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ARADIA: Entre a tradição e a fantasia

Por Draco Stellamare

A figura de Aradia é uma das mais conhecidas do universo da bruxaria após


o revival ocultista da virada do século XIX para o século XX. Ela aparece no âmbito
público pela primeira vez com a publicação de Aradia, ou o Evangelho das Bruxas, de
Charles Godfrey Leland, em 1899. Sua aparição literária como um “messias” das
bruxas italianas inspirou os primeiros praticantes da wicca tradicional britânica na
composição de seus textos litúrgicos, e serviu de exemplo para todo um movimento
de resgate da feitiçaria e do sagrado feminino que se desdobraria nos anos seguintes
a partir da flexibilização do acesso das pessoas à prática da bruxaria moderna. Não
existem, no entanto, comprovações concretas de sua existência, seja como
personagem histórica, seja como personagem mítica existente em tradições
folclóricas fidedignas.

Em minhas buscas por expansão de conhecimento acerca da stregoneria


italiana, encontrei mais de uma vez praticantes tradicionais que concebiam Aradia
como parte viva de suas tradições. Por vezes, a presença de Aradia era
assumidamente uma inclusão posterior, feita por influência de leituras modernas,
mas existiram também os contextos nos quais Aradia era mencionada como um ser
que estaria presente na tradição há muitos séculos. Em alguns casos, essas
concepções eram simétricas a várias de minhas próprias percepções a respeito de
seres que existem em nossa cosmologia, mas, em outros momentos, percepções
completamente distintas surgiam. Algumas destas concepções não podem ser
comentadas diretamente, em razão do respeito devido à intimidade daqueles que as
revelaram, mas acredito que a minha síntese sobre as experiências e percepções que
tive sobre esse assunto podem fornecer perspectivas interessantes para a
compreensão do tema.

Tal como a própria bruxaria, Aradia é uma figura misteriosa e controversa,


que inspira amores e rancores, e cuja mitologia é considerada um poderoso mistério
por alguns, e desprezada como uma fantasia infantil por outros. Neste texto,
proponho revisitarmos brevemente a história pública de Aradia, de modo a
compreendermos as diferentes visões que se consolidaram sobre ela na trajetória
recente da bruxaria, para depois buscarmos um mergulho nas possibilidades de
identificá-la na própria tradição de sua terra de origem... Um mergulho que, mais do
que confirmar ou refutar alguma das narrativas que hoje existem sobre essa
personagem, pode demonstrar que a sua natureza é mais profunda e mais complexa
do que se pode imaginar. Ao final desse texto, minha pequena síntese de percepções
e entendimentos sobre Aradia será resumida, não para que a minha visão se
estabeleça como a resolução de um problema em aberto, mas para que referenciais
mais amplos possam vir a ser considerados.

Como sempre, espero que esse texto possa ser útil a quem se interessar.

A Aradia de Leland

Em uma primeira análise sobre a questão, Aradia não é encontrada em


tradições folclóricas das quais se tenha registro na Itália continental. O único que
parece ter tomado contato com o conhecimento acerca de sua existência foi o
próprio Charles Leland, que já era um folclorista amador e um acadêmico pouco
confiável segundo os olhares de seus contemporâneos.

A história contada sobre a produção das obras de Leland na Itália é – ela


própria – muito duvidosa. Apesar do autor afirmar ter colhido diretamente do povo
italiano todo o material apresentado no Evangelho das Bruxas e em outras obras do
gênero, como Etruscan Roman Remains, qualquer falante da língua italiana
reconhece que existem erros crassos nos textos apresentados nessa língua – erros
que nenhum falante nativo da língua poderia cometer, mesmo considerando as
fortes variações dialetais existentes.

Além da questão linguística propriamente dita, os contornos gerais das


práticas apresentadas são pouco convincentes: a península itálica é provavelmente
o lugar mais católico de todo o mundo, e tudo que se preservou do passado politeísta
apresenta, via de regra, um evidente verniz cristão, atrelado às dinâmicas sociais e
aos valores do catolicismo romano que vigora com punhos de aço na região há quase
dois mil anos. Apesar desse fato, a totalidade dos registros que Leland afirma ter
coletado são de cunho politeísta, pagão no sentido moderno do termo, e temperados
com afrontas explícitas ao cristianismo hegemônico. A título de recomendação para
os entendedores da língua inglesa: quem evidencia muito didaticamente todas essas
contradições, e demonstra que o material de Leland – mesmo se posicionando
antagonicamente ao cristianismo – é completamente baseado na cristandade, é a
PhD Angela Puca, em sua aula sobre o tema – disponível em seu Symposium no
YouTube.

Charles Leland afirma ter recebido os textos que compunham o “evangelho


das bruxas” das mãos de Maddalena – um codinome para uma mulher na realidade
chamada Margherita Talutti ou Talenti. Ele explica que Maddalena era uma
praticante daquilo que ele nomeia como La Vecchia Religione (a velha religião): uma
reminiscência coesa e hermeticamente fechada de um culto pagão, sobrevivendo em
segredo na Itália por toda a era cristã. O quadro apresentado por Leland, embora
anterior às teses de Margareth Murray, faz parte de uma tendência que ganhava
força entre alguns estudiosos e curiosos de sua época, e que considerava possível
que a bruxaria europeia fosse um culto secreto de raízes pré-cristãs. Uma das
principais influências ao pensamento de Leland foi o trabalho de Jules Michelet, La
Sorcière, de 1862, que também descrevia a bruxaria como um culto secreto.

Segundo o autor, Maddalena precisou viajar por várias localidades da região


compreendida pela Toscana e pela Emilia Romagna para buscar a completude dos
ensinamentos da “velha religião”. Estes textos teriam sido entregues a Leland de
forma fragmentada, requerendo dele um tratamento estético e um grande esforço
para a junção das várias partes em um todo coeso e “apresentável”. Neste sentido
muito se especula entre aqueles que se propuseram a avaliar criticamente a obra de
Leland acerca do quanto o material original supostamente recebido dos italianos
teria sido deturpado e adulterado pelo autor. Inegavelmente existem elementos da
magia tradicional italiana nas obras de Leland. A maldição realizada no limão com
alfinetes, apesar da retórica “pagã” envolvida, é um dos mais nítidos exemplos
desses elementos.

Outras partes do texto, contudo, soam fantasiosas e impraticáveis ao


contexto de vida dos italianos da zona rural do centro-norte da península. A ceia de
pessoas nuas que imita uma missa subversiva, à qual se segue uma grande orgia em
honra a Diana e Lúcifer parece quase uma caricatura. É possível que estes ritos
fossem praticados por pessoas de nível social elevado interessadas no ocultismo e
na bruxaria, tal como em clubes e associações inglesas que se dedicavam ao estudo
do espiritualismo. Entretanto, quando pensamos no estilo de vida dos camponeses
italianos, com uma espiritualidade fortemente arraigada no catolicismo folclórico –
onde estão, por sinal, a maioria das reminiscências de um politeísmo antigo – a
revolta premeditada contra a moralidade sexual e a realização de grandes banquetes
em homenagem ao Diabo parecem elementos mais próximos do onírico do que do
mundo real. Sob essa perspectiva, a ceia sabática dos seguidores de Aradia não
estaria tão distante das experiências de transe vivenciadas pelos bruxos tradicionais
do Friuli, do Veneto oriental e do Trentino, nos quais o limiar entre o ritual praticado
fisicamente e a experiência mística que toma lugar nos sonhos é muito tênue,
permitindo que a ritualização mais relevante ocorra não entre os vivos e despertos,
mas na companhia dos mortos e dos outros seres espirituais.

Contudo, não é de sonhos e transes de senhoras cristãs que fala Leland em


sua obra. O culto das bruxas é por ele apresentado como um culto politeísta de
resistência, fundado pela própria Aradia a partir de uma mitologia muito específica.
A “messias” das bruxas nasce do incesto entre Diana e Lúcifer, tidos paradoxalmente
como deidades primordiais e seres revoltosos contra a Trindade cristã. Ela é então
enviada por sua mãe à terra, para ensinar aos camponeses italianos a arte da
bruxaria, de modo que eles pudessem castigar seus opressores, os senhores feudais
e os sacerdotes da “nova” religião. Aradia teria então instituído os sacramentos de
comunhão com a Deusa mãe, uma forma de ritualizar e invocar o auxílio divino
durante as cerimônias da lua cheia.

No decorrer do livro, somos apresentados à história da Casa do Vento, onde


uma jovem ligada à arte das bruxas – identificada por outros autores com a própria
Aradia – é aprisionada e consegue se libertar após orar para a Grande Diana, que
envia uma tempestade avassaladora em resposta. Em conjunto a tais mitos, a
justificativa histórica encontrada por Leland para a existência de Aradia está na
italianização do nome Herodias ou Herodiade. Enquanto este nome se refere à
personagem bíblica responsável pela decapitação de João Batista, Leland afirma que
em realidade Herodiade era uma deusa da região do Levante, uma antecessora de
Lilith – da qual nenhum outro estudioso parece ter tido conhecimento. Outras
deidades são mencionadas, como a deusa Laverna, padroeira dos ladrões e das
prostitutas – uma característica também atribuída a Diana como protetora dos
pecadores, o que é, ironicamente, uma das atribuições folclóricas da Virgem Maria.

De toda a extensão do livro, talvez o que tenha maior importância para o


conhecimento público da figura de Aradia sejam as falas atribuídas a ela própria e
sua mãe Diana, transcritas logo adiante. Tais falas são carregadas de elementos
socialmente problemáticos, como o antissemitismo e o preconceito contra os
ciganos, e apresentam uma forte oposição ao cristianismo, como se este fosse a fonte
de toda a opressão vivenciada pela população camponesa pela mão dos senhores
feudais de seu tempo. Essas linhas, como veremos no próximo tópico, foram
fundamentais na constituição de um outro texto importantíssimo para os
praticantes da bruxaria moderna, pelas mãos dos precursores da Wicca de Gerald B.
Gardner.

(...) Diana disse um dia à sua filha Aradia:


É certo que és um espírito
Mas foste gerada para voltar a ser
Um mortal; deves descer à terra
E ser uma mestra de homens e mulheres
Os quais, de bom grado,
devem estudar bruxaria em tua escola.
Mas, como a filha de Caim jamais deves ser
Tampouco como a raça que por fim se tornou
Depravada e infame pelo sofrimento,
Como os judeus e os errantes Zingari
Os quais são todos ladrões e vilões; como eles
Não deves ser...
E deves ser a primeira das bruxas conhecidas;
E deves ser a primeira de todas no mundo;
E deves ensinar a arte do envenenamento,
Do envenenamento daqueles que são os maiores dentre os senhores;
Sim, deves fazer com que morram em seus palácios;
E deves sujeitar a alma do opressor (pela força);
E quando encontrares um campônio que seja rico,
Deves então ensinar à bruxa, sua pupila, como
Arruinar suas colheitas com tempestades terríveis,
Com o relâmpago e o trovão (terríveis),
E com o granizo e o vento...
E quando um padre causar-te mal
Com suas bênçãos, deves imputar a ele
Males duas vezes piores, e fazei-o em nome
De mim, Diana, a Rainha de Todas as Bruxas!
E quando os sacerdotes da nobreza
Disserem que deves depositar sua fé
No Pai, No Filho e em Maria, respondei então;
“Vosso Deus, O Pai e Maria são Três Demônios...”
“Pois o verdadeiro Deus Pai não é vosso;
Pois vim para varrer o mal
Os homens malignos destruirei a todos!”
“Vós que sois pobres e sofrem com a fome,
E labutam em miséria, sofrendo também
Constantemente com a prisão; Ainda assim
Tendes uma alma, e por vosso sofrimento
Sereis felizes no outro mundo,
Mas negativo é o destino
de todos os que vos causam mal!”
Então quando Aradia foi ensinada a operar a bruxaria, a como destruir a raça
maligna (de opressores), ela (transmitiu a suas pupilas) e lhes disse:
Quando eu tiver partido deste mundo,
Sempre que precisardes de algo,
Uma vez por mês, quando a lua estiver plena,
Reuni-vos em algum local deserto,
Ou em assembléia num bosque
Para adorar o poderoso espírito de sua rainha,
Minha mãe, a grande Diana.
Àquela que de bom grado
Aprender toda a magia, mas que ainda não domina
Seus mais profundos segredos, minha mãe irá
Ensinar, na verdade, todas as coisas ainda desconhecidas.
E sereis libertos de qualquer escravidão,
E sereis livres para qualquer coisa;
E como sinal de sua inequívoca liberdade,
Deveis comparecer desnudos em seus ritos, tanto homens
Quanto mulheres: isto deve perdurar até
Que morra o último de seus opressores;
E deveis jogar o jogo de Benevento
Apagando as chamas, para em seguida
Desfrutar de sua refeição da seguinte forma... (...)
- Encerramento do primeiro capítulo do Evangelho das Bruxas.

A Aradia de Gardner

Ao contrário do que muitos praticantes acreditam, o corpo final de crenças e


práticas da Wicca de Gerald Gardner foi o resultado de todo um processo de
amálgamas e reformulações. Enquanto sua alegação de ter sido iniciado por uma
bruxa tradicional em New Forest tem plenas possibilidades de ser verdadeira
(levando em consideração o que se sabe sobre as atividades esotéricas da Crotona
Fellowship e sobre figuras como Dorothy Cuttlerbuck e Edith Woodford-Grimes), o
sistema litúrgico wiccano está longe de ser um todo coeso que tenha sido
transmitido de forma ancestral – como muito se fez acreditar em determinados
contextos. A nova religião das bruxas sofreu inúmeras influências “estrangeiras” e
recebeu contribuições de múltiplas fontes até se tornar aquilo que veio a ser
publicamente conhecido na mídia após a abolição das leis inglesas contra a prática
da bruxaria. Uma dessas fontes inspiradoras do trabalho de Gardner e de algumas
de suas sacerdotisas foi justamente o livro Aradia de Charles G. Leland.

Acredita-se que os discursos de Diana e Aradia no início do livro tiveram uma


relevância muito grande na elaboração de uma cosmovisão própria à Wicca original.
A começar pelo fato de que partes escolhidas do texto ocuparam na liturgia wiccana
primitiva o papel que depois veio a ser desempenhado pela Carga da Deusa, escrita
por Doreen Valiente. Enquanto uma das sacerdotisas mais conhecidas de Gardner,
Valiente dizia que o fundador da Wicca surpreendeu-se quando ela foi capaz de
identificar a origem do texto usado por ele. Ela própria, posteriormente, utilizou-se
assumidamente do material de Leland para reformular o texto litúrgico, escrevendo
as famosas linhas que se tornaram um marco poético da nova religião.

Além da Carga da Deusa, algumas das linhagens wiccanas utilizam o nome de


Aradia ou de Diana para se referir à deusa da lua e das estrelas. Uma reinterpretação
wiccana do mito de Diana e Lúcifer, presente no Evangelho das Bruxas, pode ser
percebida nos primeiros instantes do filme-documentário Legend of The Witches, de
1970, no qual participam Alex Sanders, o fundador da Wicca Alexandrina, e sua
esposa e sacerdotisa, Maxine.

É possível que muitos dos principais elementos que existem na liturgia


wiccana, como a nudez ritual e o consumo de pães e vinho, tenham sido inspirados
na prescrição de Leland sobre o sabá ou treguenda das bruxas italianas. Apesar de
Gardner ter sido ele mesmo um naturalista, há historicidade nos relatos de bruxas
italianas performando certas práticas em nudez completa e com cabelos soltos de
maneira selvagem, de modo que, para um intelectual que buscava aproximar sua
tradição daquilo que estava em voga nas discussões esotéricas – balizadas pelos
escritos de Leland e Murray –, adicionar a nudez ritual pareceria uma escolha muito
sensata, tanto pelo viés histórico, quanto pelo viés “pseudo-folclórico” contemplado.
O trabalho de Gardner e Valiente sobre o legado de Leland certamente foi o
que promoveu o nome de Aradia em escala mundial. Foi graças às primeiras décadas
de abertura e popularização da Wicca que o Evangelho das Bruxas foi tirado das
sombras e recolocado nas prateleiras das livrarias, traduzido para vários idiomas,
revisado e comentado à exaustão. O carisma sobre a personagem apresentada pelo
folclorista americano cresceu tanto ao longo das décadas de fermentação da
bruxaria moderna, que hoje em dia existem praticantes que consideram Aradia
como uma das infinitas divindades que podem ser cultuadas dentro dos rituais
ecléticos que se espelharam na Wicca de Gardner. Aradia tornou-se não somente um
nome usado para a deusa da Wicca Tradicional, mas sim uma das “muitas faces do
diamante que é a Deusa de dez mil nomes”, ao lado de Ísis, Astarte, Diana, Hécate,
Deméter, Kali, Inanna...

Isso tudo parece um movimento de ascendente popularidade para o nome de


Leland, mas nem toda recepção de seu trabalho foi positiva. Entre os próprios
neopagãos, uma resistência se formou contra a aceitação do Evangelho das Bruxas
como um documento fidedigno. Isso deve ter ocorrido por dois principais fatores: o
primeiro é a recusa wiccana em se associar de qualquer maneira ao conceito de
Lúcifer, do Diabo ou Satanás (já que tal associação poderia pôr a perder o espaço de
respeitabilidade social que essa nova religião tanto buscava); já o segundo é a
persistência, mesmo naquele tempo, de desconfianças em relação à veracidade do
material “italiano” apresentado pelo autor. Foi um movimento natural que, mesmo
com o reconhecimento de Aradia enquanto uma nova divindade a ser cultuada pela
bruxaria eclética, o livro que a apresentou ao mundo deixasse gradualmente de ser
uma referência tão apontada por escritores wiccanos nas décadas que se seguiram.

Alguns iniciados da nova religião, porém, seguiram o caminho oposto, e


utilizaram o material de Leland não apenas para tentar justificar uma historicidade
para a Wicca, mas também para reformular a própria bruxaria italiana,
aproximando-a dos ares revolucionários da comunidade neopagã que se formava na
segunda metade do século XX. O mais relevante de todos eles, indiscutivelmente, foi
Raven Grimassi.

A seguir trago para comparação a famosa Carga da Deusa, originalmente


escrita por Doreen Valiente:
Ouça as palavras da Grande Mãe, que em tempos antigos era chamada de Ártemis,
Dione, Melusine, Afrodite, Ceridwen, Diana, Arionrhod, Brigit e por muitos outros
nomes:

“Quando tiverem a necessidade de algo, uma vez ao mês, e é melhor que seja quando
a Lua estiver cheia, deverão reunir-se em algum local secreto e adorar o meu espírito,
Eu que sou a Rainha de toda Bruxaria. Vocês estarão livres da escravidão e, como um
sinal de sua liberdade, vocês estarão nus em seus ritos. Cante, festeje, dance, faça
música e amor, todos em minha presença, pois meu é o êxtase do espírito e minha
também é a alegria sobre a terra. Pois minha lei é a do amor para todos os seres. Meu
é o segredo que abre a porta da juventude e minha é a taça do vinho da vida, que é o
caldeirão de Ceridwen, que é o santo graal da imortalidade. Eu concedo a sabedoria
do espírito eterno e, além da morte, dou a paz e a liberdade e o reencontro com
aqueles que se foram antes. Nem tampouco exijo algum tipo de sacrifício, pois saiba,
eu sou a mãe de todas as coisas e meu amor é derramado sobre a terra”.

Ouça as palavras da Deusa Estrela cuja poeira dos pés são as hostes do céu, cujo
corpo envolve o universo:

“Eu, que sou a beleza da terra verde e a Lua branca entre as estrelas e o mistério das
águas, invoco seu espírito: desperte e venha até a mim. Pois eu sou o espírito da
natureza que dá vida ao universo. De mim, todas as coisas nascem e para mim todas
devem retornar. Que a adoração a mim esteja no coração que rejubila, pois, saiba,
todos os atos de amor e prazer são meus rituais. Portanto, que haja beleza e força,
poder e compaixão, honra e humildade, júbilo e reverência dentro de você. E você,
que busca conhecer-me, saiba que a sua procura e ânsia serão em vão, a menos que
você conheça o mistério: pois se aquilo que busca não se encontrar dentro de você,
nunca o achará fora de si. Saiba, pois, eu estou com você desde o início dos tempos, e
eu sou aquela que é alcançada ao fim do desejo”.

- A Carga da Deusa, como fornecida por Janet Farrar.

A Aradia de Grimassi

Se os escritos de Leland sobre bruxas italianas foram um ingrediente


inspirador para a elaboração da nova bruxaria britânica, pode-se dizer também que,
nos Estados Unidos da América, esses escritos foram usados para criar narrativas
inovadoras sobre a prática dos seguidores de Aradia. O primeiro dos que foram a
público afirmando-se como seguidores da vecchia religione foi Leo Martello, filho de
um imigrante siciliano, autor de livros de ocultismo e militante pelos direitos civis
dos homossexuais.

Nos idos das décadas de sessenta e setenta em diante, Martello afirmava que
fazia parte de uma tradição italiana chamada “Strega”, termo que em italiano
significa apenas e tão somente “bruxa”. Ele também afirmava que teria sido nela
iniciado por alguns de seus primos após longos anos de observação à distância, nos
quais estes parentes aguardaram que ele estivesse pronto para a grande revelação
de que a família não era cristã. E como principal elemento de sua narrativa, dizia que
sua avó paterna era a líder de um coven no interior da Sicilia, chamado “Goddess of
the Sikels”. Os críticos de Martello acreditam ser improvável que uma bruxa siciliana
do início do século XX liderasse um coven politeísta, achando mais provável admitir
que, se Martello realmente possuía laços ancestrais com a magia italiana, ele teria
enfeitado a tradição folclórica de sua família com elementos wiccanos, que
começavam a se tornar acessíveis na mídia daquela época. O uso do termo la vecchia
religione, e de referências a elementos encontrados no Evangelho das Bruxas de
Leland também não parece nem um pouco acidental.

De toda forma, Martello foi uma pessoa que deixou um legado político-social
muito positivo para a comunidade neopagã e LGBT, sendo querido por muitas
pessoas até os dias de hoje, de modo que se torna importante dizer que o intuito
dessa menção às suas contradições não é desmerecê-lo enquanto pessoa, mas
somente demonstrar alguns dos primeiros fatores que contribuíram para a
formação da visão norte-americana de Aradia. A partir dessas contradições citadas
podemos traçar em Martello a origem mais antiga do movimento de bruxaria
moderna ítalo-americana. Se ele teve um importante papel na militância em prol dos
direitos civis da população LGBT e do movimento por liberdade religiosa, em
paralelo, acabou preparando o terreno para a vinda de Lori Bruno (sua iniciada e
herdeira, liderança da Trinacrian Rose Church) e Raven Grimassi. Estes dois podem
ser definidos como duas das personalidades do meio neopagão que delinearam os
contornos do que acreditavam ser a bruxaria tradicional italiana no panorama da
comunidade New Age. Grimassi, especificamente, tornou-se uma figura de destaque
a partir dos anos noventa com a publicação de livros sobre a tradição “italiana” que
agora era chamada e divulgada como “stregheria”.

Grimassi também era também filho de imigrantes italianos e herdeiro, pelo


que se sabe, de uma linhagem de magia folclórica fidedigna, praticada por sua mãe,
de origem napolitana. Entretanto, essa linhagem parece ter exercido pouca ou
nenhuma influência naquilo que ele transmitiu ao público de seus livros, devotado
à tradição politeísta, cerimonial e hermética que ele afirmava ser oriunda da própria
Aradia e de seus primeiros discípulos.

O mito de Aradia é recontado com uma riqueza maior de detalhes nas obras
de Grimassi – em especial Bruxaria Hereditária e The Book of The Holy Strega.
Eventos que teriam transcorrido com a própria messias das bruxas e seus
seguidores são narrados como parte do corpo de crenças que Grimassi teria
recebido de fontes orais e escritas ao longo de sua formação enquanto bruxo
hereditário. Pela primeira vez, a trajetória de Aradia a faz deixar a Toscana e se
dirigir para o sul, para os arredores de Roma e para as proximidades de Napoli e
Benevento, de onde o próprio Grimassi pode reivindicar ascendência. Inúmeras
viagens de Aradia e seus seguidores pela península itálica são descritas pelo autor,
levantando questionamentos acerca do quanto toda essa mobilidade seria
hipoteticamente viável (ou não) na Itália do século XIV, época apontada como o
tempo em que tais eventos teriam transcorrido. Há que se observar que era mais
fácil viajar pela península itálica naquela época do que em outras regiões da Europa,
em razão da efervescência das rotas de comércio do alvorecer da renascença.
Entretanto, as longas viagens eram favorecidas aos burgueses e membros da
nobreza, e menos tranquilas para os camponeses e demais integrantes das classes
oprimidas – às quais o clã de Aradia teria pertencido. Na realidade da época, as
viagens exigiam escolta armada e muita diplomacia, pois a entrada no domínio de
um senhor feudal pouco receptivo poderia ser um risco, além da existência de
assaltantes, das intempéries do território e das guerras provinciais constantes.

Segundo Grimassi, o nascimento de Aradia se deu em 1313, no dia 14 de


agosto, na cidade de Volterra na Toscana. Ao contrário de Leland que atribui um
caráter divino à messias das bruxas, o corpus de crenças apresentado por Grimassi
considera que Aradia foi uma profetiza, uma espécie de santa, que recebeu uma
iluminação enquanto estava sentada sob uma árvore nas proximidades do Lago
Nemi, em Roma, chamado também de espelho de Diana. A partir de então ela teria
viajado e reunido seguidores, aos quais transmitiu ensinamentos que muito
destoam daqueles apresentados por Leland no Evangelho das Bruxas.

Enquanto a Aradia de Leland é partidária da violência extrema e da constante


revolta contra o clero e os senhores feudais, a Aradia de Grimassi prega o amor
universal da deusa e do deus, o respeito às diferenças, e uma forma romantizada da
lei do triplo retorno encontrada na Wicca Gardneriana. Nas treze leis que ela teria
deixado aos seus discípulos, chamadas de The Covenant of Aradia, muitas das
disposições são diametralmente opostas ao que se conhece do comportamento
tempestuoso das bruxas italianas...

A proibição de fazer o mal a qualquer criatura, a menos que seja para se


alimentar ou se defender, a proibição de cobrar por trabalhos de magia, e a
obrigatoriedade de iniciar qualquer um que deseje e seja digno, são três das mais
evidentes que posso comentar. Como é atestado em qualquer fonte tradicional ou
acadêmica, a stregoneria possui seus valores acerca da prática do malefício, mas ela
não é de forma alguma proibida ou desencorajada. Quanto à cobrança em dinheiro
pela prática da magia, a atuação de bruxos e feiticeiros populares atesta que a
cobrança por determinados serviços não só é possível, como é frequente. E, por fim,
a obrigatoriedade de iniciar qualquer pessoa que mereça é uma regra que se choca
de forma irreconciliável com a tendência das linhagens de stregoneria em transmitir
o laço iniciático apenas a quem possua vínculo familiar-comunitário com o
praticante, além de ser um requisito o candidato gozar de sua extrema confiança.
Até se pode encontrar um paralelo com a obrigatoriedade existente em algumas
tradições de iniciar ao menos uma pessoa antes de morrer, mas essa regra passa
longe de ser uma disseminação proselitista do ofício das bruxas – tal como é o legado
da Aradia de Grimassi.

Em síntese, o trabalho literário de Grimassi costura pontas soltas das obras


de Leland, buscando dar a elas uniformidade e retratar um panorama “ancestral”
coeso para a bruxaria italiana. Entretanto, ele o faz através de toda uma releitura do
material, que exclui suas partes sujas e polêmicas (como a prática da maldição, o
antissemitismo e o preconceito contra os ciganos), e preenche as amplas lacunas
existentes com concepções, ferramentas e ritualísticas retiradas da Wicca
Gardneriana e do ocultismo moderno. Dentre os elementos retirados da magia
folclórica, tal como nos livros de Leland, vários erros linguísticos podem ser
observados nos trechos em italiano, colocando parte desses elementos sob suspeita
aos olhos de quem está familiarizado com as tradições da terra de origem. No legado
de Grimassi o nome de Lúcifer é também ressignificado, e atrelado a Dianus Lucifero,
numa referência ao Janus romano. Essa é uma dentre inúmeras adaptações que
visam aproximar a percepção original de Leland sobre os deuses às compreensões
neopagãs mais recentes. A deusa e o deus de Grimassi são de aspecto tríplice, ao
contrário daqueles de Leland, e essa triplicidade foge às características históricas de
Diana Trivia para assumir, na prática dos ritos e entendimentos teológicos
propostos, as características wiccanas de uma deusa que é jovem, mãe e anciã.

Outro elemento do mito que ganha muito mais espaço na obra de Grimassi é
o caráter messiânico e profético das falas de Aradia. Enquanto no Evangelho das
Bruxas as previsões se resumem à libertação da opressão e à morte dos senhores
feudais, em Grimassi o papel de Aradia é o de anunciar uma “nova era” para a raça
humana, chamada de Era da Filha em contraposição à Era do Filho (que seria o
tempo de Jesus Cristo). Segundo as palavras atribuídas a Aradia pelo autor, chegaria
um tempo em que a igualdade entre homens e mulheres seria maior, e então viria
para o mundo um profeta ao serviço dos deuses, um profeta da própria Aradia, que
marcaria o início dessa nova era, onde a razão seria mais importante do que a fé, e a
humanidade avançaria para um estágio onde muitos dos males trazidos pela Igreja
Católica seriam deixados para trás. Curiosamente, também é afirmado em um dos
capítulos da obra Bruxaria Hereditária que a cada duzentos anos, em média,
nasceriam profetas da Aradia divina, filha de Diana e Lúcifer – uma figura que para
o autor é separada da Aradia humana. Esses profetas tornariam a palavra de Aradia
“conhecida no mundo inteiro”, e a cada uma de suas vindas, eles “renovariam e
expandiriam seus ensinamentos”. É quase impossível fugir à inteligência do leitor a
percepção de que, com muitos floreios, Grimassi tenta sugerir que ele e Charles
Leland são dois destes profetas prometidos (segundo ele próprio) pela deusa.

Um outro aspecto fundamental da exposição que Grimassi faz daquilo que ele
chama de “a autêntica bruxaria italiana” é a triplicidade de tradições inerente a esse
caminho. Segundo ele argumenta, a verdadeira bruxaria italiana proposta por
Aradia teria sido dividida em três grandes ramos: a Janarra, que preservou os
mistérios do mar, a Tanarra, que preservou os mistérios das estrelas, e a Fanarra,
que preservou os mistérios da terra, todas localizadas em regiões geográficas
distintas da península itálica. O percurso de um líder tradicional da stregheria
deveria envolver o conhecimento dos mistérios de todas as três partes da tradição.
Destes três termos indicados, o único que possui precedentes na cultura italiana
conhecida é o primeiro, que remete a janara, um termo utilizado na região da
Campania e na Sardegna para designar determinados seres vinculados às bruxas. É
possível que esse termo faça referência a dianara, vocábulo que designava um
seguidor da deusa Diana em tempos pretéritos, mas mesmo essa etimologia não é
comprovada. E enquanto o termo tanarra faz uma referência direta à deusa Tana
dos etruscos, o termo fanarra permanece não comentado.

Naturalmente, é Grimassi o herdeiro escolhido por estas três partes da


tradição para unificá-las novamente! O que ele faz neste sentido, é apresentar um
conjunto de fundamentos de magia que envolve tanto conceitos oriundos das
tradições de magia cerimonial (o que é o caso das runas estelares encontradas
parcialmente nos livros de Cornelius Agrippa) quanto reinterpretações de
conhecimentos astrológicos (como os espíritos das mansões da lua), além de
elementos cuja origem não é ainda conhecida (como as runas mágicas do mar e o
sistema oracular de runas toscanas). Os críticos de seu trabalho também apontam
incoerência histórica e linguística em utilizar as letras do alfabeto etrusco como se
fossem um alfabeto mágico passado secretamente por gerações de praticantes de
magia na Itália.

Com tantas observações críticas a serem feitas, pode parecer que a obra de
Grimassi não possui seus pontos positivos, o que não é verdade. Ao buscar alguma
fundamentação histórica que possa justificar as ideias presentes no Evangelho das
Bruxas, ele traz à discussão a figura de Guglielma da Milano, a líder de um culto
herético do século XIII que foi considerada como a encarnação do Espírito Santo.
Conforme se tem registro, a seita dos guglielmitas elegeu uma Papisa, e estruturou
uma organização litúrgica para uma versão da igreja católica que seria conduzida
majoritariamente por mulheres. É a figura dessa Papisa que inspirou a carta da
Papisa/Sacerdotisa no Tarô, devido a relação que a poderosa família Visconti-Sforza
tinha com essas heresias. Embora as alegações de Grimassi de que o tema de uma
“messias feminina” estivesse em voga no imaginário da época sejam insuficientes
para provar qualquer coisa sobre a existência de uma Aradia real, comentarei mais
à frente que o estabelecimento de uma relação entre Guglielma da Milano, Aradia e
outras figuras femininas do universo mediterrâneo não é de todo incoerente.
Para ilustrar a discrepância entre a Aradia de Leland e a Aradia de Grimassi,
segue-se um trecho extraído de um dos livros de maior sucesso desse último:

Abençoados sejam os livres em espírito e aqueles que amam sem desejar nada em
troca. Pois o amor é a maior conquista. É o presente da benção do espírito. Portanto,
nunca traiam um amor, nem o enganem. Amem uns aos outros e cuidem uns dos
outros, e cada uma dessas coisas com o coração e a alma de um poeta.
Tentem ver o mundo como faz o artista. Vão, busquem e capturem a beleza que está
lá. E tomem cuidado para que não machuquem nenhum dos que estão entre vocês.
Mas amem, e vivam, ao máximo, em consciência e compaixão com as mentes e
corações e almas de todos ao seu redor. Vivam em paz.

- Livre-tradução da fala atribuída a Aradia em Hereditary Witchcraft, de Raven


Grimassi.

A Aradia de Magliocco

Ao revisar atentamente a biografia de Grimassi é possível perceber que, até


um determinado período, seu maior nêmesis foi a antropóloga italiana Sabina
Magliocco, que devotou alguns de seus artigos a desmistificar a magia tradicional
italiana e seus desdobramentos na América do Norte. A relação entre Grimassi e
Magliocco tornou-se amistosa quando, após as críticas da antropóloga gerarem um
questionamento público sobre a tradicionalidade da magia na família do escritor, ele
a convidou para visitar a sua casa e conversar diretamente com sua mãe sobre as
práticas familiares. Magliocco então editou uma nota esclarecendo que não
restavam dúvidas para ela de que a mãe de Grimassi era uma autêntica praticante
da magia folclórica italiana. Se por um lado esse episódio contribuiu para suavizar
as críticas que eram feitas à stregheria enquanto objeto completamente alienígena à
realidade dos italianos, por outro, ficou sugerido que aquilo que existe de
efetivamente ancestral e familiar no discurso de Grimassi é algo muito menor do que
o vultuoso constructo elaborado por ele publicamente, na forma das tradições
aridiana e ariciana (os dois maiores movimentos da stregheria organizados por ele).
A conduta de Magliocco pode parecer agressiva aos praticantes da
espiritualidade moderna, mas em realidade é apenas a busca profissional-
acadêmica pelo entendimento da religião e da realidade histórica e social
envolvendo seus praticantes, busca essa que não precisa envolver um juízo de valor
com relação a validade ou invalidade das práticas per se. Semelhante busca foi
realizada por Magliocco em relação à figura de Aradia, e suas conclusões foram
reveladoras. Na introdução de seu artigo sobre o tema – indicado nas referências
desta publicação – algumas hipóteses reunidas por outros autores sobre a
etimologia do nome de Aradia nos são apresentadas. Areodesa, Ariadne, dentre
outras. Contudo, é o desdobramento da busca por Aradia na região de origem da
antropóloga que traz as maiores descobertas e fornece as teorias mais fascinantes.

Através da pesquisa etnográfica na ilha da Sardegna (Sardenha), onde


nasceu, Magliocco encontrou indícios da presença folclórica de um ser espiritual
denominado Sa Rejusta. Este espírito, ora descrito como uma bruxa e ora descrito
como uma ogra, viveria embaixo da Craxtu de Funari, uma grande pedra nas
proximidades de Bessude, da qual sairia todas as noites do dia 31 de julho para
raptar crianças que encontrasse em seu caminho. Uma forma de afastá-la seria
realizando na janela uma oferenda de um prato de comida. Tais elementos
colocavam Sa Rejusta como um bicho-papão, ao lado de outras tantas figuras do
folclore familiar italiano, mas a etimologia do nome poderia indicar uma origem
mais profunda.

Em visita a outras localidades da ilha e em contato com conhecedores das


tradições locais, a autora identificou a relação de Sa Rejusta com o ofício de fiar,
evidenciando o papel de fiscalizadora do dever das jovens moças em relação a esse
ofício doméstico. Nesse outro contexto, uma forma possível de escapar da fúria de
Sa Rejusta, que uma jovem que tivesse sido displicente com o ofício de fiar
certamente lançaria mão, é o oferecimento de um prato de lentilha que manteria a
bruxa ocupada – contando os grãos – até o raiar do sol do dia seguinte, quando ela
teria que voltar para sua toca. Essa técnica de defesa baseada em grãos que os
espíritos são coagidos a contar é universal dentro das tradições folclóricas e mágicas
da Itália, e encontra paralelo na realidade de outros países.
Prosseguindo com sua pesquisa, a antropóloga encontra outras
denominações regionais para o mesmo espírito como Sorre Justa (a irmã justa) e
Mama Erodas (Mãe Heródias). A conexão com a Heródias/Herodiade bíblica se
estabelece em consonância com a visão clerical de Diana e Herodias como figuras
que guiavam as bruxas na Idade Média. Magliocco então apresenta o impacto que o
Canon Episcopi teve ao estabelecer o nome destas duas entidades aos espíritos
folclóricos ligados ao voo noturno das bruxas. Seres espirituais que antes eram
conhecidos por outros nomes, tiveram a alcunha de Diana e de Herodias acoplada à
sua percepção por parte do povo. Como defende a autora, o folclore e as tradições
populares representam uma visão alternativa do mundo, distinta da visão
eclesiástica/sacerdotal, mas em constante relação com ela.

A ligação de Sa Rejusta com a Herodias das bruxas medievais é reforçada


quando a autora se depara com sa regula morte (a horda ou procissão dos mortos),
uma crença folclórica ainda viva na Sardegna e em outras localidades da Itália, de
que existiria uma andança dos espíritos dos falecidos que pode ser vista por
determinadas pessoas em determinadas datas. Um dos muitos nomes populares
para esse evento é sa regula de Erode (a horda ou procissão de Heródias). Ao
adentrar as razões para essa referência constante a Heródias, Magliocco menciona
os seres espirituais chamados jana, conhecidos por esse nome especificamente na
Sardegna e na Campania. As janas são normalmente descritas como bruxas ou
sereias de natureza demoníaca, não-humana, que podem interagir de formas
benéficas ou maléficas com os seres humanos – até mesmo se casando com eles e
gerando descendência. De modo geral, as janas são parte do mesmo grupo de seres
míticos que no Veneto e no Friuli recebem o nome de anguane.

Os lares das janas da ilha da Sardegna são as construções funerárias do


neolítico chamadas domus de janas, e o ser que as comanda no folclore sardo é uma
entidade chamada Arada ou Araja (falado com a mesma pronúncia de Aradia em
português brasileiro). Além do nome que remete a Heródias, este ser também é
descrito pelos nativos como s’Araja dimoniu (Araja o demônio), atestando que muito
da satanização imbuída à figura de Heródias também influenciou sua constituição
dentro do folclore sardo.
As conclusões de Magliocco são de que tais lendas são uma forte evidência de
que pode ter existido um ser conhecido pelo nome de Aradia na Itália continental. O
caminho por meio do qual estas similaridades ocorreram, contudo, é menos certo.
Muito provavelmente, tanto a hipotética existência de uma Aradia toscana quanto a
existência de Sa Rejusta/s’Araja dimoniu foram influenciadas pela retórica da igreja
católica medieval a respeito das andanças noturnas das bruxas com Diana e
Heródias. Tais conceitos podem ter entrado na Sardegna e na Toscana pelas mãos
dos padres católicos e, a partir daí, desenvolveram-se separadamente através das
interações entre o mundo eclesiástico e o mundo folclórico. Outra possibilidade é
que a figura de Aradia realmente existiu em tempos pretéritos no continente,
espalhando-se até a Sardegna, e nela se conservando por mais tempo devido à
insularidade. Qual é a hipótese mais assertiva, ou se essas hipóteses ocorreram
simultaneamente, são perguntas que ainda permanecem em aberto.

Fato incontestável é que o trabalho de Magliocco nos permite perceber que


existe muito mais profundidade na figura de Aradia do que podemos conceber ao
fazer uma primeira leitura – crítica – da obra de Charles G. Leland. Além do trabalho
de Magliocco, outras conexões são traçadas entre Aradia e figuras de nome
semelhante atreladas ao universo das bruxas-fada que voam ou dançam durante a
noite, como é o caso demonstrado por Mircea Eliade sobre Arada, a rainha das fadas
romenas que presidia sobre a associação ritualística dos dançarinos conhecidos por
calusari. Na tese de Eliade, Arada é ainda mais próxima da ideia toscana sobre
Aradia, na medida em que ele a considera uma “metamorfose” da própria deusa
Diana em terras romenas.

Muito além de uma invenção de um folclorista amador, Aradia pode ter sido
uma das muitas figuras femininas ligadas ao voo espiritual que povoam as tradições
mágicas e folclóricas da Itália, ao lado de Madonna Oriente, Richella e das Donne di
Fuora, tão comentadas na obra de Carlo Ginzburg sobre o sabá. Faltam registros
sobre a continuidade de uma sabedoria tradicional sobre Aradia, mas não faltam
elementos para crer que essa sabedoria deve ter existido, e de que nuances a
respeito dela sobrevivem em inúmeras tradições, tal como a temida Sa Rejusta ainda
escapa da Craxtu de Funari todas as noites do último dia do mês de julho, para o
terror das crianças sardas.
É na compreensão de que existe toda essa teia de relações, semelhanças e
simetrias, que podemos olhar para as experiências com a figura de Aradia e com
outras figuras próprias de cada tradição para teorizar sobre aquilo que nos une a
partir da ancestralidade que, de uma forma ou de outra, muitos de nós, praticantes
da magia de origem italiana, carregamos.

Parte final – A Aradia de Todas as Bruxas...?

Meu primeiro contato com o nome “Aradia” foi através da leitura de uma
web-comic que eu acompanhava na adolescência, chamada Homestuck. Nessa
história, um conjunto de doze personagens alienígenas representavam os doze
signos do zodíaco e a personagem que representava o signo de Áries era uma
médium com poderes sobre o tempo, chamada Aradia Megido. Como nativo de Áries,
eu resolvi procurar mais informações sobre a personagem e as pesquisas me
levaram até o Evangelho das Bruxas de Charles Leland. À época, o material me
pareceu exótico e ao mesmo tempo familiar, uma mistura muito provocativa para
uma mente jovem e desocupada.

À medida em que aprofundei os meus estudos sobre o texto nos anos


seguintes, suas lacunas começaram a parecer mais evidentes. Nessa época eu já
estava em contato com alguns membros da comunidade neopagã e, num movimento
natural, acabei chegado aos livros de Raven Grimassi. Por sorte, em pouco tempo fiz
meus primeiros contatos com outros praticantes de stregoneria e o romantismo
lúdico dos livros “grimassianos” começou a se esfarelar no meu entendimento. Em
duas das tradições com as quais tive contato nesse período, Aradia era vista como
uma figura histórica e central, como um verdadeiro ancestral das práticas
“sabáticas” (e em algum nível cerimoniais) que ambas as tradições executavam.
Entretanto, a compreensão sobre o papel de Aradia também divergia sutilmente
entre ambas as tradições, e igualmente entre elas e o livro de Leland.

Aqui pode ser necessário um parêntesis para comentar que em nosso


entendimento muitas tradições possuem um aspecto duplo. Por um lado, existe a
tradição como é transmitida oralmente e que em muitos casos não excede o folclore
familiar e um conjunto de práticas devocionais e operativas – aqui o limite das
práticas católicas marginais e da feitiçaria mais simples são dificilmente
ultrapassados. Por outro lado, existe a dimensão extática da tradição, que comporta
as vivências oníricas, os transes mediúnicos, as visões, e tudo que é aprendido e
expandido através deles. Em alguns casos a própria tradição oral possui os
mecanismos para iniciar a caminhada nesse “segundo aspecto”, mas em outros casos
essa caminhada começa espontaneamente. O ponto que fecha esse parêntesis e nos
leva de volta à Aradia da bruxaria tradicional é que, em ambos os grupos de
praticantes que conheci, essa prática sabática – que em minha tradição e em diversas
outras é compreendida como um segundo aspecto – já estava plenamente
desenvolvida em moldes ritualísticos que eram passados de uma geração para outra
de praticantes (não necessariamente da mesma linhagem familiar).

Não é possível nem ético especular se essa transmissão de saberes sobre


Aradia ocorreu sempre de forma horizontal (de pessoa para pessoa) ao longo de
toda a história dessas tradições, ou se a origem desses saberes está em um processo
vertical (um contato com o mundo espiritual que foi expandido e sistematizado
liturgicamente a partir de uma geração específica de praticantes). O que é possível
compreender, contudo, é que em todos os casos que testemunhei da presença de
Aradia em congregações tradicionais, ela sempre esteve ligada ao caráter profético
atrelado às bruxas e ao processo de ligação entre os seres humanos e o divino. Mais
assertivamente, posso dizer que Aradia sempre esteve ligada ao “sabá das bruxas”.

É na zona transitória entre o céu e a terra, na zona onde ocorre a procissão


dos mortos e a caçada selvagem, na companhia das Matronas e das Senhoras do Jogo,
que as chaves para compreender Aradia residem. Isso é corroborado pelos achados
de Magliocco e Eliade, já mencionados, e é também o que a observação e a reflexão
intuitiva me apontaram.

Em minha tradição não se conhece a figura denominada de Aradia, mas


existem algumas entidades femininas que acumulam seus mesmos atributos
proféticos e de conexão entre os mundos. Parte santas usuais e parte personagens
do lado sombrio da história cristã, todas são mulheres que receberam iluminações
da divindade através de experiencias místicas e que, cada uma ao seu modo,
passaram a exercer o papel da divindade intermediária entre Deus e os homens,
entre o mundo espiritual e o mundo físico. Do lado reconhecido pela Igreja temos
Santa Catarina de Alexandria, Santa Barbara, Santa Luzia de Siracusa, Santa Teresa
D’Ávila, Santa Agata da Catania, Santa Joana D’Arc, Santa Marina de Antioquia, entre
outras. Do lado “obscuro” temos Jezebel, a Bruxa de Endor, a Rainha de Sabá,
Heródias, Salomé, entre outras, que possuem suas justificativas folclóricas para sua
condição de empoderamento e livre-trânsito entre o céu e a terra. Seria tentador
atribuir um “sincretismo” entre várias dessas figuras e a Aradia mitológica, mas uma
associação reta e sem contextualização pouco nos ajudaria a entender o mistério que
reside por trás de tais figuras.

Outro ponto que é necessário de relembrar aqui é, como bem demonstra


Grimassi em seu livro, que o tema de um messias feminino estava em voga na Itália
do século XIII. Poderíamos ver um eco desse papel profético e de ligação entre o céu
e a terra na figura de Guglielma da Milano? Acredito que sim, guardadas as devidas
proporções do contexto em que tais fenômenos ocorreram. A carta da Papisa e seus
desdobramentos posteriores na Sacerdotisa nos trazem insights interessantes sobre
como a impressão deixada por essa personagem histórica ficou marcada no
esoterismo ocidental. Decididamente, o papel desempenhado por Guglielma não
fugiu a essa necessidade de uma personagem feminina que é a encarnação de uma
divindade, ou que se torna uma, e passa a ligar o mundo físico ao mundo espiritual.

Dentre as “santas profetizas” que tem lugar em minha tradição, a relevância


de cada uma delas é mutável entre os devotos. Tenho um vínculo particular com
Santa Barbara, mas minha avó o tinha com Santa Caterina, e assim por diante. O que
é curioso é notar que em todas as pessoas que se tem notícia que fizeram uso desses
saberes, uma espécie de triângulo se formou entre Deus, a Virgem Maria e uma
destas santas que trazem mensagens ou carregam símbolos que interligam o céu e
a terra. Entre todos aqueles que tiveram algum percurso mais longo com os
conhecimentos da tradição, esse padrão pareceu se repetir. E entre os poucos que
formaram uma ligação com isso que chamamos “assembleia” ou “sabá das bruxas”,
o mesmo tipo de trindade ou triângulo parece sempre se formar entre o Diabo, nossa
Madonna Arianna – a ancestral que preside o sonho e representa a Mãe Divina – e
uma destas santas profetisas. Não acredito em associações vazias levadas pela
emoção quando reconheço que a persistência destes padrões significa que um
formato é pretendido pela ancestralidade nessas experiências. Mas qual seria a
justificativa para essa configuração triangular entre os seres da tradição?

Acredito que um outro ponto positivo e inusitado de Grimassi é a sua busca


por associar-se aos etruscos enquanto “origem espiritual” da sua stregheria.
Infelizmente, muito do que se fala a respeito dos etruscos no meio ocultista é
bobagem do ponto de vista científico, incluindo a sua relevância na ancestralidade
biológica dos italianos contemporâneos – que geneticamente é mínima. Mas pondo
à parte essa questão, o papel dos etruscos no desenvolvimento dos povos itálicos e
sua marca na religiosidade que eles carregaram ao longo desse desenvolvimento,
não pode ser negado. Talvez pelos motivos errados, Grimassi tenha acertado ao
buscar na trindade etrusca Tinia, Uni/Thalna e Menrva – que depois se torna a
trindade capitolina Jupiter, Juno e Minerva – a provável origem da tríade formada
por Lúcifer, Diana e Aradia. A associação da filha divina com Minerva não deixa de
ter um vestígio na história: entre os espíritos mencionados como viajantes noturnos
pelos céus da Itália durante a Alta Idade Média está presente o nome de Minerva.
Obviamente isso não comprova nada, mas nos coloca outro elemento na mesa para
reflexão. Novamente a recorrência da trindade neste contexto se evidencia.

As trindades pressupõem uma lógica que é tanto geométrica quanto


metafísica. Três é o número da manifestação, assim como o triângulo é o que
possibilita a delimitação de um plano no espaço. O próprio esoterismo tradicional
do “ocidente” possui um entendimento sólido sobre o princípio do TERNÁRIO
expresso por analogias como Sol + Lua = Mercúrio, Luz + Trevas = Crepúsculo, e Pai
+ Mãe = Filho. O princípio da Tese + Antítese = Síntese como algo que se reflete por
todo o cosmos nos coloca em posição de considerar que, independentemente de uma
existência histórica de Aradia, o espaço ocupado por ela é um espaço que
naturalmente deveria existir enquanto síntese das realidades de Diana (trevas,
elemento passivo, mãe, etc.) e Lúcifer (luz, elemento ativo, pai, etc.).

Se o catolicismo hegemônico consolidou sua percepção de Deus em uma


trindade, por que a ancestralidade bruxa não poderia operar com uma triplicidade
de princípios divinos?
Com algum conhecimento dos temas que enumerei nos últimos parágrafos é
possível vislumbrar que este espaço da “síntese de opostos” que é ocupado por
Aradia nas obras de Leland e Grimassi pode ser (e de fato é) ocupado por outros
seres e por outras representações simbólicas em outros contextos. A título de
exemplo, a visão folclórica e mística da Santa Barbara que uniu o céu e a terra através
do raio, e que carrega consigo o cálice e a espada, expressa para o camponês italiano
do século passado algo muito similar ao que deve expressar ao neopagão a visão de
uma Aradia que une o divino ao humano e que carrega as insígnias sexuais de um
deus e de uma deusa. A percepção do que se expressa por tais manifestações, por
outro lado, levaria à discussão metafísica acerca do que são as divindades e de quais
formas elas se manifestam neste mundo, o que não é um assunto simples, e nem é o
propósito desse texto.

Sistematicamente em minha jornada eu encontrei Aradia: (1) como um


personagem fictício, (2) como a ancestral mítica que deu origem às práticas
sabáticas tradicionais que eu pude testemunhar, (3) como divindade que concluía a
formação de uma trindade no aspecto mais contemporâneo da stregoneria e (4)
também como uma santa intercessora. Em todos esses papéis que Aradia assumiu,
excetuando o primeiro, uma clara ressonância com as santas profetisas de minha
tradição se fez presente. Não poderia ser outra a minha conclusão senão esta: tendo
existido enquanto pessoa ou apenas enquanto mito, Aradia personifica esse mistério
da sacerdotisa à serviço do alto, da inteligência feminina que liga o divino ao
humano, assim como liga os mundos físico e espiritual, e permite aos adeptos da
tradição a retomada da comunhão com o divino transcendente e incompreensível,
por vezes demonizado. Ora, é este o exato papel que enxergamos nas Matronas e
“Senhoras do Jogo” das bruxas medievais: Richella, Madonna Oriente, l’Abadessa,
entre tantas outras entidades femininas que se manifestaram na experiência das
mulheres (e dos homens) de seu cortejo até a dança do Sabá. É este o exato papel
que enxergamos também na Arada romena descoberta por Eliade, e em s’Araja
dimoniu, que Magliocco mapeou liderando as janas da Sardegna.

Embora o tempo e a especulação não lhe tenham feito justiça, tenho


convicção de que Aradia não é apenas uma fábula inventada por Charles Leland para
justificar as suas teorias defasadas sobre as bruxas italianas. Ela é uma das inúmeras
representações do terceiro elemento da trindade com a qual nos deparamos em
nossas experiências noturnas, uma das profetisas e uma das santas bruxas que
através dos séculos tem levado homens e mulheres de coração ardente até a colina
da Assembleia dos Espíritos.

E se minha percepção é correta, não se trata de discriminar a maneira pela


qual as pessoas compreendem Aradia e como sua fé nela é exercida. Trata-se de
buscar a compreensão da profundidade do que ela representa, pois o esforço em
compreender a sua natureza ancestral e transcendente certamente levará a outras
indagações e ao ganho de uma percepção mais rica e visceral da tradição à qual ela
remonta. Em tempos de esvaziamento de saberes tradicionais, e frente a tanta
especulação que se deu historicamente sobre Aradia, a busca por um entendimento
melhor de suas raízes me parece necessária, não somente para a prática espiritual
(moderna ou tradicional) que se volta ao seu nome, mas como medida de justiça à
memória ancestral da própria stregoneria.

Aradia é viva, e fala por meio de muitas vozes. Que o tempo conturbado em
que vivemos permita aos que buscam esse mistério a capacidade de encontrá-lo!

Referências:

Aradia in Sardinia – Sabina Magliocco

Hereditary Witchcraft – Raven Grimassi

The Book of The Holy Strega – Raven Grimassi

Aradia o Evangelho das Bruxas – Charles Godfrey Leland

A Bíblia das Bruxas – Janet e Stuart Farrar

Controversial – Raven Grimassi

Controversial – Leo Martello

Aradia, or The Gospel of Witches – Artigo da Wikipédia


Aradia, Leland & the Gospel of the Witches - Academic review of the sources –
Angela’s Symposium

História Noturna: Decifrando o Sabá – Carlo Ginzburg


Căluşari

A figura de Aradia é uma das mais conhecidas do universo da bruxaria após o revival
ocultista da virada do século XIX para o século XX. Ela aparece no âmbito público pela
primeira vez com a publicação de Aradia, ou o Evangelho das Bruxas, de Charles Godfrey
Leland, em 1899. Sua aparição literária como um “messias” das bruxas italianas inspirou os
primeiros praticantes da wicca tradicional britânica na composição de seus textos
litúrgicos, e serviu de exemplo para todo um movimento de resgate da feitiçaria e do
sagrado feminino que se desdobraria nos anos seguintes a partir da flexibilização do acesso
das pessoas à prática da bruxaria moderna. Não existem, no entanto, comprovações
concretas de sua existência, seja como personagem histórica, seja como personagem mítica
existente em tradições folclóricas fidedignas.

Em minhas buscas por expansão de conhecimento acerca da stregoneria italiana,


encontrei mais de uma vez praticantes tradicionais que concebiam Aradia como parte viva
de suas tradições. Por vezes, a presença de Aradia era assumidamente uma inclusão
posterior, feita por influência de leituras modernas, mas existiram também os contextos nos
quais Aradia era mencionada como um ser que estaria presente na tradição há muitos
séculos. Em alguns casos, essas concepções eram simétricas a várias de minhas próprias
percepções a respeito de seres que existem em nossa cosmologia, mas, em outros
momentos, percepções completamente distintas surgiam. Algumas destas concepções não
podem ser comentadas diretamente, em razão do respeito devido à intimidade daqueles
que as revelaram, mas acredito que a minha síntese sobre as experiências e percepções que
tive sobre esse assunto podem fornecer perspectivas interessantes para a compreensão do
tema.

Tal como a própria bruxaria, Aradia é uma figura misteriosa e controversa, que
inspira amores e rancores, e cuja mitologia é considerada um poderoso mistério por alguns,
e desprezada como uma fantasia infantil por outros. Neste texto, proponho revisitarmos
brevemente a história pública de Aradia, de modo a compreendermos as diferentes visões
que se consolidaram sobre ela na trajetória recente da bruxaria, para depois buscarmos um
mergulho nas possibilidades de identificá-la na própria tradição de sua terra de origem...
Um mergulho que, mais do que confirmar ou refutar alguma das narrativas que hoje existem
sobre essa personagem, pode demonstrar que a sua natureza é mais profunda e mais
complexa do que se pode imaginar. Ao final desse texto, minha pequena síntese de
percepções e entendimentos sobre Aradia será resumida, não para que a minha visão se
estabeleça como a resolução de um problema em aberto, mas para que referenciais mais
amplos possam vir a ser considerados.
Como sempre, espero que esse texto possa ser útil a quem se interessar.

A Aradia de Leland

Em uma primeira análise sobre a questão, Aradia não é encontrada em tradições


folclóricas das quais se tenha registro na Itália continental. O único que parece ter tomado
contato com o conhecimento acerca de sua existência foi o próprio Charles Leland, que já
era um folclorista amador e um acadêmico pouco confiável segundo os olhares de seus
contemporâneos.

A história contada sobre a produção das obras de Leland na Itália é – ela própria –
muito duvidosa. Apesar do autor afirmar ter colhido diretamente do povo italiano todo o
material apresentado no Evangelho das Bruxas e em outras obras do gênero, como Etruscan
Roman Remains, qualquer falante da língua italiana reconhece que existem erros crassos
nos textos apresentados nessa língua – erros que nenhum falante nativo da língua poderia
cometer, mesmo considerando as fortes variações dialetais existentes.

Além da questão linguística propriamente dita, os contornos gerais das práticas


apresentadas são pouco convincentes: a península itálica é provavelmente o lugar mais
católico de todo o mundo, e tudo que se preservou do passado politeísta apresenta, via de
regra, um evidente verniz cristão, atrelado às dinâmicas sociais e aos valores do catolicismo
romano que vigora com punhos de aço na região há quase dois mil anos. Apesar desse fato,
a totalidade dos registros que Leland afirma ter coletado são de cunho politeísta, pagão no
sentido moderno do termo, e temperados com afrontas explícitas ao cristianismo
hegemônico. A título de recomendação para os entendedores da língua inglesa: quem
evidencia muito didaticamente todas essas contradições, e demonstra que o material de
Leland – mesmo se posicionando antagonicamente ao cristianismo – é completamente
baseado na cristandade, é a PhD Angela Puca, em sua aula sobre o tema – disponível em seu
Symposium no YouTube.

Charles Leland afirma ter recebido os textos que compunham o “evangelho das
bruxas” das mãos de Maddalena – um codinome para uma mulher na realidade chamada
Margherita Talutti ou Talenti. Ele explica que Maddalena era uma praticante daquilo que ele
nomeia como La Vecchia Religione (a velha religião): uma reminiscência coesa e
hermeticamente fechada de um culto pagão, sobrevivendo em segredo na Itália por toda a
era cristã. O quadro apresentado por Leland, embora anterior às teses de Margareth Murray,
faz parte de uma tendência que ganhava força entre alguns estudiosos e curiosos de sua
época, e que considerava possível que a bruxaria europeia fosse um culto secreto de raízes
pré-cristãs. Uma das principais influências ao pensamento de Leland foi o trabalho de Jules
Michelet, La Sorcière, de 1862, que também descrevia a bruxaria como um culto secreto.

Segundo o autor, Maddalena precisou viajar por várias localidades da região


compreendida pela Toscana e pela Emilia Romagna para buscar a completude dos
ensinamentos da “velha religião”. Estes textos teriam sido entregues a Leland de forma
fragmentada, requerendo dele um tratamento estético e um grande esforço para a junção
das várias partes em um todo coeso e “apresentável”. Neste sentido muito se especula entre
aqueles que se propuseram a avaliar criticamente a obra de Leland acerca do quanto o
material original supostamente recebido dos italianos teria sido deturpado e adulterado
pelo autor. Inegavelmente existem elementos da magia tradicional italiana nas obras de
Leland. A maldição realizada no limão com alfinetes, apesar da retórica “pagã” envolvida, é
um dos mais nítidos exemplos desses elementos.

Outras partes do texto, contudo, soam fantasiosas e impraticáveis ao contexto de


vida dos italianos da zona rural do centro-norte da península. A ceia de pessoas nuas que
imita uma missa subversiva, à qual se segue uma grande orgia em honra a Diana e Lúcifer
parece quase uma caricatura. É possível que estes ritos fossem praticados por pessoas de
nível social elevado interessadas no ocultismo e na bruxaria, tal como em clubes e
associações inglesas que se dedicavam ao estudo do espiritualismo. Entretanto, quando
pensamos no estilo de vida dos camponeses italianos, com uma espiritualidade fortemente
arraigada no catolicismo folclórico – onde estão, por sinal, a maioria das reminiscências de
um politeísmo antigo – a revolta premeditada contra a moralidade sexual e a realização de
grandes banquetes em homenagem ao Diabo parecem elementos mais próximos do onírico
do que do mundo real. Sob essa perspectiva, a ceia sabática dos seguidores de Aradia não
estaria tão distante das experiências de transe vivenciadas pelos bruxos tradicionais do
Friuli, do Veneto oriental e do Trentino, nos quais o limiar entre o ritual praticado
fisicamente e a experiência mística que toma lugar nos sonhos é muito tênue, permitindo
que a ritualização mais relevante ocorra não entre os vivos e despertos, mas na companhia
dos mortos e dos outros seres espirituais.

Contudo, não é de sonhos e transes de senhoras cristãs que fala Leland em sua obra.
O culto das bruxas é por ele apresentado como um culto politeísta de resistência, fundado
pela própria Aradia a partir de uma mitologia muito específica. A “messias” das bruxas nasce
do incesto entre Diana e Lúcifer, tidos paradoxalmente como deidades primordiais e seres
revoltosos contra a Trindade cristã. Ela é então enviada por sua mãe à terra, para ensinar
aos camponeses italianos a arte da bruxaria, de modo que eles pudessem castigar seus
opressores, os senhores feudais e os sacerdotes da “nova” religião. Aradia teria então
instituído os sacramentos de comunhão com a Deusa mãe, uma forma de ritualizar e invocar
o auxílio divino durante as cerimônias da lua cheia.

No decorrer do livro, somos apresentados à história da Casa do Vento, onde uma


jovem ligada à arte das bruxas – identificada por outros autores com a própria Aradia – é
aprisionada e consegue se libertar após orar para a Grande Diana, que envia uma
tempestade avassaladora em resposta. Em conjunto a tais mitos, a justificativa histórica
encontrada por Leland para a existência de Aradia está na italianização do nome Herodias
ou Herodiade. Enquanto este nome se refere à personagem bíblica responsável pela
decapitação de João Batista, Leland afirma que em realidade Herodiade era uma deusa da
região do Levante, uma antecessora de Lilith – da qual nenhum outro estudioso parece ter
tido conhecimento. Outras deidades são mencionadas, como a deusa Laverna, padroeira dos
ladrões e das prostitutas – uma característica também atribuída a Diana como protetora dos
pecadores, o que é, ironicamente, uma das atribuições folclóricas da Virgem Maria.

De toda a extensão do livro, talvez o que tenha maior importância para o


conhecimento público da figura de Aradia sejam as falas atribuídas a ela própria e sua mãe
Diana, transcritas logo adiante. Tais falas são carregadas de elementos socialmente
problemáticos, como o antissemitismo e o preconceito contra os ciganos, e apresentam uma
forte oposição ao cristianismo, como se este fosse a fonte de toda a opressão vivenciada pela
população camponesa pela mão dos senhores feudais de seu tempo. Essas linhas, como
veremos no próximo tópico, foram fundamentais na constituição de um outro texto
importantíssimo para os praticantes da bruxaria moderna, pelas mãos dos precursores da
Wicca de Gerald B. Gardner.

(...) Diana disse um dia à sua filha Aradia:


É certo que és um espírito
Mas foste gerada para voltar a ser
Um mortal; deves descer à terra
E ser uma mestra de homens e mulheres
Os quais, de bom grado,
devem estudar bruxaria em tua escola.
Mas, como a filha de Caim jamais deves ser
Tampouco como a raça que por fim se tornou
Depravada e infame pelo sofrimento,
Como os judeus e os errantes Zingari
Os quais são todos ladrões e vilões; como eles
Não deves ser...
E deves ser a primeira das bruxas conhecidas;
E deves ser a primeira de todas no mundo;
E deves ensinar a arte do envenenamento,
Do envenenamento daqueles que são os maiores dentre os senhores;
Sim, deves fazer com que morram em seus palácios;
E deves sujeitar a alma do opressor (pela força);
E quando encontrares um campônio que seja rico,
Deves então ensinar à bruxa, sua pupila, como
Arruinar suas colheitas com tempestades terríveis,
Com o relâmpago e o trovão (terríveis),
E com o granizo e o vento...
E quando um padre causar-te mal
Com suas bênçãos, deves imputar a ele
Males duas vezes piores, e fazei-o em nome
De mim, Diana, a Rainha de Todas as Bruxas!
E quando os sacerdotes da nobreza
Disserem que deves depositar sua fé
No Pai, No Filho e em Maria, respondei então;
“Vosso Deus, O Pai e Maria são Três Demônios...”
“Pois o verdadeiro Deus Pai não é vosso;
Pois vim para varrer o mal
Os homens malignos destruirei a todos!”
“Vós que sois pobres e sofrem com a fome,
E labutam em miséria, sofrendo também
Constantemente com a prisão; Ainda assim
Tendes uma alma, e por vosso sofrimento
Sereis felizes no outro mundo,
Mas negativo é o destino
de todos os que vos causam mal!”
Então quando Aradia foi ensinada a operar a bruxaria, a como destruir a raça
maligna (de opressores), ela (transmitiu a suas pupilas) e lhes disse:
Quando eu tiver partido deste mundo,
Sempre que precisardes de algo,
Uma vez por mês, quando a lua estiver plena,
Reuni-vos em algum local deserto,
Ou em assembléia num bosque
Para adorar o poderoso espírito de sua rainha,
Minha mãe, a grande Diana.
Àquela que de bom grado
Aprender toda a magia, mas que ainda não domina
Seus mais profundos segredos, minha mãe irá
Ensinar, na verdade, todas as coisas ainda desconhecidas.
E sereis libertos de qualquer escravidão,
E sereis livres para qualquer coisa;
E como sinal de sua inequívoca liberdade,
Deveis comparecer desnudos em seus ritos, tanto homens
Quanto mulheres: isto deve perdurar até
Que morra o último de seus opressores;
E deveis jogar o jogo de Benevento
Apagando as chamas, para em seguida
Desfrutar de sua refeição da seguinte forma... (...)
- Encerramento do primeiro capítulo do Evangelho das Bruxas.
A Aradia de Gardner

Ao contrário do que muitos praticantes acreditam, o corpo final de crenças e práticas


da Wicca de Gerald Gardner foi o resultado de todo um processo de amálgamas e
reformulações. Enquanto sua alegação de ter sido iniciado por uma bruxa tradicional em
New Forest tem plenas possibilidades de ser verdadeira (levando em consideração o que se
sabe sobre as atividades esotéricas da Crotona Fellowship e sobre figuras como Dorothy
Cuttlerbuck e Edith Woodford-Grimes), o sistema litúrgico wiccano está longe de ser um
todo coeso que tenha sido transmitido de forma ancestral – como muito se fez acreditar em
determinados contextos. A nova religião das bruxas sofreu inúmeras influências
“estrangeiras” e recebeu contribuições de múltiplas fontes até se tornar aquilo que veio a
ser publicamente conhecido na mídia após a abolição das leis inglesas contra a prática da
bruxaria. Uma dessas fontes inspiradoras do trabalho de Gardner e de algumas de suas
sacerdotisas foi justamente o livro Aradia de Charles G. Leland.

Acredita-se que os discursos de Diana e Aradia no início do livro tiveram uma


relevância muito grande na elaboração de uma cosmovisão própria à Wicca original. A
começar pelo fato de que partes escolhidas do texto ocuparam na liturgia wiccana primitiva
o papel que depois veio a ser desempenhado pela Carga da Deusa, escrita por Doreen
Valiente. Enquanto uma das sacerdotisas mais conhecidas de Gardner, Valiente dizia que o
fundador da Wicca surpreendeu-se quando ela foi capaz de identificar a origem do texto
usado por ele. Ela própria, posteriormente, utilizou-se assumidamente do material de
Leland para reformular o texto litúrgico, escrevendo as famosas linhas que se tornaram um
marco poético da nova religião.

Além da Carga da Deusa, algumas das linhagens wiccanas utilizam o nome de Aradia
ou de Diana para se referir à deusa da lua e das estrelas. Uma reinterpretação wiccana do
mito de Diana e Lúcifer, presente no Evangelho das Bruxas, pode ser percebida nos
primeiros instantes do filme-documentário Legend of The Witches, de 1970, no qual
participam Alex Sanders, o fundador da Wicca Alexandrina, e sua esposa e sacerdotisa,
Maxine.

É possível que muitos dos principais elementos que existem na liturgia wiccana,
como a nudez ritual e o consumo de pães e vinho, tenham sido inspirados na prescrição de
Leland sobre o sabá ou treguenda das bruxas italianas. Apesar de Gardner ter sido ele
mesmo um naturalista, há historicidade nos relatos de bruxas italianas performando certas
práticas em nudez completa e com cabelos soltos de maneira selvagem, de modo que, para
um intelectual que buscava aproximar sua tradição daquilo que estava em voga nas
discussões esotéricas – balizadas pelos escritos de Leland e Murray –, adicionar a nudez
ritual pareceria uma escolha muito sensata, tanto pelo viés histórico, quanto pelo viés
“pseudo-folclórico” contemplado.

O trabalho de Gardner e Valiente sobre o legado de Leland certamente foi o que


promoveu o nome de Aradia em escala mundial. Foi graças às primeiras décadas de abertura
e popularização da Wicca que o Evangelho das Bruxas foi tirado das sombras e recolocado
nas prateleiras das livrarias, traduzido para vários idiomas, revisado e comentado à
exaustão. O carisma sobre a personagem apresentada pelo folclorista americano cresceu
tanto ao longo das décadas de fermentação da bruxaria moderna, que hoje em dia existem
praticantes que consideram Aradia como uma das infinitas divindades que podem ser
cultuadas dentro dos rituais ecléticos que se espelharam na Wicca de Gardner. Aradia
tornou-se não somente um nome usado para a deusa da Wicca Tradicional, mas sim uma
das “muitas faces do diamante que é a Deusa de dez mil nomes”, ao lado de Ísis, Astarte,
Diana, Hécate, Deméter, Kali, Inanna...

Isso tudo parece um movimento de ascendente popularidade para o nome de


Leland, mas nem toda recepção de seu trabalho foi positiva. Entre os próprios neopagãos,
uma resistência se formou contra a aceitação do Evangelho das Bruxas como um documento
fidedigno. Isso deve ter ocorrido por dois principais fatores: o primeiro é a recusa wiccana
em se associar de qualquer maneira ao conceito de Lúcifer, do Diabo ou Satanás (já que tal
associação poderia pôr a perder o espaço de respeitabilidade social que essa nova religião
tanto buscava); já o segundo é a persistência, mesmo naquele tempo, de desconfianças em
relação à veracidade do material “italiano” apresentado pelo autor. Foi um movimento
natural que, mesmo com o reconhecimento de Aradia enquanto uma nova divindade a ser
cultuada pela bruxaria eclética, o livro que a apresentou ao mundo deixasse gradualmente
de ser uma referência tão apontada por escritores wiccanos nas décadas que se seguiram.

Alguns iniciados da nova religião, porém, seguiram o caminho oposto, e utilizaram


o material de Leland não apenas para tentar justificar uma historicidade para a Wicca, mas
também para reformular a própria bruxaria italiana, aproximando-a dos ares
revolucionários da comunidade neopagã que se formava na segunda metade do século XX.
O mais relevante de todos eles, indiscutivelmente, foi Raven Grimassi.

A seguir trago para comparação a famosa Carga da Deusa, originalmente escrita por
Doreen Valiente:
Ouça as palavras da Grande Mãe, que em tempos antigos era chamada de Ártemis,
Dione, Melusine, Afrodite, Ceridwen, Diana, Arionrhod, Brigit e por muitos outros
nomes:

“Quando tiverem a necessidade de algo, uma vez ao mês, e é melhor que seja quando
a Lua estiver cheia, deverão reunir-se em algum local secreto e adorar o meu espírito,
Eu que sou a Rainha de toda Bruxaria. Vocês estarão livres da escravidão e, como um
sinal de sua liberdade, vocês estarão nus em seus ritos. Cante, festeje, dance, faça
música e amor, todos em minha presença, pois meu é o êxtase do espírito e minha
também é a alegria sobre a terra. Pois minha lei é a do amor para todos os seres. Meu
é o segredo que abre a porta da juventude e minha é a taça do vinho da vida, que é o
caldeirão de Ceridwen, que é o santo graal da imortalidade. Eu concedo a sabedoria
do espírito eterno e, além da morte, dou a paz e a liberdade e o reencontro com
aqueles que se foram antes. Nem tampouco exijo algum tipo de sacrifício, pois saiba,
eu sou a mãe de todas as coisas e meu amor é derramado sobre a terra”.

Ouça as palavras da Deusa Estrela cuja poeira dos pés são as hostes do céu, cujo
corpo envolve o universo:

“Eu, que sou a beleza da terra verde e a Lua branca entre as estrelas e o mistério das
águas, invoco seu espírito: desperte e venha até a mim. Pois eu sou o espírito da
natureza que dá vida ao universo. De mim, todas as coisas nascem e para mim todas
devem retornar. Que a adoração a mim esteja no coração que rejubila, pois, saiba,
todos os atos de amor e prazer são meus rituais. Portanto, que haja beleza e força,
poder e compaixão, honra e humildade, júbilo e reverência dentro de você. E você,
que busca conhecer-me, saiba que a sua procura e ânsia serão em vão, a menos que
você conheça o mistério: pois se aquilo que busca não se encontrar dentro de você,
nunca o achará fora de si. Saiba, pois, eu estou com você desde o início dos tempos, e
eu sou aquela que é alcançada ao fim do desejo”.

- A Carga da Deusa, como fornecida por Janet Farrar.

A Aradia de Grimassi

Se os escritos de Leland sobre bruxas italianas foram um ingrediente inspirador


para a elaboração da nova bruxaria britânica, pode-se dizer também que, nos Estados
Unidos da América, esses escritos foram usados para criar narrativas inovadoras sobre a
prática dos seguidores de Aradia. O primeiro dos que foram a público afirmando-se como
seguidores da vecchia religione foi Leo Martello, filho de um imigrante siciliano, autor de
livros de ocultismo e militante pelos direitos civis dos homossexuais.

Nos idos das décadas de sessenta e setenta em diante, Martello afirmava que fazia
parte de uma tradição italiana chamada “Strega”, termo que em italiano significa apenas e
tão somente “bruxa”. Ele também afirmava que teria sido nela iniciado por alguns de seus
primos após longos anos de observação à distância, nos quais estes parentes aguardaram
que ele estivesse pronto para a grande revelação de que a família não era cristã. E como
principal elemento de sua narrativa, dizia que sua avó paterna era a líder de um coven no
interior da Sicilia, chamado “Goddess of the Sikels”. Os críticos de Martello acreditam ser
improvável que uma bruxa siciliana do início do século XX liderasse um coven politeísta,
achando mais provável admitir que, se Martello realmente possuía laços ancestrais com a
magia italiana, ele teria enfeitado a tradição folclórica de sua família com elementos
wiccanos, que começavam a se tornar acessíveis na mídia daquela época. O uso do termo la
vecchia religione, e de referências a elementos encontrados no Evangelho das Bruxas de
Leland também não parece nem um pouco acidental.

De toda forma, Martello foi uma pessoa que deixou um legado político-social muito
positivo para a comunidade neopagã e LGBT, sendo querido por muitas pessoas até os dias
de hoje, de modo que se torna importante dizer que o intuito dessa menção às suas
contradições não é desmerecê-lo enquanto pessoa, mas somente demonstrar alguns dos
primeiros fatores que contribuíram para a formação da visão norte-americana de Aradia. A
partir dessas contradições citadas podemos traçar em Martello a origem mais antiga do
movimento de bruxaria moderna ítalo-americana. Se ele teve um importante papel na
militância em prol dos direitos civis da população LGBT e do movimento por liberdade
religiosa, em paralelo, acabou preparando o terreno para a vinda de Lori Bruno (sua iniciada
e herdeira, liderança da Trinacrian Rose Church) e Raven Grimassi. Estes dois podem ser
definidos como duas das personalidades do meio neopagão que delinearam os contornos
do que acreditavam ser a bruxaria tradicional italiana no panorama da comunidade New
Age. Grimassi, especificamente, tornou-se uma figura de destaque a partir dos anos noventa
com a publicação de livros sobre a tradição “italiana” que agora era chamada e divulgada
como “stregheria”.

Grimassi também era também filho de imigrantes italianos e herdeiro, pelo que se
sabe, de uma linhagem de magia folclórica fidedigna, praticada por sua mãe, de origem
napolitana. Entretanto, essa linhagem parece ter exercido pouca ou nenhuma influência
naquilo que ele transmitiu ao público de seus livros, devotado à tradição politeísta,
cerimonial e hermética que ele afirmava ser oriunda da própria Aradia e de seus primeiros
discípulos.

O mito de Aradia é recontado com uma riqueza maior de detalhes nas obras de
Grimassi – em especial Bruxaria Hereditária e The Book of The Holy Strega. Eventos que
teriam transcorrido com a própria messias das bruxas e seus seguidores são narrados como
parte do corpo de crenças que Grimassi teria recebido de fontes orais e escritas ao longo de
sua formação enquanto bruxo hereditário. Pela primeira vez, a trajetória de Aradia a faz
deixar a Toscana e se dirigir para o sul, para os arredores de Roma e para as proximidades
de Napoli e Benevento, de onde o próprio Grimassi pode reivindicar ascendência. Inúmeras
viagens de Aradia e seus seguidores pela península itálica são descritas pelo autor,
levantando questionamentos acerca do quanto toda essa mobilidade seria hipoteticamente
viável (ou não) na Itália do século XIV, época apontada como o tempo em que tais eventos
teriam transcorrido. Há que se observar que era mais fácil viajar pela península itálica
naquela época do que em outras regiões da Europa, em razão da efervescência das rotas de
comércio do alvorecer da renascença. Entretanto, as longas viagens eram favorecidas aos
burgueses e membros da nobreza, e menos tranquilas para os camponeses e demais
integrantes das classes oprimidas – às quais o clã de Aradia teria pertencido. Na realidade
da época, as viagens exigiam escolta armada e muita diplomacia, pois a entrada no domínio
de um senhor feudal pouco receptivo poderia ser um risco, além da existência de
assaltantes, das intempéries do território e das guerras provinciais constantes.

Segundo Grimassi, o nascimento de Aradia se deu em 1313, no dia 14 de agosto, na


cidade de Volterra na Toscana. Ao contrário de Leland que atribui um caráter divino à
messias das bruxas, o corpus de crenças apresentado por Grimassi considera que Aradia foi
uma profetiza, uma espécie de santa, que recebeu uma iluminação enquanto estava sentada
sob uma árvore nas proximidades do Lago Nemi, em Roma, chamado também de espelho de
Diana. A partir de então ela teria viajado e reunido seguidores, aos quais transmitiu
ensinamentos que muito destoam daqueles apresentados por Leland no Evangelho das
Bruxas.

Enquanto a Aradia de Leland é partidária da violência extrema e da constante


revolta contra o clero e os senhores feudais, a Aradia de Grimassi prega o amor universal da
deusa e do deus, o respeito às diferenças, e uma forma romantizada da lei do triplo retorno
encontrada na Wicca Gardneriana. Nas treze leis que ela teria deixado aos seus discípulos,
chamadas de The Covenant of Aradia, muitas das disposições são diametralmente opostas
ao que se conhece do comportamento tempestuoso das bruxas italianas...

A proibição de fazer o mal a qualquer criatura, a menos que seja para se alimentar
ou se defender, a proibição de cobrar por trabalhos de magia, e a obrigatoriedade de iniciar
qualquer um que deseje e seja digno, são três das mais evidentes que posso comentar. Como
é atestado em qualquer fonte tradicional ou acadêmica, a stregoneria possui seus valores
acerca da prática do malefício, mas ela não é de forma alguma proibida ou desencorajada.
Quanto à cobrança em dinheiro pela prática da magia, a atuação de bruxos e feiticeiros
populares atesta que a cobrança por determinados serviços não só é possível, como é
frequente. E, por fim, a obrigatoriedade de iniciar qualquer pessoa que mereça é uma regra
que se choca de forma irreconciliável com a tendência das linhagens de stregoneria em
transmitir o laço iniciático apenas a quem possua vínculo familiar-comunitário com o
praticante, além de ser um requisito o candidato gozar de sua extrema confiança. Até se
pode encontrar um paralelo com a obrigatoriedade existente em algumas tradições de
iniciar ao menos uma pessoa antes de morrer, mas essa regra passa longe de ser uma
disseminação proselitista do ofício das bruxas – tal como é o legado da Aradia de Grimassi.

Em síntese, o trabalho literário de Grimassi costura pontas soltas das obras de


Leland, buscando dar a elas uniformidade e retratar um panorama “ancestral” coeso para a
bruxaria italiana. Entretanto, ele o faz através de toda uma releitura do material, que exclui
suas partes sujas e polêmicas (como a prática da maldição, o antissemitismo e o preconceito
contra os ciganos), e preenche as amplas lacunas existentes com concepções, ferramentas e
ritualísticas retiradas da Wicca Gardneriana e do ocultismo moderno. Dentre os elementos
retirados da magia folclórica, tal como nos livros de Leland, vários erros linguísticos podem
ser observados nos trechos em italiano, colocando parte desses elementos sob suspeita aos
olhos de quem está familiarizado com as tradições da terra de origem. No legado de Grimassi
o nome de Lúcifer é também ressignificado, e atrelado a Dianus Lucifero, numa referência
ao Janus romano. Essa é uma dentre inúmeras adaptações que visam aproximar a percepção
original de Leland sobre os deuses às compreensões neopagãs mais recentes. A deusa e o
deus de Grimassi são de aspecto tríplice, ao contrário daqueles de Leland, e essa triplicidade
foge às características históricas de Diana Trivia para assumir, na prática dos ritos e
entendimentos teológicos propostos, as características wiccanas de uma deusa que é jovem,
mãe e anciã.

Outro elemento do mito que ganha muito mais espaço na obra de Grimassi é o
caráter messiânico e profético das falas de Aradia. Enquanto no Evangelho das Bruxas as
previsões se resumem à libertação da opressão e à morte dos senhores feudais, em Grimassi
o papel de Aradia é o de anunciar uma “nova era” para a raça humana, chamada de Era da
Filha em contraposição à Era do Filho (que seria o tempo de Jesus Cristo). Segundo as
palavras atribuídas a Aradia pelo autor, chegaria um tempo em que a igualdade entre
homens e mulheres seria maior, e então viria para o mundo um profeta ao serviço dos
deuses, um profeta da própria Aradia, que marcaria o início dessa nova era, onde a razão
seria mais importante do que a fé, e a humanidade avançaria para um estágio onde muitos
dos males trazidos pela Igreja Católica seriam deixados para trás. Curiosamente, também é
afirmado em um dos capítulos da obra Bruxaria Hereditária que a cada duzentos anos, em
média, nasceriam profetas da Aradia divina, filha de Diana e Lúcifer – uma figura que para
o autor é separada da Aradia humana. Esses profetas tornariam a palavra de Aradia
“conhecida no mundo inteiro”, e a cada uma de suas vindas, eles “renovariam e expandiriam
seus ensinamentos”. É quase impossível fugir à inteligência do leitor a percepção de que,
com muitos floreios, Grimassi tenta sugerir que ele e Charles Leland são dois destes profetas
prometidos (segundo ele próprio) pela deusa.

Um outro aspecto fundamental da exposição que Grimassi faz daquilo que ele chama
de “a autêntica bruxaria italiana” é a triplicidade de tradições inerente a esse caminho.
Segundo ele argumenta, a verdadeira bruxaria italiana proposta por Aradia teria sido
dividida em três grandes ramos: a Janarra, que preservou os mistérios do mar, a Tanarra,
que preservou os mistérios das estrelas, e a Fanarra, que preservou os mistérios da terra,
todas localizadas em regiões geográficas distintas da península itálica. O percurso de um
líder tradicional da stregheria deveria envolver o conhecimento dos mistérios de todas as
três partes da tradição. Destes três termos indicados, o único que possui precedentes na
cultura italiana conhecida é o primeiro, que remete a janara, um termo utilizado na região
da Campania e na Sardegna para designar determinados seres vinculados às bruxas. É
possível que esse termo faça referência a dianara, vocábulo que designava um seguidor da
deusa Diana em tempos pretéritos, mas mesmo essa etimologia não é comprovada. E
enquanto o termo tanarra faz uma referência direta à deusa Tana dos etruscos, o termo
fanarra permanece não comentado.

Naturalmente, é Grimassi o herdeiro escolhido por estas três partes da tradição para
unificá-las novamente! O que ele faz neste sentido, é apresentar um conjunto de
fundamentos de magia que envolve tanto conceitos oriundos das tradições de magia
cerimonial (o que é o caso das runas estelares encontradas parcialmente nos livros de
Cornelius Agrippa) quanto reinterpretações de conhecimentos astrológicos (como os
espíritos das mansões da lua), além de elementos cuja origem não é ainda conhecida (como
as runas mágicas do mar e o sistema oracular de runas toscanas). Os críticos de seu trabalho
também apontam incoerência histórica e linguística em utilizar as letras do alfabeto etrusco
como se fossem um alfabeto mágico passado secretamente por gerações de praticantes de
magia na Itália.

Com tantas observações críticas a serem feitas, pode parecer que a obra de Grimassi
não possui seus pontos positivos, o que não é verdade. Ao buscar alguma fundamentação
histórica que possa justificar as ideias presentes no Evangelho das Bruxas, ele traz à
discussão a figura de Guglielma da Milano, a líder de um culto herético do século XIII que foi
considerada como a encarnação do Espírito Santo. Conforme se tem registro, a seita dos
guglielmitas elegeu uma Papisa, e estruturou uma organização litúrgica para uma versão da
igreja católica que seria conduzida majoritariamente por mulheres. É a figura dessa Papisa
que inspirou a carta da Papisa/Sacerdotisa no Tarô, devido a relação que a poderosa família
Visconti-Sforza tinha com essas heresias. Embora as alegações de Grimassi de que o tema
de uma “messias feminina” estivesse em voga no imaginário da época sejam insuficientes
para provar qualquer coisa sobre a existência de uma Aradia real, comentarei mais à frente
que o estabelecimento de uma relação entre Guglielma da Milano, Aradia e outras figuras
femininas do universo mediterrâneo não é de todo incoerente.

Para ilustrar a discrepância entre a Aradia de Leland e a Aradia de Grimassi, segue-


se um trecho extraído de um dos livros de maior sucesso desse último:

Abençoados sejam os livres em espírito e aqueles que amam sem desejar nada em
troca. Pois o amor é a maior conquista. É o presente da benção do espírito. Portanto,
nunca traiam um amor, nem o enganem. Amem uns aos outros e cuidem uns dos
outros, e cada uma dessas coisas com o coração e a alma de um poeta.
Tentem ver o mundo como faz o artista. Vão, busquem e capturem a beleza que está
lá. E tomem cuidado para que não machuquem nenhum dos que estão entre vocês.
Mas amem, e vivam, ao máximo, em consciência e compaixão com as mentes e
corações e almas de todos ao seu redor. Vivam em paz.

- Livre-tradução da fala atribuída a Aradia em Hereditary Witchcraft, de Raven


Grimassi.

A Aradia de Magliocco

Ao revisar atentamente a biografia de Grimassi é possível perceber que, até um


determinado período, seu maior nêmesis foi a antropóloga italiana Sabina Magliocco, que
devotou alguns de seus artigos a desmistificar a magia tradicional italiana e seus
desdobramentos na América do Norte. A relação entre Grimassi e Magliocco tornou-se
amistosa quando, após as críticas da antropóloga gerarem um questionamento público
sobre a tradicionalidade da magia na família do escritor, ele a convidou para visitar a sua
casa e conversar diretamente com sua mãe sobre as práticas familiares. Magliocco então
editou uma nota esclarecendo que não restavam dúvidas para ela de que a mãe de Grimassi
era uma autêntica praticante da magia folclórica italiana. Se por um lado esse episódio
contribuiu para suavizar as críticas que eram feitas à stregheria enquanto objeto
completamente alienígena à realidade dos italianos, por outro, ficou sugerido que aquilo
que existe de efetivamente ancestral e familiar no discurso de Grimassi é algo muito menor
do que o vultuoso constructo elaborado por ele publicamente, na forma das tradições
aridiana e ariciana (os dois maiores movimentos da stregheria organizados por ele).

A conduta de Magliocco pode parecer agressiva aos praticantes da espiritualidade


moderna, mas em realidade é apenas a busca profissional-acadêmica pelo entendimento da
religião e da realidade histórica e social envolvendo seus praticantes, busca essa que não
precisa envolver um juízo de valor com relação a validade ou invalidade das práticas per se.
Semelhante busca foi realizada por Magliocco em relação à figura de Aradia, e suas
conclusões foram reveladoras. Na introdução de seu artigo sobre o tema – indicado nas
referências desta publicação – algumas hipóteses reunidas por outros autores sobre a
etimologia do nome de Aradia nos são apresentadas. Areodesa, Ariadne, dentre outras.
Contudo, é o desdobramento da busca por Aradia na região de origem da antropóloga que
traz as maiores descobertas e fornece as teorias mais fascinantes.

Através da pesquisa etnográfica na ilha da Sardegna (Sardenha), onde nasceu,


Magliocco encontrou indícios da presença folclórica de um ser espiritual denominado Sa
Rejusta. Este espírito, ora descrito como uma bruxa e ora descrito como uma ogra, viveria
embaixo da Craxtu de Funari, uma grande pedra nas proximidades de Bessude, da qual sairia
todas as noites do dia 31 de julho para raptar crianças que encontrasse em seu caminho.
Uma forma de afastá-la seria realizando na janela uma oferenda de um prato de comida. Tais
elementos colocavam Sa Rejusta como um bicho-papão, ao lado de outras tantas figuras do
folclore familiar italiano, mas a etimologia do nome poderia indicar uma origem mais
profunda.

Em visita a outras localidades da ilha e em contato com conhecedores das tradições


locais, a autora identificou a relação de Sa Rejusta com o ofício de fiar, evidenciando o papel
de fiscalizadora do dever das jovens moças em relação a esse ofício doméstico. Nesse outro
contexto, uma forma possível de escapar da fúria de Sa Rejusta, que uma jovem que tivesse
sido displicente com o ofício de fiar certamente lançaria mão, é o oferecimento de um prato
de lentilha que manteria a bruxa ocupada – contando os grãos – até o raiar do sol do dia
seguinte, quando ela teria que voltar para sua toca. Essa técnica de defesa baseada em grãos
que os espíritos são coagidos a contar é universal dentro das tradições folclóricas e mágicas
da Itália, e encontra paralelo na realidade de outros países.

Prosseguindo com sua pesquisa, a antropóloga encontra outras denominações


regionais para o mesmo espírito como Sorre Justa (a irmã justa) e Mama Erodas (Mãe
Heródias). A conexão com a Heródias/Herodiade bíblica se estabelece em consonância com
a visão clerical de Diana e Herodias como figuras que guiavam as bruxas na Idade Média.
Magliocco então apresenta o impacto que o Canon Episcopi teve ao estabelecer o nome
destas duas entidades aos espíritos folclóricos ligados ao voo noturno das bruxas. Seres
espirituais que antes eram conhecidos por outros nomes, tiveram a alcunha de Diana e de
Herodias acoplada à sua percepção por parte do povo. Como defende a autora, o folclore e
as tradições populares representam uma visão alternativa do mundo, distinta da visão
eclesiástica/sacerdotal, mas em constante relação com ela.

A ligação de Sa Rejusta com a Herodias das bruxas medievais é reforçada quando a


autora se depara com sa regula morte (a horda ou procissão dos mortos), uma crença
folclórica ainda viva na Sardegna e em outras localidades da Itália, de que existiria uma
andança dos espíritos dos falecidos que pode ser vista por determinadas pessoas em
determinadas datas. Um dos muitos nomes populares para esse evento é sa regula de Erode
(a horda ou procissão de Heródias). Ao adentrar as razões para essa referência constante a
Heródias, Magliocco menciona os seres espirituais chamados jana, conhecidos por esse
nome especificamente na Sardegna e na Campania. As janas são normalmente descritas
como bruxas ou sereias de natureza demoníaca, não-humana, que podem interagir de
formas benéficas ou maléficas com os seres humanos – até mesmo se casando com eles e
gerando descendência. De modo geral, as janas são parte do mesmo grupo de seres míticos
que no Veneto e no Friuli recebem o nome de anguane.

Os lares das janas da ilha da Sardegna são as construções funerárias do neolítico


chamadas domus de janas, e o ser que as comanda no folclore sardo é uma entidade chamada
Arada ou Araja (falado com a mesma pronúncia de Aradia em português brasileiro). Além
do nome que remete a Heródias, este ser também é descrito pelos nativos como s’Araja
dimoniu (Araja o demônio), atestando que muito da satanização imbuída à figura de
Heródias também influenciou sua constituição dentro do folclore sardo.

As conclusões de Magliocco são de que tais lendas são uma forte evidência de que
pode ter existido um ser conhecido pelo nome de Aradia na Itália continental. O caminho
por meio do qual estas similaridades ocorreram, contudo, é menos certo. Muito
provavelmente, tanto a hipotética existência de uma Aradia toscana quanto a existência de
Sa Rejusta/s’Araja dimoniu foram influenciadas pela retórica da igreja católica medieval a
respeito das andanças noturnas das bruxas com Diana e Heródias. Tais conceitos podem ter
entrado na Sardegna e na Toscana pelas mãos dos padres católicos e, a partir daí,
desenvolveram-se separadamente através das interações entre o mundo eclesiástico e o
mundo folclórico. Outra possibilidade é que a figura de Aradia realmente existiu em tempos
pretéritos no continente, espalhando-se até a Sardegna, e nela se conservando por mais
tempo devido à insularidade. Qual é a hipótese mais assertiva, ou se essas hipóteses
ocorreram simultaneamente, são perguntas que ainda permanecem em aberto.

Fato incontestável é que o trabalho de Magliocco nos permite perceber que existe
muito mais profundidade na figura de Aradia do que podemos conceber ao fazer uma
primeira leitura – crítica – da obra de Charles G. Leland. Além do trabalho de Magliocco,
outras conexões são traçadas entre Aradia e figuras de nome semelhante atreladas ao
universo das bruxas-fada que voam ou dançam durante a noite, como é o caso demonstrado
por Mircea Eliade sobre Arada, a rainha das fadas romenas que presidia sobre a associação
ritualística dos dançarinos conhecidos por calusari. Na tese de Eliade, Arada é ainda mais
próxima da ideia toscana sobre Aradia, na medida em que ele a considera uma
“metamorfose” da própria deusa Diana em terras romenas.

Muito além de uma invenção de um folclorista amador, Aradia pode ter sido uma das
muitas figuras femininas ligadas ao voo espiritual que povoam as tradições mágicas e
folclóricas da Itália, ao lado de Madonna Oriente, Richella e das Donne di Fuora, tão
comentadas na obra de Carlo Ginzburg sobre o sabá. Faltam registros sobre a continuidade
de uma sabedoria tradicional sobre Aradia, mas não faltam elementos para crer que essa
sabedoria deve ter existido, e de que nuances a respeito dela sobrevivem em inúmeras
tradições, tal como a temida Sa Rejusta ainda escapa da Craxtu de Funari todas as noites do
último dia do mês de julho, para o terror das crianças sardas.

É na compreensão de que existe toda essa teia de relações, semelhanças e simetrias,


que podemos olhar para as experiências com a figura de Aradia e com outras figuras
próprias de cada tradição para teorizar sobre aquilo que nos une a partir da ancestralidade
que, de uma forma ou de outra, muitos de nós, praticantes da magia de origem italiana,
carregamos.

Parte final – A Aradia de Todas as Bruxas...?

Meu primeiro contato com o nome “Aradia” foi através da leitura de uma web-comic
que eu acompanhava na adolescência, chamada Homestuck. Nessa história, um conjunto de
doze personagens alienígenas representavam os doze signos do zodíaco e a personagem
que representava o signo de Áries era uma médium com poderes sobre o tempo, chamada
Aradia Megido. Como nativo de Áries, eu resolvi procurar mais informações sobre a
personagem e as pesquisas me levaram até o Evangelho das Bruxas de Charles Leland. À
época, o material me pareceu exótico e ao mesmo tempo familiar, uma mistura muito
provocativa para uma mente jovem e desocupada.
À medida em que aprofundei os meus estudos sobre o texto nos anos seguintes, suas
lacunas começaram a parecer mais evidentes. Nessa época eu já estava em contato com
alguns membros da comunidade neopagã e, num movimento natural, acabei chegado aos
livros de Raven Grimassi. Por sorte, em pouco tempo fiz meus primeiros contatos com
outros praticantes de stregoneria e o romantismo lúdico dos livros “grimassianos” começou
a se esfarelar no meu entendimento. Em duas das tradições com as quais tive contato nesse
período, Aradia era vista como uma figura histórica e central, como um verdadeiro ancestral
das práticas “sabáticas” (e em algum nível cerimoniais) que ambas as tradições executavam.
Entretanto, a compreensão sobre o papel de Aradia também divergia sutilmente entre
ambas as tradições, e igualmente entre elas e o livro de Leland.

Aqui pode ser necessário um parêntesis para comentar que em nosso entendimento
muitas tradições possuem um aspecto duplo. Por um lado, existe a tradição como é
transmitida oralmente e que em muitos casos não excede o folclore familiar e um conjunto
de práticas devocionais e operativas – aqui o limite das práticas católicas marginais e da
feitiçaria mais simples são dificilmente ultrapassados. Por outro lado, existe a dimensão
extática da tradição, que comporta as vivências oníricas, os transes mediúnicos, as visões, e
tudo que é aprendido e expandido através deles. Em alguns casos a própria tradição oral
possui os mecanismos para iniciar a caminhada nesse “segundo aspecto”, mas em outros
casos essa caminhada começa espontaneamente. O ponto que fecha esse parêntesis e nos
leva de volta à Aradia da bruxaria tradicional é que, em ambos os grupos de praticantes que
conheci, essa prática sabática – que em minha tradição e em diversas outras é compreendida
como um segundo aspecto – já estava plenamente desenvolvida em moldes ritualísticos que
eram passados de uma geração para outra de praticantes (não necessariamente da mesma
linhagem familiar).

Não é possível nem ético especular se essa transmissão de saberes sobre Aradia
ocorreu sempre de forma horizontal (de pessoa para pessoa) ao longo de toda a história
dessas tradições, ou se a origem desses saberes está em um processo vertical (um contato
com o mundo espiritual que foi expandido e sistematizado liturgicamente a partir de uma
geração específica de praticantes). O que é possível compreender, contudo, é que em todos
os casos que testemunhei da presença de Aradia em congregações tradicionais, ela sempre
esteve ligada ao caráter profético atrelado às bruxas e ao processo de ligação entre os seres
humanos e o divino. Mais assertivamente, posso dizer que Aradia sempre esteve ligada ao
“sabá das bruxas”.

É na zona transitória entre o céu e a terra, na zona onde ocorre a procissão dos
mortos e a caçada selvagem, na companhia das Matronas e das Senhoras do Jogo, que as
chaves para compreender Aradia residem. Isso é corroborado pelos achados de Magliocco
e Eliade, já mencionados, e é também o que a observação e a reflexão intuitiva me
apontaram.

Em minha tradição não se conhece a figura denominada de Aradia, mas existem


algumas entidades femininas que acumulam seus mesmos atributos proféticos e de conexão
entre os mundos. Parte santas usuais e parte personagens do lado sombrio da história cristã,
todas são mulheres que receberam iluminações da divindade através de experiencias
místicas e que, cada uma ao seu modo, passaram a exercer o papel da divindade
intermediária entre Deus e os homens, entre o mundo espiritual e o mundo físico. Do lado
reconhecido pela Igreja temos Santa Catarina de Alexandria, Santa Barbara, Santa Luzia de
Siracusa, Santa Teresa D’Ávila, Santa Agata da Catania, Santa Joana D’Arc, Santa Marina de
Antioquia, entre outras. Do lado “obscuro” temos Jezebel, a Bruxa de Endor, a Rainha de
Sabá, Heródias, Salomé, entre outras, que possuem suas justificativas folclóricas para sua
condição de empoderamento e livre-trânsito entre o céu e a terra. Seria tentador atribuir
um “sincretismo” entre várias dessas figuras e a Aradia mitológica, mas uma associação reta
e sem contextualização pouco nos ajudaria a entender o mistério que reside por trás de tais
figuras.

Outro ponto que é necessário de relembrar aqui é, como bem demonstra Grimassi
em seu livro, que o tema de um messias feminino estava em voga na Itália do século XIII.
Poderíamos ver um eco desse papel profético e de ligação entre o céu e a terra na figura de
Guglielma da Milano? Acredito que sim, guardadas as devidas proporções do contexto em
que tais fenômenos ocorreram. A carta da Papisa e seus desdobramentos posteriores na
Sacerdotisa nos trazem insights interessantes sobre como a impressão deixada por essa
personagem histórica ficou marcada no esoterismo ocidental. Decididamente, o papel
desempenhado por Guglielma não fugiu a essa necessidade de uma personagem feminina
que é a encarnação de uma divindade, ou que se torna uma, e passa a ligar o mundo físico
ao mundo espiritual.

Dentre as “santas profetizas” que tem lugar em minha tradição, a relevância de cada
uma delas é mutável entre os devotos. Tenho um vínculo particular com Santa Barbara, mas
minha avó o tinha com Santa Caterina, e assim por diante. O que é curioso é notar que em
todas as pessoas que se tem notícia que fizeram uso desses saberes, uma espécie de
triângulo se formou entre Deus, a Virgem Maria e uma destas santas que trazem mensagens
ou carregam símbolos que interligam o céu e a terra. Entre todos aqueles que tiveram algum
percurso mais longo com os conhecimentos da tradição, esse padrão pareceu se repetir. E
entre os poucos que formaram uma ligação com isso que chamamos “assembleia” ou “sabá
das bruxas”, o mesmo tipo de trindade ou triângulo parece sempre se formar entre o Diabo,
nossa Madonna Arianna – a ancestral que preside o sonho e representa a Mãe Divina – e
uma destas santas profetisas. Não acredito em associações vazias levadas pela emoção
quando reconheço que a persistência destes padrões significa que um formato é pretendido
pela ancestralidade nessas experiências. Mas qual seria a justificativa para essa
configuração triangular entre os seres da tradição?

Acredito que um outro ponto positivo e inusitado de Grimassi é a sua busca por
associar-se aos etruscos enquanto “origem espiritual” da sua stregheria. Infelizmente, muito
do que se fala a respeito dos etruscos no meio ocultista é bobagem do ponto de vista
científico, incluindo a sua relevância na ancestralidade biológica dos italianos
contemporâneos – que geneticamente é mínima. Mas pondo à parte essa questão, o papel
dos etruscos no desenvolvimento dos povos itálicos e sua marca na religiosidade que eles
carregaram ao longo desse desenvolvimento, não pode ser negado. Talvez pelos motivos
errados, Grimassi tenha acertado ao buscar na trindade etrusca Tinia, Uni/Thalna e Menrva
– que depois se torna a trindade capitolina Jupiter, Juno e Minerva – a provável origem da
tríade formada por Lúcifer, Diana e Aradia. A associação da filha divina com Minerva não
deixa de ter um vestígio na história: entre os espíritos mencionados como viajantes
noturnos pelos céus da Itália durante a Alta Idade Média está presente o nome de Minerva.
Obviamente isso não comprova nada, mas nos coloca outro elemento na mesa para reflexão.
Novamente a recorrência da trindade neste contexto se evidencia.

As trindades pressupõem uma lógica que é tanto geométrica quanto metafísica. Três
é o número da manifestação, assim como o triângulo é o que possibilita a delimitação de um
plano no espaço. O próprio esoterismo tradicional do “ocidente” possui um entendimento
sólido sobre o princípio do TERNÁRIO expresso por analogias como Sol + Lua = Mercúrio,
Luz + Trevas = Crepúsculo, e Pai + Mãe = Filho. O princípio da Tese + Antítese = Síntese como
algo que se reflete por todo o cosmos nos coloca em posição de considerar que,
independentemente de uma existência histórica de Aradia, o espaço ocupado por ela é um
espaço que naturalmente deveria existir enquanto síntese das realidades de Diana (trevas,
elemento passivo, mãe, etc.) e Lúcifer (luz, elemento ativo, pai, etc.).

Se o catolicismo hegemônico consolidou sua percepção de Deus em uma trindade,


por que a ancestralidade bruxa não poderia operar com uma triplicidade de princípios
divinos?

Com algum conhecimento dos temas que enumerei nos últimos parágrafos é
possível vislumbrar que este espaço da “síntese de opostos” que é ocupado por Aradia nas
obras de Leland e Grimassi pode ser (e de fato é) ocupado por outros seres e por outras
representações simbólicas em outros contextos. A título de exemplo, a visão folclórica e
mística da Santa Barbara que uniu o céu e a terra através do raio, e que carrega consigo o
cálice e a espada, expressa para o camponês italiano do século passado algo muito similar
ao que deve expressar ao neopagão a visão de uma Aradia que une o divino ao humano e
que carrega as insígnias sexuais de um deus e de uma deusa. A percepção do que se expressa
por tais manifestações, por outro lado, levaria à discussão metafísica acerca do que são as
divindades e de quais formas elas se manifestam neste mundo, o que não é um assunto
simples, e nem é o propósito desse texto.

Sistematicamente em minha jornada eu encontrei Aradia: (1) como um personagem


fictício, (2) como a ancestral mítica que deu origem às práticas sabáticas tradicionais que eu
pude testemunhar, (3) como divindade que concluía a formação de uma trindade no aspecto
mais contemporâneo da stregoneria e (4) também como uma santa intercessora. Em todos
esses papéis que Aradia assumiu, excetuando o primeiro, uma clara ressonância com as
santas profetisas de minha tradição se fez presente. Não poderia ser outra a minha
conclusão senão esta: tendo existido enquanto pessoa ou apenas enquanto mito, Aradia
personifica esse mistério da sacerdotisa à serviço do alto, da inteligência feminina que liga
o divino ao humano, assim como liga os mundos físico e espiritual, e permite aos adeptos da
tradição a retomada da comunhão com o divino transcendente e incompreensível, por vezes
demonizado. Ora, é este o exato papel que enxergamos nas Matronas e “Senhoras do Jogo”
das bruxas medievais: Richella, Madonna Oriente, l’Abadessa, entre tantas outras entidades
femininas que se manifestaram na experiência das mulheres (e dos homens) de seu cortejo
até a dança do Sabá. É este o exato papel que enxergamos também na Arada romena
descoberta por Eliade, e em s’Araja dimoniu, que Magliocco mapeou liderando as janas da
Sardegna.

Embora o tempo e a especulação não lhe tenham feito justiça, tenho convicção de
que Aradia não é apenas uma fábula inventada por Charles Leland para justificar as suas
teorias defasadas sobre as bruxas italianas. Ela é uma das inúmeras representações do
terceiro elemento da trindade com a qual nos deparamos em nossas experiências noturnas,
uma das profetisas e uma das santas bruxas que através dos séculos tem levado homens e
mulheres de coração ardente até a colina da Assembleia dos Espíritos.

E se minha percepção é correta, não se trata de discriminar a maneira pela qual as


pessoas compreendem Aradia e como sua fé nela é exercida. Trata-se de buscar a
compreensão da profundidade do que ela representa, pois o esforço em compreender a sua
natureza ancestral e transcendente certamente levará a outras indagações e ao ganho de
uma percepção mais rica e visceral da tradição à qual ela remonta. Em tempos de
esvaziamento de saberes tradicionais, e frente a tanta especulação que se deu
historicamente sobre Aradia, a busca por um entendimento melhor de suas raízes me
parece necessária, não somente para a prática espiritual (moderna ou tradicional) que se
volta ao seu nome, mas como medida de justiça à memória ancestral da própria stregoneria.

Aradia é viva, e fala por meio de muitas vozes. Que o tempo conturbado em que
vivemos permita aos que buscam esse mistério a capacidade de encontrá-lo!

Referências:

Aradia in Sardinia – Sabina Magliocco

Hereditary Witchcraft – Raven Grimassi

The Book of The Holy Strega – Raven Grimassi

Aradia o Evangelho das Bruxas – Charles Godfrey Leland

A Bíblia das Bruxas – Janet e Stuart Farrar

Controversial – Raven Grimassi

Controversial – Leo Martello

Aradia, or The Gospel of Witches – Artigo da Wikipédia

Aradia, Leland & the Gospel of the Witches - Academic review of the sources – Angela’s
Symposium

História Noturna: Decifrando o Sabá – Carlo Ginzburg

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