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OFICINA “ELEMENTOS DA ESTÉTICA DE J. R. R.

TOLKIEN”
André Luiz Rodriguez Modesto Pereira
Aula 9: 14/10/2010

A Canção dos Ainur


… see that no theme may be played that hath not
its uttermost source in me, nor can any alter the
music in my despite.

• “The music of the Ainur”, texto inicial de The Silmarillion (1977).


• The Silmarillion – volume bastante abrangente; desde a criação de Arda até o final da
Terceira Era.
• Textos escritos durante mais de cinquenta anos organizados de forma mais ou menos
coerente. O desenvolvimento dos textos refletiam as preocupações do autor em cada época
de sua vida: filologia, estética, relação artista e obra, função da arte, filosofia e teologia.
• Dificuldade em organizar os textos de forma completamente consistente:

Uma consistência completa (dentro do alcance do próprio The Silmarillion ou entre


The Silmarillion e outros textos publicados de meu meu pai) não deve ser
procurada, e só poderia ser alcançada, se fosse possível, com um custo pesado e
desnecessário. Além disso, meu pai veio a conceber The Silmarillion como uma
compilação, uma narrativa compêndio, feita muito depois a partir de fontes de
grande diversidade (poemas, e anais, e contos orais) que sobreviveram em uma
tradição milenar; e essa concepção tem realmente seu paralelo na verdadeira
história do livro, pois uma boa dose de sua prosa e poesia mais antigas forma sua
base, e ele é em certa medida um compêndio de fato, e não somente em teoria.
(TOLKIEN, C. 2002, p. Viii – tradução minha)

• linguagem concisa e arcaizante. Tom bíblico.


• Mitologia não antropocêntrica. Espécie de Bíblia élfica, narrando desde sua origem até seu
desaparecimento e o pós-vida. Porém menos imbuído de caráter sagrado.
• Tempo linear com início e fim (parcialmente em aberto) – semelhante à Bíblia.
• Sem caráter de documento sagrado.
• Dividido em cinco partes:
• Ainulindalë – The music of the Ainur” criação do mundo;
• Valaquenta – Valar e os Maiar, segundo a tradição élfica;
• Quenta Silmarillion – história das joias chamadas Silmarilli e das guerras contra o
primeiro senhor do escuro, Morgoth.
• Akallabêth e Of the Rings of Power and the Third Age – respectivamente, relatos da
Segunda e da Terceira Eras de Middle-earth.

1. Ainulindalë – A Canção dos Ainur


• Texto dividido em duas partes, sinal gráfico (***) ausente na edição brasileira. Dois estágios
da criação.
• Primeira parte: a música.
• Pode ser dividida em: 1) aprendizado dos Ainur; 2) a música de Eru; 3) a canção dos
Ainur.
• Primeira seção:

Havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar. Ele criou primeiro
os Ainur, os Sagrados, gerados por seu pensamento, e eles lhe faziam companhia
antes que tudo o mais fosse criado. E ele lhes falou, propondo-lhes temas musicais;
e eles cantaram em sua presença, e ele se alegrou. Entretanto, durante muito tempo,
eles cantaram cada um sozinho ou apenas alguns juntos, enquanto os outros
escutavam, pois cada um compreendia apenas aquela parte da mente de Ilúvatar da
qual havia brotado e evoluía devagar na compreensão de seus irmãos . Não
obstante, de tanto escutar, chegaram a uma compreensão mais profunda, tornando-
se mais consonantes e harmoniosos.

• “Havia” – o existir antes do próprio tempo. Eru é em muitos aspectos semelhante ao


Deus cristão (transcendente, bondoso, paciente), mas não é O Criador absoluto.
• Aprendizado individual, depois em conjunto. Harmonia: forma principal de
sabedoria.
• Segunda seção:

E aconteceu de Ilúvatar reunir todos os Ainur e lhes indicar um tema poderoso,


desdobrando diante de seus olhos imagens ainda mais grandiosas e esplêndidas do
que havia revelado até então; e a glória de seu início e o esplendor de seu final
tanto abismaram os Ainur, que eles se curvaram diante de Ilúvatar e emudeceram.

• Silêncio e reverência dos Ainur.


• Terceira seção:

Disse-lhes então Ilúvatar: - A partir do tema que lhes indiquei, desejo agora que
criem juntos, em harmonia, uma Música Magnífica. E, como eu os inspirei com a
Chama Imperecível, vocês vão demonstrar seus poderes ornamentando esse tema,
cada um com seus próprios pensamentos e recursos, se assim o desejar. Eu porém
me sentarei para escutar; e me alegrarei, pois, através de vocês, uma grande beleza
terá sido despertada em forma de melodia.

• Canção dos Ainur = subcriação. Surge a partir de um tema criado por Eru.
• Ideia de “imitação” transmitida por uma arte não mimética: a música. Som
significante. Significado não revelado imediatamente.
• Chama Imperecível (Imperishable Flame), que é o dom concedido por Eru para que
suas criações ganhem vida. Inicialmente, esse dom é concedido apenas aos Ainur.
Em um segundo momento, Ilúvatar envia a Chama Imperecível para a Terra, de
modo que assim ela finalmente exista.
• Prometeu ← Melkor → Prometeu Moderno. Busca pela chama, tentativa de criar por
si mesmo.
• Instrumentos: harpas, alaúdes, trombetas, órgãos e violas, quanto como grandes coros
que cantavam com palavras. Melodias entrelaçadas.
• Música que dará origem ao universo. Plano mítico/metafórico: música = universo.
• Música das Esferas:

Doutrina grega (pitagórica) antiga, postulando uma relação harmoniosa entre os


planetas, governado por proporções entre suas órbitas e sua distância fixa da Terra.
O conceito pode remontar a crenças judaicas sobre uma ordem cósmica, que
representam um hino de louvor a seu criador. A idéia continuou a atrair filósofos da
música até o final do Renascimento, influenciando eruditos de muitos tipos,
inclusive humanistas; o último trabalho original sobre o assunto foi publicado por
Kepler em 1619, mas a imagística cósmica de molde pitagórico persistiu em alguns
pensadores posteriores e, para músicos do sec. XX, como Hindemith, a música das
esferas continuou a ser um conceito vital, ainda que metafórico. (SADIE, 1994, p.
634)

• fusão do universo grego e hebraico.


• Organização lógica do universo.
• Interferência de Melkor – desarmonia. Interrupções e novos temas.
• Terceiro tema:

[…] Um terceiro tema cresceu em meio à confusão, diferente dos outros. Pois, de
início parecia terno e doce, um singelo murmúrio de sons suaves em melodias
delicadas; mas ele não podia ser subjugado e acumulava poder e profundidade. E
afinal pareceu haver duas músicas evoluindo ao mesmo tempo diante do trono de
Ilúvatar, e elas eram totalmente díspares. Uma era profunda, vasta e bela, mas lenta
e mesclada a uma tristeza incomensurável, na qual sua beleza tivera principalmente
origem. A outra havia agora alcançado uma unidade própria; mas era alta, fútil e
infindavelmente repetitiva; tinha pouca harmonia, antes um som uníssono e
clamoroso como o de muitas trombetas soando apenas algumas notas. E procurava
abafar a outra música pela violência de sua voz, mas suas notas mais triunfais
pareciam ser adotadas pela outra e entremeadas em seu próprio arranjo solene.

• Crescimento da tensão e resolução em um magnífico acorde final.


• Estrutura musical bem definida: concerto em três movimentos.
• Instrumentação: harpas, alaúdes, trombetas, órgãos, violas e vozes;
• Método de composição: como variações sobre um tema original, desenvolvidas
através de um método contrapontístico – vozes entrelaçadas;
• Música Renascentista ou Barroca.

• Segunda parte: revelação do sentido.


• Estrutura paralela à primeira parte: aprendizado; a descoberta das ações e
intervenções de Ilúvatar; e, por fim, o trabalho de dar forma à matéria existente.
• Consciência do poder dos Ainur e da autoridade de Eru (nada poderia ser criado sem
o consentimento dele/sem que partisse dele).
• Significado revelado:

Entretanto, quando eles entraram no Vazio, Ilúvatar lhes disse: - Contemplem sua
Música! - E lhes mostrou uma visão, dando-lhes uma imagem onde antes havia
somente o som E eles viram um novo Mundo tomar-se visível aos seus olhos; e ele
formava um globo no meio do Vazio, e se mantinha ali, mas não pertencia ao
Vazio, e enquanto contemplavam perplexos, esse Mundo começou a desenrolar sua
história, e a eles parecia que o Mundo tinha vida e crescia. E, depois que os Ainur
haviam olhado por algum tempo, calados, Ilúvatar voltou a dizer: - Contemplem
sua Música! Este é seu repertório. Cada um de vocês encontrará aí, em meio à
imagem que lhes apresento, tudo aquilo que pode parecer que ele próprio inventou
ou acrescentou. E tu, Melkor, descobrirás todos os pensamentos secretos de tua
mente e perceberás que eles são apenas uma parte do todo e subordinados à sua
glória.

• Segunda revelação do poder de Eru: Elfos e Homens. Criaturas semelhantes aos


Ainur, já que provêm do mesmo criador; irmãos.
• Encantamento com a visão: desejo de entrar nesse mundo novo.
• Distribuição de papéis, quatro elementos:

Ares e Vento Terra


Manwë Aulë
Água Fogo (?)
Ulmo Melkor

• Visão termina antes que os Ainur pudessem contemplar o destino final do mundo.
Mistério ou perda de influência?
• Entrada no mundo: mudança de atividade de artistas (músicos – trabalho mais
intelectual e abstrato) para artesãos (usando seus poderes para moldar o mundo –
trabalho concreto, material). Transformação semelhante a de Niggle.
• (sub)Criação através das palavras e da música não é arbitrária. Habilidade dividida
com elfos e homens.

• Paralelo com a Bíblia, duas instâncias da criação: a primeira pelas palavras; a segunda pela
ação direta do criador:

Gênesis 2:1 ASSIM os céus, e a terra e todo o seu exército foram acabados.
2 E havendo Deus acabado no dia sétimo a sua obra, que tinha feito, descansou no
sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito.
3 E abençoou Deus o dia sétimo, e o santificou; porque nele descansou de toda a
sua obra, que Deus criara e fizera.
***
4 Estas são as origens (ou gerações) dos céus e da terra, quando foram criados: no
dia em que o SENHOR (transliterado JHVH, ou dito JEOVÁ) Deus fez a terra e os
céus,
5 E toda a planta do campo que ainda não estava na terra, e toda a erva do campo
que ainda não brotava; porque ainda o SENHOR Deus não tinha feito chover
sobre a terra, e não havia homem para lavrar a terra.
6 Um vapor, porém, subia da terra, e regava toda a face da terra.
7 E formou o SENHOR Deus o homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o
fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente. (grifo nosso)

• Problemática da Bíblia: provavelmente é a reunião mais ou menos (des)ordenada de


diferentes textos escritos em diferentes épocas.
• Marcas textuais:

Genesis 1
Deus - MI¦D«Lª@ - Elohim
Homem (espécie humana) - M¡C¡@ - adam

Genesis 2
Deus - MI¦D«Lª@ D¡ED¥I – Jevah Elohim
homem (sexo masculino, depois nome próprio) - M¡C¡@ - adam
mulher - D¡y¦@ - ishah

• As duas instâncias do texto bíblico são harmonizadas (tornadas coerentes) no texto


tolkieniano.

2. Mito de criação e processo criativo


• Música dos Ainur se assemelha ao processo de subcriação descrito em “Sobre histórias de
fadas”.
• Importância da música e da palavra. Palavra enquanto música, sonoridade antes do sentido;
resgate de uma motivação para o signo linguístico.

Fui educado nos Clássicos, e descobri pela primeira vez a sensação do prazer
literário em Homero. Além disso, sendo um filólogo, obtendo uma grande parte de
qualquer prazer estético de que sou capaz da forma das palavras (e especialmente
da associação pura da forma da palavra com o sentido da palavra), sempre apreciei
da melhor maneira coisas em uma língua estrangeira ou em uma tão remota que dê
essa sensação (tal como o anglosaxão). Mas é o bastante para mim. (TOLKIEN,
2006, p. 167 – grifo do autor)

• Ainur: primeiro experimentam o som, para depois descobrir um sentido.


• Inicialmente não há uma distinção clara entre música e palavra. Significado é revelado
depois.
• Qualidade do som, formas de composição, instrumentos: música barroca e renascentista,
períodos nos quais a música tinha valor semelhante às palavras.
• Formas: cânone, fantasia. Formas ligadas ao ocultismo e à alquimia (transmutação de temas
musicais = transmutação de elementos químicos), descartadas pelo pensamento racionalista
do século XVIII.

[…] A noção neoplatonista de que a música duplica o modelo dos céus e pode agir
com seu poderoso efeito sobre sobre o homem porque ele, também, é um
microcosmo do universo. […] cânone e contraponto duplo proveem uma visão
profunda nas estruturas misteriosas e ocultas do universo, desde que, por analogia
com o movimento das estrelas, esses tipos de peças alcançam a perfeição em sua
“inversão harmônica” (“Replica”) e portanto oferecem “um espelho da natureza e
da ordem divina.” (YEARSLEY, 1998, p. 211–212)

• Através dessa forma musical é possível se aproximar do conhecimento divino, criar por
regras semelhantes. Reflexão sobre nosso próprio mundo.
• Subcriação = criação que parte do mundo primário e volta a ele.
• Escolha da música, em especial a forma como ela é desenvolvida, como ferramenta de
criação não é arbitrária.

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