava uma coisa de
engrenagem comigo, de apertar parafuso... A montagem de O Som ao Redor (2012) é
extremamente sofisticada e complexa nesse sentido. A montagem é o ritmo de todo o filme,
mas de O Som ao Redor (2012) mais ainda.

Amanda – Eu conheço diretores que fazem escolhas de montagem para proteger a atriz, porque
ela não estava bem. De certa forma isso também serve para proteger o filme, mas
principalmente a atriz. O ator que tenta ter controle sobre tudo, na verdade, está acabando com
todas as possibilidades do personagem.
Existe ainda uma outra coisa em relação ao olhar que a gente não falou ainda e que é da
natureza da linguagem, que é eixo. As vezes você precisa olhar para a fitinha verde colada no
para-sol da câmera. A única coisa que faz o seu olhar estar vivo é estar escutando. As vezes, o
olhar é não fazer nada também, e é muito lindo quando o ator adquire experiência o suficiente
para não precisar fazer o menor esforço para isso.

Leonardo – Talvez chegue em algumas pessoas uma sensação de “poxa, mas eu preciso ser um
sujeito”. É aí que está! Eu acho que esse sujeito você adquire naquele mapa afetivo que a
Amanda falou. É ali que você é sujeito.
37

Thiago – Perfeito! Agora passando para Aquarius (2016), vamos conversar um pouco sobre a
protagonista. Clara é uma mulher com profundas marcas de lutas e batalhas em sua face e corpo.
A sua história pregressa de combate ao câncer e posterior retirada cirúrgica de uma das mamas
torna Clara uma viúva de 65 anos extremamente corajosa, combativa e sem medo das
consequências. Sônia Braga, de certa forma, conseguiu abraçar essa questão estética da
personagem, mas ela entende que, infelizmente, na sociedade, ainda há um forte preconceito
estético em relação às mulheres que realizaram mastectomia. Na busca de desenvolver essa
personagem à posteriori ao filme cheia de vivências e cicatrizes, quais foram as técnicas
utilizadas durante o período de preparação? Houveram exercícios de imaginação ou de
personalização? É possível ainda poder ensinar algo à Sônia Braga?

Amanda – Eu acho que a preparação é uma encruzilhada e que Exu é a grande metáfora do
trabalho do ator e do encontro. Por um lado, se eu acho que o preparador não ensina, por outro,
acho que os encontros, por si só entre pessoas, são naturalmente pedagógicos. Processos de
troca são naturalmente pedagógicos. A gente pode ir para Exu ou até Paulo Freire, dá no mesmo.
Então, acho que o que faz pessoas conhecerem coisas novas é o processo. É estar aberto para
processos. O processo é pedagógico por si só, mas ele não é de cima para baixo. Se, por um
lado, a gente não ensina nada para Sônia, eu acho Sônia uma figura incrível, maravilhosa, genial
e que vive a vida inteira realizando essas trocas. Não sei nomear o que ela aprendeu, mas sei
que ela trouxe muito dos processos para a vida dela.
O Ruy (Ruy Guerra) diz uma coisa muito linda. Ele diz que os filmes nunca dão conta, o
resultado não dá conta, o que importa é o processo. Quando você descreve a Clara, você a
descreve da forma que ela é: ela é uma super heroína. Ela possui todos os arquétipos de uma
heroína e, de fato, ela é uma super heroína porque, na verdade, o grande arquétipo dela é a sua
mãe e mães são heroínas. Então, eu acho que a chave para entender a Clara passa muito por
entender esse arquétipo. Ela se nega a cumprir as regras porque ela é aprisionada, emparedada,
viva, dentro de um apartamento. Na verdade, esse é um arquétipo super antigo: da personagem
feminina que, desde a Grécia antiga, resolve ir contra o que se espera que seja o papel dela.
Acho que essa é a chave para entender esses processos da Clara e como ela trabalha.
Sônia, enquanto atriz, tem outros processos e outras chaves que são delas, são pessoais.
Existe uma outra coisa também, pois Sônia nunca tinha tido tempo de preparação junto com os
outros atores. Se, por um lado, no início, ela não sabia muito bem como lidar com isso, no final,
ela tinha se encantado pela possibilidade de estar junta do diretor e aos outros atores vivendo o
processo e criação. Isso é algo que, normalmente, o ator faz sozinho e não sendo remunerado.
38

Como Sônia constrói e traz coisas para a sua personagem eu não sei, é um processo dela. É
muito intuitivo.

Leonardo – Precisamos nos preparar para estar aberto para o que pode acontecer. Com Sônia
foi a mesma coisa: foi ler, escutar o Kleber e fazer. Sônia é uma atriz muito comprometida,
então, ela estudou muito a sua personagem. No meio do processo, surgiu a ideia de dar um
passeio com Sônia nos arredores de Recife porque ela é uma personagem recifense, típica que
conhece profundamente a história e a arquitetura da cidade. Porém, Sônia negou, porque ela
preferia voltar para o seu hotel para estudar o texto.
Lembro que, quando a gente pedia algumas coisas para ela, ela fazia sempre com uma
grande precisão. Pedro ficara perplexo, dizendo “meu irmão, caramba... Ela parou exatamente
na marca!”. Alguns tipos de planos e de cinema vão exigir uma precisão geográfica do corpo
muito eficiente, pois a gente pode estar lidando com um foco muito reduzido, frágil, ou um
movimento de câmera muito específico. Então, nesse sentido, Sônia foi muito certeira. Ela
chegava no set e falava “cadê a câmera? Aonde é que está a câmera?”. Se você me perguntar
quem era Sônia no set eu te digo: era uma leoa em uma savana.

Amanda – “A cena não significa nada sem a câmera”. Ela dizia muito isso, porque ela é muito
técnica também. Se ela não fosse atriz, ela seria ser Platô, isso é fato. Ela é uma pessoa que ama
o set de filmagem. Ela é um bicho de cinema! Eu lembro de um ensaio muito específico em que
a gente já estava perto de filmar. Foi um ensaio em que nós passamos muito menos tempo
ensaiando câmera do que ouvindo Sônia, isso sobre a cena e sobre o processo todo. Então, ela
falou uma coisa muito forte e que eu sempre falo para as pessoas: “depois não digam que a atriz
estava emocionada ou nervosa, porque vocês acham que ator só tem que se emocionar quando
aperta o play da câmera. Para estar daquele jeito em frente a uma câmera a gente precisa estar
aberto o tempo todo”.
Sônia andava com uma fita gaffer para ir colocando no chão durante o set! Ela também
falava uma coisa muito importante, que é para que não separassem a equipe do elenco. Isso é
primordial pois, enquanto mais esses profissionais estiverem dialogando criativamente entre si,
mais o filme ganha. A realidade é que o fotógrafo também constrói o personagem. O figurinista
também constrói o personagem. Não é só do ator. Orson Wells já dizia: “é impossível fazer um
bom filme sem uma câmera que seja como um olho em um coração de um poeta”. A câmera
precisa ser pensante!
39

Thiago – Clara é uma personagem que tinha uma grande habilidade de ficar serena e tranquila
em meio ao caos. Porém, de acordo com o desenrolar da narrativa, Clara vai perdendo o seu
comportamento tranquilo e sua expressão facial impassível vai sendo tomada pouco a pouco
por um semblante mais fechado e sério. Essa transformação acontece mais para o final, o que
faz aumentar muito a temperatura das cenas que direcionam o filme ao desfecho. Dito isto,
existiu algum tipo de técnica para conseguir situar o estado emocional de Clara em cada cena
de maneira mais objetiva? O fato é que as cenas são diferentes e o estado emocional de cada
uma também é diferente. Ainda mais no cinema, onde nós não gravamos as cenas do roteiro
continuamente, e isso pode confundir muito o ator. Alguma técnica foi utilizada para situar
Sônia Braga em sua personagem? Se não, que tipo de ferramentas vocês costumam dar para os
seus atores e atrizes para situá-los na temperatura de cena? Isso seja nos sets de Kleber ou em
qualquer outro que já tenham participado.

Amanda – Então, eu utilizo a análise. O Jurij Alschitz faz essa diferenciação e que eu acho
muito maravilhosa. Imagine, a horizontal de um papel é a narrativa e, as verticais, é aonde eu
coloco o tema, a pessoalidade e o trabalho cena a cena. Então, tem uma continuidade
dramatúrgica.
Sobre emoção, Estrela Strauss, que é uma atriz e pedagoga do “Método” do Lee
Strasberg, diz uma coisa muito linda e que eu concordo muito: emoção é suor. Emoção nunca
pode ser objetivo, ou ponto de partida. Você se exercita e você sua, logo, é consequência. O
Meisner, que é colocado quase como um oposto do Lee Strasberg, na verdade, fala quase a
mesma coisa: “nunca calcule a emoção que você deve ter em cena”. Viva o momento. Se você
ficar tentando atingir determinada emoção, você vai passar vergonha porque todo mundo vai
ver um ator tentando atingir determinada emoção. Se você tinha que chorar e, naquele dia, você
não chorou, faça o que você está sentindo no momento.
Eu acredito no mapeamento afetivo, que é o que me afeta, no sentido físico mesmo. O
que reverbera do afeto eu não tenho controle sobre, pode ser raiva em um dia, tristeza em um
outro. A verdade é que eu não tenho controle sobre a emoção, pois emoção é suor. Nós não
suamos porque nós queremos, nós suamos porque fazemos algo que nos leva a suar. Então, o
mapeamento dramatúrgico, ou trajetória da personagem, é o que vem antes e o que vem depois.
Isso é algo que Stanislavski começa a chamar na última fase do trabalho dele de circunstâncias
dadas, pensamento este que o Meisner assume até mais do que o Lee Strasberg, mas todos os
dois usam essa nomenclatura.
40

Circunstâncias dadas é o ponto de partida da cena. A única coisa que eu sei é de onde a
cena parte. O que acontece com ela depois do ponto de partida é resultado do encontro. Então,
eu nunca busco emoção. Emoção é algo que acontece. Quando você se coloca dentro daquelas
circunstâncias é quando você pode atingir a emoção. Você também pode acessar emoção
porque aquelas circunstâncias despertam em você uma memória emotiva, esse é o caminho do
“Método”, do Lee Strasberg.
O que eu entendi durante esses anos é que tudo é resultado do afeto, afeto de o que
aconteceu. Resultado de escuta, do momento, do aqui e agora. Emoção nunca é um objetivo,
ela é o que sobra. Objetivo é o que o ator entra em cena querendo fazer e, a partir do momento
em que ele encontra o outro, a cena acontece. Quando se está abrindo uma cena, se o
personagem começou de um jeito e terminou do mesmo, alguma coisa está errada, porque nada
aconteceu. A partir desse lugar, é primeira Lei de Newton. Não tem nada a ver com teatro, é
natureza, lei da inércia. Você só muda a sua trajetória e aceleração se um objeto de maior força
ou igual te faz parar ou te faz mudar de trajetória. Eu aplico isso na cena e preciso ver esse
movimento acontecer. Agora, o resultado, eu não sei qual vai ser.
Emoção é consequência, algo que a gente não calcula. É o que sobra. Inclusive, é
impossível dirigir por emoção, a escola americana inteira fala disso. Você não dirige dizendo:
“fique triste”. Isso é muito subjetivo porque cada um de nós, na nossa vida, mostra a tristeza de
uma forma diferente. Nós não temos controle sobre as coisas que sentimos e tentar dominar
isso é perder o “ouro” da atuação.

Leonardo – Escutando as coisas que a Amanda está falando é impossível não pensar em roteiro.
Essa coisa de acontecer algo e transformar é o conceito de cena mesmo no sentido de que algo
precisa acontecer. Então, você comprova isso fazendo a experiência: colocando os atores para
fazer.

Amanda – Vou te dizer ainda mais ainda, emoção é som. Emoção em cinema é som. Vasco
Pimentel que, para mim, é o maior técnico de som do mundo fala isso. Imagem não traz emoção,
não é à toa que usam violinos e pianos quando a cena não funciona.
Muitas vezes quando estou ensaiando, ou estou no set, eu fecho os olhos só para escutar
a cena porque eu sei que existe algo desafinado ali. Então, sei que tem algo fora do lugar, que
tem uma ideia por trás que não foi bem compreendida. Então, quando eu escuto uma cena, eu
entendo o lugar que está desafinando, que é a ideia que está por trás da palavra. É nesse
41

momento que eu vejo que o ator não entendeu o que ele está falando, ou que está jogando em
uma direção que não era aquela. É no som. É na voz.

Leonardo – Por exemplo, eu não sabia o que era a expressão “pedra e cal” utilizada em O Som
ao Redor (2012). O que ela quer dizer é algo concreto, é parede, realidade. Um termo muito
pernambucano, talvez. Então, eu me lembro que teve uma pessoa que fez uma audição e, na
hora de interpretar, a forma que a pessoa falou a expressão demonstrou que ela não tinha
entendido o que era “pedra e cal”. Ela falou com um sentido meio filosófico que destoou do
sentido original da expressão, e ficou nítido.

Amanda – Inclusive, o som na voz é outra coisa. Eu gosto de trabalhar muito dialeticamente, e
isso é Boal (Augusto Boal) purinho, porque a palavra em si já quer dizer algo. Então, você
aplica na voz uma outra intenção: tese, antítese e síntese. Quando você aplica essa polifonia, se
o ator está ilustrando vocalmente o que já está escrito, ele está sendo redundante. Logo, na
palavra, é preciso ser dialético. Muitas vezes a chave é virar, é fazer justamente ao contrário de
o que quer dizer.

Thiago – Fisgando que você o que você falou de atuar na contramão, vou aproveitar e ir para
Bacurau (2019). Udo Kier é um ator que sabe utilizar dessa contramão cênica, justamente o
que você falou. Senti que ele falava com o olhar, assim como nós, seres humanos, também
falamos.

Amanda – É porque nós falamos com o comportamento, não com a palavra! Isso é uma coisa
que Meisner fala: a gente atua com o comportamento, e não com as palavras.

Thiago – Exato! Udo faz isso, e muito bem. O personagem dele em Bacurau (2019) é perverso
e amedrontador com o olhar, mas, ao mesmo tempo, a sua fala é tranquila e calma, até mesmo
quando ele está ameaçando alguém. São nesses momentos que ele mostra realmente quem é o
seu personagem: através dos seus gestos, com os seus olhares e caminhando na contramão da
cena. Então, eu gostaria de saber como vocês identificam esse elemento que vai na contramão?
Como vocês sentem isso acontecendo no roteiro e como o ator interfere nisso?

Leonardo – Na verdade, quando você fala da contramão, eu me lembrei de uma coisa que
Kleber falava desde O Som ao Redor (2012), que é as “setinhas” contrárias.
42

Amanda – Sim, é dialética, é Boal! O Som ao Redor (2012) é Brecht e Boal, que é a mesma
coisa. É o que gera conflito. As pessoas acham que conflito é só entre personagens, mas existem
conflitos internos também. Nesse momento, você gera conflito calculado, inclusive. O filme
Bug (2006), do diretor William Friedkin, aborda isso de uma maneira bem escrachada. Existe
uma cena em que o ex-marido da personagem principal é solto da prisão e, então, chega em
casa. É uma cena apavorante em que ele é extremamente violento, ao mesmo tempo em que ela
está em pânico. Só que ele faz a cena inteira muito cínico e só grita no final. Ele fica a maior
parte da cena falando e ameaçando baixo para, depois, explodir, e ele é muito mais apavorante
do que isso. Você pode dar o nome que quiser para isso: setas, vetores, dialética, balança, o que
for!

Thiago – Toda cena possui esse elemento?

Amanda – Toda cena! A não ser que a cena seja pegar um garfo, porque as vezes é só pegar um
garfo mesmo. Isso tem que ter, senão, não acontece nada. Eu digo que os atores precisam fazer
a cena meio feito um malabarista. Você não pode dar oito bolas para ele equilibrar em cena,
porque já é coisa demais, mas umas cinco tem que ter. O Boal chama isso de vontade e contra
vontade. Então, ele diz que toda cena tem que ter esse elemento. Você também pode usar isso
na linguagem. Se as palavras são violentas, dê com amor, faça ao contrário para ver o que
acontece. É assim que você cria contraste e, consequentemente, conflito.

Thiago – É meio como quando a gente era criança. Nossa mãe sempre mandava a gente ir lavar
a louça, só que com uma fala tranquila e serena, que é muito mais amedrontador, dá muito mais
medo. Ela não mandava a gente lavar a louça gritando. É aí que está!

Amanda – Atores experientes sabem disso. Bacurau (2019) é um filme de gênero e, quando
você fala de gênero, você fala de um tipo de atuação. É Clint Eastwood. Então, existem duas
coisas que eu sei que o Kleber ama que é Spaghetti Western, e Carpenter. A referência para
cena em que a filha bota a cabeça para fora em O Som ao Redor (2012) era O Iluminado (1980).
É um tipo de clima, de imagem, de temperatura. Tem essa coisa de ser gênero. É por isso que
eu acho que o Udo tem experiências cinematográficas o suficiente para entender também os
códigos de gênero. Para entender que, dentro desse gênero, existe um jeito de falar, que é um
gesto cinematográfico para o ator atuar dentro dessa linguagem. Para nós, que tínhamos uma
43

intimidade artística com o Juliano e Kleber, era uma chave muito obvia. Para Udo, que é uma
pessoa extremamente experiente no cinema de gênero, também era.
Nesse lugar do preparador, sempre que eu faço set, os atores ficam dizendo “você parou
de falar comigo”. Eu falo: “gente, agora a minha relação é com o diretor, não é mais com vocês”.
Nesse momento, eu provoco o diretor tanto quando eu provoco os atores, e talvez até mais,
porque é uma linguagem mais direta com o diretor.
Em Bacurau (2019), nós selecionamos pessoas para compor o “coro” da cidade, que é a
paisagem humana do filme. Todas elas fariam parte do filme, mas nós não sabíamos quem ia
fazer o que. Nesse momento, fizemos um exercício com as crianças, uma brincadeira, um jogo,
para saber quem ia ser o menino que ia para o mato buscar a lanterna e seria assassinado. Então,
nós apagamos todas as luzes da sala de ensaio e pedimos para eles contarem histórias de terror
com uma lanterna em baixo do queixo, enquanto nós filmávamos. Em seguida, mostramos esse
vídeo das crianças para o Kleber e Léo colocou uma trilha do Carpenter no momento da
reprodução. Então, o Kleber disse: “pera aí, pera aí... isso aí é Carpenter? Nossa, é por isso que
eu gosto de trabalhar com vocês!”.
Era esse o lugar: vocês me conhecem artisticamente e sabem o que eu gosto, logo, vocês
intuem naturalmente para qual lugar esse filme deve ir. Essa parceria entre preparador e diretor
é essencial, mas sei que nem sempre é assim dentro do universo da preparação, e eu não consigo
entender porquê não é sempre assim. As pessoas acham que o preparador de elenco é uma
pessoa que se relaciona apenas com o elenco. O preparador é, majoritariamente, um assistente
de direção, só que um assistente que não lida com escaleta e movie magic.

Leonardo – O preparador precisa realmente estar no set? Essa pergunta eu já escutei tantas
vezes... Aí, eu olho pra Kleber, olho pra Juliano e penso: precisa.

Amanda – Sempre defendo: é necessário ter a preparação de elenco. O ator merece ter um tempo
de pré remunerado, assim como todos os artistas possuem no filme. É nesse momento em que
ele cria o seu discurso artístico e entende qual filme ele irá fazer para, depois, apresentar as suas
propostas artísticas para a direção. Então, para mim, é essencial ter uma preparação, a não ser
que isso seja um dispositivo do filme, como em Tabu (2012), do realizador Miguel Gomes.
Nesse filme, os atores chegavam no alto de uma montanha e não sabiam nem o que iam filmar
naquele dia. Se o caso for esse tudo bem, mas, a partir do momento em que todos os artistas
envolvidos no filme estão tendo tempo de pré remunerado para criar os seus discursos artísticos,
o ator também precisa ter.
44

A direção não possui tempo para estar presente durante o período inteiro da preparação
dos atores e, nesse momento, o preparador de elenco entra em um lugar muito específico. Ele
vira um parceiro artístico, alguém que se junta com a direção e elabora o conceito de atuação
do filme. Da mesma forma que o diretor de fotografia se junta com a direção para elaborar o
conceito de fotografia para o filme, o preparador de elenco se junta com o diretor para elaborar
um conceito de atuação. Talvez, isso seja o grande diferencial dos filmes que possuem essa
relação entre preparador e diretor: você olha e percebe uma unidade no discurso. Isso é muito
obvio nos filmes de Kleber.
Por exemplo, os registros de atuação de O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e
Bacurau (2019) são completamente diferentes. São conceitos diferentes de atuação que servem
ao filme. Por isso que não existe uma fórmula. Por isso que o preparador, ao meu ver, é esse
parceiro artístico do diretor, não somente uma pessoa que vai fazer os atores atuarem bem ou
atingirem emoções.

Leonardo – Ao mesmo tempo que os filmes são diferentes, me parece que tem alguma coisa
em comum entre eles que está na linguagem. A realidade é que, só de Udo estar ali naquele
local, já é uma preparação diferente. Houve um dia muito emblemático em que Udo fez um
“date” com Sônia. Ele marcou com ela para ir na padaria da cidade e foi busca-la bem elegante
para eles saírem e conversarem. Você entende? Existe uma relação nisso.

Amanda – Existe um outro elemento também que eu aprendi no Amigos de Risco (2007). Foi
nesse filme que eu entendi que seis horas de preparação em uma sala valem tanto quanto as
duas horas de cerveja depois do ensaio. O ator trabalha o tempo inteiro. Maeve fala uma coisa
muito linda: “o trabalho do ator é criar pontes”. Então, o trabalho de preparação não está restrito
apenas à sala de ensaio, ou apenas ao exercício, nem somente na análise. Ele acontece,
principalmente, em um envolvimento e um grande apaixonamento do elenco com o filme que
ele está fazendo e, inclusive, uns pelos outros. Assim, o “date” na padaria faz parte.

Leonardo – Depois que eu soube que o Udo tinha sido considerado para fazer o personagem
“Mystery Man”, do filme A Estrada Perdida (1997), de David Lynch, eu fui e perguntei a ele:
“como seria a sua versão desse Mystery Man?”. Então, no meio do café da manhã da pré de
Bacurau (2019), eu o filmei fazendo e ele deu coisas que eu nunca teria imaginado.
45

Thiago – Vocês falaram no começo da nossa conversa que, diferentemente de O Som ao Redor
(2012) e Aquarius (2016), em Bacurau (2019), foi feito trabalho corporal. Não sei se foi com
Silvero Pereira, mas a sua personagem possui, dentro dela, toda uma consciência corporal
marcada pela flexibilidade. Ela possui até mesmo uma tatuagem de onça no pescoço, que
confere à Lunga toda uma instintividade animalesca. Não sei se houve algum tipo de exercício
físico, mas como foi para despertar toda essa consciência corporal em Silvero?

Amanda – Bacurau (2019) teve uma preparação muito corrida! O elenco era composto com
atores de muitos lugares do Brasil, e não dava pra trazer todo mundo ao mesmo tempo. Então,
eles foram divididos em núcleos, e cada núcleo tinha como missão “abraçar” quem ia chegando
depois.

Leonardo – Era um grande senso de comunidade. Quando Silvero chegou, ele foi “abraçado”
com bastante alegria pelos atores que já estavam no povoado. Então, logo na primeira
passagem, ele trouxe uma energia muito forte que chegava até a destoar do resto. Isso já veio
dele e, obviamente, chamou atenção e ficou. Os ensaios foram acontecendo e, a partir do
momento em que ele entra no figurino e na caracterização, a sua personagem ia ficando mais
forte.
Bacurau (2019) é um filme que, quando era lido o roteiro, tocava muitas pessoas. Não é
à toa que o filme foi tão catártico, pois ele possui um senso de justiça muito forte que mexia
com muita gente que estava lá.

Amanda – As pessoas também foram escolhidas porque estavam nesse lugar político! Você
entende, agora, que criar um “mapa emocional” durante a preparação e querer calcular isso não
faz menor sentido? Isso é uma grande ilusão. É um raciocínio muito acidental que não dá certo,
pois somos atravessados o tempo todo.

Thiago – Entendo perfeitamente. Agora, vamos mudar de assunto e ir para a preparação de


elenco de uma maneira mais abrangente. Nesse processo, como funciona o passo a passo de
vocês em uma preparação? Sei que isso não é algo linear e que muda de set para set, de equipe
para equipe, de elenco para elenco e de conceito para conceito, mas, como funciona o processo
de vocês, de uma maneira mais geral? Em especial, vocês entregam o roteiro para o ator logo
de primeira ou primeiro vocês alimentam o personagem dentro daquele ator para, depois,
46

realizarem a leitura das cenas? Como costuma ser essa relação do ator x personagem e ator x
texto?

Amanda – Eticamente, eu acho um absurdo convidar um ator sem que ele tenha ideia do filme
que ele vai fazer. Primeiro de tudo, eu não posso fazer isso. Aquele ator precisa saber se ele
quer contar aquela história e se ele quer emprestar a imagem dele, a emoção dele, o coração
dele, a cara dele, a inteligência dele, para contar aquela história. Então, antes de qualquer
estratégia, para mim, isso é uma questão ética. Segundo, eu confio muito na inteligência dos
atores. Eu não acho que eles precisam ser protegidos e que eles vão me dar algo muito
verdadeiro se eles não souberem o que estão fazendo. Pelo contrário, eu acho que, quanto mais
informações, quanto mais dados, melhor.
O Jurij Alschitz chama isso de rede, que é construir o seu personagem em cima de todas
as filosofias, todas as religiões e todas as ideias políticas. Nenhuma dessas ideias sozinhas
sustentam o personagem, mas o intercruzamento delas e a teia que se forma a partir delas é o
que é o seu personagem. É uma teia de muitos discursos. É polifonia. É multiplicidade.
Então, eu sou muito a favor de que o ator saiba tudo. A única coisa que eu peço é que ele
não decore nada. Inclusive, eu não faço seleção de elenco com o texto decorado. Eu costumo a
mandar três cenas para o ator e, então, pedir para ele ler, estudar e escolher qual cena ele quer
fazer. A partir desse ponto, a gente conversa sobre a cena, analisa ela juntos, eu dou pra ele as
informações e nós construímos aquela cena que, inclusive, está isolada do contexto. Para isso,
eu preciso que ele me diga no processo de seleção como ele elabora um discurso, e como ele é
capaz de elaborar, a partir de o que eu preciso para que aquela cena exista. Para mim, decorar
diálogo é processo. É consequência do processo. É entender o que você está falando na cena e,
muito naturalmente, aquelas palavras vão surgindo.
Em relação ao processo, a primeira coisa que eu faço é abrir uma conversa com a direção.
Idealmente, eu leio o roteiro com a direção antes de chegar nos atores. Então, eu faço a leitura,
abro a análise, mapeamos esse roteiro, mapeamos os temas, mapeamos como eu me relaciono
pessoalmente com isso e, a partir disso, eu começo a abrir cena. Se existe a necessidade de
alguma coisa muito específica a gente vai para o trabalho físico ou para os jogos. Eu sou
discípula da diretora de teatro Viola Spolin, que deixou uma quantidade enorme de jogos
teatrais, que são ferramentas inventadas a partir das necessidades de resolver problemas de
cena. Só que existe uma coisa: os jogos não devem ser aplicados por si sós.
Uma vez, eu fiz um filme com o Sérgio Borges, que era inspirado no coiote do Roberto
Freire. Então, muito obviamente, eu trabalhei com uma parte do elenco que não está no corte
47

final, porque o filme virou outra coisa. Nós trabalhamos com inúmeros exercícios de
“somaterapia”, porque eles faziam sentido para aquele filme e para os corpos que estão na
história. Para mim, os exercícios específicos de atuação, os jogos, os aquecimentos, eles devem
ser escolhidos a partir do projeto. Eles devem ser tirados do bolso quando se provarem
necessários.
Uma outra ferramenta que eu uso muito, quando é necessário, é a inversão. As vezes, os
atores estão travados em uma cena e eu digo assim: “parou! Trocou a personagem!”, e os papéis
se invertem. Quando eles voltam, vários nós que estavam atados se resolvem. Só que eu não
faço isso de graça, pois o jogo e o exercício não fazem sentido por si só. Ele é uma ferramenta
para resolver um problema de ensaio. Para resolver uma questão. Nesse sentido, você inventa
coisas. Existem vários exercícios que eu faço que vieram de um lugar e que eu uso de uma outra
forma. Existem também exercícios que eu criei. Só que a utilização deles ocorre sempre a partir
das necessidades do roteiro e dos atores.
Então, por isso, em um primeiro momento, é importante abrir uma escuta nesse sentido
com os atores: “essa preparação está a serviço de vocês! Qual é a sua maior ansiedade? O que
você precisa? Como você quer usar esse tempo?”. A partir desse momento é análise. Abra cena.
Levanta cena. Não memoriza. Joga. Improvisa em cima. Volta para o diálogo. Improvisa em
cima, volta para diálogo. Entendemos tudo, nos encaixamos e, então, vamos para o set. É mais
ou menos isso.

Leonardo – Eu gosto muito desse caminho da Amanda e também gosto de acrescentar a questão
da câmera. Dependendo também de como as coisas se sucederem, mas, para mim, faz sentido
que a câmera surja em determinado momento do ensaio. Isso, claro, se for necessário. Nesse
processo, realmente, só faz sentido se todo mundo estiver muito confortável. Precisamos
construir uma relação. O primeiro dia vai ser sempre para se conhecer, quebrar o gelo e
desenvolver alguma conexão, porque aquelas pessoas foram convidadas, então, não se
conhecem.
A Amanda fala uma coisa que “preparador não resolve problema de casting”. Eu
concordo plenamente, mas, ao mesmo tempo, eu acredito muito que todo mundo é bem vindo
para estar presente no processo. Eu tento fazer com que as pessoas doem o seu máximo, porque
todo mundo pode contribuir. A inteligência não é um bem de uma pessoa só. Não é uma relação
vertical. Eu vou estar sempre ali para aprender e descobrir também. Cada preparação, pra mim,
é um processo de criatividade, de criação mesmo, e de descoberta. Eu geralmente leio o roteiro
48

e me questiono: como vai ser dessa vez? É sempre muito desesperador e muito instigante, ao
mesmo tempo que é sempre um mistério.

Amanda – Eu partilho muito dessa ideia do mistério também. Eu sempre entro em pânico em
todos os filmes que vou fazer. Para mim, isso é muito coerente porque o meu discurso é que:
se o ator não pode ter controle, eu também não posso ter. Cada pessoa é uma e eu não tenho
controle sobre elas. O processo é o reflexo disso.

Leonardo – Nesse sentido, é quase que uma solidariedade!

Amanda – Quando eu fui para o festival de Brasília para uma oficina, há uns anos atrás, eu
descobri duas citações de pessoas muito diferentes e de épocas muito diferentes do cinema. A
primeira é de Jean Reno, que dizia: “eu não tenho a menor ideia de o que é o personagem. Eu
sento com o meu ator, converso com ele e, em algum momento, ele me diz: ah, é isso! E aí a
gente vai”. A segunda é de Robert Altman, que dizia: “eu não sei qual é o roteiro. Eu vou para
o ensaio e os atores tem que saber a fala, o técnico de luz tem que saber a deixa de lux, mas eu
não sei e eu não quero saber. Eu espero que o ator vá lá e me diga o que é”.
É por isso que eu digo que nós não estamos sozinhos nessa. Nós estamos muito bem
acompanhados. Essa é a grande capacidade de um diretor, de saber reunir pessoas e retirar delas
o melhor que elas podem dar. Isso é o que faz ser um diretor um grande diretor. Lázaro Ramos,
que é um ator que dirige, faz uma coisa linda que diz: não vou dar orientação nenhuma, vamos
passar o primeiro ensaio, vamos ver o que é que eu ganho!”.

Thiago – Nesse processo, vocês utilizam alguma técnica de Stanislavski? Isso inclui técnicas
como: o se mágico, as circunstâncias dadas, as ações físicas, a imaginação, a visualização, os
objetivos, o subtexto, a memória emotiva, a personalização, o monólogo interno, o antecedente,
a projeção, e diversas outras criadas pelo mestre e seus discípulos. Em especial a técnica da
memória emotiva, que é uma técnica que gera muita polêmica porque o ator precisa acessar o
seu passado para ativá-la. Como vocês enxergam essa técnica? Quais são os cuidados que
devemos ter ao utilizá-la?

Amanda – Stanislavski é um gênio! É impossível estudar atuação sem estudar Stanislavski do


mesmo jeito que é impossível estudar psicologia sem estudar Freud, ainda que você o negue.
Ele é o grande cientista que estuda pela primeira vez o que é atuar.
49

Hoje, eu entendi que simpatizo muito mais com a fase final do trabalho dele, que é o
método da análise ativa e das ações psicofísicas. Stanislavski engatilha a imaginação com a
técnica do e se, que é uma partícula linguística que, naturalmente, dispara a criatividade. Então,
eu a uso muito, e não é o se mágico do tipo “e se você estivesse nessa circunstância”, eu o uso
linguisticamente. Quando eu sugiro para um ator, na cena, em um set ou em uma direção, eu
nunca digo “faça isso”, eu digo “e se você fizesse isso”.
Uma outra coisa é que a memória afetiva é muito mal interpretada e estudada. A realidade
é que ela vai muito de pessoa para pessoa. Por exemplo, muitos atores se sentem muito mais
protegidos usando a memória emotiva do que a imaginação, porque, esta última, pode o deixar
muito mais vulnerável, pois ele não tem o controle desta. Já a memória afetiva deixa sobre o
controle de emoções o que eu conheço e sei lidar. Então, vai muito de cada pessoa. Antes da
Estrela Strauss ir para Nova York estudar no estúdio do Lee Strasberg, ela fala que aprendeu
algo muito importante com o mestre argentino dela: “quem contrapõe memória afetiva e
imaginação não entendeu nada”. Na natureza, uma não existe sem a outra. Então, eu acho que
existe um mal uso. Na verdade, a memória emotiva não tem nada a ver com o que se usa para
justificar abuso e violência. Voltamos a: “caramba... lembrei de uma história que nem
lembrava!”. A gente não acessa memória por gosto. A memória acessada por gosto é uma
bengala, porque ela é uma mimese de sua própria vivência.
A atriz pode dizer: “preciso me lembrar do dia em que fui rejeitada e resgatar como eu
me senti para imitar isso”. Quando, na verdade, a memória funciona quando ela aparece e coloca
em seu corpo todas as reações físicas que aquela emoção te fez viver naquele momento. Então,
você tem que criar um processo em que a memória possa surgir de forma espontânea, e não
buscada.
Eu tenho uma antipatia assumida por opiniões pessoas, por exemplo com a Ivana
Chubbuck, que é a grande “bam bam bam” do momento da preparação. Eu acho que ela propõe
o uso da memória emocional de uma forma que não funciona universalmente, assim como
nenhum método funciona, mesmo que ele seja vendido como uma chave para atuar no mundo
a fora. É muito mal interpretado a memória emocional e memória física que, inclusive, são duas
coisas que andam juntas. Não são fazer você reviver um trauma. Existem um monte de
distorções no caminho que dizem que ela é usada para violentar pessoas. A realidade é que você
não pode obrigar ninguém a dar o que ela não pode. Você não mete a mão “dentro” de ninguém
do nada. O ator não acessa o que ele não está preparado para acessar. A psicanálise, por
exemplo, acessa a memória através da palavra e do discurso, que é a mesma coisa que fazer
análise de texto.
50

Leonardo – Eu concordo que não existe nenhum método que pode caber em todo mundo.
Quando eu paro para estudar um pouco sobre os teóricos, apesar de não ser ator, eu tenho uma
identificação muito maior com Meisner e com a imaginação. As suas técnicas geram uma
autonomia muito bonita para a pessoa se desenvolver. Assim, nós não sabemos como ela vai
terminar a cena. Então, acho que se deve estar disponível, atento e com um forte princípio de
desapego, que é o que é essencial. Eu acredito nisso como artista também.
Nesse sentido o processo é bem interessante. Existem atores que possuem uma
capacidade enorme de se auto estimular, mas por que? Acho que isso pode ter sido treino e
autoconhecimento. A pessoa precisa ter um autoconhecimento até para saber identificar as
coisas que te ativam. Acho, inclusive, que isso é um processo muito pessoal, e as vezes não é
em uma preparação que essa coisa vai ser descoberta. É por isso que não tem uma formula,
porque é uma descoberta. No fim das contas, os teóricos servem apenas para elaborar o
discurso, eu aprendi mesmo fazendo.

A entrevista foi finalizada, a presença de Amanda Gabriel e Leonardo Lacca foi agradecida
pelo autor e a chamada de vídeo foi encerrada.
51

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FILHO, Kleber Mendonça. Três roteiros: O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau. 1ª Edição.
São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. Tradução de Pontes de Paula Lima. 33ª


Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

STANISLAVSKI, Constantin. A Construção da Personagem. Tradução de Pontes de Paula


Lima. 17ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

BROOK, Peter. O Ponto de Mudança: quarenta anos de experiências teatrais:1946-1987.


Tradução de Antônio Mercado e Elena Gaidano. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1995.

BARBA, Eugenio. A Canoa de Papel. Tratado de Antropologia Teatral. Tradução de Patrícia


Alves. São Paulo: Editora Hucitec, 1994.

BRECHT, Bertolt. Teatro Dialético: Ensaios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

MCKEE, Robert. Story: Substância, estilo e os princípios da escrita de roteiro. Tradução Chico
Marés. 7ª edição. Curitiba: Arte & Letra, 2006.
52

SARAIVA, Leandro; CANNITO, Newton. Manual de roteiro: ou Manuel, o primo pobre dos
manuais de cinema e tv. 2ª Edição. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2009.

JUGUERO, Viviane. Dramaturgia dialética: é possível o teatro de Brecht na


contemporaneidade performativa? Porto Alegre: Programa de Pós- Graduação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul; Doutorado; João Pedro Gil. CAPES; Doutorado. 2016.
Disponível em:
http://www.bandodebrincantes.com.br/PDFsPublicacoes/Dramaturgiadialetica.pdf . Acesso
em: 10 de janeiro de 2022

ALMEIDA, Camila Barra. O Espaço do ator no cinema: Um olhar sobre ensaio e preparação
dos atores em filmes de realização da UFF. Niterói: Programa de graduação em cinema e
audiovisual da Universidade Federal Fluminense; Bacharelado, 2016. Disponível em:
http://www.rascunho.uff.br/ojs/index.php/rascunho/article/view/148/112 . Acesso em: 10 de
novembro de 2021.
53

FILMOGRAFIA

FILHO, Kleber Mendonça. O Som ao Redor. Digital, cor, 2 horas e 11 minutos, 2012.

FILHO, Kleber Mendonça. Aquarius. Digital, cor, 2 horas e 25 minutos, 2016.

FILHO, Kleber Mendonça. Bacurau. Digital, cor, 2 horas e 11 minutos, 2019.

ENTREVISTA CONCEDIDA AO AUTOR

LACCA, Leonardo; GABRIEL, Amanda. Online via plataforma Zoom. 26 de


novembro de 2021.

Você também pode gostar