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COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE:
A FENOMENOLOGIA DE ALFRED SCHUTZ
Covilhã, 2002
Indice
Introdução: página 4
Actualidade de Alfred Schutz: página 4
Fenomenologia social ou sociologia de inspiração
fenomenológica: página 13
Objectivos do livro: página 20
I Parte
Biografia intelectual:vida e influências: página 22
Viena e New York: duas tradições: página 22
Da epoché ao mundo da vida: página 30.
Os dados da consciência: Henri Bergson: página 37
O significado da acção social: Max Weber: página 42.
William James: realidades múltiplas: página 46
O incompleto edifício schutziano (1): página 50
O edifício incompleto de Alfred Schutz (2): página 57
III Parte
A Fenomenologia social e outros paradigmas sociológicos:
página 64
A teoria dos sistemas: página 65
A problemática hobbesiana: página 65
Comte e Durkheim: página 68
Talcott Parsons e a Teoria dos sistemas: página 74
O debate Schutz –Parsons: página 85
A teoria dos sistemas e a Fenomenologia: página 87
Sociologia fenomenológica e Etnometodologia: página 89
A Fenomenologia social e Habermas: página 93
O mundo da vida quotidiano: página 100
IV Parte
Novas abordagens sobre a teoria de Alfred Schutz: página 104
Afloramentos de uma teoria política: página 105
Comunicação e mundo da vida : página 118
Comunicação, tipificação e relevância: página 122
Fenomenologia, jornalismo e comunicação de massa: página
127
Comunicação de massa e sistema de relevância: página 133
Linguagem jornalística e tipificação: página 139
I Parte
Uma biografia intelectual
Entre Viena e New York: no cruzamento de duas tradições
Relevância e tipificação
II
Comunicação e sociabilidade
Comunicação e política
Comunicação e media de massa
Política e igualdade
A igualdade em Schutz
Fenomenologia social, jornalismo e comunicação de massa
A problemática hobbesiana
Comte e Durkheim
A sociologia é, para Comte no seu Cours de Philosophie positive,
a "ciência natural da sociedade". O seu positivismo funda-se amplamente
na associação entre ordem e progresso: Comte faz sua a tradição
iluminista do fim do pensamento metafísico cujas brumas devem ser
definitivamente dissipadas pela Razão, ao mesmo tempo que reage contra
os excessos e radicalismos "negativos" da Revolução.
A sociologia é concebida como uma instância racional de ordem
superior com a qual deve ser possível, segundo uma conduta puramente
científica e através de um determinado tipo de planeamento, dirigir a
sociedade tendo em conta a relação de forças existentes, tal como se
verificam na sociedade real (cfr. Adorno, 1996: 25).
A noção idealista de Razão ligada à ideia de liberdade é
substituída por uma noção de Razão que almeja ao estudo da sociedade
com o recurso aos mesmos métodos do estudo da natureza e com vista
à obtenção de leis universais que assegurem uma planificação social
geral. Com o positivismo, defende-se a subordinação da imaginação à
observação (cfr. Comte, 1990: 90-91). A vontade de ordem é entendida
como tendo uma base científica: a natureza das coisas interdita
absolutamente a liberdade de escolha, mostrando sob vários pontos de
vista distintos que a classe dos sábios é a única verdadeiramente própria
e adequada para executar o trabalho social. Pretende-se, assim,
estabelecer uma forma de política, denominada política científica, que
tem como finalidade prática a de determinar a marcha da civilização.
(Comte, 1986: 117).
Durkheim estará fortemente influenciado por Comte: i) a
sociologia deverá erguer-se como ciência natural da sociedade tratando os
factos sociais como coisas, ii) a secularização dos conceitos religiosos e
metafísicos é a contrapartida do desenvolvimento científico, iii) a
mudança social é progressivo e depende da ordem. Porém, à originalidade
e da energia teórica que tem de comum ao seu predecessor, Durkheim
adiciona uma espantosa sofisticação teórica.
Em Durkheim, detecta-se uma preocupação fundamental acerca
dos mecanismos que permitem aos indivíduos integrarem-se na
sociedade. Ou seja, como é que sociedades que prezam tanto o
individualismo, se podem proteger contra as pretensões egoísticas dos
seus membros e alcançar um mínimo de consenso? Ou, de outro modo,
como é que a autonomia do indivíduo é compatível com a existência
social?
A intervenção da consciência colectiva, entendida como
conjunto de crenças e de sentimentos comuns à média dos membros de
uma mesma sociedade, independente das condições particulares em que
os indivíduos se encontram (cfr. Durkheim 1977: 99) e a intervenção da
acção moderadora da norma que emana dessa consciência constituem
os contributos fundamentais de uma perspectiva que privilegia uma
visão pacificante na qual as partes só têm sentido quando entendidas
em simultâneo com o todo orgânico.
A consciência colectiva é distinta das consciências individuais.
Ao agregarem-se, as almas individuais dão origem a uma
individualidade psíquica de novo género (cfr. Durkheim, 1977: 102-
103). As representações colectivas têm uma particularidade sinergética
que faz com que a interacção entre as partes seja muito mais do que a
adição do todo “Se em determinados aspectos, podemos afirmar que as
representações colectivas são exteriores às consciências individuais, é
porque elas não derivam dos indivíduos considerados isoladamente,
mas da sua cooperação o que é muito diferente. É certo que na
elaboração de um resultado comum, cada qual contribui com a sua
quota-parte. Mas os sentimentos privados só se transformam em sociais
quando se combinam sob a acção de forças sui generis que a associação
desenvolve. Na sequência destas combinações e das alterações
recíprocas que delas resultam, eles transformam-se numa coisa
diferente” (Durkheim, s/d: 198).
No decurso do enorme esforço de fundamentação do carácter
apriorístico do colectivo surge bem visível no plano prático. “A
sociedade é algo de bom, de desejável para o indivíduo que não pode
existir fora dela, que não pode negá-la sem se negar (…) o indivíduo
pelo facto de ela o transcender não pode querê-la e desejá-la sem de
algum modo violentar a sua natureza de indivíduo; (…) a sociedade,
sendo algo de bom, é uma autoridade moral que, quando se transmite a
determinados preceitos de conduta que a tomam particularmente a peito
lhe confere um carácter obrigatório.” (Durkheim, s/d: 212). Assim, no
domínio moral, “como nos restantes domínios da natureza, a razão do
indivíduo não tem privilégios, enquanto razão do indivíduo. A única
razão pela qual podeis legitimamente reivindicar, aqui como em
qualquer parte, o direito de intervirdes e de vos elevar acerca da
realidade moral histórica, tendo em vista reformulá-la não é a minha
razão nem a vossa: é a razão humana, impessoal, que somente na
ciência se realiza verdadeiramente (…) Mas esta intervenção da ciência
tem por finalidade substituir o ideal colectivo do presente, não por um
ideal individual, mas por um ideal igualmente colectivo, e que exprima
não uma personalidade particular, mas a colectividade melhor
compreendida (Durkheim, s/d: 242).
Por outro lado, a possibilidade de realização da felicidade
humana é olhada, prioritariamente, sob o ponto de vista da integração
social e da formação de um consenso. A sociedade é a própria condição
de possibilidade da constituição da humanidade em si, do respeito pela
pessoa humana e da sua realização integral. Durkheim acredita que se
fosse retirado ao homem tudo o que da sociedade lhe advém, nada mais
restaria do que um ser reduzido à sensação e mais ou menos indistinto
do animal. Entregue a si próprio o indivíduo ficaria dependente das
forças físicas. “Se este consegue escapar a essas forças, se ele
conseguiu libertar-se, constituir uma personalidade, foi porque lhe foi
possível colocar-se ao abrigo de uma força sui generis, força intensa,
porquanto resulta de uma coalizão de todas as forças individuais, mas
força inteligente e capaz, por conseguinte de neutralizar as energias
ininteligentes e amorais da natureza: é a força colectiva” (Durkheim,
s/d: 231). Resulta daqui que “não podemos querer sair da sociedade
sem queremos deixar de ser homens” (Durkheim, s/d:231). É da
sociedade que advém “o carácter sagrado de que se encontra investida a
pessoa humana (…) essa espécie de auréola que envolve o homem e o
protege contra as investidas sacrílegas não a possui o homem
naturalmente: é a forma pela qual a sociedade o pensa, e a alta estima
em que presentemente o tem, extravasada e objectivada” (Durkheim,
s/d: 234).
O holismo durkheiniano não implica necessariamente uma
negação dos direitos e liberdades do indivíduo, os quais se tratam de
uma conquista feita graças à sociedade: “Esses direitos e liberdades não
são coisas inerentes à natureza do indivíduo como tal. Analisai a
constituição empírica do homem, e nela nada encontrareis desse
carácter sagrado de que ele se encontra actualmente investido e que lhe
confere direitos. Esse carácter foi-lhe acrescentado pela sociedade”
(Durkheim, s/d: 248).
Prevê-se uma limitação do individualismo que, de certo modo,
que passa pela relativização dos poderes que cada um tem de sujeitar
outro. Na verdade cada homem não pode ser livre senão na medida em
que outrem é impedido de beneficiar da superioridade física,
económica ou outra de que dispõe para sujeitar a sua liberdade.
O equilíbrio entre os pólos social e individual é conseguido
deste modo pela consideração dos indivíduos como funcionários da
sociedade. Encontramo-nos perante uma visão organicista que
privilegia apesar de tudo a existência de movimentos próprios dos
indivíduos, o que coincide com a descrição de uma sociedade onde a
individualidade do todo apenas aumenta com a das partes. “as
sociedades onde a solidariedade orgânica é preponderante são
constituídas não por uma repetição de segmentos similares e
homogéneos, mas por um sistema de órgãos diferentes, cada um dos
quais com um papel especial e que são, eles próprios, formados de
partes diferenciadas” (Durkheim, 1977: 210). Assim, a solidariedade
orgânica implica que os indivíduos difiram uns dos outros e não é
possível senão quando cada um tem uma esfera de acção que lhe é
própria e, consequentemente, uma personalidade.
Perspectiva-se a defesa de uma sociedade onde o indivíduo
participará na energia colectiva pela realização da sua função: “o
imperativo categórico da consciência moral está em vias de tomar a
forma seguinte: põe-te em estado de desempenhar utilmente uma
função determinada” (Durkheim, 1977: 56).
Coerente com a tentativa de encontrar uma forma lógica de
descrever a interpenetração entre indivíduo e sociedade, o seu modelo
compreende uma dinâmica dos factos sociais que enaltece o sujeito
apenas como plenamente realizável no todo. Deste modo, o indivíduo
só pode conseguir a sua realização, aceitando o seu papel e a sua
função no interior do sistema da divisão de trabalho. O consenso social
imaginado por estas reflexões de linhagem hobbesiana privilegia a
ordem como um ponto de partida, pressentindo no conflito e na
dissidência uma fonte de desprazer e de sofrimento que ameaçam a
própria possibilidade de relações sociais estáveis.
MERLEAU-PONTY, M. (1995), La
phenomenologie de la perception, Paris, Gallimard.
NASU, Hisashi, Alfred Schutz’s conception of Multiple realities
sociologically interpreted, in AMBREE, Lester (1999), Schutzian
Social Science, Dordrecht, Boston and London, Kluwer Academic
Publishers.
PARSONS, T., (1964), The social system, New York, The Free
Press.