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FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Religião e Mitologia
Celta
Génese e Consolidação do Mundo Celta
2014/2015

Ana A. Santos
Andreia Ribeiro
Denise Lima
Steffan Davies

Docente: Raquel Vilaça


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Índice

Introdução ......................................................................................................................... 4
Corpo Religioso ................................................................................................................ 5
Cultos e Festividades ........................................................................................................ 8
Mitologia ........................................................................................................................ 13
Conclusão ....................................................................................................................... 18
Bibliografia ..................................................................................................................... 19
Anexos ............................................................................................................................ 20
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Introdução

O presente trabalho surge no âmbito da unidade curricular de Génese e Consolidação do Mundo


Celta, pretendendo-se, com ele, uma abordagem ao tema da religião – evocando essencialmente os seus
agentes, cultos e festividades – e mitologia dos povos celtas, através de informação recolhida a título
pessoal ou com a ajuda da docente.
A escolha deste tema vai ao encontro do interesse pelos assuntos envolvidos e o desejo de uma
melhor compreensão dos mesmos, até porque a religião e mitologia dos Celtas são componentes que nos
ajudam a perceber as ideologias partilhadas por todas as comunidades celtas, pelo que são aspetos por
demais fundamentais para a compreensão do modo como estes viam o mundo.
Importa sublinhar que não se pretende fazer um estudo intensivo de todos os aspetos relacionados
com este tema – nem poderia ser de outro modo, vista a natureza do trabalho –, mas sim tratar os pontos
que a nosso ver seriam os fundamentais de um estudo introdutório ao mesmo.
De referir ainda que, quer na religião, quer na mitologia, existe uma certa dificuldade marcante,
relacionada com as fontes, visto que estas são maioritariamente de autoria greco-latina, a par das de
origem irlandesa, escocesa, galesa e britânica. Se as primeiras descreviam muitas vezes uma realidade
contemporânea, ainda que de um ponto de vista dos conquistadores, que olhavam os Celtas como
“bárbaros”, as segundas devem-se ao facto de, após a queda do Império Romano, as áreas que tinham
estado à margem da tradição celta se terem tornado o seu foco, pois foram os últimos sítios a serem
conquistados (aqui, é de destacar principalmente a Irlanda). Foi apenas aí que as línguas celtas
sobreviveram, e foi também nestas áreas, mais concretamente durante o final do I milénio d.C. e inícios
do II milénio d.C., que se produziu uma tradição mítica vernacular celta.
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Corpo Religioso
A par das fontes clássicas, a tradição literária irlandesa sustenta uma tripartição daquilo a que
podemos chamar de “corpo religioso” Celta, mas que na verdade mais não eram do que grupos sociais
eruditos e religiosos entre os Celtas. Alguns autores clássicos, como Estrabão, fazem alusões a Druidas,
Bardos e os Vates, enquanto as fontes irlandesas mencionam os “Druïdh” (druidas), “Filidh” e “Baird”
(bardos) [GREEN, 1992, p39].
No que concerne aos Bardos, é de sublinhar que em ambas as fontes, estes aparecem como poetas
líricos, ainda que as de cariz irlandês apontem para uma crescente subordinação do papel dos bardos face
aos Filidh (ou Fili, no singular). Na verdade, sabemos que, no mundo Celta, os cantores e outros músicos,
inclusive os bardos, tinham um importante papel nas cerimónias associadas com o mundo espiritual,
sendo o poeta muito apreciado devido a um suposto poder de amaldiçoar ou de abençoar. Deste modo, a
poesia ligava-se à magia, talvez porque ambas implicavam o poder da transformação – na poesia, a
metáfora; na magia, a mudança de forma [MONOGHAN, 2004, p35]. De sublinhar que, face ao enfase
colocado pelos Celtas na honra e reputação, as palavras de um poeta seriam extremamente temidas.
Ainda que o termo “bardo” seja maioritariamente empregue para descrever poetas líricos, o termo
não é exato, pelo que, de acordo com as fontes clássicas, o bardo seria o cargo inferior nos vários tipos de
poetas na Gália, exercendo um papel de historiador, sob demanda rigorosa para não alterar qualquer facto
básico de uma história ou genealogia, sendo a memória um fator fundamental para a função que
desempenhava, do mesmo modo que a visão era crucial para os cargos superiores – os Vates e os Druidas,
que interpretavam presságios [MONOGHAN, 2004, p35-36]. Já na Irlanda, o bardo seria um aprendiz de
cerca de quatrocentos mitos e lendas, podendo tornar-se num fili, i.e., num membro de uma casta mais
notável de poetas, da qual os Ollam eram a categoria mais elevada. Deste modo, quer nas fontes clássicas,
centradas na Gália, quer nas fontes irlandesas, a tripartição dos grupos sociais eruditos e religiosos parece
centrar-se numa mesma hierarquia: bardos ou declamadores, adivinhos ou profetas (Vates e Filidh), e, por
fim, os Druidas.
De facto, a complexidade destes conceitos leva Patricia Monoghan a sublinhar que os papéis sociais
de poeta, juiz, historiador, e profeta não estavam bem definidos na Irlanda antiga – papéis geralmente
hereditários, embora subordinados aos dons do potencial bardo, independentemente do sexo do individuo
[MONOGHAN, 2004, pp35-36]. Neste sentido, os aprendizes passariam por treinos intensivos, que
consistiam na memorização de centenas de narrativas, fundamentais para a posterior composição em
formas altamente estruturadas; tal composição exigia uma ligação à profecia e a feitiços. Estes bardos,
quais “poetas-videntes”, podiam ser chamados a discernir o próximo rei num ritual de sangue, sendo que
o poeta mais reconhecido era um sátiro cujas palavras pungentes poderiam punir qualquer rei que se
provasse pouco generoso ou incapaz de governar.
Vários são os bardos que aparecem em mitos e lendas, alguns chegando mesmo a ter um estatuto
semidivino ou heroico. A título de exemplo temos o irlandês Tuan Mac Cairill, que se descrevia a ele
próprio como tendo vivido em vários corpos desde o começo do tempo; Taliensin, do País de Gales,
ganhara muita inteligência devido a uma bebida da deusa Ceridwen – de acordo com o mito, Taliensin
fugia da deusa, transformando-se em animais, sendo, por fim, comido por Ceridween, que o tomou por
filho e atirou-o ao mar. Estas e outras histórias de mudanças de forma por parte de bardos, dão conta da
crença de que o poeta poderia assumir corpos de animais, permanecendo com a consciência humana.
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No que concerne aos Filidh, membros eruditos da sociedade na Irlanda, corresponderiam aos Vates
mencionados na literatura Clássica. Tinham, por isso, funções seculares e religiosas, sendo especialistas
em contar histórias e em compor poesia e, simultaneamente, videntes e praticantes da adivinhação. O seu
reportório era composto por histórias especificamente relacionadas com o mundo sobrenatural. Existia
ainda a crença de que os filidh tinham poderes sobrenaturais, podendo difamar ou causar a morte por
meio da sátira.
Na literatura irlandesa encontram-se referências a um período de aprendizagem, entre sete a doze
anos, ao qual os filidh noviços teriam de se submeter. Nele, aprenderiam a compor em diversas métricas
poéticas rígidas e a saber de memória genealogias e contos heroicos, enquanto deveriam estudar também
profecias e aprender a elogiar governantes.
O longo período de vida das tradições mitológicas irlandesas, proveniente dos primeiros séculos do
primeiro milénio d.C., poderá estar relacionado com este grupo, face às referências de filidh que
aparecem até ao século XVII – quer fossem sinónimos de videntes, poetas, professores, conselheiros reais
ou testemunhas de contratos. Na verdade, esta perpetuação dos filidh no tempo terá a ver com o facto de,
na Irlanda, estes terem permanecido com grande parte dos poderes e funções dos druidas, a partir da
entrada do Cristianismo na Irlanda, substituindo também os bardos, como poetas aprendizes.
Quanto aos Druidas, sem dúvida o nome mais conhecido do público geral no que concerne à
religião Celta, são referidos por inúmeros autores clássicos – como Estrabão, Diodoro Sículo e César –
sendo que a informação por eles comentada provém de uma fonte perdida mas comum a estes autores, de
autoria de Posidónio. De sublinhar que as menções a Druidas como um grupo poderoso de lideres
religiosos se encontra reduzida essencialmente aos Celtas Gauleses. No Commentari De Bello Gallico de
César, os Celtas são descritos como estando divididos entre cavaleiros e druidas, e que estes últimos
seriam responsáveis pela religião e todos os sacrifícios, governando em todos os aspetos religiosos. De
acordo com a mesma obra, os druidas reunir-se-iam todos os anos, numa data fixa, num lugar sagrado no
território de Carnutes, considerado o centro da Gália [DUNHAM, 1998].
César refere inclusivamente que o “druidismo” pertenceria inicialmente à Bretanha, de onde terá
saído para a Gália, comentando que os druidas passariam por um período intenso de treino onde
decoravam tradições orais, podendo prolongar-se até vinte anos, mas no qual aprenderiam também
aspetos ligados ao mundo natural [MACCULLOCH, 2005, p294]. Na sua obra, César faz ainda referência
ao papel dos druidas como juízes ou árbitros em todas as disputas.
As fontes clássicas espelham que o principal objetivo dos druidas era controlar aspetos
sobrenaturais, sobretudo através da adivinhação, que muitas vezes incluía a perpetuação de sacrifícios
humanos – as vítimas seriam, por exemplo esfaqueadas, sendo os seus espasmos de morte e a sua corrente
sanguínea examinada [GREEN, 1992, p86]. É interessante verificar, tal como César menciona, que se
acreditava que o único modo de neutralizar ou controlar os deuses seria com a troca de uma vida humana,
pelo que, no caso de doenças ou outras crises que afetassem os Celtas, os druidas organizariam sacrifícios
humanos [GREEN, 1992,p86; ANWYL, 2006, p47-51].
Na tradição irlandesa, os druidas identificam-se muitas vezes com conselheiros e profetas
poderosos, estando simultaneamente ligados à magia, muitas vezes utilizada para o mal. Acreditava-se
que os druidas tivessem de facto poderes sobrenaturais, podendo controlar o clima e fazer mulheres e
gado fértil; usariam feitiços e rimas que levariam à morte; mudariam de forma ou tornar-se-iam
invisíveis; tinham um sono mágico, possivelmente hipnótico, entre outros fatores [MACCULLOCH,
2005, p310]. A título de exemplo, no Ciclo de Fionn, o Druida Negro transforma a futura mulher de Finn,
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Sava, num gamo; enquanto Eva, a madrasta dos filhos de Lir, usa uma varinha druida para os transformar
em cisnes [GREEN, 1992, p87]. Também de acordo com as fontes irlandesas, alguns druidas teriam
funções medicinais, ainda que sejam mais abundantes as referências a outros indivíduos com funções de
curandeiros – tal como John MacCulloch [2005] defende, é possível que estes curandeiros tenham estado
ligados aos druidas do mesmo modo que os bardos estariam.
De destacar que os druidas da região da Gália estariam isentos de participar na guerra –
combatendo esporadicamente tal como os bispos medievais –, ainda que o mesmo não acontecesse na
região irlandesa. Em ambas as regiões, estariam presentes no campo de batalha para realizar os ritos
mágicos ou rituais necessários [MACCULLOCH, 2005, p312].
Sabe-se também que os druidas envergariam vestes brancas, a par de mantos bordados a escarlate e
ouro, com pulseiras e ornamentos apertados para o pescoço, também dourados.
Contudo, não se sabe com exatidão a verdadeira importância dos druidas entre os povos Celtas,
sendo no entanto claro que provavelmente possuiriam uma poderosa influência religiosa e política.
Embora não existam evidências para tal afirmação, é aceitável que os druidas fossem comuns a todos os
povos Celtas antes do período Romano, sobrevivendo apenas na Irlanda a partir desse período até ao
Cristianismo.
Ainda no concernente ao que chamamos de “corpo religioso” Celta, é de sublinhar a existência
entre as comunidades de um possível sacerdócio relacionado com o sol, anterior ao período Romano e
ainda existente nele, tal como Miranda Green patenteia em The Sun Gods of Ancient Europe, conclusão a
que chega pelo achado de três correntes que funcionariam como adereços para a cabeça num templo em
Wanborough, das quais duas tinham modelos de rodas em bronze, símbolo que tem sido associado ao sol.
De acordo com a autora, estes adereços poderiam ter sido utilizados por clérigos ou oficiais religiosos em
cerimónias com ritos sagrados a divindades relacionadas com o sol. Todavia, face à moeda de Petersfield
– também ela decorada com uma roda semelhante entre os cornos da figura representada –, a mesma
autora sugere que tanto se poderia tratar de uma representação do deus solar, como poderia ser uma
representação de um individuo que utilizaria adereços idênticos aos de Wanborough [GREEN, 1991].
Na verdade, já desde a Idade do Bronze europeia que se vinha a notar um hábito comum entre os
devotos do deus do sol a utilização de talismãs solares, quais pendentes ou outra joalharia em forma de
rodas. Representações de guerreiros e armaduras que patenteiam o símbolo da roda como amuleto são
frequentes; veja-se o monumento funerário datado do período romano em Metz, onde um homem que
enverga um torc do qual pende uma roda de quatro raias [GREEN, 1991].
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Cultos e Festividades
A religião celta é um culto – pagão -, politeísta, que punha em comunhão Deuses e Homens, duas
entidades que faziam parte da mesma realidade, na medida em que ambos os lados, mortal e imortal,
conviviam no quotidiano.
“A transmutação de forma entre o mundo animal e humano se cria possível” e também “a fusão
das essências humanas e animal, e não das formas”, [WOOD, 2005, 94]
Como as frases anteriores espelham, neste tipo de culto era imprescindível o contacto constante
com os elementos da natureza, quer sejam eles pertencentes ao reino animal, quer ao reino da flora. É
ainda frequente encontrar testemunhos – nomeadamente clássicos – da captação da essência destes dois
elementos da natureza, embora não da forma propriamente dita de um determinado animal, mas antes o
seu Ser, ou até mesmo a sua mera existência. Tanto o Homem como o Deus poderiam retirar essa
essência, ou assumir a forma de um outro ser-vivo, e representá-la antropomorficamente, como já se
verificou no capítulo dedicado ao corpo religioso.
“O Herói Oengus assumiu a forma de um cisne a fim de seguir a sua amada até ao Outro Mundo
no festival do Samhain”. [WOOD, 2005, 94]
A maior parte dos rituais celtas tinham lugar em alturas específicas do ano, alturas essas em que era
acreditado por toda a comunidade céltica que a linha que dividia o mundo físico do metafísico, se tornava
mais ténue, permitindo um convívio direto entre o Homem e a Divindade, e inclusive, Espíritos,
principalmente na altura do nosso atual Hallowe’en, o Samhain, altura propícia para estabelecer contacto
com aqueles que habitam agora o “Outro Lado” – como Oengus, assumindo a forma de um cisne, animal
gracioso, puro. Podemos com isto depreender que este tipo de ritual praticado pelos povos célticos, não se
tratava apenas do convívio entre deidades e ser humano, visava a comunhão de todo o tipo de essências
existentes na natureza, mortas ou vivas, sugerindo que passado, presente e futuro, se dissolviam nestas
alturas do calendário celta, deixando apenas o Tempo como componente decisivo da realidade.
Ainda no concernente às metamorfoses importa ainda referir que, nas crenças celtas, eram
frequentes as ideias relativas à regeneração e, principalmente, à fecundidade. Eram atribuídas
propriedades a animais de acordo com a sua própria biologia, por exemplo, as cobras e os veados estavam
fortemente associados aos ciclos da vida e da morte: a cobra que troca de pele, ou o veado que muda de
hastes, eram símbolos de regeneração, troca, começo. Certos tipos de alimentos também recebiam
características simbólicas, como o caso das frutas e dos cereais, que transpareciam abundância,
fertilidade, saúde, riqueza.
De referir que, no século XIX, em Lião, sudeste de França, foi encontrado um calendário de bronze,
de 1,52m x 1,09 m, datado do século I a.C. Encontra-se fragmentado (não pela obra do Tempo, antes pelo
uso nos próprios festivais e rituais), e apresenta escrita gaulesa, mas abecedário romano[GREEN, 1992,
63-64] . Este calendário seria usado para calcular as épocas das cerimónias que tinham o seu começo no
dia da véspera específica da celebração, querendo com isto dizer que o festival propriamente dito tinha o
seu início da noite anterior.
Contam-se, neste calendário, 62 meses lunares e 2 anos bissextos, de forma a ser possível mantê-lo
alinhado com o sol, assegurando que os festivais incidissem na altura e estação certa. Com base nisto, os
celtas não se regulavam pelos equinócios e solstícios – começando a fazê-lo numa fase mais tardia –,
inovando ao criarem um complexo sistema lunar. Ora, isto sugere que os dias dos festivais eram
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regulados através da observação do tempo em que o sol permanecia no céu, ao longo do ano. Logo,
apesar de se guiarem pela lua, o sol desempenhava também um papel decisivo na confirmação dos dias
Apenas séculos mais tarde foi feita a associação das duas principais alturas do ano – equinócios e
solstícios – com as práticas de agricultura e estações do ano. Tal como foi tratado anteriormente, os celtas
regulavam o calendário com base nas luas e nas noites, tentando sempre conciliar com os dias, mas dando
prioridade às noites.
Para a compreensão dos festivais celtas é necessário, pois, um conhecimento básico acerca da sua
organização. Deste modo, é de sublinhar que o ano celta se dividia em dois quadrantes:
 Quadrante A, relacionado com o Inverno, denominado Geimredh;
 Quadrante B, ligado ao Verão, designado Samradh.
Ambos os quadrantes subdividiam-se igualmente em duas partes:
 Quadrante A: 1º - Geimredh, que começa a 1 de novembro, com o Samhain;
2º - Eorrach, ou Oimelc, que se inicia a 1 de fevereiro;
 Quadrante B: 1º - Samradh, começando a 1 de maio, com o Beltane;
2º - Foghamar, tendo o seu início a 1 de agosto, com o Lughnasadh, ou Brontrogrhain.
[MACCULOCH, 2005, capítulo XVIII, p257]
Neste contexto, para além dos quatro principais festivais que se tenciona tratar – Samhain, Imbolc,
Beltane, Lughnasadh –, densamente estudados por Macculoch [2005], existiam ainda outros quatro,
referentes à altura dos equinócios e solstícios – Yule, Ostara, Midsummer, Mabon.
Postos estes principais componentes de divisão do ano celta, resta-nos descrever os quatro
principais festivais referidos no parágrafo anterior:

Samhain – 1 de novembro
Este festival corresponde ao início do ano celta e à altura da debulha, em prol da própria recolha de
alimentos. Consistia em levar a cada casa o fogo sagrado da fogueira, fogo esse acendido
propositadamente pela fricção de duas peças de madeira. Este fogo simbolizava pureza, conferindo um
bom início do ano, estando também associado à expulsão dos espíritos malignos existentes na casa de
cada indivíduo. Na verdade, o fogo tinha um outro papel fundamental relacionado com as adivinhações,
isto porque o início do ano era uma época marcada pela adivinhação através da leitura das labaredas, do
mesmo modo que se interpretava a posição de certos seixos lançados.
No Samhain eram comuns sacrifícios animais, aos quais se seguiam banquetes feitos com a carne
dos mesmos; por vezes, apenas um pequeno número seria sacrificado solenemente, enquanto noutros
casos haveria sacrifícios mais gerais que englobavam enormes quantidades de cabeças de gado. Aqui, o
principal intuito era absorver a força vital e física da vítima, sendo o animal visto como sagrado. Neste
contexto, e embora tal não seja aplicado a todo o mundo celta, era frequente vestir as peles e ornamentos
dos animais (cascos e cornos) assim que retiradas dos corpos, de maneira a poderem aproximar-se da
divindade, ou então queimando pelos do animal na fogueira sagrada, inalando o fumo.
O festival de início de ano correspondia também ao tempo em que os mortos e os fantasmas eram
alimentados, concretizando-se sacrifícios – dos quais o fogo sagrado já referido fazia parte – a todo o tipo
de espíritos malignos, como demónios, bruxas e fadas mal-intencionadas e até mesmo aos próprios
mortos. Este sacrifício, praticado pelos druidas, poderia ser feito tanto com homens, como com animais;
as vítimas eram incineradas ao caírem na fogueira, enquanto saltavam por cima dela, por meio de um
tropeção (intencional ou não).
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O Samhain era tido ainda como um festival que alimentava o poder das fadas, estas que, ligadas
firmemente ao mito dos Tuatha De Danann, eram vistas como deidades representativas dos deuses
antigos, associando-se ao crescimento e progresso agrícola.
Em suma, este festival era a altura de festejar o início de um ano com boas colheitas, altura de
preparação para o inverno, ou Geimredh, e tempo de purificação espiritual, de onde o poder do fogo se
destaca.

Imbolc – 2 de fevereiro
Apesar da informação sobre este festival de inverno ser mais escassa, sabemos que a esta altura do
ano se associa à fertilidade e à lactação das ovelhas, sendo um ritual sazonal. Este festival cumpriria-se
em honra da deusa Bridgit ou Brígida, a parteira. Esta deusa era filha do deus Dagda, patrona da poesia,
da cura e dos trabalhos de ferreiro, sendo-lhe até atribuída a invenção da técnica de coser [MONAGHAN.
2004, 59-60].

Beltane – 1 de maio
Este festival corresponde ao início da segunda parte do ano, ou seja, do Samradh. O Beltane era em
honra do Fogo Benigno ou do Fogo Brilhante, sendo um festival de luz e brilho, embora também se
defenda que seja em honra do deus Belennus, a que era atribuído o poder do Sol. É realizado em honra do
verão e do seu início, de modo a promover o crescimento dos campos e do gado, estando por isso
relacionado com a fertilidade. No festival, um dos chefes irá personificar a essência do festival
[GREENS, 1992, p42].
A palavra “Beltane” deriva de Bel-Téne (“bom fogo”), ou Bel-Dine (“recém-nascido”)
[MACCULOCH, 2005, p265], podendo ter ainda origem no termo bel-tepneia, limpo, claro, com belo-s,
fogo. Neste caso, o fogo – feito debaixo de uma árvore sagrada ou debaixo de um poste enfeitado com
vegetação, que por sua vez incorporava o Espírito da Vegetação - servia para afastar pragas e doenças, e
representava o sol [MACCULOCH, 2005, p267].
Havia, como não podia deixar de ser, sacrifícios de animais – sendo que, no caso da Irlanda, seriam
atirados para a fogueira ossos e crânios de cavalo –, sendo contudo que as vítimas humanas assumiam um
caráter mais divino, sendo sacrificadas de modo a que os restantes – homem ou animal – pudessem
absorver a sua força, mas principalmente para aquele que realizava o sacrifício.
Havia bolos de grãos ou leveduras, da colheita anterior, de cariz divinatório que eram capazes de
adivinhar a morte daquele que o comia/transportava, caso o bolo se partisse antes de chegar à colina onde
seria realizado o festival. O bolo era também atirado para trás das costas, enquanto o seu portador ia
entoando os desejos para esse ano de colheitas – apelando à entidade da águia ou do cavalo, ou do corvo,
que velasse pelas ovelhas e/ou pelas colheitas.
Em termos de culto, eram visitados poços sagrados (pequenas lagoas de água límpida), onde se
executava uma cerimónia com as suas águas, salpicando as árvores ou campos, como de chuva se tratasse.
Estes poços tinham o dom da cura.
Salienta-se ainda um outro tipo de ritual: o rei e a rainha de maio, dois indivíduos que
representariam a fertilidade no festival – tanto assim era que trajavam com folhas –, casar-se-iam durante
as cerimónias. Acreditava-se que este casamento ritual teria consequências no sentido da abundância para
toda a comunidade. Beltane significava luz e abundância e fertilidade, logo, aquando o referido
casamento, era comum que houvesse um ritual de cariz sexual, que terminasse em orgia, nas colinas.
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Lughnasadh – 1 de agosto
Este festival, também denominado por Lunnasa ou Lammas, marca o final do verão e início do
outono. Os celtas acreditavam que este festival tinha sido criado pela própria entidade de Lugh, belo, deus
do Sol e da Luz, patrono dos heróis e das artes, em honra de sua mãe.
O Lughnasadh era uma altura para serem realizados casamentos, tanto pela abundância e riqueza
que os noivos agora possuíam, uma vez ter já passado a época de maior crescimento dos campos
agrícolas, mas também para assegurar a fertilidade até à altura do Samhain.
Estrabão, por exemplo, diz que este festival era o correspondente ao da deusa Deméter, dizendo que
era inicialmente, um festival feminino. Através deste autor clássico, sabemos da existência das Namnitas,
semelhantes às Mênades ou Bacantes, que realizavam orgias. Essas Namnitas ficariam isoladas numa
ilha, de onde apenas poderiam entrar e sair uma vez por ano para ter relações com o sexo oposto. No
templo a Lugh, Estrabão conta ainda que, uma vez por ano, elas desfaziam e reconstruíam o telhado, e se
alguma deixasse cair um material, seria despedaçada, e os seus membros dispostos em redor do templo
[MACCULOCH, 2005, p275],
Já Plínio descreve a nudez das mulheres neste festival como algo essencial; os seus corpos eram
pintados ou trajados de vegetação deixando apenas a zona genital à vista, como símbolo de fertilidade
[MACCULOCH, 2005, p276].

Ao longo das páginas anteriores têm sido expostos alguns rituais praticados pelos Celtas aquando
dos festivais. Neste contexto, importa enumerar mais um conjunto considerável e satisfatório de rituais
que conduzam à realidade celta face ao mundo metafísico.
Começa-se por salientar o tipo de ritual que concerne à adoração de espíritos, como por exemplo, os
espíritos do milho e da vegetação, na maior parte das vezes personificados por um individuo que
participaria no festival (apesar de não se ter explicado anteriormente, o espírito do milho era
personificado aquando o Samhain e o Lughnasadh).
Como pudemos ainda verificar, eram frequentes os rituais que apelavam à fertilidade e abundância,
patentes nos casamentos e nas Namnitas, ou seja, muitas vezes de cariz sexual, nomeadamente, orgias.
As adivinhações estavam também na mote do dia do festival, seja pela leitura das labaredas
provocadas pelas chamas da fogueira sagrada ou pelos seixos intencionalmente atirados, seja pelo bolo
com carácter divinatório. O fogo aparece bastantes vezes como símbolo de pureza e limpeza (do espírito
ou do ambiente).
No que toca aos sacrifícios, pensa-se que as vítimas humanas fossem criminosos ou reféns de
guerra, embora se saibam de relatos em que crianças eram utilizadas para este tipo de ritual; a maior parte
dos textos clássicos definem os sacrifícios como brutais e sangrentos. O seu objetivo visava o
apaziguamento de forças superiores, i. e., de divindades e deuses, mas também para obter abundância nas
colheitas e sorte na fertilidade. Neste tipo de ritual, era frequente que o sacrificado representasse a
deidade do respetivo ritual, por exemplo, o Fogo Benigno ou o Espírito do Milho, ou até Matress, a deusa
da fertilidade.
Existe um culto em particular que incide no Culto dos Mortos [MACCULOCH, 2005, p165], e que
vai coincidir precisamente com a deposição de materiais nos túmulos e nos mortos de companhia. No
entanto, estes mesmos comportamentos sugerem também um culto dedicado aos espíritos dos
antepassados/ancestrais, onde se inserem os heróis, míticos ou reais.
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Neste sentido, as cabeças dos capturados de guerra ou criminosos (como anteriormente explicado),
eram oferecidas aos fantasmas tribais (“stray shades”); trata-se de uma prática contada, na sua maioria,
pelos bardos. Essas cabeças eram posteriormente colocadas ou em templos (tardios), ou nas casas dos
familiares do falecido herói. Por conseguinte, indica-nos que o culto aos mortos acontecia no calor e
conforto da casa familiar, esperando que o fantasma a quem se presta culto se torne guardião tanto da
família, como do espaço familiar. A este culto e em certos túmulos e habitações (nomeadamente
gauleses), foram encontrados figurinos de cordeiro como símbolo de sacrifício - quais efígies utilizadas
por um certo indivíduo – e de purificação ou inocência.
No mundo dos mortos, era imprescindível alimentar, no sentido lato, o fantasma do falecido herói;
deste modo, eram colocados copos e taças num poço ou perto deste, e era sacrificada uma criança pelo
meio do fogo. O fantasma dessa criança estaria incumbido de servir, no Outro Mundo, o fantasma do
herói, enchendo os objetos com a água do poço. Por vezes, aquando o funeral, eram depositados, em
conjunto com o espólio, alimentos, como fruta, cereais, leite, milho ou peixe, e espalhados pelo túmulo.
Este tipo de oferenda pretendia convidar o recém-falecido ao banquete que iria ser realizado em sua
honra.
Por fim, resta fazer referência a dois últimos tipos de sacrifícios que contribuíram para rotular estes
rituais como sangrentos e brutais. Era costume o sacrifício por afogamento em pântanos ou em caldeirões
(do onde se destaca o caldeirão de Gunderstrup), em que a vítima, ou era afogada enquanto viva,
passando por todo o processo até, finalmente, morrer, ou afogada post-mortem (antes de depositada na
água, poderia ser enforcada, esfaqueada, e até incinerada).
No culto a Esus, era normal esfaquear a vítima, pendurando-a numa árvore (porventura considerada
sagrada), deixando-a esvair-se em sangue, até morrer [WOOD, 2005, p102-103]. Neste sentido, talvez
este sacrifício possa relevar que não só o fogo e a água tinham propriedades sobrenaturais, mas também o
sangue, uma vez que representava a força pura e, grosso-modo viva, do sacrificado que, aliado com o
simbolismo da árvore e natureza, admite que o sangue poderia ser visto como uma fonte, mais pura que a
dos poços protegidos por deidades, carregada de memórias e propriedades mágicas como cura e
regeneração.
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Mitologia

Devido à diversidade das fontes, é muito complexo fazer uma distinção entre os diversos deuses e
divindades, confundindo-se muitas vezes aqueles pertencentes aos povos Celtas da Irlanda, por exemplo, com os
da região da Europa. Deste modo, irá ser feita uma abordagem geral e sintetizada ao assunto, não nos cingindo
apenas à mitologia celta de uma região específica, mas a várias áreas de ocupação celta.
A mitologia celta não começou por texto, mas sim por estórias, isto é, contos populares ou fábulas, pelo que
muito do que se sabe atualmente começou por fazer parte de uma tradição oral, apenas passando para escrito
numa fase mais posterior [MONAGHAN, 2004, p15]. Muita desta tradição oral dos povos celtas envolvia contos
com fadas e seres de um “Outro Mundo” que interagiam com humanos.
De acordo com Patricia Monaghan [2004], Gienna Matson e Jeremy Roberts [2010], a religião celta
mantinha uma crença de que existia um mundo paralelo, o “Outro Mundo” (“Otherworld”), qual “mundo
espiritual” que se assemelhava ao real, sendo contudo mais belo e imutável, onde não se envelhecia e a morte não
tinha lugar [MONAGHAN, 2004, pXV]. Este conceito difere do entendimento hebraico de Paraíso, pois o
“Outro Mundo” é, na verdade, acessível aos vivos e poderia influenciar profundamente o dia-a-dia daqueles que
vivem no mundo “real”. De sublinhar que, apesar de nem todos os povos celtas possuírem uma mesma percepção
deste mundo paralelo, a base ideológica seria a mesma.
Como visto no capítulo de Cultos e Festivais, o “Outro Mundo” seria, portanto, um lugar que estava apenas
para lá do “real”, do mesmo modo que uma ilha se avista para lá de um oceano inultrapassável. No entanto,
acreditava-se que, em certas alturas do ano – como nas festividades de Beltane e Samhain, ou mesmo em períodos
em que o tempo estaria escuro e chuvoso – , as “portas” do outro mundo se poderiam abrir para os que viviam no
mundo “real”.
Mitos de indivíduos que teriam visitado o “Outro Mundo” relatam que este seria idílico, com árvores
simultaneamente em flor e em fruto, onde o céu azul e o sol brilhantes estavam sempre presentes, e onde existia
comida deliciosa e abundante, que nunca enchia. Por outro lado, as criaturas que habitam este universo possuíam,
tal como os mortais, uma moralidade ambígua: em tempos de desespero, poderiam visitar o nosso mundo,
aconselhando heróis; noutras alturas saciavam as suas próprias vontades egoístas, ao raptar crianças humanas, que
eram vistas como mais belas do que as crianças do “Outro Mundo”. Para os Celtas, estes habitantes do “Outro
Mundo” eram eternos, visto que o tempo andava muito lentamente para estes seres, conduzindo à ideia de
juventude eterna.
Importa agora tratar um outro grande tema: os deuses venerados pelos povos celtas. Miranda Green [1995]
enfatiza, no seu livro The Celtic World, que é possível hierarquizar os deuses celtas com base na sua frequência
de aparecimento e através da epigrafia e iconografia. Se tivermos como base uma ligação entre hierarquia e
popularidade, então temos no topo da hierarquia divina o deus do Sol e do Céu (Taranis) e as Deusas-Mãe
(Matres) e Epona, que representava a fertilidade. Todos estes deuses referidos transcendem as fronteiras tribais,
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sendo portanto conhecidos pela maior parte do mundo celta [GREEN, 1995, p. 482]. De referir que estes não
seriam os únicos deuses celtas, conhecendo-se um enorme panteão de deuses na mitologia destes povos.
É de sublinhar o papel de alguns deuses, não só por já terem sido mencionados aquando da descrição dos
festivais, mas também por ser a este grupo que se prestavam os cultos para os quais existe mais informação:
Belenus – Belenus (ou Taranis) era o deus do sol. A sua função como deus do sol tem também por base o
significado do seu nome, sendo que este, provavelmente, significara “brilhante” ou “aquele que brilha”. Apesar de
não existir muita informação relativa a este deus, o facto de ter um festival dedicado a si – Beltane – patenteia a
sua importância. Acreditava-se que Belenus estabelecia a ligação entre a luz, o sol e a cura, podendo transparecer
a ideia do Fogo Benigno (venerado no Beltane), opondo-se assim às trevas e à morte – a própria ligação do seu
festival ao período em que nascem as crias de gado relaciona-se com o conceito de vida.
Existem várias inscrições por toda a Gália referentes a Belenus, a par de várias referências ao seu culto por
parte de autores clássicos. A crença em nascentes curativas está intrinsecamente ligada ao culto deste deus, visto
que se acreditava que o sol, durante a noite viajava para debaixo da terra, aquecendo as águas das nascentes e
termas [MONAGHAN, 2004, p. 39].
Brigit – É uma deusa que representa vários poderes e forças, como a cura, a poesia, o “forjar”, o fogo e o
gado. Algumas referências indicam que Brigit seria uma força divina que se tripartia por três deusas, cada uma
controlando uma força principal (ferragem, cura, poesia). Tal como já foi referido, Brigit associava-se a um dia de
festividade e comensalidade, chamado Imbolc, praticado a 1 de fevereiro, e que se mantém até aos dias de hoje
nas terras da Irlanda. No folclore irlandês, Brigit era amante de um dos reis mais marcantes da Irlanda, Bres, filho
do príncipe Elatha. Dele teria tido um filho, Ruadán, que morreria numa guerra entre duas tribos – tornando
Brigit conhecida pelo lamento à morte do filho [MONAGHAN, 2004, p. 59-60].
Cernunnos – Este deus faz parte do panteão mais antigo dos deuses celtas, tendo sido venerado no período
pré-romanizado, sendo que foram encontradas referências à sua imagem datadas do século IV a.C.. O seu nome,
“O Cornudo”, deriva não de uma tradução romana ou linguística, mas sim da iconografia, onde sempre se
salientam uns chifres de um veado, demonstrando uma possível ligação ao culto sazonal dos celtas, pois os chifres
deste animal crescem na primavera, e desfazem-se no outono. O deus é acompanhado constantemente por
animais, tanto selvagens como domesticados, estabelecendo assim a sua proximidade à natureza, levando a que
fosse apelidado “Mestre dos animais”. Apesar da sua presença, e características físicas, que incluem por vezes um
torque e símbolos de abundância, como a cornucópia, não se conhecem mitos que lhe estejam associados,
havendo contudo uma representação sua no caldeirão de Gundestrup1 [MONAGHAN, 2004, p. 84-85].

1-Caldeirão de Gundestrup: O caldeirão de Gundestrup foi encontrado num pântano em Himmerland, na Jutlândia (Dinamarca), em 1891. É um
caldeirão de prata que pesa quase nove quilogramas, tendo sido encontrado desmontado, depositado numa zona seca do pântano. Acredita-se que
poderá ter sido depositado ou num contexto de ritual, ou escondido em tempos de crise [MONAGHAN, 2004, p. 232].
A importância deste caldeirão não parte apenas da sua perfeição artística, mas também do aceso debate em relação às origens do seu fabrico. Isto
porque, apesar das suas representações de figuras celtas, das quais existem paralelos no mundo Gaulês, o trabalho é certamente de obra da Trácia. O
caldeirão em si é de uma forma tipicamente celta, que nunca teria existido dentro do mundo da Trácia. Por outro lado, as técnicas de trabalho de
prata presentes na sua manufactura, incluindo o seu alto-relevo, são típicas do trabalho da Trácia do século IV ao I a.C.. A forma das figuras,
independentemente do seu significado, são também de estilo trácico, evidente na estilização do cabelo dos animais e na presença de figuras
mitológicas, como o grifo..
A explicação mais aceite é a de T. F. Taylor e de A. K. Bergquist que propõem que a solução para este problema se encontre uma tribo celta chamada
Scordisci que, durante o século III a.C., se implantou parcialmente numa zona dominada pela Trácia. Desta forma, a coexistência entre celtas e
trácicos é assegurada, e evidenciada no espólio funerário das zonas do noroeste da Bulgária, onde são encontrados outros materiais de fabrico
hibridizado. Assim, o mundo material podia servir de intermediário entre os povos, adoptando características pertencentes a cada um [MOSCATI,
1991, p 538].
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Dagda – Dagda é um deus representado como mestre de todos os ofícios, verdadeiramente polivalente –
aliás, era não só um rei guerreiro, como artesão e agricultor – e, ao mesmo tempo, benevolente. De acordo com
Arthur Cotterell [1996], este era o grande deus da mitologia irlandesa, representando a abundância e a fertilidade.
Dagda era conhecido por vários nomes, alguns do quais representando as suas características polivalentes, como é
o caso do nome Eochaid Ollathair (“Pai de tudo”) ou Ruad Rofhessa (“Senhor de grande conhecimento”). Era
dotado também do título de Samiladanach, que significava “Homem de vários ofícios”.
Seria dono de um caldeirão que nunca se conseguia esvaziar, e um maço de enormes proporções, de tal
tamanho que apenas se conseguia transportar com um carro, e que teria conotações fálicas associadas à
fertilidade. De acordo com o mito, Dagda era dono de dois porcos imortais (cada vez que eram comidos,
ressuscitavam) e de um pomar repleto de fruta, independentemente da estação do ano.
Estes e outros traços demonstram que de facto se acreditava que Dagda era não só um representante da
reprodução eterna e da excelência masculina ideal, mas também simbolizava a fertilidade da terra. Ironicamente,
as suas representações não aparentam ser de um indivíduo idealizado, pois a sua túnica era demasiado curta para o
seu corpo, pelo que os seus genitais eram expostos – símbolo de fertilidade.
De acordo com as lendas, uma das parceiras de Dagda fora a deusa possuidora de asas negras, Mórrigan, que
conheceu à beira rio, estando ela com cada pé apoiado numa margem, a lavar as roupas dos guerreiros antes de
uma batalha. Ao se deparar com a enorme deusa, Dagda cedeu ao seu impulso sexual, penetrando-a, fazendo com
que Mórrigan, no dia seguinte, o acompanhasse numa batalha, prestando assistência ao cantar músicas mágicas,
contra os inimigos dos Dé Danann – os Fomorian – expulsando-os da Irlanda. Contudo, Dagda costuma ser
representado como marido da deusa da abundância Bóand, relação da qual resultariam vários filhos, incluindo a
deusa Brigit e o deus da beleza e poesia Aonghusóg, levando à ligação simbólica da poesia ser derivada de uma
vida abundante.
Outro dos filhos de Dagda era Áed Minbhrec, que foi morto por um homem chamado Corgenn, quando este
se encontrava com uma raiva ciumenta. A impossibilidade de Dagda ressuscitar o seu filho prova que os seus
poderes, apesar de vastos, não eram infinitos. Dagda então amaldiçoa Corgeen, obrigando-o a levar o cadáver de
Áed Minbhrec às suas costas até encontrar uma rocha com o tamanho e peso exato da sua vítima. Finalmente
encontra o sítio certo – o forte de Grianán Aileach, acabando assim a maldição.
Diz-se que Dagda teria morrido na segunda batalha de Mag tuired após uma luta heroica, sendo a autora da
sua morte uma mulher chamada Ceth Lion, esposa do rei Balor, dos Formorian. No entanto, a sua alma continuou
a reinar no “Outro Mundo”, onde se manteve em quatro grandes palácios, enquanto comia do seu abundante
caldeirão e do seu pomar [MONAGHAN, 2004, p. 113-114].
Danu – O nome da deusa Danu deriva do celta antigo Dan, que significa conhecimento, interligando-se esta
deusa com a deusa-Mãe galesa Dôn. Alguns textos dizem que será filha do deus Dagda, o que faz com que haja
uma ligação entre Danu e a fertilidade de terra. É dito que será a mãe dos Tuatha Dé Danann, uma raça divina
que se pensa ser a representação dos deuses dos celtas. Encontramos várias referências ao nome de Danu, apesar
de não existirem mitos que lhe estejam associados ou que sejam hoje conhecidos, ainda que se relacione o seu
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nome ao rio Danúbio, aos montes de Dann e aos Seios de Danu (um par de colinas em forma de seios no sudoeste
da Irlanda) [MONAGHAN, 2004, p. 117].
Epona – Epona é uma das figuras divinas mais interessantes, sendo de extrema importância para os povos
celtas que habitavam a zona continental da Europa, ainda pouco seja conhecido sobre esta deusa à parte a sua
ligação ao cavalo – de facto, era muitas vezes representada em cima de uma égua rodeada de cavalos. Em
algumas das suas representações, Epona surge ainda acompanhada de um corvo ou de um cão, que
representariam, respetivamente o mundo funerário e o “Outro Mundo”. Também podia ter na sua mão chaves que
estariam ligadas não só à ideia de poder, como também à capacidade de abrir as portas do “Outro Mundo”, uma
vez que se acreditava que seria a porteira, podendo acompanhar a alma do morto. Importa realçar a associação
dos celtas entre os cavalos e o sol de dia, visto que o sol fornecia a abundância dos pastos que alimentavam os
animais.
De referir ainda a possibilidade de Epona estar associada ao ritual de aclamação de reis, no qual o individuo
teria que comer uma espécie de estufado feito da carne de égua e beber um caldo feito do seu sangue, assumindo-
se que, após o ritual, o homem estaria metaforicamente casado com as terras da deusa.
Pensa-se que culto a esta deusa terá sido levado pelas legiões romanas durante as suas invasões para as ilhas
britânicas. No entanto, pouco é conhecido sobre Epona na Irlanda e no País de Gales, ainda que se encontrem
deusas relacionadas com o cavalo, como Macha e Rhiannon, respetivamente. [MONAGHAN, 2004, p. 157-158].
Lugh – Acreditava-se que o deus Lugh era de sangue Fomorian, visto ser neto do rei Balor. Este rei pensava
que podia manter a sua imortalidade se nunca permitisse à sua filha, Eithne, conhecer um homem, uma vez que
um profeta o tinha avisado que seria morto pelo seu neto. Contudo, ao entrar na torre da filha do rei, Cian
mascarado de mulher arruinou os seus planos, levando Eithne a dar à luz três filhos, da qual apenas um
sobreviveu – Lugh. A profecia concretizou-se, pois Lugh, criado pelo povo de Tuatha Dé Danann, lutou com
estes na segunda batalha de Mag tuired, onde matou o avô.
Outras interpretações dizem que Lugh é filho de Dagda. Esta ligação de pai-filho é deduzida da narrativa de
um livro anónimo irlandês compilado no século XI, Lebor Gabála Érenn, que narra Lugh como conquistador do
título de Samiladanach após chegar a Tara e pedir ao rei que lhe permitisse juntar aos Tuatha Dé Danann.
Perguntaram-lhe então porque haveriam de o aceitar, ao que o deu respondeu que era bom carpinteiro, mas
negaram-lhe o pedido por já terem um carpinteiro. Lugh então disse que era bom ferreiro, mas também já existia
um. O deus, não desistindo, disse ser não só um bom músico, historiador, herói e mágico, mas todas estas
profissões já teriam quem as exercesse na comunidade. Lugh pergunta então ao rei se existia alguém que
exercesse todos os ofícios ao mesmo tempo, pelo que o rei respondeu que não, sendo o pedido de Lugh
posteriormente aceite.
Este deus também era denominado Lámfhoda, que significa “aqueles de braços compridos”, devido às suas
capacidades com a lança. É ainda provável que Lugh estivesse associado ao cultivo, aspecto que está presente na
sua mitologia, por exemplo no episódio da vitória da batalha contra os Fomorian, onde Lugh poupa a vida do rei
Bres, em troca de conhecimentos agrícolas [MONAGHAN, 2004, p. 313-314].
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Sucellus – Sucellus era, tal com Epona, um deus venerado pelos povos celtas da zona continental da Europa.
Estava intrinsecamente ligado às ideias da fertilidade, do selvagem e da cura. Na sua mão estava sempre presente
um martelo que conseguia fazer renascer a vida. Há que salientar que este deus, portador de martelo, difere
bastante dos deuses Odin e Zeus, pois estes estavam ligados não à natureza, à harmonia e à vida, mas sim aos
relâmpagos e o poder. Sucellus era representado por escultores como um deus de idade avançada e por roupas
modestas, com um característico olhar benevolente. Por vezes era representado ao seu lado um cão de caça
[MONAGHAN, 2004, p. 448].
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Conclusão
Conclui-se, pois, que as palavras estavam carregadas de um poder capaz de amaldiçoar ou
abençoar, por quem as proferisse; palavras com a capacidade de satirizar e elogiar, descrever, reter,
transformar, relatar estórias e conservar na História, capacidades que, não fosse o perfecionismo dos
celtas, não tinham tornado possível o presente trabalho. Este poder da palavra confirma-se com a
complexidade dos papeis do chamado “corpo religioso” celta, este que é tripartido e onde se destaca o
papel dos Druidas, dos Filidh ou Vates, e dos Bardos.
Confirmamos a aproximação dos Celtas à natureza, à qual davam extrema importância na sua vida
quotidiana – com a realização de festivais ou não; florestas, campos cultivados, poços e olhos d’água e o
espaço familiar, são locais que, quando em conjunto, transformam toda a realidade do povo celta num
autêntico templo que na verdade não é palpável, mas que existia. Tudo isto poderá levar à conclusão que
questões como a ‘vida’ e a ‘morte’, o natural e o sobrenatural, eram coisas indissociáveis que quando
aparelhadas, completavam o ciclo existencial, e que por sua vez quebravam a linha que separava o físico
do metafísico, Homens e Deuses.
Sublinha-se que os povos celtas eram rigorosos no que toca à celebração de festivais, de modo que
tudo deveria estar perfeito, ou os desejos partilhados pelos indivíduos não se iriam realizar; o fogo, a água
e o sangue, ditam como atingir a pureza, a inocência e a limpeza espiritual.
Queremos enfatizar que muito ficou por dizer – quer seja no respeitante ao resto dos deuses
existentes no Panteão, ou aos Templos que, embora tardios, deveriam ter sido mencionados com mais
pormenor, os próprios ciclos mitológicos da Irlanda e os inúmeros ritos a eles associados (tema tratado no
livro Myths and Legends of the Celtic Race, por Thomas William Rolleston), ou mesmo até sobre as
diferentes conceções de “Outro Mundo”. No entanto, o espaço a ocupar é pouco, em relação à quantidade
de informação existente sobre a mitologia celta.
Homens praticantes das Artes da Guerra e Plásticas, nas quais se revelaram exímios, de magias e
letras, poesia e história, indivíduos que conheciam os segredos do Outro Mundo, e que sobre ele poderiam
caminhar, conhecedores de capacidades como metamorfose e previsões futuras, são apenas alguns
elementos que conseguem descrevem este povo que continua a suscitar dúvidas, e a trazer mistério por
parte daqueles que afincadamente os estudam.
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Bibliografia
Bibliografia utilizada:
 ANWYL, Edward (2006) - Celtic Religion in Pre-Christian Times, The Project Gutenberg
Ebook, March 23.
 COTTERELL, Arthur (1996) – The Encyclopedia of Mythology: Classic, Celtic, Norse, Hermes
House, Leicestershire, p. 90-164
 DUNHAM, Sean B. (1998) - Caesar’s perception of Gallic social structures, in: ARNOLD,
Bettina, GIBSON, D. Blair – Celtic Chiefdom, Celtic State, New Directions in Archaeology
 GRAY, Louis Herbert, MOORE, George Foot, MACCULLOCH, John Arnott (1918), The
Mythology of All Races, Marshal Jones Company, Boston, Vol. III, [p. 23-216]
 GREEN, Miranda (1991), The Sun-Gods of Ancient Europe, B.T. Batsford, London, [p.83-106].
 GREEN, Miranda (1992), Dictionary of Celtic Myth and Legend, Thames and Hudson, London.
 GREEN, Miranda. (1995). The Celtic World, Routledge, Oxon, [p.7, 482-509].
 KAUL, Flemming. (1991) The Gundestrup Cauldron, in MOSCATI, Sabatino. (coord), The
Celts, Bompani, Milano,1991, [p. 538]
 MACCULLOCH, J.A. (2005), The Religion of The Ancient Celts, The Project Gutenberg Ebook,
January 12.
 MATSON, Gienna. & ROBERTS, Jeremy. (2004, 2010), Celtic Mythology A to Z (Second
Edition), Chelsea House, Nova Iorque
 MONAGHAN, Patricia (2004), The Encyclopedia of Celtic Mythology And Folklore, Facts on
File, Inc., New York NY
 WOOD, Juliette (2005), Imagem Crença e Ritual, in “Os Celtas, A vida, o mito e a arte, Culturas
e Civilizações”, Circulo de Leitores, [p. 94-121]

Bibliografia Complementar:
 CUNLIFFE, Barry. (1997), Religious Systems, in The Ancient Celts, Oxford/New York
 ROLLESTON, Thomas William (2010), Myths and Legends of the Celtic Race, The Project
Gutenberg EBook, October 16.
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Anexos

Anexo 2- Moeda de prata da Idade do Ferro, com o


Anexo 1 – adereço para a cabeça com rodas, símbolo da roda entre duas antenas ou cornos, de
proveniente do templo de Wanborough, Surrey. Petersfield, Hants.
In GREEN, Miranda (1991), The Sun-Gods of Ancient In GREEN, Miranda (1991), The Sun-Gods of Ancient
Europe, B.T. Batsford, London, p.102 Europe, B.T. Batsford, London, p.102

Anexo 4: Caldeirão de
Anexo 3: Calendário Coligny, in Gunderstrup:
wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Gund
http://commons.wikimedia.org/wiki/ estrup_cauldron#mediaviewer/Fil
File:Coligny.jpg e:Silver_cauldron.jpg

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