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O escritor que acredita que há sempre boas histórias nas pessoas que perdem
26 Agosto 2009 - 12:23
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um dos seus textos emblemáticos, Sinatra está constipado, publicado pela Esquire, em 1966, o jornalista norte-americano Gay Talese fez um
perfil inesquecível do cantor sem nunca ter falado com ele. Durante a Festa Literária Internacional de Paraty o escritor explicou o que o levou
a partir em busca de uma jovem chinesa que para ele representava a ova China, uma reportagem que ninguém queria publicar. Um dos seus
livros, “Honra o Teu Pai”, foi este ano editado em Portugal. Por Isabel Coutinho
Se somos repórteres de investigação, investigadores sérios, não temos maneira de evitar o contacto directo com as pessoas que queremos
compreender e sobre as quais queremos escrever. Dou-vos um exemplo.
Em 1999, eu estava muito deprimido a ver televisão na minha casa em Nova Iorque. Era Verão, mês de Julho. Estava a meio da escrita de um livro
e não sabia para onde ir. Decidi ver televisão porque é uma maneira de não se pensar (mudar de canal, mudar de canal, mudar de canal sem parar).
Fui parar a um canal onde estava a ser transmitido um jogo de futebol feminino. A equipa chinesa versus a equipa norte-americana. O jogo estava a
ser realizado na Califórnia, no Rose Bowl, 90 mil pessoas estavam a assistir no estádio à final do campeonato mundial. Como não tinha mais nada
para fazer, assisti, sem sequer saber as regras do jogo.
Estava interessado nas mulheres chinesas porque uns meses antes, em Março de 1999, durante o conflito bósnio, os americanos tinham
acidentalmente bombardeado a embaixada chinesa na Jugoslávia. Houve uma grande controvérsia sobre se o bombardeamento da embaixada
chinesa em Belgrado tinha sido deliberado - como os chineses afirmavam ser -, ou se tinha sido um acidente, como os americanos defendiam,
explicando que o mapa de Belgrado estava desactualizado e que tinham atacado o sítio errado sem saber.
Meses depois, na final do campeonato mundial feminino de futebol, as mulheres da China estavam a jogar contra as mulheres dos Estados Unidos.
Isto não tinha nada a ver com política, mas o desporto tem tudo a ver com política. Este jogo de futebol tinha uma dimensão para além do desporto.
Juntava a China e os Estados Unidos como gigantescos adversários num novo mundo. Um mundo em que a Ásia estava a aproximar-se do
Ocidente.
Vi aquele jogo, estava 0-0 no marcador, mulheres a correrem de um lado para o outro do campo.
Tal como vos disse antes, estava a pensar nas mulheres, chinesas, porque me ocorreu que aquelas jovens que tinham 20, 23, 25 anos, eram as filhas
das mulheres da Revolução Cultural Chinesa dos anos 60.
Eram as netas das mulheres que viveram na China antes da revolução que Mao levou para aquela terra em 1949. Podiam ser netas de mulheres que
andaram com os pés ligados. Aqui tínhamos as netas com os pés livres, com chuteiras, fabricadas pela Adidas e pela Nike. Eu estava a ver
televisão, a ver um jogo que era importante, um campeonato do mundo, mas eu também estava a ver a evolução das mulheres chinesas. Mulheres
que vieram da Revolução Cultural de Mao ou até antes, do Período Imperial, até à Idade Moderna, até à era da tecnologia, até à era do triunfo.
Pensei: não é a um jogo que estou a assistir na televisão, isto é História.
Perseverança
Já tinham passado quase três horas deste jogo (Meu Deus!) e ainda estava 0-0 no marcador. Foi preciso um desempate por penáltis. As mulheres
chinesas e as americanas marcaram à vez. E das dez jogadoras só uma falhou.
Quem falhou o golo foi uma mulher chinesa e as chinesas perderam o jogo. As americanas desataram aos saltos, a abraçarem-se de alegria (o
presidente Clinton estava a assistir no estádio), os americanos abanavam as suas bandeiras, cheios de contentamento.
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E agora, aquela rapariga tinha de se meter num avião com as suas colegas e regressar a Pequim. Era uma viagem demasiado longa.
Eu tinha que conhecer aquela mulher. Não há maneira de “googlar” esta rapariga. Não se pode fazer isto à distância. Tinha que a encontrar. Mas
como se encontra aquela mulher chinesa quando não se fala uma única palavra de mandarim ou de cantonês? Eu nunca tinha ido à China, não
conhecia ninguém na China, mas precisava de a ver. Precisava de ir lá.
Talvez algum dos editores de revistas que conheço me enviasse à China para eu escrever a história desta asiática. Os jornais do dia seguinte nos
Estados Unidos e as revistas que foram uma semana depois para as bancas, todos tinham nas suas capas o triunfo das jogadoras americanas.
Ninguém tinha uma entrevista com as chinesas e ninguém falou com a rapariga que falhou.
Eu acredito que há sempre histórias interessantes nas pessoas que perdem.
Isto passou-se quando eu tinha 67 anos, era dez anos mais novo do que sou agora, mas quando eu tinha 27 era repórter desportivo e escrevia para o
ew York Times.
O meu primeiro trabalho como jornalista foi na secção de desporto. Nessa altura aprendi que os jogadores mais interessantes com quem ter uma
conversa eram aqueles que tinham tido uma experiência triste, que tinham feito alguma coisa errada, porque experimentaram algo que era
devastador no final do jogo, mas era também uma experiência de vida. No futuro eles tinham que esquecer e ultrapassar o acontecido para
conseguirem persistir como atletas.
Em 1999, quando estava a ver aquele jogo e vi aquela rapariga a abandonar o campo, lembrei-me disso e achei que ela tinha alguma coisa para me
contar.
No dia seguinte vi que os jornalistas desportivos tinham ignorado a rapariga completamente. Liguei então aos editores amigos - conheço muitos em
Nova Iorque - a perguntar se queriam que eu escrevesse alguma coisa sobre esta mulher porque, explicava-lhes eu, ela representava algo de novo
na China.
É uma mulher que se transforma numa figura pública, tem a sua cara na televisão, no seu país todos sabem quem ela é, de certa maneira encarna e
representa a derrota da China. Ninguém estava interessado. Só me diziam que não havia história nenhuma aí. “Não vamos gastar dinheiro para te
meter num avião para a China, quem é que quer ler sobre isso?”, perguntavam. Eu queria, mas eles não.
Só havia uma maneira de o fazer: ir às minhas custas.
Fiquei umas semanas a pensar naquilo e meti-me num avião para a China. Disse à minha mulher que ia. Ela perguntou: “Porquê?” Respondi que
precisava de ver aquela mulher. “Quem quer saber? Quem vai publicar isso?”, perguntou ela. “Não sei”, respondi. “Ninguém quer publicar isto.
Mas eu tenho que ir, tenho 67 anos. Quanto tempo irei viver mais? Se não o fizer agora, quando o poderei fazer?”
Meti-me num avião, fui de Nova Iorque para Hong Kong, arranjei um visto. Fui para um hotel bom. Quando estou no estrangeiro costumo ir para
hotéis caros porque quando estamos num país de que não percebemos a língua, os porteiros dos hotéis caros sabem sempre falar línguas
estrangeiras e falam inglês. Apanhei dali um avião para Pequim, apanhei um táxi e fui para o hotel que me aconselharam, o China World. Entrei,
levaram-me as malas, fui ter com o porteiro e disse-lhe que queria saber se em Pequim existia um escritório da Nike ou da Adidas. Enquanto
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assistia ao jogo de futebol eu tinha notado que as mulheres tinham o patrocínio destas marcas. Se eu chegasse aos patrocinadores, talvez eles
tivessem acesso ao treinador ou ao ministro do Desporto chinês. O porteiro disse-me que havia um escritório da Nike em Pequim. Pedi-lhe que
telefonasse para lá e perguntasse se existia alguém no escritório da Nike que falasse inglês. Havia um senhor que sabia falar inglês na Nike, era o
senhor Li. “Ah, sr. Li”, disse-lhe ao telefone. “Vim de Nova Iorque, fui jornalista desportivo, Gay Talese, blá, blá, blá e gostaria de almoçar
consigo.”
“Quando?”, perguntou ele. “É possível hoje?” Ele disse: “Está bem, almoço consigo. Qual é o assunto?”. “Deixe-me dizer-lhe ao almoço qual é o
assunto”, retorqui. Primeira regra: nunca dar ao telefone demasiada informação sobre o assunto que queremos abordar porque a pessoa pode dizer
que não quer falar. (Nunca expliquem, pelo telefone marquem só um encontro.)
Enfiei-me num táxi, demorei meia hora a chegar àquele quarteirão em Pequim, havia muito trânsito naquela altura, em 1999. Cheguei ao escritório,
a secretária disse-me que o senhor Li já vinha, saímos para almoçar do outro lado da rua. Explicou-me que tinha vivido no Oregon, nos EUA, onde
trabalhava nos escritórios da Nike e foi assim que aprendeu a falar inglês.
Ao almoço quis saber a razão para eu estar ali. Disse-lhe que queria que me ajudasse. “Ohhhh. O que quer que eu faça?” Quero que me apresente
ao treinador da equipa feminina de futebol. “Porquê?” Quero falar com ele e quero que ele me apresente a mulher que falhou o penálti no jogo
contra os Estados Unidos. “Porque é que quer fazer isso?” Porque ela representa a Nova China. “O que é que quer dizer com isso?” Aquela mulher
vai ter que persistir na China depois de ter vivido um momento triste no Rose Bowl. A China é o país da perseverança, atravessou séculos de
colonialismo, as guerras do ópio, ultrapassou todas as adversidades. A China e aquela jovem mulher são o símbolo da perseverança - eu ia
imaginando todo este discurso à medida que o fazia e o senhor Li disse-me: “Vai ter que fazer esse pedido por escrito. Tem que explicar por que é
que quer falar com essa mulher. Por que razão quer que o Ministério do Desporto a disponibilize para uma conversa consigo. Escreva isso, amanhã
telefone-me.”
No dia seguinte, vieram buscar-me, trocámos cartões-de-visita - eu tinha mandado fazer uns também em chinês - e fomos para uma zona onde
havia uma base militar com um campo de futebol. Era numa zona isolada de Pequim e as atletas chinesas naquela altura (Agosto de 1999) estavam
a treinar-se para os Jogos Olímpicos que iriam realizar-se na Austrália. O meu intérprete explicou ao treinador que eu tinha vindo de Nova Iorque,
que era um escritor, e que queria falar com a jovem que falhou o penálti. Ele olhou-me com cara de poucos amigos e disse que eu tinha cinco
minutos.
Levaram-me para outro sítio, disseram-me para esperar e pouco depois um outro homem apareceu com a rapariga que eu tinha visto na televisão
há um mês, Liu Ying. Ela era muito pequena, muito tímida e não falava uma única palavra de inglês. Eu não falava mandarim e o intérprete não era
muito bom. Eu disse qualquer coisa e ele demorou dez minutos a traduzir para chinês aquilo que eu disse. Ela estava estupefacta e aquilo
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continuou. Ela disse qualquer coisa e aquilo continuou. A tradução era um desastre. Mas olhei-a nos olhos. Cinco minutos depois disseram: “A
entrevista acabou, muito obrigada. Conseguiu aquilo que queria?” Respondi: “Não, não consegui nada.” “Bem, é só o que tem.”
O carro estava à minha espera e eles levaram-me do sítio onde aquelas mulheres estavam a treinar de regresso ao meu hotel. Acredito que eles
achavam que tinha conseguido o que queria, mas eu não tinha nada, não havia uma palavra que pudesse aproveitar daquela entrevista. Mas, como
repórteres de investigação, como escritores de não-ficção, temos que ser perseverantes, a palavra que eu insistentemente tinha referido ao treinador
chinês.
Por isso perguntei, então, ao homem da Nike se haveria alguma possibilidade de eu falar com a mãe da rapariga, porque ela não estaria controlada
por ninguém do Ministério do Desporto como a sua filha estava.
Sabia que a mãe vivia em Pequim. Ele disse que ia tentar saber onde, e eu, desta vez, pedi um intérprete que fosse muito bom, que soubesse falar
mandarim e inglês muito bem.
Três gerações
Por que é que eu queria conhecer a mãe? Pareceu-me que a história daquela rapariga seria mais bem contada pela mãe. Queria que aquela história
fosse contada pela mãe, pela filha e pela avó, se ela estivesse viva. Esqueçam a jogadora de futebol, a mãe tinha-se tornado a personagem que me
interessava.
Uma semana depois descobriram onde a mãe da rapariga morava. Conheci-a no átrio do hotel, levei-a a almoçar, disse-lhe o quanto admirava a
perseverança da filha, mas o que eu queria é que ela falasse dela. E a mãe começou a falar.
Tinha vivido numa quinta, era de uma família culta. Quando ela era pequena, a sua família pertencia à minoria que tinha recebido educação. Em
consequência disso, os seus pais, durante a Revolução Cultural, tinham sido condenados como burgueses, tinham sido castigados e ostracizados.
Quando ela me contava isto explicou que a mãe dela vivia numa casa ao lado da sua. Pedi para a conhecer. Fui então no dia seguinte à sua casa -
uma casa tradicional chinesa - e conheci a avó. Tinha perto de 77 anos, tão velha como sou agora, e contou-me como era a vida na China quando
ela era uma rapariga, antes da Revolução, no tempo do Último Imperador (eu tinha visto o filme de Bernardo Bertolucci e aquela era uma mulher
que tinha estado lá).
Dez dias depois de ter chegado a Pequim já tinha conhecido três mulheres da mesma família e percebi que a jogadora de futebol não era o
interessante. As mulheres mais velhas é que eram a minha história. Telefonei à minha mulher a dizer que ia ficar mais tempo. Fiquei em Pequim
mais três meses.
Nesse tempo conversei com a mãe - levava-lhe presentes, levava-a a almoçar naqueles restaurantes tradicionais -, e nesses três meses fiquei a saber
a história daquela família. Estabeleci-me, com boas intenções, como uma espécie de amigo. Às vezes os jornalistas estão numa relação adversa com
as pessoas sobre as quais estão a escrever. É preciso ultrapassar isso e podemos fazê-lo com tempo, com paciência e com boas maneiras. Não sei se
há alguma coisa que ajude mais um escritor de não ficção do que as boas maneiras. Saber aproximar-se de pessoas diferentes com deferência, com
cortesia.
Espero que não se sintam ofendidos [dirige-se aos jornalistas, na conferência de imprensa na Festa Literária Internacional de Paraty], mas também
é importante estar bem vestido. Como já devem saber, o meu pai era alfaiate, nasceu em Itália e quando estamos em países diferentes do nosso,
seja no Brasil, seja na China, em África, estar bem vestido pode fazer a diferença na decisão das pessoas nos abrirem ou fecharem as portas.
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Quando um jornalista bate à porta de alguém o que está a fazer? Está a vender qualquer coisa. E o que está a vender? Está a vender-se a si próprio.
Está a dizer: “Aqui estou eu, à sua porta, não sou nenhum ladrão, não sou um gangster, não estou aqui para lhe pedir dinheiro.”
Sei que isto pode parecer pateta, mas resulta comigo, as boas maneiras e estar apresentável. Afinal de contas, estamos à porta de casa das pessoas e
para nos deixarem entrar têm que pensar: “Ele não tem ar de quem vai aproveitar-se de mim”. Depois de nos deixarem entrar temos que justificar a
razão para estarmos ali. No meu caso queria escrever sobre a nova China do ponto de vista das mulheres. E foi isso que fiz.
Em Agosto de 2000 fui acompanhar os Jogos Olímpicos, em Sydney, na Austrália. Queria assistir ao jogo em que os Estados Unidos iriam jogar
contra a China e imaginava que a rapariga que tinha falhado o penálti naquele dia de Julho de 1999, na Califórnia, iria agora marcar um golo que
daria a vitória. Seria um grande final para a minha história.
Nada disto aconteceu.
A pequena rapariga lesionou-se na primeira fase dos Jogos Olímpicos. A China não ganhou, perdeu contra a Noruega, acho eu, nas semifinais.
Nada aconteceu como eu previa. Isto importa? Não. Porque eu tinha uma personagem, tinha uma família.
A partir da conferência de imprensa que o escritor e jornalista Gay Talese, uma das referências do jornalismo literário, deu durante a FLIP -
Festa Literária Internacional de Paraty, Brasil
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Este é um blogue do PÚBLICO, escrito por Isabel Coutinho. Desde 1996, a jornalista assina semanalmente a coluna Ciberescritas sobre o futuro
dos livros, a presença de escritores na Internet e a relação entre as novas tecnologias e a literatura. isabel.coutinho@publico.pt
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