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Como sempre, espero que esse texto possa ser útil a quem se interessar.
A Aradia de Leland
A Aradia de Gardner
“Quando tiverem a necessidade de algo, uma vez ao mês, e é melhor que seja quando
a Lua estiver cheia, deverão reunir-se em algum local secreto e adorar o meu espírito,
Eu que sou a Rainha de toda Bruxaria. Vocês estarão livres da escravidão e, como um
sinal de sua liberdade, vocês estarão nus em seus ritos. Cante, festeje, dance, faça
música e amor, todos em minha presença, pois meu é o êxtase do espírito e minha
também é a alegria sobre a terra. Pois minha lei é a do amor para todos os seres. Meu
é o segredo que abre a porta da juventude e minha é a taça do vinho da vida, que é o
caldeirão de Ceridwen, que é o santo graal da imortalidade. Eu concedo a sabedoria
do espírito eterno e, além da morte, dou a paz e a liberdade e o reencontro com
aqueles que se foram antes. Nem tampouco exijo algum tipo de sacrifício, pois saiba,
eu sou a mãe de todas as coisas e meu amor é derramado sobre a terra”.
Ouça as palavras da Deusa Estrela cuja poeira dos pés são as hostes do céu, cujo
corpo envolve o universo:
“Eu, que sou a beleza da terra verde e a Lua branca entre as estrelas e o mistério das
águas, invoco seu espírito: desperte e venha até a mim. Pois eu sou o espírito da
natureza que dá vida ao universo. De mim, todas as coisas nascem e para mim todas
devem retornar. Que a adoração a mim esteja no coração que rejubila, pois, saiba,
todos os atos de amor e prazer são meus rituais. Portanto, que haja beleza e força,
poder e compaixão, honra e humildade, júbilo e reverência dentro de você. E você,
que busca conhecer-me, saiba que a sua procura e ânsia serão em vão, a menos que
você conheça o mistério: pois se aquilo que busca não se encontrar dentro de você,
nunca o achará fora de si. Saiba, pois, eu estou com você desde o início dos tempos, e
eu sou aquela que é alcançada ao fim do desejo”.
A Aradia de Grimassi
Nos idos das décadas de sessenta e setenta em diante, Martello afirmava que
fazia parte de uma tradição italiana chamada “Strega”, termo que em italiano
significa apenas e tão somente “bruxa”. Ele também afirmava que teria sido nela
iniciado por alguns de seus primos após longos anos de observação à distância, nos
quais estes parentes aguardaram que ele estivesse pronto para a grande revelação
de que a família não era cristã. E como principal elemento de sua narrativa, dizia que
sua avó paterna era a líder de um coven no interior da Sicilia, chamado “Goddess of
the Sikels”. Os críticos de Martello acreditam ser improvável que uma bruxa siciliana
do início do século XX liderasse um coven politeísta, achando mais provável admitir
que, se Martello realmente possuía laços ancestrais com a magia italiana, ele teria
enfeitado a tradição folclórica de sua família com elementos wiccanos, que
começavam a se tornar acessíveis na mídia daquela época. O uso do termo la vecchia
religione, e de referências a elementos encontrados no Evangelho das Bruxas de
Leland também não parece nem um pouco acidental.
De toda forma, Martello foi uma pessoa que deixou um legado político-social
muito positivo para a comunidade neopagã e LGBT, sendo querido por muitas
pessoas até os dias de hoje, de modo que se torna importante dizer que o intuito
dessa menção às suas contradições não é desmerecê-lo enquanto pessoa, mas
somente demonstrar alguns dos primeiros fatores que contribuíram para a
formação da visão norte-americana de Aradia. A partir dessas contradições citadas
podemos traçar em Martello a origem mais antiga do movimento de bruxaria
moderna ítalo-americana. Se ele teve um importante papel na militância em prol dos
direitos civis da população LGBT e do movimento por liberdade religiosa, em
paralelo, acabou preparando o terreno para a vinda de Lori Bruno (sua iniciada e
herdeira, liderança da Trinacrian Rose Church) e Raven Grimassi. Estes dois podem
ser definidos como duas das personalidades do meio neopagão que delinearam os
contornos do que acreditavam ser a bruxaria tradicional italiana no panorama da
comunidade New Age. Grimassi, especificamente, tornou-se uma figura de destaque
a partir dos anos noventa com a publicação de livros sobre a tradição “italiana” que
agora era chamada e divulgada como “stregheria”.
O mito de Aradia é recontado com uma riqueza maior de detalhes nas obras
de Grimassi – em especial Bruxaria Hereditária e The Book of The Holy Strega.
Eventos que teriam transcorrido com a própria messias das bruxas e seus
seguidores são narrados como parte do corpo de crenças que Grimassi teria
recebido de fontes orais e escritas ao longo de sua formação enquanto bruxo
hereditário. Pela primeira vez, a trajetória de Aradia a faz deixar a Toscana e se
dirigir para o sul, para os arredores de Roma e para as proximidades de Napoli e
Benevento, de onde o próprio Grimassi pode reivindicar ascendência. Inúmeras
viagens de Aradia e seus seguidores pela península itálica são descritas pelo autor,
levantando questionamentos acerca do quanto toda essa mobilidade seria
hipoteticamente viável (ou não) na Itália do século XIV, época apontada como o
tempo em que tais eventos teriam transcorrido. Há que se observar que era mais
fácil viajar pela península itálica naquela época do que em outras regiões da Europa,
em razão da efervescência das rotas de comércio do alvorecer da renascença.
Entretanto, as longas viagens eram favorecidas aos burgueses e membros da
nobreza, e menos tranquilas para os camponeses e demais integrantes das classes
oprimidas – às quais o clã de Aradia teria pertencido. Na realidade da época, as
viagens exigiam escolta armada e muita diplomacia, pois a entrada no domínio de
um senhor feudal pouco receptivo poderia ser um risco, além da existência de
assaltantes, das intempéries do território e das guerras provinciais constantes.
Outro elemento do mito que ganha muito mais espaço na obra de Grimassi é
o caráter messiânico e profético das falas de Aradia. Enquanto no Evangelho das
Bruxas as previsões se resumem à libertação da opressão e à morte dos senhores
feudais, em Grimassi o papel de Aradia é o de anunciar uma “nova era” para a raça
humana, chamada de Era da Filha em contraposição à Era do Filho (que seria o
tempo de Jesus Cristo). Segundo as palavras atribuídas a Aradia pelo autor, chegaria
um tempo em que a igualdade entre homens e mulheres seria maior, e então viria
para o mundo um profeta ao serviço dos deuses, um profeta da própria Aradia, que
marcaria o início dessa nova era, onde a razão seria mais importante do que a fé, e a
humanidade avançaria para um estágio onde muitos dos males trazidos pela Igreja
Católica seriam deixados para trás. Curiosamente, também é afirmado em um dos
capítulos da obra Bruxaria Hereditária que a cada duzentos anos, em média,
nasceriam profetas da Aradia divina, filha de Diana e Lúcifer – uma figura que para
o autor é separada da Aradia humana. Esses profetas tornariam a palavra de Aradia
“conhecida no mundo inteiro”, e a cada uma de suas vindas, eles “renovariam e
expandiriam seus ensinamentos”. É quase impossível fugir à inteligência do leitor a
percepção de que, com muitos floreios, Grimassi tenta sugerir que ele e Charles
Leland são dois destes profetas prometidos (segundo ele próprio) pela deusa.
Um outro aspecto fundamental da exposição que Grimassi faz daquilo que ele
chama de “a autêntica bruxaria italiana” é a triplicidade de tradições inerente a esse
caminho. Segundo ele argumenta, a verdadeira bruxaria italiana proposta por
Aradia teria sido dividida em três grandes ramos: a Janarra, que preservou os
mistérios do mar, a Tanarra, que preservou os mistérios das estrelas, e a Fanarra,
que preservou os mistérios da terra, todas localizadas em regiões geográficas
distintas da península itálica. O percurso de um líder tradicional da stregheria
deveria envolver o conhecimento dos mistérios de todas as três partes da tradição.
Destes três termos indicados, o único que possui precedentes na cultura italiana
conhecida é o primeiro, que remete a janara, um termo utilizado na região da
Campania e na Sardegna para designar determinados seres vinculados às bruxas. É
possível que esse termo faça referência a dianara, vocábulo que designava um
seguidor da deusa Diana em tempos pretéritos, mas mesmo essa etimologia não é
comprovada. E enquanto o termo tanarra faz uma referência direta à deusa Tana
dos etruscos, o termo fanarra permanece não comentado.
Com tantas observações críticas a serem feitas, pode parecer que a obra de
Grimassi não possui seus pontos positivos, o que não é verdade. Ao buscar alguma
fundamentação histórica que possa justificar as ideias presentes no Evangelho das
Bruxas, ele traz à discussão a figura de Guglielma da Milano, a líder de um culto
herético do século XIII que foi considerada como a encarnação do Espírito Santo.
Conforme se tem registro, a seita dos guglielmitas elegeu uma Papisa, e estruturou
uma organização litúrgica para uma versão da igreja católica que seria conduzida
majoritariamente por mulheres. É a figura dessa Papisa que inspirou a carta da
Papisa/Sacerdotisa no Tarô, devido a relação que a poderosa família Visconti-Sforza
tinha com essas heresias. Embora as alegações de Grimassi de que o tema de uma
“messias feminina” estivesse em voga no imaginário da época sejam insuficientes
para provar qualquer coisa sobre a existência de uma Aradia real, comentarei mais
à frente que o estabelecimento de uma relação entre Guglielma da Milano, Aradia e
outras figuras femininas do universo mediterrâneo não é de todo incoerente.
Para ilustrar a discrepância entre a Aradia de Leland e a Aradia de Grimassi,
segue-se um trecho extraído de um dos livros de maior sucesso desse último:
Abençoados sejam os livres em espírito e aqueles que amam sem desejar nada em
troca. Pois o amor é a maior conquista. É o presente da benção do espírito. Portanto,
nunca traiam um amor, nem o enganem. Amem uns aos outros e cuidem uns dos
outros, e cada uma dessas coisas com o coração e a alma de um poeta.
Tentem ver o mundo como faz o artista. Vão, busquem e capturem a beleza que está
lá. E tomem cuidado para que não machuquem nenhum dos que estão entre vocês.
Mas amem, e vivam, ao máximo, em consciência e compaixão com as mentes e
corações e almas de todos ao seu redor. Vivam em paz.
A Aradia de Magliocco
Muito além de uma invenção de um folclorista amador, Aradia pode ter sido
uma das muitas figuras femininas ligadas ao voo espiritual que povoam as tradições
mágicas e folclóricas da Itália, ao lado de Madonna Oriente, Richella e das Donne di
Fuora, tão comentadas na obra de Carlo Ginzburg sobre o sabá. Faltam registros
sobre a continuidade de uma sabedoria tradicional sobre Aradia, mas não faltam
elementos para crer que essa sabedoria deve ter existido, e de que nuances a
respeito dela sobrevivem em inúmeras tradições, tal como a temida Sa Rejusta ainda
escapa da Craxtu de Funari todas as noites do último dia do mês de julho, para o
terror das crianças sardas.
É na compreensão de que existe toda essa teia de relações, semelhanças e
simetrias, que podemos olhar para as experiências com a figura de Aradia e com
outras figuras próprias de cada tradição para teorizar sobre aquilo que nos une a
partir da ancestralidade que, de uma forma ou de outra, muitos de nós, praticantes
da magia de origem italiana, carregamos.
Meu primeiro contato com o nome “Aradia” foi através da leitura de uma
web-comic que eu acompanhava na adolescência, chamada Homestuck. Nessa
história, um conjunto de doze personagens alienígenas representavam os doze
signos do zodíaco e a personagem que representava o signo de Áries era uma
médium com poderes sobre o tempo, chamada Aradia Megido. Como nativo de Áries,
eu resolvi procurar mais informações sobre a personagem e as pesquisas me
levaram até o Evangelho das Bruxas de Charles Leland. À época, o material me
pareceu exótico e ao mesmo tempo familiar, uma mistura muito provocativa para
uma mente jovem e desocupada.
Aradia é viva, e fala por meio de muitas vozes. Que o tempo conturbado em
que vivemos permita aos que buscam esse mistério a capacidade de encontrá-lo!
Referências:
A figura de Aradia é uma das mais conhecidas do universo da bruxaria após o revival
ocultista da virada do século XIX para o século XX. Ela aparece no âmbito público pela
primeira vez com a publicação de Aradia, ou o Evangelho das Bruxas, de Charles Godfrey
Leland, em 1899. Sua aparição literária como um “messias” das bruxas italianas inspirou os
primeiros praticantes da wicca tradicional britânica na composição de seus textos
litúrgicos, e serviu de exemplo para todo um movimento de resgate da feitiçaria e do
sagrado feminino que se desdobraria nos anos seguintes a partir da flexibilização do acesso
das pessoas à prática da bruxaria moderna. Não existem, no entanto, comprovações
concretas de sua existência, seja como personagem histórica, seja como personagem mítica
existente em tradições folclóricas fidedignas.
Tal como a própria bruxaria, Aradia é uma figura misteriosa e controversa, que
inspira amores e rancores, e cuja mitologia é considerada um poderoso mistério por alguns,
e desprezada como uma fantasia infantil por outros. Neste texto, proponho revisitarmos
brevemente a história pública de Aradia, de modo a compreendermos as diferentes visões
que se consolidaram sobre ela na trajetória recente da bruxaria, para depois buscarmos um
mergulho nas possibilidades de identificá-la na própria tradição de sua terra de origem...
Um mergulho que, mais do que confirmar ou refutar alguma das narrativas que hoje existem
sobre essa personagem, pode demonstrar que a sua natureza é mais profunda e mais
complexa do que se pode imaginar. Ao final desse texto, minha pequena síntese de
percepções e entendimentos sobre Aradia será resumida, não para que a minha visão se
estabeleça como a resolução de um problema em aberto, mas para que referenciais mais
amplos possam vir a ser considerados.
Como sempre, espero que esse texto possa ser útil a quem se interessar.
A Aradia de Leland
A história contada sobre a produção das obras de Leland na Itália é – ela própria –
muito duvidosa. Apesar do autor afirmar ter colhido diretamente do povo italiano todo o
material apresentado no Evangelho das Bruxas e em outras obras do gênero, como Etruscan
Roman Remains, qualquer falante da língua italiana reconhece que existem erros crassos
nos textos apresentados nessa língua – erros que nenhum falante nativo da língua poderia
cometer, mesmo considerando as fortes variações dialetais existentes.
Charles Leland afirma ter recebido os textos que compunham o “evangelho das
bruxas” das mãos de Maddalena – um codinome para uma mulher na realidade chamada
Margherita Talutti ou Talenti. Ele explica que Maddalena era uma praticante daquilo que ele
nomeia como La Vecchia Religione (a velha religião): uma reminiscência coesa e
hermeticamente fechada de um culto pagão, sobrevivendo em segredo na Itália por toda a
era cristã. O quadro apresentado por Leland, embora anterior às teses de Margareth Murray,
faz parte de uma tendência que ganhava força entre alguns estudiosos e curiosos de sua
época, e que considerava possível que a bruxaria europeia fosse um culto secreto de raízes
pré-cristãs. Uma das principais influências ao pensamento de Leland foi o trabalho de Jules
Michelet, La Sorcière, de 1862, que também descrevia a bruxaria como um culto secreto.
Contudo, não é de sonhos e transes de senhoras cristãs que fala Leland em sua obra.
O culto das bruxas é por ele apresentado como um culto politeísta de resistência, fundado
pela própria Aradia a partir de uma mitologia muito específica. A “messias” das bruxas nasce
do incesto entre Diana e Lúcifer, tidos paradoxalmente como deidades primordiais e seres
revoltosos contra a Trindade cristã. Ela é então enviada por sua mãe à terra, para ensinar
aos camponeses italianos a arte da bruxaria, de modo que eles pudessem castigar seus
opressores, os senhores feudais e os sacerdotes da “nova” religião. Aradia teria então
instituído os sacramentos de comunhão com a Deusa mãe, uma forma de ritualizar e invocar
o auxílio divino durante as cerimônias da lua cheia.
Além da Carga da Deusa, algumas das linhagens wiccanas utilizam o nome de Aradia
ou de Diana para se referir à deusa da lua e das estrelas. Uma reinterpretação wiccana do
mito de Diana e Lúcifer, presente no Evangelho das Bruxas, pode ser percebida nos
primeiros instantes do filme-documentário Legend of The Witches, de 1970, no qual
participam Alex Sanders, o fundador da Wicca Alexandrina, e sua esposa e sacerdotisa,
Maxine.
É possível que muitos dos principais elementos que existem na liturgia wiccana,
como a nudez ritual e o consumo de pães e vinho, tenham sido inspirados na prescrição de
Leland sobre o sabá ou treguenda das bruxas italianas. Apesar de Gardner ter sido ele
mesmo um naturalista, há historicidade nos relatos de bruxas italianas performando certas
práticas em nudez completa e com cabelos soltos de maneira selvagem, de modo que, para
um intelectual que buscava aproximar sua tradição daquilo que estava em voga nas
discussões esotéricas – balizadas pelos escritos de Leland e Murray –, adicionar a nudez
ritual pareceria uma escolha muito sensata, tanto pelo viés histórico, quanto pelo viés
“pseudo-folclórico” contemplado.
A seguir trago para comparação a famosa Carga da Deusa, originalmente escrita por
Doreen Valiente:
Ouça as palavras da Grande Mãe, que em tempos antigos era chamada de Ártemis,
Dione, Melusine, Afrodite, Ceridwen, Diana, Arionrhod, Brigit e por muitos outros
nomes:
“Quando tiverem a necessidade de algo, uma vez ao mês, e é melhor que seja quando
a Lua estiver cheia, deverão reunir-se em algum local secreto e adorar o meu espírito,
Eu que sou a Rainha de toda Bruxaria. Vocês estarão livres da escravidão e, como um
sinal de sua liberdade, vocês estarão nus em seus ritos. Cante, festeje, dance, faça
música e amor, todos em minha presença, pois meu é o êxtase do espírito e minha
também é a alegria sobre a terra. Pois minha lei é a do amor para todos os seres. Meu
é o segredo que abre a porta da juventude e minha é a taça do vinho da vida, que é o
caldeirão de Ceridwen, que é o santo graal da imortalidade. Eu concedo a sabedoria
do espírito eterno e, além da morte, dou a paz e a liberdade e o reencontro com
aqueles que se foram antes. Nem tampouco exijo algum tipo de sacrifício, pois saiba,
eu sou a mãe de todas as coisas e meu amor é derramado sobre a terra”.
Ouça as palavras da Deusa Estrela cuja poeira dos pés são as hostes do céu, cujo
corpo envolve o universo:
“Eu, que sou a beleza da terra verde e a Lua branca entre as estrelas e o mistério das
águas, invoco seu espírito: desperte e venha até a mim. Pois eu sou o espírito da
natureza que dá vida ao universo. De mim, todas as coisas nascem e para mim todas
devem retornar. Que a adoração a mim esteja no coração que rejubila, pois, saiba,
todos os atos de amor e prazer são meus rituais. Portanto, que haja beleza e força,
poder e compaixão, honra e humildade, júbilo e reverência dentro de você. E você,
que busca conhecer-me, saiba que a sua procura e ânsia serão em vão, a menos que
você conheça o mistério: pois se aquilo que busca não se encontrar dentro de você,
nunca o achará fora de si. Saiba, pois, eu estou com você desde o início dos tempos, e
eu sou aquela que é alcançada ao fim do desejo”.
A Aradia de Grimassi
Nos idos das décadas de sessenta e setenta em diante, Martello afirmava que fazia
parte de uma tradição italiana chamada “Strega”, termo que em italiano significa apenas e
tão somente “bruxa”. Ele também afirmava que teria sido nela iniciado por alguns de seus
primos após longos anos de observação à distância, nos quais estes parentes aguardaram
que ele estivesse pronto para a grande revelação de que a família não era cristã. E como
principal elemento de sua narrativa, dizia que sua avó paterna era a líder de um coven no
interior da Sicilia, chamado “Goddess of the Sikels”. Os críticos de Martello acreditam ser
improvável que uma bruxa siciliana do início do século XX liderasse um coven politeísta,
achando mais provável admitir que, se Martello realmente possuía laços ancestrais com a
magia italiana, ele teria enfeitado a tradição folclórica de sua família com elementos
wiccanos, que começavam a se tornar acessíveis na mídia daquela época. O uso do termo la
vecchia religione, e de referências a elementos encontrados no Evangelho das Bruxas de
Leland também não parece nem um pouco acidental.
De toda forma, Martello foi uma pessoa que deixou um legado político-social muito
positivo para a comunidade neopagã e LGBT, sendo querido por muitas pessoas até os dias
de hoje, de modo que se torna importante dizer que o intuito dessa menção às suas
contradições não é desmerecê-lo enquanto pessoa, mas somente demonstrar alguns dos
primeiros fatores que contribuíram para a formação da visão norte-americana de Aradia. A
partir dessas contradições citadas podemos traçar em Martello a origem mais antiga do
movimento de bruxaria moderna ítalo-americana. Se ele teve um importante papel na
militância em prol dos direitos civis da população LGBT e do movimento por liberdade
religiosa, em paralelo, acabou preparando o terreno para a vinda de Lori Bruno (sua iniciada
e herdeira, liderança da Trinacrian Rose Church) e Raven Grimassi. Estes dois podem ser
definidos como duas das personalidades do meio neopagão que delinearam os contornos
do que acreditavam ser a bruxaria tradicional italiana no panorama da comunidade New
Age. Grimassi, especificamente, tornou-se uma figura de destaque a partir dos anos noventa
com a publicação de livros sobre a tradição “italiana” que agora era chamada e divulgada
como “stregheria”.
Grimassi também era também filho de imigrantes italianos e herdeiro, pelo que se
sabe, de uma linhagem de magia folclórica fidedigna, praticada por sua mãe, de origem
napolitana. Entretanto, essa linhagem parece ter exercido pouca ou nenhuma influência
naquilo que ele transmitiu ao público de seus livros, devotado à tradição politeísta,
cerimonial e hermética que ele afirmava ser oriunda da própria Aradia e de seus primeiros
discípulos.
O mito de Aradia é recontado com uma riqueza maior de detalhes nas obras de
Grimassi – em especial Bruxaria Hereditária e The Book of The Holy Strega. Eventos que
teriam transcorrido com a própria messias das bruxas e seus seguidores são narrados como
parte do corpo de crenças que Grimassi teria recebido de fontes orais e escritas ao longo de
sua formação enquanto bruxo hereditário. Pela primeira vez, a trajetória de Aradia a faz
deixar a Toscana e se dirigir para o sul, para os arredores de Roma e para as proximidades
de Napoli e Benevento, de onde o próprio Grimassi pode reivindicar ascendência. Inúmeras
viagens de Aradia e seus seguidores pela península itálica são descritas pelo autor,
levantando questionamentos acerca do quanto toda essa mobilidade seria hipoteticamente
viável (ou não) na Itália do século XIV, época apontada como o tempo em que tais eventos
teriam transcorrido. Há que se observar que era mais fácil viajar pela península itálica
naquela época do que em outras regiões da Europa, em razão da efervescência das rotas de
comércio do alvorecer da renascença. Entretanto, as longas viagens eram favorecidas aos
burgueses e membros da nobreza, e menos tranquilas para os camponeses e demais
integrantes das classes oprimidas – às quais o clã de Aradia teria pertencido. Na realidade
da época, as viagens exigiam escolta armada e muita diplomacia, pois a entrada no domínio
de um senhor feudal pouco receptivo poderia ser um risco, além da existência de
assaltantes, das intempéries do território e das guerras provinciais constantes.
A proibição de fazer o mal a qualquer criatura, a menos que seja para se alimentar
ou se defender, a proibição de cobrar por trabalhos de magia, e a obrigatoriedade de iniciar
qualquer um que deseje e seja digno, são três das mais evidentes que posso comentar. Como
é atestado em qualquer fonte tradicional ou acadêmica, a stregoneria possui seus valores
acerca da prática do malefício, mas ela não é de forma alguma proibida ou desencorajada.
Quanto à cobrança em dinheiro pela prática da magia, a atuação de bruxos e feiticeiros
populares atesta que a cobrança por determinados serviços não só é possível, como é
frequente. E, por fim, a obrigatoriedade de iniciar qualquer pessoa que mereça é uma regra
que se choca de forma irreconciliável com a tendência das linhagens de stregoneria em
transmitir o laço iniciático apenas a quem possua vínculo familiar-comunitário com o
praticante, além de ser um requisito o candidato gozar de sua extrema confiança. Até se
pode encontrar um paralelo com a obrigatoriedade existente em algumas tradições de
iniciar ao menos uma pessoa antes de morrer, mas essa regra passa longe de ser uma
disseminação proselitista do ofício das bruxas – tal como é o legado da Aradia de Grimassi.
Outro elemento do mito que ganha muito mais espaço na obra de Grimassi é o
caráter messiânico e profético das falas de Aradia. Enquanto no Evangelho das Bruxas as
previsões se resumem à libertação da opressão e à morte dos senhores feudais, em Grimassi
o papel de Aradia é o de anunciar uma “nova era” para a raça humana, chamada de Era da
Filha em contraposição à Era do Filho (que seria o tempo de Jesus Cristo). Segundo as
palavras atribuídas a Aradia pelo autor, chegaria um tempo em que a igualdade entre
homens e mulheres seria maior, e então viria para o mundo um profeta ao serviço dos
deuses, um profeta da própria Aradia, que marcaria o início dessa nova era, onde a razão
seria mais importante do que a fé, e a humanidade avançaria para um estágio onde muitos
dos males trazidos pela Igreja Católica seriam deixados para trás. Curiosamente, também é
afirmado em um dos capítulos da obra Bruxaria Hereditária que a cada duzentos anos, em
média, nasceriam profetas da Aradia divina, filha de Diana e Lúcifer – uma figura que para
o autor é separada da Aradia humana. Esses profetas tornariam a palavra de Aradia
“conhecida no mundo inteiro”, e a cada uma de suas vindas, eles “renovariam e expandiriam
seus ensinamentos”. É quase impossível fugir à inteligência do leitor a percepção de que,
com muitos floreios, Grimassi tenta sugerir que ele e Charles Leland são dois destes profetas
prometidos (segundo ele próprio) pela deusa.
Um outro aspecto fundamental da exposição que Grimassi faz daquilo que ele chama
de “a autêntica bruxaria italiana” é a triplicidade de tradições inerente a esse caminho.
Segundo ele argumenta, a verdadeira bruxaria italiana proposta por Aradia teria sido
dividida em três grandes ramos: a Janarra, que preservou os mistérios do mar, a Tanarra,
que preservou os mistérios das estrelas, e a Fanarra, que preservou os mistérios da terra,
todas localizadas em regiões geográficas distintas da península itálica. O percurso de um
líder tradicional da stregheria deveria envolver o conhecimento dos mistérios de todas as
três partes da tradição. Destes três termos indicados, o único que possui precedentes na
cultura italiana conhecida é o primeiro, que remete a janara, um termo utilizado na região
da Campania e na Sardegna para designar determinados seres vinculados às bruxas. É
possível que esse termo faça referência a dianara, vocábulo que designava um seguidor da
deusa Diana em tempos pretéritos, mas mesmo essa etimologia não é comprovada. E
enquanto o termo tanarra faz uma referência direta à deusa Tana dos etruscos, o termo
fanarra permanece não comentado.
Naturalmente, é Grimassi o herdeiro escolhido por estas três partes da tradição para
unificá-las novamente! O que ele faz neste sentido, é apresentar um conjunto de
fundamentos de magia que envolve tanto conceitos oriundos das tradições de magia
cerimonial (o que é o caso das runas estelares encontradas parcialmente nos livros de
Cornelius Agrippa) quanto reinterpretações de conhecimentos astrológicos (como os
espíritos das mansões da lua), além de elementos cuja origem não é ainda conhecida (como
as runas mágicas do mar e o sistema oracular de runas toscanas). Os críticos de seu trabalho
também apontam incoerência histórica e linguística em utilizar as letras do alfabeto etrusco
como se fossem um alfabeto mágico passado secretamente por gerações de praticantes de
magia na Itália.
Com tantas observações críticas a serem feitas, pode parecer que a obra de Grimassi
não possui seus pontos positivos, o que não é verdade. Ao buscar alguma fundamentação
histórica que possa justificar as ideias presentes no Evangelho das Bruxas, ele traz à
discussão a figura de Guglielma da Milano, a líder de um culto herético do século XIII que foi
considerada como a encarnação do Espírito Santo. Conforme se tem registro, a seita dos
guglielmitas elegeu uma Papisa, e estruturou uma organização litúrgica para uma versão da
igreja católica que seria conduzida majoritariamente por mulheres. É a figura dessa Papisa
que inspirou a carta da Papisa/Sacerdotisa no Tarô, devido a relação que a poderosa família
Visconti-Sforza tinha com essas heresias. Embora as alegações de Grimassi de que o tema
de uma “messias feminina” estivesse em voga no imaginário da época sejam insuficientes
para provar qualquer coisa sobre a existência de uma Aradia real, comentarei mais à frente
que o estabelecimento de uma relação entre Guglielma da Milano, Aradia e outras figuras
femininas do universo mediterrâneo não é de todo incoerente.
Abençoados sejam os livres em espírito e aqueles que amam sem desejar nada em
troca. Pois o amor é a maior conquista. É o presente da benção do espírito. Portanto,
nunca traiam um amor, nem o enganem. Amem uns aos outros e cuidem uns dos
outros, e cada uma dessas coisas com o coração e a alma de um poeta.
Tentem ver o mundo como faz o artista. Vão, busquem e capturem a beleza que está
lá. E tomem cuidado para que não machuquem nenhum dos que estão entre vocês.
Mas amem, e vivam, ao máximo, em consciência e compaixão com as mentes e
corações e almas de todos ao seu redor. Vivam em paz.
A Aradia de Magliocco
As conclusões de Magliocco são de que tais lendas são uma forte evidência de que
pode ter existido um ser conhecido pelo nome de Aradia na Itália continental. O caminho
por meio do qual estas similaridades ocorreram, contudo, é menos certo. Muito
provavelmente, tanto a hipotética existência de uma Aradia toscana quanto a existência de
Sa Rejusta/s’Araja dimoniu foram influenciadas pela retórica da igreja católica medieval a
respeito das andanças noturnas das bruxas com Diana e Heródias. Tais conceitos podem ter
entrado na Sardegna e na Toscana pelas mãos dos padres católicos e, a partir daí,
desenvolveram-se separadamente através das interações entre o mundo eclesiástico e o
mundo folclórico. Outra possibilidade é que a figura de Aradia realmente existiu em tempos
pretéritos no continente, espalhando-se até a Sardegna, e nela se conservando por mais
tempo devido à insularidade. Qual é a hipótese mais assertiva, ou se essas hipóteses
ocorreram simultaneamente, são perguntas que ainda permanecem em aberto.
Fato incontestável é que o trabalho de Magliocco nos permite perceber que existe
muito mais profundidade na figura de Aradia do que podemos conceber ao fazer uma
primeira leitura – crítica – da obra de Charles G. Leland. Além do trabalho de Magliocco,
outras conexões são traçadas entre Aradia e figuras de nome semelhante atreladas ao
universo das bruxas-fada que voam ou dançam durante a noite, como é o caso demonstrado
por Mircea Eliade sobre Arada, a rainha das fadas romenas que presidia sobre a associação
ritualística dos dançarinos conhecidos por calusari. Na tese de Eliade, Arada é ainda mais
próxima da ideia toscana sobre Aradia, na medida em que ele a considera uma
“metamorfose” da própria deusa Diana em terras romenas.
Muito além de uma invenção de um folclorista amador, Aradia pode ter sido uma das
muitas figuras femininas ligadas ao voo espiritual que povoam as tradições mágicas e
folclóricas da Itália, ao lado de Madonna Oriente, Richella e das Donne di Fuora, tão
comentadas na obra de Carlo Ginzburg sobre o sabá. Faltam registros sobre a continuidade
de uma sabedoria tradicional sobre Aradia, mas não faltam elementos para crer que essa
sabedoria deve ter existido, e de que nuances a respeito dela sobrevivem em inúmeras
tradições, tal como a temida Sa Rejusta ainda escapa da Craxtu de Funari todas as noites do
último dia do mês de julho, para o terror das crianças sardas.
Meu primeiro contato com o nome “Aradia” foi através da leitura de uma web-comic
que eu acompanhava na adolescência, chamada Homestuck. Nessa história, um conjunto de
doze personagens alienígenas representavam os doze signos do zodíaco e a personagem
que representava o signo de Áries era uma médium com poderes sobre o tempo, chamada
Aradia Megido. Como nativo de Áries, eu resolvi procurar mais informações sobre a
personagem e as pesquisas me levaram até o Evangelho das Bruxas de Charles Leland. À
época, o material me pareceu exótico e ao mesmo tempo familiar, uma mistura muito
provocativa para uma mente jovem e desocupada.
À medida em que aprofundei os meus estudos sobre o texto nos anos seguintes, suas
lacunas começaram a parecer mais evidentes. Nessa época eu já estava em contato com
alguns membros da comunidade neopagã e, num movimento natural, acabei chegado aos
livros de Raven Grimassi. Por sorte, em pouco tempo fiz meus primeiros contatos com
outros praticantes de stregoneria e o romantismo lúdico dos livros “grimassianos” começou
a se esfarelar no meu entendimento. Em duas das tradições com as quais tive contato nesse
período, Aradia era vista como uma figura histórica e central, como um verdadeiro ancestral
das práticas “sabáticas” (e em algum nível cerimoniais) que ambas as tradições executavam.
Entretanto, a compreensão sobre o papel de Aradia também divergia sutilmente entre
ambas as tradições, e igualmente entre elas e o livro de Leland.
Aqui pode ser necessário um parêntesis para comentar que em nosso entendimento
muitas tradições possuem um aspecto duplo. Por um lado, existe a tradição como é
transmitida oralmente e que em muitos casos não excede o folclore familiar e um conjunto
de práticas devocionais e operativas – aqui o limite das práticas católicas marginais e da
feitiçaria mais simples são dificilmente ultrapassados. Por outro lado, existe a dimensão
extática da tradição, que comporta as vivências oníricas, os transes mediúnicos, as visões, e
tudo que é aprendido e expandido através deles. Em alguns casos a própria tradição oral
possui os mecanismos para iniciar a caminhada nesse “segundo aspecto”, mas em outros
casos essa caminhada começa espontaneamente. O ponto que fecha esse parêntesis e nos
leva de volta à Aradia da bruxaria tradicional é que, em ambos os grupos de praticantes que
conheci, essa prática sabática – que em minha tradição e em diversas outras é compreendida
como um segundo aspecto – já estava plenamente desenvolvida em moldes ritualísticos que
eram passados de uma geração para outra de praticantes (não necessariamente da mesma
linhagem familiar).
Não é possível nem ético especular se essa transmissão de saberes sobre Aradia
ocorreu sempre de forma horizontal (de pessoa para pessoa) ao longo de toda a história
dessas tradições, ou se a origem desses saberes está em um processo vertical (um contato
com o mundo espiritual que foi expandido e sistematizado liturgicamente a partir de uma
geração específica de praticantes). O que é possível compreender, contudo, é que em todos
os casos que testemunhei da presença de Aradia em congregações tradicionais, ela sempre
esteve ligada ao caráter profético atrelado às bruxas e ao processo de ligação entre os seres
humanos e o divino. Mais assertivamente, posso dizer que Aradia sempre esteve ligada ao
“sabá das bruxas”.
É na zona transitória entre o céu e a terra, na zona onde ocorre a procissão dos
mortos e a caçada selvagem, na companhia das Matronas e das Senhoras do Jogo, que as
chaves para compreender Aradia residem. Isso é corroborado pelos achados de Magliocco
e Eliade, já mencionados, e é também o que a observação e a reflexão intuitiva me
apontaram.
Outro ponto que é necessário de relembrar aqui é, como bem demonstra Grimassi
em seu livro, que o tema de um messias feminino estava em voga na Itália do século XIII.
Poderíamos ver um eco desse papel profético e de ligação entre o céu e a terra na figura de
Guglielma da Milano? Acredito que sim, guardadas as devidas proporções do contexto em
que tais fenômenos ocorreram. A carta da Papisa e seus desdobramentos posteriores na
Sacerdotisa nos trazem insights interessantes sobre como a impressão deixada por essa
personagem histórica ficou marcada no esoterismo ocidental. Decididamente, o papel
desempenhado por Guglielma não fugiu a essa necessidade de uma personagem feminina
que é a encarnação de uma divindade, ou que se torna uma, e passa a ligar o mundo físico
ao mundo espiritual.
Dentre as “santas profetizas” que tem lugar em minha tradição, a relevância de cada
uma delas é mutável entre os devotos. Tenho um vínculo particular com Santa Barbara, mas
minha avó o tinha com Santa Caterina, e assim por diante. O que é curioso é notar que em
todas as pessoas que se tem notícia que fizeram uso desses saberes, uma espécie de
triângulo se formou entre Deus, a Virgem Maria e uma destas santas que trazem mensagens
ou carregam símbolos que interligam o céu e a terra. Entre todos aqueles que tiveram algum
percurso mais longo com os conhecimentos da tradição, esse padrão pareceu se repetir. E
entre os poucos que formaram uma ligação com isso que chamamos “assembleia” ou “sabá
das bruxas”, o mesmo tipo de trindade ou triângulo parece sempre se formar entre o Diabo,
nossa Madonna Arianna – a ancestral que preside o sonho e representa a Mãe Divina – e
uma destas santas profetisas. Não acredito em associações vazias levadas pela emoção
quando reconheço que a persistência destes padrões significa que um formato é pretendido
pela ancestralidade nessas experiências. Mas qual seria a justificativa para essa
configuração triangular entre os seres da tradição?
Acredito que um outro ponto positivo e inusitado de Grimassi é a sua busca por
associar-se aos etruscos enquanto “origem espiritual” da sua stregheria. Infelizmente, muito
do que se fala a respeito dos etruscos no meio ocultista é bobagem do ponto de vista
científico, incluindo a sua relevância na ancestralidade biológica dos italianos
contemporâneos – que geneticamente é mínima. Mas pondo à parte essa questão, o papel
dos etruscos no desenvolvimento dos povos itálicos e sua marca na religiosidade que eles
carregaram ao longo desse desenvolvimento, não pode ser negado. Talvez pelos motivos
errados, Grimassi tenha acertado ao buscar na trindade etrusca Tinia, Uni/Thalna e Menrva
– que depois se torna a trindade capitolina Jupiter, Juno e Minerva – a provável origem da
tríade formada por Lúcifer, Diana e Aradia. A associação da filha divina com Minerva não
deixa de ter um vestígio na história: entre os espíritos mencionados como viajantes
noturnos pelos céus da Itália durante a Alta Idade Média está presente o nome de Minerva.
Obviamente isso não comprova nada, mas nos coloca outro elemento na mesa para reflexão.
Novamente a recorrência da trindade neste contexto se evidencia.
As trindades pressupõem uma lógica que é tanto geométrica quanto metafísica. Três
é o número da manifestação, assim como o triângulo é o que possibilita a delimitação de um
plano no espaço. O próprio esoterismo tradicional do “ocidente” possui um entendimento
sólido sobre o princípio do TERNÁRIO expresso por analogias como Sol + Lua = Mercúrio,
Luz + Trevas = Crepúsculo, e Pai + Mãe = Filho. O princípio da Tese + Antítese = Síntese como
algo que se reflete por todo o cosmos nos coloca em posição de considerar que,
independentemente de uma existência histórica de Aradia, o espaço ocupado por ela é um
espaço que naturalmente deveria existir enquanto síntese das realidades de Diana (trevas,
elemento passivo, mãe, etc.) e Lúcifer (luz, elemento ativo, pai, etc.).
Com algum conhecimento dos temas que enumerei nos últimos parágrafos é
possível vislumbrar que este espaço da “síntese de opostos” que é ocupado por Aradia nas
obras de Leland e Grimassi pode ser (e de fato é) ocupado por outros seres e por outras
representações simbólicas em outros contextos. A título de exemplo, a visão folclórica e
mística da Santa Barbara que uniu o céu e a terra através do raio, e que carrega consigo o
cálice e a espada, expressa para o camponês italiano do século passado algo muito similar
ao que deve expressar ao neopagão a visão de uma Aradia que une o divino ao humano e
que carrega as insígnias sexuais de um deus e de uma deusa. A percepção do que se expressa
por tais manifestações, por outro lado, levaria à discussão metafísica acerca do que são as
divindades e de quais formas elas se manifestam neste mundo, o que não é um assunto
simples, e nem é o propósito desse texto.
Embora o tempo e a especulação não lhe tenham feito justiça, tenho convicção de
que Aradia não é apenas uma fábula inventada por Charles Leland para justificar as suas
teorias defasadas sobre as bruxas italianas. Ela é uma das inúmeras representações do
terceiro elemento da trindade com a qual nos deparamos em nossas experiências noturnas,
uma das profetisas e uma das santas bruxas que através dos séculos tem levado homens e
mulheres de coração ardente até a colina da Assembleia dos Espíritos.
Aradia é viva, e fala por meio de muitas vozes. Que o tempo conturbado em que
vivemos permita aos que buscam esse mistério a capacidade de encontrá-lo!
Referências:
Aradia, Leland & the Gospel of the Witches - Academic review of the sources – Angela’s
Symposium