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FUNDAÇÃO CULTURAL DE CAMPOS

CENTRO UNIVERSITÁRIO FLUMINENSE


FACULDADE DE FILOSOFIA DE CAMPOS

Curso de Comunicação Social – Habilitação Jornalismo

Quadros por segundo:


Subsídios para o estudo da crítica cinematográfica da Folha da Manhã
Campos/RJ — janeiro, fevereiro e março de 2008
Marcos José Vieira Curvello

Campos dos Goytacazes/RJ


Novembro/2009
Marcos José Vieira Curvello

Quadros por segundo:


Subsídios para o estudo da crítica cinematográfica da Folha da Manhã
Campos/RJ — janeiro, fevereiro e março de 2008

Trabalho monográfico apresentado à Coordenação


do Curso de Comunicação Social, da Faculdade de
Filosofia de Campos – UNIFLU/FAFIC –, como
exigência para a obtenção do grau de Bacharel em
Comunicação Social, habilitação Jornalismo.

Profª Orientadora: Ms. Jacqueline da Silva Deolindo

Campos dos Goytacazes/RJ


Novembro/2009
FICHA CATALOGRÁFICA

Curvello, Marcos José Vieira

Quadros por segundo: Subsídios para o estudo da crítica cinematográfica da Folha da


Manhã

Marcos José Vieira Curvello – Campos dos Goytacazes/RJ, 2009, 130 pp.

Monografia – Centro Universitário Fluminense – Faculdade de Filosofia de Campos

XXX (Registro numérico)

1. XXX, 2. XXX, 3. XXX, 4. XXX, 5. XXX


Marcos José Vieira Curvello

Quadros por segundo:


Subsídios para o estudo da crítica cinematográfica da Folha da Manhã
Campos/RJ — janeiro, fevereiro e março de 2008

Banca examinadora: _____________________


Profª Ms. Jacqueline da Silva Deolindo (orientador)
Faculdade de Filosofia de Campos

______________________________
XXX
XXX

______________________________
XXX
XXX

Termo de aprovação

O aluno_______________________________________________________________
_____________________________________________________________________
regularmente matriculado no Curso de Comunicação Social, Habilitação Jornalismo,
apresentou e defendeu o Trabalho Monográfico, obtendo da Banca Examinadora a
média final ___________ (___________________), tendo sido considerado aprovado.

Campos dos Goytacazes, ________ de _____________________________ de 2009.

______________________________ ______________________________
Professor Orientador Coordenação do Curso
AGRADECIMENTO

Agradeço a todos aqueles que tornaram esse trabalho possível: Jacqueline da Silva
Deolindo, minha professora, pelas sugestões de bibliografia e pela ajuda na troca do
tema; Jacqueline da Silva Deolindo, minha namorada, pela cobrança do trabalho;
Jacqueline da Silva Deolindo, minha orientadora, pelo auxílio técnico preciso e
consultoria diária; Jacqueline da Silva Deolindo, minha noiva, por jamais deixar de me
apoiar no processo de confecção deste; Jacqueline da Silva Deolindo, minha esposa, por
ser quem é; minha mãe, Márcia Pessoa Vieira, por apostar em minha carreira como
jornalista; meu pai, José de Alencar Fonseca Curvello (in memoriam), por tudo o que
nos deixou; meu irmão, Flávio Vieira Curvello, por me forçar a ser uma pessoa melhor;
Arthur Nunes Barcellos e Eduardo Fettermann, por afirmarem que “jornalismo é a sua
cara”, é mesmo; todos os amigos-irmãos, sem os quais provavelmente não estaria aqui,
hoje.
DEDICATÓRIA

Dedico esse trabalho à minha esposa, Jacqueline da Silva Deolindo, e minha família,
José de Alencar Fonseca Curvello (in memorian), Márcia Pessoa Vieira e Flávio Vieira
Curvello.
O crítico necessita muitas vêzes descobrir, sob a superfície bela da forma, a fealdade
mais profunda do tema. Pois da indistinção entre tema e forma valeram-se até hoje os
mercadores do cinema para cativar o público, isto é, para impor como espetáculo o que
jamais poderia ser arte.

Walter da Silveira
RESUMO

O presente trabalho monográfico tem por objetivo a análise do uso das diferentes
formas de apreciação cinematográfica – resenha e crítica – na Folha da Manhã, único
periódico de Campos dos Goytacazes a oferecer o produto, contemplando o hiato entre
os meses de janeiro e março de 2008, no qual foi produzido um total de 27 julgamentos.
O trabalho busca não tão somente apontar o formato mais utilizado, mas, precisar as
características que adquire nas páginas daquele jornal e sob a pena de quem assina o
texto. Presta-se, ainda, a revisar a parca bibliografia sobre o tema e cindir as diferenças
entre ambas as formas de julgamento, tanto do bem da indústria cultural, quanto da obra
de arte.

Palavras-chave: Crítica cinematográfica, crítica, cinema, jornalismo cultural, Folha da


Manhã.
ABSTRACT

This monograph’s objetive is to analyze the use of the different forms of film
appreciation – review and critique – in Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes’ only
periodic to offer this kind of product, covering the gap between january and march of
2008, during which were made 27 judgements. This paper seeks not only point the most
used format, but to precise the features it acquires in the newspaper’s pages and under
the pen of the author. The paper aims as well to review the scant literature about the
theme and to split de differences between both judgement forms, from the good of the
culture industry to the work of art.

Keywords: Film critique, critique, cinema, cultural journalism, Folha da Manhã


LISTA DE TABELAS

Tabela Única: Relação de apreciações publicadas pela Folha da Manhã com seus
títulos, autores, notas e datas que formam o corpus da pesquisa ........................... 47
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................. 14

1 O PAPEL DA CRÍTICA ONTEM E HOJE: O JORNALISMO


CULTURAL COMO SERVIÇO: .............................................................................. 16

1.1 O lugar do jornalismo como serviço e instrumento para formação da


opinião pública ............................................................................................................. 17

1.2 A cultura no jornalismo brasileiro ................................................................. 23

1.3 A crítica como serviço do jornalismo cultural .............................................. 30

2 DO EXTERIOR A CAMPOS: BREVE REVISÃO DAS ORIGENS DA


CRÍTICA NO PAÍS E O TRABALHO DESENVOLVIDO NO JORNAL FOLHA
DA MANHÃ ................................................................................................................. 38

2.1 A crítica cinematográfica ................................................................................ 39

2.2 A crítica cinematográfica no Brasil e em Campos dos Goytacazes ............. 43

2.3 Crítica ou resenha? .......................................................................................... 46

2.3.1 Resenha .............................................................................................................. 48

2.3.2 Crítica ................................................................................................................. 55

2.4 A título de discussão ........................................................................................ 64

3 SUBSÍDIOS PARA O BOM EXERCÍCIO DA CRÍTICA .......................... 67

3.1 Resenhas ........................................................................................................... 69

3.1.1 A queda .............................................................................................................. 69

3.1.2 Capote ................................................................................................................ 72

3.1.3 Rejeitados pelo Diabo......................................................................................... 74

3.1.4 X-men origens: Wolverine ................................................................................. 76

3.2 Crítica ............................................................................................................... 82

3.2.1 Laranja mecânica ............................................................................................... 82

3.3 Breve debate ..................................................................................................... 90

4 CONCLUSÃO .................................................................................................. 92
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................... 93

APÊNCIDE A: Resenhas do Capítulo 3 publicadas na Folha da Manhã .. 97

Realismo a favor do medo ............................................................................... 97

A queda: As últimas horas de Hitler .............................................................. 98

Não-ficção à sangue frio .................................................................................. 99

O caminho é para baixo ................................................................................. 100

ANEXO A: Matéria Crítico avesso às lentes fala o que rola nas telonas . 101

ANEXO B: Críticas da Folha da Manhã analisadas no capítulo 2 ........... 102

Maix do mexmo .............................................................................................. 102

Fantasias de amor .......................................................................................... 103

Os pestinhas .................................................................................................... 104

Duelo: pipoca vs. cérebro .............................................................................. 105

Civilização e barbárie .................................................................................... 106

Caçador de si .................................................................................................. 107

Julia Roberts de saia? .................................................................................... 108

Os verdadeiros vampiros estão de volta ...................................................... 109

Surpresa com o mesmo .................................................................................. 110

Aceite o que é bom ......................................................................................... 111

Inglês para italiano ver .................................................................................. 112

Peca ao inocentar ........................................................................................... 113

Falso encanto .................................................................................................. 114

A lenda de um achado ................................................................................... 115

Guerra na terra e no céu ............................................................................... 116

Construção ...................................................................................................... 117

Quem com navalha fere com navalha será ferido ....................................... 118

Um Rambo pós-moderno .............................................................................. 119


Como numa pornochanchada ....................................................................... 120

Salada completa ............................................................................................. 121

Os russos estão chegando .............................................................................. 122

Vinte e sete vestidos mais um ........................................................................ 123

Onde os fracos são fortes ............................................................................... 124

Na natureza selvagem .................................................................................... 125

Pequena deusa romana .................................................................................. 126

Filme de um homem só .................................................................................. 127

Grande, para as crianças .............................................................................. 128

ANEXO D: Capa do Segundo Caderno citada no capítulo 3 .................... 129

ANEXO E: Matéria com José Castello citada no capítulo 3 ...................... 130


INTRODUÇÃO

Cadernos e encartes culturais em jornais, sessões de revistas, sites e publicações


especializadas, além de um sem número de outros veículos oferecem, através da figura do
crítico, apreciações sobre romances, peças de teatro e as centenas de filmes que invadem
anualmente as salas de cinema de todo o Brasil. Abalizados pela bagagem – seja teórica,
seja experimental, e por vezes ambas, em certo grau – de seus autores, tais juízos conduzem
o consumo desses produtos por aquela fatia da população que faz da consulta a tais meios
um hábito. Por outro lado, críticos fazem das publicações acadêmicas os meios pelos quais
publicam longos ensaios e artigos, esmiuçando, à luz dos preceitos escolásticos e de
padrões estéticos estabelecidos, obras de escritores, compositores, cineastas e artistas
plásticos os mais diversos. Em face de tão diferentes abordagens, quem exerce a crítica, de
fato: o jornalista ou o teórico da arte? Tal questionamento ganha contornos ainda mais
rochosos quando acrescentamos a ele, ainda, a resenha, gênero popularizado no jornalismo
brasileiro a partir do início da segunda metade do século XX, quando houve a evasão dos
teóricos para o ambiente acadêmico. Assim, torna-se legítimo questionar, então, o que é a
crítica e a resenha, quem as exerce e como o faz?
Para traçar tais distinções e tentar clarear a discussão a respeito do tema, que se
torna ainda mais complexa pelo uso corrente do termo crítico tanto por profissionais que
atuam na mídia quanto na academia, nos valeremos do exercício da apreciação artística
desenvolvido no jornal Folha da Manhã, de Campos dos Goytacazes, cidade do interior do
Estado do Rio de Janeiro, como espelho da prática em periódicos de todo o país. Tal
escolha se deve não apenas ao fato de a Folha da Manhã ser o único veículo da imprensa
campista a manter a avaliação regular de uma forma de arte, como, também, por esta
contemplar, justamente, o cinema, meio de expressão de maior interesse ao presente estudo.
Assim, as apreciações publicadas entre 11 de janeiro e 31 de março de 2008 serão nosso
objeto de análise, a fim de definir qual dos dois gêneros predomina no periódico.
No capítulo 1, revisamos a bibliografia que encontramos disponível e nos baseamos
especialmente nos conceitos sustentados por José Marques de Melo – que lembra, ainda,
Afrânio Coutinho –, Cláudia Nina e Machado de Assis, citado por José Aderaldo Castello,
a fim de compreender as diferenças entre crítica e resenha, bem como elencar os deveres e
características de cada gênero.
14
No capítulo 2, apresentamos a pesquisa de campo, na qual, além de traçar um breve
histórico da crítica cinematográfica per se – partindo de um panorama mundial, chegando
ao nacional e, por fim, ao de Campos dos Goytacazes, baseado em artigos, teses e livros de
Regina Gomes, Roberto Moura, Franthiesco Anthonio Ballerini Manso, Graeme Turner e
Flávio Cândido –, esmiuçamos as apreciações sobre os produtos da sétima arte
apresentadas semanalmente pela Folha da Manhã e procuramos encaixá-las, de acordo com
as suas características, algo variante e profundamente ligado a cada um dos autores, nos
gêneros crítica e resenha. Por fim, nos pareceu conveniente relembrar os teóricos da escola
de Frankfurt, especialmente Walter Benjamin, a fim de traçar definições de cultura de
massa e indústria cultural.
Já no capítulo 3, além de trabalhar noções de estética, de acordo com Fernando da
Silveira, e lançar mão de Pierre Bordieu para falar brevemente da questão do gosto,
apresentamos subsídios para a prática daquilo que temos por boa crítica, seja ela crítica, de
fato, ou resenha. Apresentamos exemplos tanto de um gênero quanto de outro, e constam
dos exemplos não apenas material de viés acadêmico, como os frutos de nossa própria
atuação no papel de apreciadores do cinema no mesmo veículo, atividade cujo início data
de setembro de 2009 e que, portanto, encontra-se fora do período escolhido como corpus
teórico do presente.

15
CAPÍTULO 1
O papel da crítica ontem e hoje: o jornalismo cultural como serviço

A maneira como o público recebe e concebe os produtos culturais é permeada de


influências as mais diversas. Como veremos ao longo deste trabalho, Walter Lippmann, em
1922 (aqui usamos a versão de 2005), já chamava esses modos de classificar, compreender
e consumir de estereótipos. Estes, não raras vezes, são produzidos pelos meios de
comunicação de massa, apontados pela Escola de Frankfurt como motor da industrial
cultural. A necessidade dessa formulação será discutida no devido tempo, entre este
capítulo e o próximo, contudo, o papel ativo da mídia, e o que nos interessa aqui, mais de
perto, o cinema e a crítica cinematográfica, se relacionam de maneira estreita no que se
refere à oferta, avaliação e consumo, já que os jornais e as revistas, por exemplo, têm o
poder que Michel De Certeau chama de “fazer existir”, ou seja, os veículos
comunicacionais e seus agentes dão à luz – e jogam luz sobre – curtas-metragens, longas,
documentários e lhes conferem de uma a cinco “estrelas” em suas páginas de opinião,
elevando ou rebaixando os filmes e animações nas escalas de julgamento, o que significa
colaborar ou não, mas sempre diretamente, para sua boa ou má aceitação. De Certeau
(1996) define o “dizer” e o “fazer crer”, próprios dos jornalistas, como elementos
fundamentais na fabricação do real. O autor diz que esse poder de criar simulacros é
disputado entre aqueles que desejam administrar a produção de sentidos, ditando o
significado dos acontecimentos, muitas vezes através da mídia: “produzir crentes e,
portanto, praticantes” (p. 287) – para este ou aquele gênero, diretor ou narrativa. Para De
Certau (op. cit), nunca houve uma história que houvesse falado e mostrado tanto. É através
dos meios de comunicação que agem os produtores de um real que precisa ser exposto ou
execrado, recursos que favorecem o surgimento ou a anulação do mito, o referente social
visível (p. 288), movimento indispensável à construção do imaginário do público.
(PESAVENTO, 2005, p. 43).
Mas, antes de entrarmos nos méritos da crítica cinematográfica per se, faz-se
necessário apresentar o gênero crítica no bojo do jornalismo cultural, segmento da atividade
onde foi gestada ao longo dos séculos. Não apenas traçar a história do jornalismo cultural
ou da crítica, profundamente relacionadas, intencionamos, também, apresentar nesse

16
capítulo tanto suas evoluções quanto principais características, ainda que sejam feitas
determinadas concessões à profundidade do debate em nome do objetivo principal.

1.1 O lugar do jornalismo como serviço e instrumento para formação da opinião


pública

Citando o jornalista pernambucano Aníbal Fernandes, Luis Beltrão (1960, p. 61)


afirma que “jornalismo é, antes de tudo, informação”. Tal definição, que em primeira
análise pode ser tida como demasiado sintética ou simplista, compreende aquilo há de
essencial à atividade. Argamassa da sociedade moderna, a informação goza de mercado
próprio, uma indústria que movimenta cifras incalculáveis e conta com pontos de venda e
distribuição especializados espalhados por todo o mundo – físico e, hoje, virtual. São
bancas abarrotadas de publicações diárias, semanais, mensais e sazonais, tão abrangentes
ou direcionadas quanto conveniente, que tratam de assuntos os mais variados, dos triviais
aos científico-acadêmicos; canais de rádio e TV, com seus boletins e programação amena,
de cunho diversional-noticiosa; sites e blogs que, verdadeiros arautos do atual culto à
velocidade, emprestam novo significado à palavra instantaneidade, despejando minuto a
minuto – por vezes, segundo a segundo – quantidade sem precedentes de fatos e factóides
no menu do leitor. Tudo isso, provavelmente, faz da informação o bem mais requisitado e
consumido pela sociedade contemporânea.
Mas o que é, exatamente, a informação? Beltrão (op. cit.) conceitua o termo como
“fatos atuais, correntes, que merecem o interesse público”. (id. ibidem) Acontecimentos
detentores de tais características, eminentemente subjetivas, estão passíveis, portanto, de
surgirem em quaisquer lugares, seja na esquina da pequena cidade interiorana ou nos
corredores do Congresso, em Brasília. Dignos da atenção coletiva, tais casos serão notícia
enquanto durarem seu ineditismo ou sua capacidade de se renovar e gerar novos episódios,
afinal “informar sobre fatos passados é fazer história” (idem).1

1
Sobre os critérios de noticiabilidade e valor-notícia, Traquina (2005) e Wolf (2005) trazem em suas referidas
obras um amplo entendimento dos conceitos, apontando o ineditismo, a abrangência, o interesse humano e o
status das pessoas envolvidas nos fatos como alguns dos diversos valores-notícia. Ver bibliografia.

17
Tal noção vai ao encontro da primeira definição que Nelson Traquina (2005) traça
da atividade em seu livro Teorias do jornalismo: Volume I – porque as notícias são como
são. De acordo com o teórico, “o jornalismo é a vida, tal como é contada nas notícias de
nascimentos e de mortes...” (p.19). A idéia, ainda que expressa com reconhecido
romantismo, é esmiuçada adiante:

O principal produto do jornalismo contemporâneo, a notícia, não é ficção,


isto é, os acontecimentos e personagens da notícia não são invenção do
jornalista. [...] Poder-se ia dizer que o jornalismo é um conjunto de
‘estórias’, ‘estórias’ da vida, ‘estórias’ das estrelas, ‘estórias’ de triunfo e
tragédia. (id. ibidem, p. 20-21)

É possível afirmar, portanto, que cabe àqueles que exercem o jornalismo a função
de policiar, compilar, interpretar e, através métodos próprios de definição de prioridades,
transmitir tais ocorrências cotidianas, levando-as até seus leitores, ouvintes e/ou
espectadores.2 Engana-se, porém, aquele que crê que as atribuições do jornalismo se
esgotam na entrega de seu produto, em, tão somente, dar a saber. Atividade capital à
manutenção do Estado democrático, que existe apenas com a circulação da informação
livre de censura de qualquer espécie, o jornalismo também assume para si os papéis de
ensinar e orientar o cidadão.3

Todo esse trabalho tem, evidentemente, uma função educativa, visando


esclarecer a opinião pública para que sinta e haja com discernimento,
buscando o progresso, a paz e a ordem da comunidade. Em outras
palavras, a finalidade do jornalismo é a promoção do bem comum.
(BELTRÃO, op. cit., p. 62, grifo no original)

Esse pensamento, entretanto, não seria de agora, como lembra Medina (1982), que
defende que “os grandes traços da atividade jornalística e da função do jornalista estão na
base da [sua] evolução histórica” (p. 42) ao lembrar artigos publicados no século XIX no
2
A respeito do valor-notícia, ver Traquina (op. cit.) e Wolf (2005), nas referências.
3
Sobre a teoria funcionalista da comunicação, desenvolvida pela Mass Communication Research, nos Estados
Unidos, que muito influenciou os primeiros estudos dos meios de comunicação no Brasil, ver Hohlfeldt,
Martino e França (2001), nas referências.

18
jornal “A província de São Paulo” em 11 de janeiro de 1877, para o qual, naquela época, o
papel intermediário do ofício de jornalista já era assumido plenamente. Falando sobre “os
grandes traços” que atividade jornalística desenvolveu ao longo do tempo, Medina (id.
ibidem.) observa que “se as etapas se arrastam com extrema lentidão, isso não quer dizer
que o passado de cem anos esteja separado do presente por um total abismo” (p. 42), ou
seja: o perfil do jornalismo contemporâneo foi configurado há muito e encerra a idéia de
que tem um papel social a cumprir – tal idéia estaria ancorada no nível de esclarecimento
das audiências, que, cada vez mais, querem ter acesso aos fatos. “Isso, porque há uma
consciência subjacente de que para participar da história, decidir sobre o próprio rumo ou
alterar o curso, é preciso estar informado.” (p. 101).
Mais recentemente, o confirma Felipe Pena (2005) quando defende que “o
jornalismo é um serviço público” (p. 107), dotado de “uma função social” (p. 168), que é
“atender as demandas da cidadania” (p. 185), promover a “mobilização social” (ibid.),
“melhorar o debate público” (p. 171), “rever a agenda pública” e fazer com que o cidadão
tenha clara “compreensão do contexto dos acontecimentos” (p. 160), para a “construção do
bem comum” (p. 167). Alessandra Aldé (2005), por sua vez, ao discorrer sobre o processo
de profissionalização do jornalismo4, lembra que foi durante esse momento histórico,
localizado a partir do século XVII, que o mesmo desenvolveu para si um discurso de tipo
ethos, de acordo com o qual “é missão dos jornalistas contribuir para o desenvolvimento da
sociedade e manutenção dos valores democráticos.” (p. 198) Segundo esse discurso, é
função do jornalismo determinar os acontecimentos com direito à existência pública,
noticiando os fatos com objetividade e definindo o significado dos acontecimentos através
da oferta de interpretações, sugerindo como compreendê-los, ou seja, interferindo
diretamente na esfera pública.5
Pessanha e Rita (2008), em seu trabalho monográfico de conclusão do curso de
Jornalismo no Centro Universitário Fluminense, ao escreverem sobre o espaço público
constituído por blogs de jornalistas campistas, lembram que, contemporaneamente, a esfera
pública é formada, em larga escala, por um sistema amplo e complexo constituído não
apenas pelos jornais impressos, mas, também, por revistas de informação geral e
especializadas, numerosos canais de rádio e TV, cinema e sites de internet, produzindo

4
Vale citar aqui o ensaio de Soloski (in TRAQUINA, 1993) sobre a profissionalização do jornalismo,
bastante esclarecedor.
5
Sobre o conceito de esfera pública, indicamos Habermas (1984) e Costa (2002). Ver referências.

19
conteúdo jornalístico, propaganda e entretenimento para diversos públicos, que recebem,
elaboram e fazem uso desse capital simbólico6 nos diversos âmbitos da vida diária.
Enfatizando esse poder mediador, as autoras recorrem a Costa (2002, op. cit., p. 35): “o
espaço público deve ser representado como arena que também media os processos de
articulação, de consensos normativos e de construção reflexiva de valores e das disposições
morais que orientam a convivência social.” De nossa parte, acrescentamos que, para tanto,
três características são essenciais: ética, periodicidade e capacidade de difusão. Apenas com
um exercício honesto e diário, que alcance, se não toda a sociedade, ao menos um vultoso
conjunto dela, é possível disseminar conhecimento e divulgar a cultura entre a população de
um país, de modo ético e democrático, para não perdermos de vista os conceitos anteriores,
sobre os quais pretendemos discorrer, ainda que brevemente.
As noções de ética e bem comum no jornalismo, duas idéias extremamente
relacionadas, acreditamos, valem um recorte pontual. Um grande número de autores e obras
se ocuparam, ao longo dos anos, em apontar o que vem a ser exatamente a ética jornalística.
Conceito pautado pelo compromisso com o interesse do leitor7, a ética jornalística pode ser
tida, em última análise, como o “compromisso de fornecer ao público relatos verdadeiros,
imparciais ou objetivos, dos acontecimentos, e isentos de interesses, do próprio veículo de
comunicação ou das partes envolvidas no assunto abordado” (DEOLINDO, 2008, p. 118),
mas tão somente de interesse público. Esse seria o chamado “bom jornalismo”: aquele que
é capaz de suprir a necessidade de informação da sociedade e contribuir, então, para a
emancipação dos cidadãos e o desenvolvimento social sustentável. Medina (op. cit.) e Pena
(op. cit.) reafirmam o compromisso social da atividade, alardeado por Beltrão, uma idéia
antiga já incutida no entendimento do receptor, que, mais do que nunca, sente necessidade
de ter acesso aos fatos. “Isso, porque há uma consciência subjacente de que para participar
da história, decidir sobre o próprio rumo ou alterar o curso, é preciso estar informado.”
(PENA, op. cit., p. 101).
Mas não apenas de informação é feito o jornalismo. Ao lado do jornalismo
informativo, se firmou, com o passar do tempo, outros gêneros de escrita, a que Beltrão —
primeiro autor que se ocupou de estudar os gêneros jornalísticos no Brasil — chamou
jornalismo interpretativo e jornalismo opinativo. O último, objeto de interesse do presente

6
Ver Thompson (1998), nas referências.
7
Ver Barros Filho (2003), nas referências.

20
estudo, compreende aquelas partes da publicação onde é sabidamente apresentado e
debatido o juízo do veículo ou jornalista responsável pelo espaço.
Discípulo de Beltrão, José Marques de Mello deu seqüência ao trabalho de
classificação e constituiu parâmetros próprios de orientação do conteúdo, baseando-se na
intenção de sua redação. Assim sendo, enquanto o jornalismo informativo pretende ser uma
reprodução do real, o opinativo se estabelece como leitura dessa mesma realidade (MELO,
2003), uma abordagem deliberada que o coloca em posição diametralmente oposta ao
exercício dito isento e objetivo da profissão. Assim, Melo identifica como pertencentes ao
gênero opinativo o editorial, comentário, artigo, resenha ou crítica, coluna, crônica,
caricatura e carta do leitor.
Deste modo, se não uma das atribuições do jornalismo opinativo, a capacidade de
influenciar a opinião pública se configura como uma de suas características mais
relevantes. Em O fator opinião pública, como se lida com ele, Saïd Farhat (1992), apesar de
assumir não haver um consenso acerca do que seja a opinião pública, instado a dar uma
definição, o faz do seguinte modo: “Opinião pública é a expressão do sentimento de um
grupo social concreto sobre questão determinada, em momento dado”. Circunscrever o
conceito é vital, uma vez que ele se submete aos mecanismos da própria realidade, como
aponta Philip Meyer (1989, p. 82) lembrando Walter Lippmann em sua obra de 1922.

O mundo real é tão complexo e sutil que não podemos lidar com ele sem
alguns meios de selecionar, reordenar e traçar padrões em seus elementos.
A necessidade de tais modelos perceptivos simplificadores é inescapável.
A noção de reportagem objetiva é em si mesma uma ficção. Os escritores,
sejam eles repórteres jornalísticos, autores de roteiros de cinema, ou
romancistas, adotam modelos nos quais podem encaixar seus fatos
objetivos. Esses modelos ajudam tanto ao escritor quanto ao leitor a
compreenderem e apreenderem os sentido dos fatos, mas esse benefício
tem um custo. Além de serem guias para a interpretação, esses modelos
necessários ou estereótipos, como Lippmann os chamou – também nos
ajudam a selecionar que aspectos do mundo objetivo procurar. Se alguma
coisa é realmente nova e diferente, poderá não se encaixar no modelo
existente, e podemos não vê-lo – ou não acreditar nisso mesmo se o
vemos. Ou podemos distorcê-lo tanto para se encaixar no modelo
existente que poderá apenas afastar-nos, e não aproximar-nos, da verdade.
(MEYER, op. cit., p. 82-83)

21
Outro aspecto do jornalismo, afora seu poder mediador, que precisa ser destacado
antes de prosseguirmos, é a segmentação, sobre a qual fala Buitoni (1990), lembrando que a
especialização jornalística está historicamente ligada a questões de mercado. Beltrão (op.
cit.), diz que segmento tem a ver com variedade: “universalidade de aspectos,
multiplicidade de setores, de objetivos, de temas” (p. 73) e que foi “esse atributo do
jornalismo que exigiu, nos tempos modernos, a criação da figura do jornalismo
especializado, introduzindo, ao mesmo tempo, nas tarefas periodísticas, a divisão do
trabalho, figura e método que eram desconhecidos até épocas recentes”. (id. ibidem.)

Foram, assim, o desenvolvimento das comunicações, a facilidade de


receber e transmitir informações, a crescente fome de notícias das
comunidades civilizadas, a busca da perfeição no jornalismo, evitando-se,
na medida do possível, erros e omissões — que impuseram a
especialização do jornalista, tirando-lhe a obrigatoriedade de ser
enciclopédico; a divisão do trabalho nas redações, facilitando e
aperfeiçoando a execução de tarefas e, finalmente, o surgimento de
publicações especializadas e de seleções com o intuito de manter o
homem bem informado. (id. ibidem, p. 74-75)

Beltrão (op. cit.), citando George Will, continua lembrando que a especialização
colabora, também, com um trabalho melhor por parte do jornalista, que pode se dedicar
integralmente a uma área de interesse, atendendo a uma demanda específica.

Ocorre, porém, que o jornalismo especializado, que se ocupa de temas,


“problemas e fatos de interesse de um círculo mais limitado de pessoas,
atende, igualmente, àquela demanda do público já observada pelo criador
do jornalismo francês, em 1631. E, talvez, com mais profundidade e
repercussão no organismo social, desde que se dirige a uma elite ou a um
determinado grupo com maior capacidade de apreensão e aplicação dos
conhecimentos adquiridos pelas informações e críticas nele contidos. (id.
ibidem., p. 76)8

8
Podemos falar de um jornalismo segmentado a partir do século XIX se pensarmos nos diversos periódicos
políticos que circularam pelos Estados Unidos e pela Europa nesse período (bem delineado por Adelmo
Genro Filho em obra de 1989 e por Ciro Marcondes Filho em obra do ano 2000, conforme as referências) ou,
ainda no século XIX, se considerarmos, por exemplo, as revistas dedicadas à literatura ou ao público
feminino, repletas de informações sobre moda, culinária, artes e conselhos de comportamento (conforme
Oliveira, 2007), mas é no século XX, com a modernização da abordagem indústria cultural (conforme Adorno
& Horkheimer, 1985, ver referências) que a segmentação jornalística se intensifica.

22
Ingrid Figueiredo Oliveira (2007), em sua monografia de conclusão do curso de
Jornalismo no Centro Universitário Fluminense, que a segmentação trazia em seu bojo uma
dicotomia que punha em questão a natureza mesma do veículo, porque distintos públicos
passaram a “exigir” novos produtos jornalísticos e novas linguagens, em que informação,
entretenimento e persuasão, que, como já citamos, eram conceitos vistos como distintos e
não-relacionáveis, passaram a conviver harmoniosa e criativamente, gerando formas mistas
a partir desses três gêneros. O jornalismo cultural, que veremos a seguir, é uma delas.

1.2 A cultura no jornalismo brasileiro

De gênese irrastreável, como atesta Daniel Piza em Jornalismo Cultural (2007, p.


11), ao afirmar que “não existe telescópio Hubble que possa determinar a data de seu
nascimento”, o jornalismo cultural tem, entretanto, um marco – não inicial, como deixa
claro o autor – em 1711, com o surgimento, em Londres, da revista diária denominada The
Spectator. Editada pelos ensaístas ingleses Richard Steele e Joseph Addison9, a publicação
tinha a finalidade de “tirar a filosofia dos gabinetes e bibliotecas, escolas e faculdades, e
levar para clubes e assembléias, casas de chá e cafés”. (Piza, op. cit., p. 11)

A revista falava de tudo – livros, óperas, costumes, festivais de música e


teatro, política – num tom de conversação espirituosa, culta sem ser
formal, reflexiva sem ser inacessível, apostando em um fraseado
charmoso e irônico [...]. Podia tratar dos novos hábitos vistos em uma
casa de café, como temas em discussão e roupas na moda, ou então
criticar o culto às óperas italianas e o casamento em idade precoce. Podia
citar Xenofonte para satirizar a falta de modéstia dos ingleses ou Dom
Quixote para atacar a mania de ridicularizar o outro por meio de risadas.
(idem, p. 12)

9
De acordo com Piza, “Steele já criara, alguns anos antes, The Tatler, tendo, depois, Addison como
colaborador, e mais tarde fariam outras publicações, como The Guardian”. (Id. ibid., p. 11)

23
Piza ressalta, ainda, o jornalismo cultural como um produto característico do
ambiente urbano, que veio atender às idéias e necessidades que cresciam nos grandes
centros, no início do processo de industrialização.

Em outras palavras, a Spectator – portanto, o jornalismo cultural, de certo


modo – nasceu na cidade e com a cidade. [...] A Spectator se dirigia ao
homem da cidade, “moderno”, isto é, preocupado com modas, de olho nas
novidades para o corpo e a mente, exaltado diante das mudanças no
comportamento e na política. Sua idéia era a de que o conhecimento era
divertido, não mais a atividade sisuda e estática, quase sacerdotal, que os
doutos pregavam. (idem, p. 12)

Vale observar que é notável a semelhança entre as propostas da Spectator e dos


cadernos de cultura que encartam os diários de hoje: a atenção dispensada aos novos
direcionamentos da sociedade e os mais variados produtos do intelecto, abordados sob o
prisma do interesse humano que tais assuntos possam despertar. Por fim, o autor aponta a
influência do pensamento renascentista no surgimento do gênero e seu flerte com as
nascentes idéias iluministas.

[...] o jornalismo cultural, dedicado à avaliação das idéias, valores e artes,


é produto de uma era que se inicia depois do Renascimento, quando as
máquinas começaram a transformar a economia [...] e o Humanismo se
propagara da Itália para toda a Europa, influenciando o teatro de
Shakespeare na Inglaterra e a filosofia de Montaigne na França. Os
ensaios de Montaigne, com sua capacidade de mesclar o mundano e o
erudito, são a matriz evidente das conversações de Addison e Steele. Filho
do ensaísmo humanista, o jornalismo cultural inglês também ajudou a dar
luz ao movimento iluminista, que marcaria o século XVIII (idem, p. 12-
13)

E foi nesse clima efervescente para o jornalismo europeu que, devido “ao poder
multiplicador da imprensa”, nasceu uma era de ouro para a atividade, “tão influente na
modernidade quanto as revoluções políticas, as descobertas científicas, a educação liberal
ou o romance realista” (idem, p. 13). Tal contexto possibilitou que Samuel Johnson, ou Dr.

24
Johnson, como era conhecido, desenvolvesse a obra que o credenciaria como o primeiro
grande crítico cultural.

[...] sua resenhas da prosa e poesia de seus contemporâneos, seus ensaios


sobre Shakespeare, seus estudos sobre a língua inglesa, suas reflexões
sobre todos os assuntos à maneira de um Montaigne transferido do castelo
para a taverna, além de romances com Rasselas, fizeram dele o homem de
letras mais lido e temido de seu tempo. Johnson é o pai de todos os
críticos europeus, americanos ou brasileiros cujas opiniões sobre um livro
ou outro tema, nos séculos seguintes, eram esperadas com fôlego preso
por uma pequena mas decisiva platéia. (idem, p. 13-14)

De Johnson, Hazlitt e Lamb a Zola, Kraus e Shaw, passando por Ruskin, Proust e
Diderot, o jornalismo cultural se fez presente através da história: “foi no caldo de cultura
fervido pelos panfletos e pasquins nas ruas das cidades que a Revolução Francesa ganhou
vigor e algum rumo” (idem, p. 3). Notável, também, foi a contribuição de Sainte-Beuve, o
“papa francês da crítica oitocentista”. Suas análises, publicadas nos jornais Le Globe e Le
Constitutionnel, foram responsáveis por reestruturar o jornalismo cultural então praticado e
estabelecer um novo padrão, legitimando a atividade como uma vereda própria dentro do
exercício das letras, independente dos acadêmicos, teóricos e romancistas.

Em Le Constitutionnel fazia uma coluna semanal intitulada “Causeries du


Lundi” (Bate-papo da Segunda-feira), que é precursora dos rodapés
literários que se vêem até hoje nos jornais sérios. Depois dele, o jornalista
cultural ganhou status: ele podia desenvolver uma carreira exclusivamente
como crítico e articulista, independente de academias ou de uma obra
ficcional; a tarefa tinha sua própria dignidade. [...] Sainte-Beuve
estabeleceu sua reputação somente por sua atividade crítica (idem, p. 15)

Porém, foi apenas no século XIX que o jornalismo cultural cruzou o Oceano
Atlântico e desembarcou na América. Popularizou-se primeiro nos EUA, onde o escritor
Edgar Allan Poe se destacou como crítico ao produzir avaliações para revistas e jornais,
atividade que lhe valia o sustento. “Hoje famoso por seus contos de mistério e poemas
como O Corvo, Poe só era reconhecido em seu país como crítico e ensaísta que modernizou

25
o ambiente intelectual da América”. Depois de Poe, foi romancista o Henry James que
“brilhou nos jornais e revistas de Nova York, como o New York Tribune”. (Id. ibid.)
No livro A cultura como notícia no jornalismo brasileiro (2003, p.17), Sérgio Luiz
Gadini recorre a Isabel Travancas e aponta “o Jornal do Commercio do Rio de Janeiro
(através do suplemento Folhetim, em 1838) como um dos primeiros periódicos do país [o
Brasil] que tematizam questões culturais”. Porém, Piza afirma (op. cit., p. 16) que o
jornalismo cultural só tomaria vulto no país a partir do final do século XIX, época marcada
pelo de surgimento Machado de Assis no cenário intelectual brasileiro.

O maior escritora nacional, o nosso Henry James, Machado de Assis [...]


começou a carreira como crítico de teatro e polemista literário, escrevendo
ensaios seminais como Instinto de nacionalidade e resenhando
controversamente os romances de Eça de Queiroz. (idem, p. 16, grifos do
autor)

O jornalismo cultural, porém, foi uma atividade exercida por muitos outros
escritores brasileiros, como José Veríssimo, grande amigo de Assis e discípulo de Saint-
Beuve. Editor da famosa Revista brasileira, “sua carreira foi toda feita na qualidade de
crítico, ensaísta e historiador da literatura, assim como as de Sílvio Romero e Araripe Jr”.
(idem, p. 17)
A virada do século XIX para o XX reservou grandes mudanças ao exercício do
jornalismo e, conseqüentemente, da crítica cultural feita nos periódicos. Os aumentos da
importância da atividade e de sua presença social são exemplificados pelo autor através do
caso Dreyfus, ocorrido na França, no qual o romancista naturalista e crítico de arte e
literatura Émile Zola, através da carta aberta ao presidente francês, intitulada “Eu acuso” e
emitida em 13 de janeiro de 1898, forçou a revisão de uma acusação de traição e inocentou
o tenente judeu, ainda que tenha pagado por isso com multa e um período na prisão.
Por sua vez, em Londres, o irlandês George Bernard Shaw, dramaturgo de sucesso
mundial e crítico de arte, teatro, literatura e música, tinha suas apreciações publicadas por
veículos como Saturday Review e The World, que, em 1890 iniciou a publicação de uma
coluna chamada apenas “G.B.S.”. Ali, Shaw polemizava a política, observava a sociedade e
analisava a estética. Seu trabalho “criou um novo modelo de jornalismo cultural”, impondo
ao crítico a necessidade de se ocupar da realidade que o cerca, tendo sido lido e debatido
26
não somente na Inglaterra, mas, também, em outros países da Europa e, principalmente, nos
EUA. Mais objetividade e apreço pelo que é prático e menos digressão e empolação, era o
que defendia.

As críticas das artes saíram de seu circuito de marfim: Shaw as lançou no


meio da arena social, exigindo que se comprometessem com as questões
humanas vivas, mostrando, por exemplo, que uma ópera de Mozart era
composta de muito mais elementos que as belas melodias e o figurino
pomposo. O crítico cultural agora tinha de lidar com idéias e realidades,
não apenas com formas e fantasias. (idem, p. 17)

O jornalista, crítico, filólogo, poeta e dramaturgo austríaco Kal Krauss, “derramou


ácido na cena cultural” através da revista A Tocha, que fundou em 1899 e durante muito
tempo editou sozinho. Fechada pelos nazistas em 1936, a publicação, a exemplo de Shaw,
trazia sátira política e comentário estético.
Com isso, o jornalismo cultural crítico, atento em suas análises, preocupado com
seu objeto, engajado e prenhe de expectativas, adentrou ao século XX. Assim Piza define o
movimento:

A arte moderna, enfim, já derrubava os muros e o jornalismo cultural


começava a se renovar. Até a virada para o século XX, o jornalismo era
feito de escasso noticiário, muito articulismo político e o debate sobre
livros e artes. Mas a modernização da sociedade transformou também a
imprensa: o jornalismo moderno passou a dar mais importância para a
reportagem, para o relato de fatos, não raro sensacionalista, e começou a
se profissionalizar. Repórteres de política e polícia passaram a ser os mais
importantes dentro das redações. O jornalismo cultural também
“esquentou”: descobriu a reportagem e a entrevista, além de ma crítica de
arte mais breve e participante. Das conversações sofisticadas de Addison e
Steele até as resenhas incisivas de Zola, Kraus e Shaw, o jornalismo
cultural tomou sua forma moderna (idem, p. 18-19)

E é justamente na passagem do século XIX – pródigo em mudanças sociais, como a


abolição da escravidão, a Proclamação da República, o crescimento do mercado interno e
imigração maciça – para o XX, que o jornalismo exercido no Brasil começa a se organizar.

27
[Esse é o] período de formação da imprensa nacional. É o momento em
que muitos jornais passam a integrar ou se tornam empresas de formação
mais estáveis. Assim, as principais cidades do país também registram
transformações nos espaços urbanos e a efervescência de idéias e hábitos
culturais. Ao mediar e, simultaneamente, impulsionar essas mudanças, “a
imprensa torna-se um importante espaço capaz de discutir e mesmo
ilustrar os modos de vida, sociabilidade e relações culturais da época”
(WOITOWICZ apud GADINI, op. cit., p. 12)10

Dessa forma, se fez premente a adaptação da atividade às novas relações e


exigências econômicas, assim como ao novo cenário social do Rio de Janeiro, então Capital
Federal. Tais mudanças, inexoráveis, ainda que gradativas, marcaram o processo de
profissionalização do jornalismo brasileiro. As atividades de cunho jornalístico passaram a
ser realizadas por indivíduos dedicados a desempenhar essa função, enquanto a
contribuição de escritores, funcionários públicos, poetas e políticos receberam destinos
específicos dentro da estrutura do jornal.

As colaborações literárias, aliás, começaram a ser separadas, na paginação


dos jornais; constituem matéria à parte, pois o jornal não pretende mais
ser, todo ele, literário. Aparecem sessões de crítica em rodapé, e o esboço
do que, mais tarde, serão os famigerados suplementos literários. (SODRÉ
apud GADINI, op. cit., p. 13)

Diversos jornais contribuíram para que a cultura se tornasse digna de figurar como
notícia nos periódicos brasileiros. Um deles, o Correio da Manhã, que circulou entre 1901 e
1974, trazia, desde seu lançamento, sessões dedicadas a divulgar a cultura, como a “Letras
e artes”, “Teatro” e ocasionais setores destacados. A partir de 1906, passou a conter, em
suas edições dominicais, quatro páginas, além das oito que o constituíam nos demais dias
da semana, dedicadas à literatura, “uma edição que incluía trabalhos literários de escritores
nacionais e estrangeiros, crônicas científicas, contos para crianças...” (idem, 2003, p. 13-

10
Januário (2005) faz interessante revisão bibliográfica, também citando Gadini (op. cit.), e identificando o
crescimento do consumo e a crítica cultural a partir dos anos 30 do século passado, “estimulado pela
urbanização do país, pela alfabetização e pelo fortalecimento da esfera pública”, bem como o surgimento de
novas idéias e hábitos e a profissionalização da imprensa. (p. 75)

28
14). Cerca de seis anos mais tarde, seções culturais, que contemplavam, teatro música e
cinema, ganharam a primeira página do Correio da Manhã.
Na passagem da década de 20 para a de 30 acontece outro movimento significativo:
“a diversão, as artes e o lazer começam a romper os domínios da produção ‘caseira’ e para
adquirir o status de bens de consumo” (GAMA apud GADINI, op. cit., p. 33). Encorajado
pelo crescimento urbano, notadamente em São Paulo, a hoje chamada classe média começa
a se distinguir e aumentar o seu poder de compra. O incentivo nacionalista do período
getulista, aliado ao surgimento do rádio, primeiro meio de comunicação de massa, ajudou a
divulgar não apenas a música nacional, como a internacional. A chegada dos discos de vinil
ao mercado fortaleceu tal tendência.
O desenvolvimento do mercado de consumo e a invasão de produtos internacionais,
especialmente americanos – a exemplo de novos ritmos musicais, como o bolero, o be-bop
e o rock’n’roll –, depois da Segunda Guerra Mundial, trouxeram uma nova e significativa
mudança no âmbito da cultura. E é nesse contexto que surgem, nos anos 50, a maioria dos
cadernos culturais11, impulsionados pelo “fortalecimento das bases da indústria cultural”,
“aumento da faixa de público consumidor” e do “poder aquisitivo em geral” (GADINI, op.
cit., p. 81).

Mas, também, relaciona-se ao aumento populacional, barateamento de


algumas condições técnicas de acesso aos bens de consumo cultural,
urbanização, desenvolvimento (em especial a partir do pós-guerra) dos
sistemas de transporte rodoviário, associado à indústria automobilística,
surgimento de espaços urbanos de sociedade, entre outros fatores que
podem ser relacionados ao fortalecimento da esfera cultural e o
surgimento dos cadernos jornalísticos voltados ao setor. (idem, p. 81)

Foi em 6 de outubro de 1956 que O Estado de S. Paulo lançou o Suplemento


Literário, que se constituiu como um “marco de algumas transformações da cobertura
jornalística da cultura” que marcariam as décadas de 60 e 70. Editado em um formato
menor, o Suplemento instituiu o uso de títulos tidos como mais modernos, em maior

11
Entre os jornais que, nos anos 50, possuíam suplementos, páginas ou sessões culturais, destacam-se: Jornal
do Commercio, A Manhã, Diário de Notícias, O Jornal, O Estado de Minas, Correio da Manhã, O Estado de
S. Paulo, Diário Carioca, Jornal do Brasil, Folha da Manhã e O Globo. A Ilustrada, da Folha de S. Paulo e o
B, do Jornal do Brasil, ambos lançados em 1959, estão entre os primeiros a circular diariamente.

29
tamanho, o que facilitou a leitura e absorção do conteúdo e representou “um grande salto”
em relação a assuntos culturais, segundo Roberto Cavaleiro Filho, citado por Gadini (op.
cit.). Seu conteúdo – distribuído entre seis páginas, com publicidade reduzida e
especializada – era formado por seções fixas e incluía resenhas, artigos, contos, poemas,
ilustrações e entrevistas. Entre os temas, além, obviamente, da literatura, eram
contemplados, ainda, as artes plásticas, cinema, música e teatro. Dessa forma, “o
Suplemento [Literário] lançou um modelo que seria mais tarde seguido por todos os
cadernos de livros (como Idéias, do JB, os extintos Folhetim e Letras, da Folha de S. Paulo,
e muitos mais)” (Piza, op. cit., p. 36, grifo nosso)12.
Porém, foi apenas na década de 80 que a Folha de S. Paulo, então recém-
popularizada após o movimento das Diretas-já, e o secular O Estado de S. Paulo
“consolidaram seus cadernos culturais diários, a Ilustrada e o Caderno 2”. Ambos “fizeram
história de meados dos anos 80 até o início dos anos 90, sintonizados com a efervescência
cultural que a cidade vinha ganhando e com o espírito de abertura democrática do país” (id.
ibidem, p. 40).
Uma das características que marcaram a chegada da década de 90 foi a quantidade
crescente de atenção dispensada a assuntos que não contemplavam as denominadas “sete
artes”: a literatura, o teatro, a pintura, a escultura, a música, a arquitetura e o cinema.
Assim, matérias sobre “moda, gastronomia e design” ganharam as páginas dos cadernos de
cultura.
Por fim, para Piza, o jornalismo cultural “quer comunicar o prazer da cultura”, mas
não deve perder os demais aspectos da vida em sociedade de vista. Não deve se furtar a
falar de política ou economia, como se tais assuntos pertencessem a uma categoria que não
lhe cabe. Deve “reconquistar uma qualidade perdida”, “gerar uma disciplina de dentro para
fora”, aprender que “não há temas ou autores sagrados; leitura e vivência devem se
alimentar e contestar mutuamente, sem verdade final; há um senso de aventura no
conhecimento, que jamais é compartimentado e empolado”, visto que a “vida é orgânica”
(id. ibidem, p. 115-116).

12
Piza cita, ainda, as empreitadas de Paulo Francis como crítico de teatro no Diário Carioca e no jornalismo
cultural no jornal Última Hora, nas revistas Senhor e Diners, no tablóide O Pasquim e no semanário Opinião,
entre outros.

30
Como foi possível perceber, o jornalismo cultural e a própria atividade da crítica,
assunto de nosso próximo subcapítulo estão intimamente ligados. Passemos, então, à
análise desta última.

1.3 A crítica como serviço do jornalismo cultural

Obviamente, a crítica precede o cinema. O ato de apreciar uma obra de arte é, de


certo, tão antigo quanto a própria capacidade do ser humano em conceber o objeto de seu
estudo. O surgimento da imprensa, porém, permitiu que tais juízos não apenas deixassem as
rodas de debates entre intelectuais e circulassem entre os leitores, aumentando, assim, o
alcance das idéias, como também possibilitou que, notadas as possibilidades que ela
oferecia, se institucionalizasse.
Segundo Melo (2003), a análise dos produtos culturais teve início na imprensa
brasileira pelas manifestações mais tradicionais da arte, ou seja, a literatura, a música, o
teatro, as artes plásticas. Uma vez que os veículos em que eram publicadas, os jornais e
revistas, eram direcionados a um público específico e exigente, “a crítica podia se fazer em
profundidade”. Sendo esse mesmo público dotado de determinada bagagem cultural e, mais
que consumidor, conhecedor dos produtos avaliados, “era natural que os editores cedessem
espaço para a publicação de matérias bem elaboradas, cujo cerne é a análise da própria
obra-de-arte e não a orientação para o seu consumo”. (id. ibidem, p. 1301-131)
Porém, quando a tardia industrialização nacional atingiu, finalmente, o jornalismo
brasileiro, na década de 30, fazendo crescer exponencialmente o público leitor, as
publicações deixaram de circular exclusivamente entre os âmbitos mais abastados e a ala
acadêmica, para ganhar as ruas. Essa guinada no mercado editorial tornou a classe média e
o operariado qualificado fruidores potenciais dos novos bens culturais, o que forçou sua
apreciação a buscar “novos caminhos”. Tais acontecimentos ensejaram uma grande
mudança no jornalismo praticado no país, que passa

da fase amadorística (quando os espaços dos jornais estavam franqueados


aos intelectuais para o exercício, eventualmente remunerado, da análise

31
estética no campo da literatura, música artes plásticas) para o período
profissionalizante (momento em que a valoração dos produtos culturais
passou a ser feita regularmente, e portanto remunerada, adquirindo caráter
mais popular) (id. ibidem, p. 1301-131)

De acordo com a jornalista e professora Cláudia Nina, o momento foi de cisão entre
o jornalismo e a literatura. “As duas atividades [...] afastaram-se à medida que as técnicas
jornalísticas foram criadas. O texto jornalístico ganhava seus próprios códigos.” (NINA,
2007, p. 26) Entretanto, esse movimento encontrou resistência, por causa e em áreas
distintas, tanto de quem escrevia as críticas quanto de quem as publicava.

O que ocorreu foi a dupla recusa dos grandes intelectuais e dos editores
culturais em relação à crítica esteticamente embasada. Os grandes
intelectuais porque não quiseram fazer concessões à simplificação e à
generalização pretendidos pela industrial cultural. Os editores culturais
porque entendiam indispensável ampliar o raio de influência da crítica da
arte, tornando-a utilitária em relação ao grande público e evitando o seu
direcionamento para as elites universitárias.
Resultado: os grandes intelectuais que continuaram a realizar exercícios
críticos estruturados segundo os padrões da análise acadêmica refugiaram-
se nos periódicos especializados ou nos veículos restritos ao segmento
universitário da sociedade brasileira. E se autodenominaram críticos, em
contraposição àqueles que permaneceram nos meios de comunicação
coletiva, ou que se agregaram ao trabalho de apreciar os novos
lançamentos artísticos, cujos textos passaram a ser chamados de resenhas,
traduzindo a expressão review utilizada pelo jornalismo norte-americano
(MELO, 2003, op. cit., p. 130)

Já durante os anos 60, o âmbito acadêmico experimentou um inchaço teórico da


crítica literária, que se especializava cada vez mais. A linguagem rebuscada afastou os
profissionais da imprensa, “que viram nos jargões acadêmicos [linguagem] excessivamente
hermética para o público do jornal”. Os teóricos, enquanto isso, permaneciam isolados,
“dialogando apenas com seus pares”. (NINA, op. cit., p. 26)
O surgimento dos releases produzidos pelas assessorias de imprensa, nas décadas de
70 e 80, tornou mais fácil “para o bem ou para o mal o trabalho dos jornalistas-críticos, que
passam a dar à crítica um tratamento mais superficial se comparado ao texto dos
especialistas, voltando-se para os lançamentos do mercado editorial” (id. ibidem, p. 26).

32
Como conseqüência natural dos fatos, houve, gradualmente, a substituição da crítica
– profunda, de padrões estéticos elevados e direcionada às elites, que tem nas obras de arte
seu objeto – pela resenha – menos compromissada culturalmente, que faz dos novos bens
produzidos em larga escala pela indústria cultural seu campo de interesse. “Assim, não é a
literatura que se aprecia, mas o livro colocado no mercado. A música executada nos
recintos fechados deixa de interessar aos jornais diários, cedendo lugar para o registro e
avaliação dos produtos da indústria fonográfica”. (MELO, 2003, op. cit., p. 130)
Na mesma obra, Melo cita as definições de crítica e resenha traçadas pelo professor
Afrânio Coutinho. Enquanto aquela “exige métodos e critérios que tornam seu resultado
incompatível com o exercício periódico e regular em jornal, e mais incompatível com o
próprio espírito do jornalismo, que é a informação ocasional e leve”, essa se faz como
“comentário breve [...] à margem” daquilo que analisa. Melo ressalta, ainda a diferenciação
de público estabelecida por Coutinho, que situa a crítica como trabalho direcionado aos
“scholars”, constituindo-se, por tanto, como gênero literário. A resenha, destinada ao
“consumo popular”, é, pois, gênero jornalístico. “Não é de se estranhar que a resenha
prolifere nos meios de comunicação coletiva e a crítica se circunscreva aos suplementos
culturais dos diários, às revistas especializadas, ao livro e às teses universitárias” (id.
ibidem, p. 132), sentencia Melo.
Dessa forma, a crítica busca a apreensão do “sentido social e de pensamento
filosófico e estético da obra criticada”, como observou José Aderaldo Castello (1959, p. 9).
Para Castello, a crítica deve, não apenas contemplar a obra que ajuíza, mas, nunca perder
de vista a totalidade do trabalho do autor avaliado, traçando sua evolução e acompanhando
o crescente das idéias que se escondem por traz de uma carreira. É, portanto, necessário ao
crítico compreender o momento em que se insere o trabalho o qual está a avaliar, a fim de
acompanhar fidedignamente os conceitos que a ele deram origem, visto que na crítica, a
presunção tem função unicamente no preenchimento de lacunas.

A crítica [...] Deve o quanto possível reproduzir a marcha evolutiva da


obra total do escritor criticado, da primeira à última página,
acompanhando-lhe o pensamento, a concepção artística, conjeturando
quando fôr indispensável apresentando as características de cada produção
de relêvo bem como as da obra em seu conjunto, revelando o pensamento
do escritor em todos os sentidos. Em suma, deve esclarecer a obra em face
da formação do próprio autor e do seu momento histórico, e também

33
ressaltar nela as qualidades estilísticas e estéticas. Que se faça isso o
quanto possível com imparcialidade e fidelidade e que depois se prossiga
na crítica apreciadora, de censura, de julgamento, de sugestão e correção,
isto é, orientadora, principalmente no caso de estreantes (id. ibidem, p. 9)

É Castello, também, quem estabelece o ideal do crítico, ao evocar Machado de


Assis – a quem o autor atribui “a preocupação inicial com a atividade crítica regular, capaz
de apreciar as obras literárias com isenção de ânimo, com imparcialidade, livre de
sectarismo e das simpatias ou antipatias pessoais” – e afirmar, em conformidade ao bruxo
do Cosme Velho, que aquele que exerce a atividade deve primar pela capacidade analítica
sem nunca perder de vista a própria noção do que é a realidade e até onde ela pode ir ante a
criação artística sem comprometer o todo. É mister, ainda, que haja sempre o compromisso
com o justo julgamento da obra que se aprecia, independente de autor, corrente ou público
a que se destina. Por último, cabe a responsabilidade nos comentários, que não devem
jamais perder de vista a distinção.

Uma das condições primordiais do crítico [...] deve ser o cultivo da


‘ciência literária’, numa libertação daquilo que se limita ao domínio da
imaginação. A crítica é acima de tudo análise [...] o crítico deve buscar na
obra ‘o sentido íntimo, aplicar-lhe as leis poéticas, ver, enfim até que
ponto a imaginação e a verdade conferenciam para aquela produção’. [A
crítica] não deve nascer de uma rápida leitura, reproduzindo apenas
‘impressões de um momento”: deve ser o resultado da ciência e da
consciência do crítico. Porque, na ausência de probidade, de convicção
sincera e fundamentada, de justa imparcialidade, o crítico jamais deve
proferir seu julgamento sôbre qualquer coisa; ademais, a missão do crítico
é alicerçada e como que estruturada na verdade [...]. O crítico deve [...]
sentir-se seguramente firme contra qualquer pessoalismo, mantendo-se
dentro da imparcialidade que permite justamente indicar o valor da obra
de mérito ou a insuficiência da obra fraca, sem distinção de autor.
Também deve demonstrar tolerância para com a justa valorização da obra
que não deve ser condenada só pelo fato de pertencer a uma corrente
literária que não esteja de acordo com as preferências pessoais do crítico.
Se, finalmente adicionarmos a tudo isso a condição de urbanidade, isto é,
a delicadeza e a distinção tanto no modo de realçar o valor, como no de
expor a ausência dêste elemento vital de qualquer obra, e ainda mais a
‘virtude da perseverança, teremos contemplado o ideal do crítico’. (id.
ibidem, p. 7-8)

A asserção a respeito da necessária isenção do crítico se dá por um motivo simples:

34
A ação entre amigos – e inimigos – era uma constante. Elogiar livros de
colegas ou, por outra, destruir a obra de desafetos mostrava o quão
parciais e inexpressivos eram os críticos de então, que viam os jornais
como uma arena em que se expunham suas rixas pessoais por meio da
palavra, usando-a como arma. A agressividade não era incomum. (NINA,
op. cit., p. 21-22)

A autora ressalta, ainda, a atitude de Machado de Assis, que, “embora tenha sido
bastante polêmico, [...] jamais rendeu-se ao insulto” (id. ibidem, p. 22).
José Aderaldo Castello (op. cit.) resgatou, também, a própria noção de arte
alimentada por Assis e que, por conseguinte, norteava o julgamento do autor a respeito da
qualidade de uma dada obra. Tal conceito, obviamente, pode ser utilizado como uma
definição estética perfeitamente aplicável a qualquer obra.

Por sua vez a natureza da obra de arte requer ‘que o poeta aplique o
valioso dom da observação a uma ordem de idéias mais elevadas’. Em
suma, impõe-se que o artista capte sempre a substância universal da
natureza humana, em qualquer situação em que se manifeste, ao mesmo
tempo que saiba ser de seu povo e de sua época sem que essa qualidade
sobrepuje ou violente a própria substância da obra de arte. Que fuja da
vulgaridade, da reprodução da vida pela reprodução da vida, ao
documentário, com relêvo de fatos acessórios, fortuitos, ou acidentais, que
apenas podem despertar interesse ou curiosidade (id. ibidem, p. 12)

Segundo Daniel Piza (op. cit.), a tais características devem se somar, ainda, as
qualidades de um bom texto jornalístico, “clareza, coerência e agilidade”, ferramentas que
se prestam aos objetivos da crítica, entre os quais estão, segundo o jornalista, “informar ao
leitor o que é a obra ou o tema em debate, resumindo sua história, suas linhas gerais, quem
é o autor etc”, bem como “analisar a obra de modo sintético, mas sutil, esclarecendo o peso
relativo de qualidade e defeitos” da obra apreciada. Por último, uma grande crítica surge da
capacidade de “ir além do objeto analisado, de usá-lo para uma leitura de algum aspecto da
realidade”, uma vez que o crítico deve ser “um intérprete do mundo”. (Id. ibidem, p. 70)

35
Já a resenha, que, quando surgiu, foi chamada de rodapé literário e se situava “entre
a crônica e o noticiário” (NINA, op. cit.), era exercida por indivíduos que não se valiam de
quaisquer tipos teorias para sustentar suas colocações, “afinal, ainda não havia faculdade de
Letras nem teóricos da disciplina”, ostentava natureza impressionista. Com isso, os textos
produzidos “ficavam entre o ensaístico e o professoral e eram carregados de digressões”.
(id. ibidem, p. 24) Hoje, as funções e métodos são outros, muito embora bastante similares.
Ao invés de palpites que, emitidos por figuras como Álvaro Lins, atingiam o grande
público e influenciavam seu consumo, a resenha, ainda esvaziada de ambições literárias, se
apresenta atualmente como guia deliberadamente produzido para essa mesma massa, como
ressalta Melo (2003, op. cit.).

A resenha configura-se, então, como um gênero jornalístico destinado a


orientar o público na escolha dos produtos culturais em circulação no
mercado. Não tem a intenção de oferecer julgamento estético, mas de
fazer uma apreciação ligeira, sem entrar na sua essência enquanto bem
cultural. Trata-se de uma atividade eminentemente utilitária; havendo
muitas opções no mercado cultural, consumidor que dispor de
informações e juízos de valor que o ajudem a tomar a decisão certa”. (p.
132)

Para Coutinho (apud MELO, 2003, op. cit), a resenha praticada pelo jornalismo
brasileiro continua não sendo mais que “puro achismo” ou “conversa fiada” (idem, p. 135).
Também citado por Melo (idem), Todd Hunt, no entanto, tem visão mais otimista do
gênero e lhe atribui uma série de características positivas, a citar: a) informa a respeito
daquilo circula no mercado cultural e define a natureza e qualidades do produto; b)
contribui para a elevação do nível cultural, “pelo caráter didático com que aprecia os bens
culturais, despertando, muitas vezes, o senso crítico para sua fruição”; c) reafirma a noção
de comunidade ao situar localmente, através de características e conceitos comuns a todo o
público leitor, uma obra que, a priori, se destina a um mercado de massa; d) alerta a
respeito do melhor destinação que um consumidor pode dar a seus recursos, ao denunciar
produtos de baixa qualidade; e) colabora com o processo criativo do artista, tecendo elogios
ao bom trabalho e ressaltando defeitos do mau; f) estabelece o que é novo; g) traça registro
histórico “permitindo reconstruir momentos de uma atividade que é efêmera pela própria

36
natureza da indústria cultural”; h) proporciona divertimento, quando realizada com bom
humor. (idem, p. 133)
Faz-se necessário, ainda, estabelecer a forma pela qual é pautada a maior parte das
resenhas produzidas no jornalismo nacional, forma essa ironicamente melhor captada por
Coutinho, como ficou patente, notório detrator do gênero.

Entre os indicadores contidos na resenha brasileira, Afrânio Coutinho


aponta os seguintes: a) Um nariz de cera como introdução acerca do
assunto da obra; b) Algumas notas sobre o autor e sua produção anterior;
c) Mais algumas digressões e anedotas; d) Afinal, um juízo pessoal, de
acordo com o critério de gosto e sensibilidade do crítico (COUTINHO
apud MELO, 2003, op. cit., idem).

Por tudo isso, na contemporaneidade, a crítica segue bipartida, como assinala


Cláudia Nina (Op. cit).

Há, basicamente, dois tipos de texto: um mais técnico, produzido por


acadêmicos de diversas áreas (sociólogos, historiadores, antropólogos,
professores de literatura), que [se] voltam às páginas dos suplementos na
tentativa de escoar sua produção intelectual num ambiente extra-
acadêmico, escrevendo textos ensaísticos; outro livre de jargões, assinado
jornalistas que, muitas vezes, não têm nenhuma especialização na área.
São dois mundos distantes, pois revelam formas diferentes de perceber as
obras e de transmitir essa percepção aos leitores. Enquanto os
pesquisadores das universidades mergulham fundo nas obras e nos autores
canônicos, os jornalistas ou resenhistas, seja por falta de tempo, preparo
ou espaço, fazem vôos rasantes. (id. ibidem., p. 29)

Por fim, cabe esclarecer uma confusão que envolve os termos crítica e crítico, para,
com isso, podermos definir com precisão o vocabulário que será empregado no presente
estudo a partir desse ponto. Em uma análise superficial, o exercício da crítica e da resenha
são semelhantes o suficiente para garantir a quem quer que as exerça a alcunha de “crítico”,
entretanto, empregamos o adjetivo crítico para definir aquele que exerce a crítica
acadêmica e resenhista para aquele que trabalha com a apreciação não acadêmica. Não
estando clara a natureza do texto, utilizaremos o termo apreciação para designá-lo.

37
CAPÍTULO 2
Do exterior a Campos: breve visão das origens da crítica no país e o trabalho
desenvolvido no jornal Folha da Manhã

Estabelecido o que é jornalismo cultural, crítica e resenha, há que se fazer breve


passagem sobre o estabelecimento da atividade de crítico, e crítico cinematográfico — e,
mais tarde, resenhista — no exterior e no país antes de adentrarmos em seu exercício em
solo campista, mais precisamente, no jornal Folha da Manhã13, cujos textos compreendidos
entre 11 de janeiro e 31 de março de 200814 nos servirão como corpus de análise. Tal
recorte, temporalmente distante, se dá por um motivo de cunho prático: os últimos meses
do referido ano registram o afastamento de parte do corpo de profissionais que ali exerciam
a apreciação de cinema, tendo restado, até outubro de 2009, apenas um deles, Aristides
Soffiati, que assina, até então, a coluna Cinematógrafo, sob o pseudônimo Edgar Vianna de
Andrade15. Assim, para não nos atermos a um trabalho solo e, na premência da conclusão
do presente, optamos por, antes de aguardar a formação de outro volume suficiente para
exame, buscar no ano anterior nosso objeto de estudo.
Dessa forma, analisaremos no subcapítulo 2.3 a apreciação realizada pelo diretor de
Redação da Folha da Manhã, o jornalista Aluysio Abreu Barbosa, que escreve em espaço
chamado Caixa de luzes, e os colaboradores Gustavo Landim Soffiati16, que assinou a
coluna Cinefilia; e Mateus Nagime, cujo espaço era denominado Sétima arte. Durante o
início de 2008, os três desenvolveram junto a Aristides aquela atividade que é por eles
entendida e anunciada, independentemente de quaisquer teorias acadêmicas, como crítica.

13
A opção pelo jornal Folha da Manhã advém do fato de este ser o único periódico de Campos dos
Goytacazes a oferecer a análise cinematográfica, não existindo, até a finalização do presente, o exercício da
atividade em qualquer outro veículo local.
14
A escolha destes meses em especial foi feita por tal ínterim coincidir com a época em que a Academia de
Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood tradicionalmente realiza sua premiação, mais conhecida
como Oscar. O evento, creditado como o maior da indústria áudio visual, é pivô de grandes polêmicas no que
diz respeito à validade de suas nomeações, de forma que essas controvérsias acabam por, muitas vezes, se
refletirem na análise dos filmes participantes (ou candidatos a participantes) realizadas ora antes e ora depois
da entrega das estatuetas, respeitando a distribuição dos mesmos em território nacional. Por último, pesou na
escolha, ainda, o acesso ao arquivo digital da Folha da Manhã, entre cujas edições em formato PDF havia,
ainda que não todas, a maior parte das apreciações exercidas naquele período.
15
Apesar do uso de pseudônimo, a condição de Soffiati de autor do espaço foi revelada em matéria pela Folha
da Manhã e é conhecida dos leitores mais antigos ou mais atentos, visto que o e-mail constante na coluna é
pessoal e, portanto, inclui o sobrenome do colaborador.
16
Gustavo Landim Soffiati é filho de Aristides Soffiati.

38
Tal análise se presta a, tendo em mente os conceitos desenvolvidos pelos teóricos
citados no capítulo anterior, descobrir se, de fato, o serviço prestado pela Folha da Manhã é
crítica ou resenha, que, como já visto, é mais adequada ao formato jornalístico, seja na
estrutura do texto ou em seu objetivo enquanto peça de comunicação. Por fim, vale citar
que, embora a subjetividade permeie, aqui também, a análise da análise, tal discussão busca
esclarecer tanto quanto possível a relação entre a crítica e a resenha e mostrar que cada um
desses gêneros-irmãos pode ter não apenas sua funcionalidade teórica, como também
prática, distintas e mesmo complementares — visto que o fato de esta ou aquela apreciação
ser, do ponto de vista teórico defendido pelo presente trabalho, crítica ou resenha não a
desqualifica como importante ferramenta de esclarecimento das massas. Significa,
unicamente, que o trabalho se enquadra em classificações que ainda são pouco entendidas
— ou cujas elaborações são ativamente ignoradas — mesmo por quem o exerce.
Para tanto, pareceu-nos necessário fornecer um breve registro do desenvolvimento
da crítica cinematográfica em seu berço – o que significa, principalmente Estados Unidos e
Europa, e no Brasil, o que faremos nos subcapítulos 2.1 e 2.2, para, então, chegarmos a
Campos dos Goytacazes, e, assim, situados temporal e espacialmente, possamos finalmente
partir ao trabalho desenvolvido na Folha da Manhã, nosso objetivo.

2.1 A crítica cinematográfica

O primeiro filme animado17 da história foi projetado pelos irmãos franceses Auguste
e Louis Lumière em 28 de dezembro de 1895. A exibição pública de seu invento, batizado
cinematógrafo, surpreendeu a pequena, mas atenta, platéia formada pelas 33 pessoas que se
dirigiram até o Salon Indien, do Grand Café, no número 14 do Boulevard des Capucines,
em Paris, especialmente para assistir à sessão que começava com o filme chamado A saída
dos operários da fábrica Lumière. O programa, que durava apenas 20 minutos, contava,
ainda, com A chegada do trem – capturado na estação de trens de Lyon, cidade francesa
onde estava instalada a fábrica de materiais fotográficos da família – o registro de um

17
Embora essa não seja uma discussão na qual pretendemos entrar, vale destacar que Thomas Edison exibira
nos Estados Unidos, dois anos antes, o seu cinetoscópio, tendo posteriormente reivindicado a criação do
cinema para si. Porém, como seu equipamento não atendia a requisitos técnicos típicos do cinema, estudiosos,
como Cândido (op. cit.), descartam sua sessão como marco inicial do mesmo.

39
cavalo em disparada. O sucesso do cinematógrafo foi tão grande, que, segundo Flávio
Cândido (2002), “obrigou que as projeções começassem às 10 horas da manhã e se
prolongassem até as 11 horas da noite” (p. 20). As chamadas camadas populares se
agitaram e formaram grandes filas para assistir às imagens, pagando, para tanto, uma
módica quantia. O autor chama a isto de “o sonho por apenas um centavo”. (CÂNDIDO,
op. cit., p. 25)

Destituídos de dignidade, explorados pelas práticas perversas do


escravagismo industrial adotadas pelo capitalismo liberal que antecedeu à
grande crise de 1929, (entre) o operário, o estivador, o caixeiro viajante, o
comerciário, a lavadeira, o faxineiro, [...] não havia hipótese de as massas
urbanas divertirem-se com a matéria culta, como o teatro e a ópera ou
tampouco com os esportes coletivos, quase sempre inventados na
Inglaterra e que se tornavam cada vez mais populares ao final do século
19, mas que ainda mantinham a britânica marca aristocrática de nascença.
Com o cinema, as grandes massas de espectadores, maravilhados pela
novidade tecnológica que aquela diversão representava, com suas
aventuras policiais, seus romances folhetinescos e muitos esquetes
cômicos projetados na tela, ganharam uma nova perspectiva para fugir o
tédio que marcava suas vidas. (id. ibidem)

Apesar do sucesso e grande apelo popular, como vimos, os temas eram “prosaicos”,
em seu sentido mais literal: “os filmes de cinema estiveram voltados para um conteúdo de
baixo gosto cultural e nível intelectual”, de acordo com DeFleur & Ball-Rokeach (1993, p.
91). Ambos afirmam, ainda, que, inicialmente, “esforços para filmar assuntos mais sérios
ou artísticos não foram recebidos com entusiasmo. O conteúdo dos filmes visando
gratificações mais primárias é que trazia dinheiro” (Id. ibid., p. 92). A despeito do cunho
elitista de tais afirmações, de fato, “os filmes eram vistos exclusivamente como mero
entretenimento, espetáculos da cultura de massa em posição à alta cultura e, uma vez assim,
desprezados pelos intelectuais” (GOMES, 2006)18. Dado o desdém dos pensadores a
respeito do cinema, constata-se, hoje, uma “carência de registros escritos, de análises mais
apuradas sobre os primeiros filmes, ficando no campo meramente da descrição do evento”.
(id. ibidem).

18
A obra de referência é de um artigo publicado no endereço
http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/critica/0102/05.htm, sem indicação de páginas. Ver
referências.

40
Segundo Graeme Turner (1997), “foram necessários 15 anos no século XX para que
o filme narrativo se estabelecesse – tanto como um produto comercial viável quanto como
um candidato para o status de ‘sétima arte’, a primeira forma artística original do novo
século” (p. 11, grifo no original). É na esteira desse processo que surgem, conforme Gomes
(op.cit.), os primeiros grandes críticos cinematográficos, “Louis Delluc, Riccioto Canudo,
Siegfried Kracauer, Jean Epstein, Otis Fergusson [...] [e] Grahan Greene”. Nessa época, os
“escritos críticos buscavam, sobretudo, definir o cinema como arte e como linguagem”. (id.
ibidem)
Após se dedicar a cenas do dia-a-dia e possibilitar que pessoas se identificassem na
tela e olhassem de outra forma episódios que, por muitas vezes, passavam despercebidos no
seu cotidiano, e de criar breves narrativas ficcionais, comumente de cunho cômico e/ou
emotivo, o cinema buscou outras histórias e descobriu muitas delas no teatro e na literatura.
Peças eram filmadas e exibidas para o público, e, mais tarde, com o amadurecimento da
linguagem cinematográfica, grandes obras literárias eram paulatinamente adaptadas para a
sala escura, como ressalta Freitas (2005) quando diz que “muito do sucesso do cinema
clássico deveu-se a filmes baseados na épica literária, [...] como Romeu e Julieta, Abelardo
e Heloísa, El Cid, Ben-Hur, Helena, Tróia e outros” (p. 207, grifo no original). Tal
movimento ensejou a migração de críticos destas para aquele, e com eles, se iniciaram os
primeiros esforços no sentido de criar um estofo teórico que norteasse a apreciação dessa
forma de expressão, que então ganhava cada vez mais espaço.

Posteriormente, quando o cinema ganha respeito no campo das artes, a


atividade da crítica de filmes e a própria teoria do cinema se viram
vinculada aos sistemas referenciais e interpretativos das disciplinas
humanísticas, sobretudo da literatura. Com efeito, em meados do século
do século XX, os múltiplos enfoques dados aos estudos literários foram
também transferidos para a crítica de cinema e, diga-se, não somente a
chamada crítica acadêmica como também a crítica comum de filmes,
naturalmente parte deste horizonte histórico. Esta pluralidade de enfoques
passava pelos estudos dos mitos, das abordagens psicanalíticas, marxistas
ou estruturalistas que converteu o filme num “texto” pronto para ser
dissecado (GOMES, op. cit.)

Turner, por sua vez, sustenta que

41
Muitos acadêmicos da literatura trouxeram com eles pressupostos que
posteriormente a teoria do cinema acabou contestando: por exemplo, a
desconfiança da cultura acadêmica em relação a formas culturais mais
populares, como os filmes convencionais, a televisão ou a ficção popular;
um respeito exagerado pelo texto (livro ou filme) único e singular,
coexistindo com uma atitude benevolente para com os filmes
“comerciais” de gênero (faroeste, suspense, musicais, etc.); e uma
preferência por filmes feitos a partir de obras literárias. (TURNER, op.
cit., p. 12)

Os anos que sucederam a Segunda Guerra Mundial viram a proliferação das revistas
de cinema, sobretudo na França, onde surgiram Cahiers du Cinema, Positif e Cinéthique;
na Inglaterra, com Screen, Sequence, Sight and Sound e Movie; e nos Estados Unidos, cujas
Film Quartely, Film Culture e Artforum se destacaram.

Algumas destas publicações até hoje permanecem como referenciais de


textos de qualidade na análise da obra cinematográfica. Além disso, e
talvez o mais importante, é que estas revistas acabaram por criar escolas,
ao traduzir um modo ensaístico peculiar de fazer as críticas, influenciando
esta prática em diversos lugares do mundo. Segundo Serge Toubiana, a
revista Cahiers du Cinema, essencialmente formada por críticos-
realizadores, representou, ao longo de seu percurso como publicação
destinada à crítica de cinema, uma luta permanente entre, por um lado, a
afirmação de um gosto e de uma, predominante nos anos 50 até o início
até o início dos anos 60, de submeter os filmes a certa análise por tema,
por autor e por gênero. Não por acaso, na efervescência deste momento,
nasce a Nouvelle Vague. Vale lembrar que nesta altura a revista presta seu
apoio às novas cinematografias de outros países como Itália (Neo-
realismo), Brasil (Cinema Novo) e Portugal (Novo Cinema). E, por outro
lado, entre 1969 e 1975, a revista assume vocação mais política e teórica
centrada nas preocupações extra-cinematográficas que se afirmaram em
detrimento do gosto. São notórias, neste período, as influências da
filosofia de inspiração marxista althusseriana, da psicanálise e da
semiologia. (GOMES, op. cit.)

Nas décadas de 60 e 70, todavia, o interesse dos apreciadores se move para “filmes
modernos, abstratos, que apresentavam maior semelhança com obras literárias do que com
longa-metragem comercial tradicional”. (TURNER, op. cit., p. 12) Tais idéias reforçavam a
ausência de uma barreira clara entre os métodos de avaliação e julgamento de mídias tão
distintas e, com isso, algumas das potencialidades do cinema, como gerar um grande

42
público espectador, eram negligenciadas. De qualquer forma, independentemente da época
em que se olhe para a produção da apreciação cinematográfica, é possível aferir que “os
estudos sobre o cinema [...] têm sido amplamente dominados por uma perspectiva: a análise
estética para a qual a capacidade do cinema de se tornar arte por meio da reprodução e
arranjo de sons e imagens é o centro das atenções” (TURNER, op. cit., p. 11).

2.2 A crítica cinematográfica no Brasil e em Campos dos Goytacazes

Tornou-se patente durante o desenvolvimento deste a escassez de bibliografia a


respeito da crítica cinematográfica, tendo-se feito necessária, em muitos momentos, a
apropriação de termos e conceitos originalmente formulados para a análise da literatura e
teatro – ou recorrer à Internet, fonte por vezes pouco confiável – para darmos o devido
prosseguimento ao trabalho19. Dessa forma, o registro mais antigo da atividade crítica no
Brasil encontrado durante o processo de confecção do presente foi o resgate do início da
carreira de Machado de Assis na atividade, durante a segunda metade do século XIX,
apontada por José Aderaldo Castello.

Ainda na Marmota de Paula Brito é que êle verdadeiramente estréia como


crítico, publicando o ensaio ‘O Passado, o Presente e o Futuro da
Literatura’, datado de 1858. Há também alguma coisa anterior, de 1856 –
‘Idéias Vagas – A poesia’, ‘Idéias Vagas – A Comédia Moderna’, ‘Idéias
Vagas – Os Contemporâneos – Mont’Alverne’ – que possivelmente já
marca seu pendor para a crítica. (CASTELLO, 1959, p. 5)

Houve, de certo, outros, antes do bruxo do Cosme Velho, mas nenhum caso anterior
documentado foi descoberto durante a pesquisa. Tomaremos a data, então, como o marco
inicial da boa crítica – pela qual deve se entender aquela que aspira à análise honesta e
cônscia, tanto almejada pelo autor –, visto que

19
Como já havia afirmado Januário (op. cit.) em dissertação apresentada à Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA/USP), “temos de recorrer a outras línguas para ter informações sobre nós
mesmos”. (p. 187)

43
Antes dêle, [...], a notícia, a apreciação e julgamento do livro recém-
publicado, conforme podemos verificar nas nossas primeiras revistas,
desde o Correio Brasiliense, consistia, nas suas manifestações iniciais, no
noticiário andógino, logo substituído pela longa notícia repleta de elogios
e de reflexões que muito pouco tinham que ver com a obra considerada
em si (id. ibidem, p. 6)

Nessa época, o cinema se encontrava em estado embrionário e os experimentos com


registros de imagens em movimento eram, ainda, insipientes, senão, inexistentes. Assim, é
apenas com o início do desenvolvimento da indústria cinematográfica que a crítica a ele
dedicada começa a surgir no cenário nacional, inicialmente, sob influência do pensamento
norte-americano, “que fornece as referências para conhecimentos cinematográficos
especializados que começam a aparecer em certas revistas cariocas na década de 20
voltadas para as atualidades dos espetáculos-negócio e da indústria cultural no Rio capital”
(MOURA, 2002)20, e francês “que depois da Segunda Guerra ganha impulso associada ao
cineclubismo, garantindo o fenômeno da popularidade e da multiplicação de revistas sobre
cinema na França”. (id. ibidem)

Assim, começamos a produzir críticas cinematográficas nos anos 20 com


a geração de Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, uma primeira geração de
brasileirinhos formada pelo cinema norte-americano, que do jornalismo
passaria para a realização de filmes (o fenômeno Cinearte\Cinédia).
Gerações que vão surgindo pelos jornais e revistas especializadas que
progressivamente vem a público com a sofisticação do mercado editorial
brasileiro, jornalistas e críticos que combatem ou, explícita ou
inadvertidamente, confirmam o preconceito vigente ainda nos anos 50
entre a intelectualidade brasileira contra o cinema, e principalmente contra
os filmes brasileiros. (id. ibidem)

Essa crítica inicial se solidifica e, com o tempo, se aprimora, se estabelecendo como


um “gênero literário híbrido, entre o jornalismo e o ensaio, como as [críticas] que escreveu
Francisco de Almeida Salles” (id. ibidem), um dos personagens mais simbólicos da
chamada crítica culta praticada na virada entre os anos 40 e os 50. Os 20 anos seguintes

20
Também este artigo foi acessado via Internet, sem referência de páginas, no endereço
http://www.uff.br/mestcii/roberto1.htm. Ver referências.

44
viram o surgimento daquilo que Moura chama de crítica de inspiração sociológica, que se
fazia

enfatizando a subjacência política de trama e narrativa em tempo de


revolução, avidamente consumida nos jornais por uma nova geração de
espectadores brasileiros. Revelando o amadurecimento cultural de parte
do público, e se pondo em sintonia e mesmo em interlocução criativa com
os novos realizadores brasileiros, compondo um momento rico do cinema
brasileiro. (id. ibidem)

O autor ressalta, ainda, a capacidade dos críticos daquela época em perceber que a
forma “era mais do que só uma espécie de paginação do que realmente interessava, para
depois concluir que, apesar da eficiência dessas concepções como ferramentas descritivas,
tudo o que importava ainda restava a ser dito em cada nova crítica de cada novo filme” (id.
ibidem).
Os anos 80, por sua vez, registraram a migração da crítica culta, que abandonou os
jornais e buscou acolhida nas revistas culturais e no ambiente universitário. Parte de seus
praticantes “especializaram-se em críticas que estabelecem diálogos os mais diferenciados
possíveis com filmes mais ou menos aleatoriamente escolhidos através de um empirismo
ecletista”. (id. ibidem) Seu pensamento se concretizava através de complexas
idiossincrasias e grandes exercícios intelectuais e emocionais.
Para o cinema brasileiro, porém, um momento de grande importância chega com o
início da década de 90. Então presidente da República, Fernando Collor de Melo extinguiu
a Embrafilme21 e lançou a praticamente zero a produção cinematográfica nacional. É nesse
contexto histórico que se iniciou a análise cinematográfica na Folha da Manhã22, entre o
final da década de 80 e início da de 90. Editado pelo jornalista campista Aloysio Balbi em
formato tablóide, o suplemento Folha Shopping encartava as edições de sábado do jornal e

21
Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima, empresa estatal brasileira produtora e distribuidora de
filmes cinematográficos. Criada por meio do decreto-lei Nº 862, de 12 de setembro de 1969, fomentou a
produção e distribuição de filmes brasileiros. Foi extinta em 16 de março de 1990, pelo Programa Nacional de
Desestatização (PND) do governo Collor.
22
Tais informações, menos precisas do que desejávamos, foram obtidas mediante entrevista pessoal com
Aluysio Abreu Barbosa em 22 outubro de 2009 e ratificadas, com a mesma indefinição, por Aloysio Balbi em
04 de novembro do mesmo ano. Como a época é temporalmente distante, não foi possível localizar a
publicação do encarte Folha Shopping nos arquivos da Folha da Manha, para, assim, podermos precisar seu
tempo de circulação.

45
trazia apreciações de filmes que se encontravam nas prateleiras das vídeo-locadoras. Apesar
de Campos dos Goytacazes possuir, à época, dois cinemas – o Capitólio e o Goytacaz –, o
período testemunhava a “febre do VHS”, como define Aluysio Abreu Barbosa, atual diretor
de jornalismo do Grupo Folha da Manhã, cujo periódico é, atualmente, o único da cidade a
trazer tais avaliações23.
Três anos pós o afastamento de Collor do poder, mediante processo de impeachment
instaurado em 1992, iniciou-se aquilo que se convencionou chamar retomada do cinema
brasileiro. O período, que tem como marco inicial o longa-metragem Carlota Joaquina: A
imperatriz do Brasil (1995), de Carla Camurati, ensejou “um clima de euforia que, nas
palavras de Lúcia Nagib (2002), propiciou o despertar da atenção da imprensa e do público
para as produções nacionais” (NAGIB apud MANSO, s/d, p. 1)24. Outro passo importante
para a história do cinema brasileiro foi dado em 1997, quando as Organizações Globo
deram início à sua própria produtora, batizada Globo Filmes, a fim de alcançar o mercado
cinematográfico.
Todavia, em Campos dos Goytacazes, a apreciação cinematográfica voltaria à cena,
na Folha da Manhã, apenas em 27 de janeiro de 2005, inicialmente com textos de Aristides
Soffiati e, mais tarde, também do próprio Aluysio, de Gustavo Landim Soffiati e Mateus
Nagime.25 Apesar de marcada por um desenvolvimento pouco linear, com colaborações de
periodicidade inconstante por parte de alguns autores, bem como uma ocasional adição e/ou
subtração de nomes de colaboradores do quadro de escritores, a atividade permanece até
hoje como um dos produtos oferecidos pelo jornal.

2.3 Crítica ou resenha?


23
Em matéria sobre o início da atividade de Aristides Soffiati — sob o pseudônimo Edgar Vianna de Andrade
— como crítico do jornal, intitulada "Crítico avesso às lentes fala o que rola nas telonas" e publicada em 30
de janeiro de 2005, seu autor, Aluysio Abreu Barbosa, afirma que o colaborador "chega pedindo a benção de
quem veio antes, na figura do jornalista José Amado Henriques, que desde a sua aposentadoria deixou uma
lacuna aberta na imprensa campista", denotando, assim, o exercício da apreciação cinematográfica por um
antecessor que, ainda que não tenha se mantido em atividade até o período escolhido para análise, nos parece
interessante registrar. Tal matéria pode ser encontrada nos anexos.
24
Texto obtido através do endereço
http://ibict.metodista.br/tedeSimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1537. Ver referências.
25
Procuramos entrevistar os críticos que avaliaram filmes para a Folha da Manhã no período citado, mas,
embora tenhamos contatado via telefone e e-mail os quatro avaliadores, não obtivemos as respostas a tempo
de incluí-las nesta monografia. Esperamos, contudo, que estejam disponíveis no blog
www.fmanha.com.br/blogs/quadrosporsegundo, que assinamos como atividade profissional e que
apresentamos como trabalho de conclusão de curso, na data mesma da defesa.

46
Em meio às versões digitais disponíveis em formato PDF26 dos jornais publicados
entre 11 de janeiro e 31 de março de 2008 a que tivemos acesso no arquivo do jornal Folha
da Manhã, consta a publicação de um total de 27 apreciações, que contemplam 25 filmes
diferentes, lançados, à época, nas salas do Cineritz27, em Campos. O trabalho exercido por
Aristides, Gustavo, Mateus e Aluysio considera os mais diversos tipos de filmes, de
produções nacionais a estrangeiras, de blockbusters a filmes de autores. Apresentamos
abaixo um quadro em que consta desde a data de veiculação até a nota de cada avaliação,
passando, obviamente, pelo longa-metragem em questão, além do título do texto e nome de
seu autor.

Data Título Filme Autor Avaliação


11/01 “Maix do mexmo” Xuxa: Um sonho de menina Gustavo 1
15/01 “Fantasias de amor” O amor nos tempos do cólera Aristides 4
18/01 “Os pestinhas” Alvin e os esquilos Gustavo 3
20/01 “Duelo: pipoca vs. cérebro” Alien vs. Predador 2: Réquiem Aluysio 2
22/01 “Civilização e barbárie” Eu sou a lenda Aristides 4
25/01 “Caçador de si” Os seis signos da luz Gustavo 3
27/01 “Julia Roberts de saia?” Conduta de risco Aluysio 3
29/01 “Os verdadeiros vampiros estão 30 dias de noite Aristides 4
de volta”
01/02 “Surpresa com o mesmo” Conduta de risco Mateus 4
02/02 “Aceite o que é bom” Coisas que perdemos pelo Gustavo 5
caminho
03/02 “Inglês para italiano ver” O gângster Aluysio 5
10/02 “Peca ao inocentar” Meu nome não é Johnny Mateus 2
15/02 “Falso encanto” Meu monstro de estimação Mateus 1
18/02 “A lenda de um achado” A lenda do tesouro perdido: Livro Gustavo 3
dos segredos
19/02 “Guerra na terra e no céu” O caçador de pipas Aristides 3
22/02 “Construção” Eu sou a lenda Mateus 3
26/02 “Quem com navalha fere com Sweeney Todd: O barbeiro Aristides 4
navalha será ferido” demoníaco da Rua Fleet
04/03 “Um Rambo pós-moderno” Rambo 4 Aristides 3
08/03 “Como numa pornochanchada” Sexo com amor Gustavo 2
11/03 “Salada completa” 10.000 AC Aristides 2
14/03 “Os russos estão chegando” Senhores do crime Mateus 4
15/03 “Vinte e sete vestidos mais um” Vestida para casar Gustavo 2
18/03 “Onde os fracos são fortes” Onde os fracos não têm vez Aristides 5
21/03 “Na natureza selvagem” Onde os fracos não têm vez Mateus 4
25/03 “Pequena deusa romana” Juno Aristides 4
28/03 “Filme de um homem só” Sangue negro Mateus 4
31/03 “Grande, para as crianças” Horton e o mundo dos quem! Gustavo 3

26
Portable Document Format, formato de arquivo digital criado pela Adobe Systems em 1993.
27
Atualmente, CineMagic.

47
Antes que tais textos sejam, por fim, observados à luz das teorias levantadas, com o
propósito de que possamos decifrar a real natureza do produto oferecido pelo jornal Folha
da Manhã, se faz necessário esclarecer o formato que será utilizado nos próximos
subcapítulos. Dada a natureza homogênea das apreciações e à repetição de padrões em suas
confecções, nos foi possível agrupá-las em dois grandes blocos. Tal formato pouco
privilegia, é verdade, o aprofundamento da crítica ao trabalho desenvolvido pelos editores e
colaboradores do periódico. Contudo, tal fato não representa qualquer prejuízo à pesquisa,
visto que a repetição de modelos apenas nos levaria a igual sucessão de observações
idênticas. Assim sendo, optamos por traçar comentários gerais, que evidenciem
características comuns a todos os trabalhos analisados pelo bloco em questão, nos valendo
mais que ocasionalmente de excertos dos mesmos para sustentar nossas afirmações.

2.3.1 Resenha

A primeira apreciação cinematográfica28 de 2008 a constar do arquivo digital do


jornal Folha da Manhã é datada do dia 11 do mês de janeiro. No texto denominado “Maix
do mexmo”, Gustavo Landim Soffiati analisa o filme Xuxa: Um sonho de menina,
protagonizado por Maria das Graças Meneghel, a popular apresentadora de televisão Xuxa,
cuja carreira se fez na Rede Globo. Ao se apoiar nas conhecidas gafes da protagonista longe
da ficção, em especial naquelas cometidas durante entrevista dada ao também apresentador,
humorista e ator Jô Soares – cuja tendência a se enaltecer em detrimento das incapacidades
de seus entrevistados também é notória – em seu Programa do Jô, Gustavo deixa de lado a
análise mais profunda da obra, se restringido a afirmar apenas que a produção, direcionada
aos meninos e meninas de pouca idade, “subestima a inteligência deles”. À constatação, se
juntam o evidenciamento de chavões do gênero, como as “mensagens” que contêm lições
de moral e a negativa de que o filme represente, como Xuxa afirmou em entrevista a uma

28
As críticas e resenhas se apresentam, aqui, respeitando a forma em que foram originalmente veiculadas.
Quaisquer eventuais quebras das regras da língua portuguesa se devem unicamente aos seus autores e aos
então editores da Folha da Manhã.

48
revista especializada em cinema, “uma virada na [sua] carreira cinematográfica”,
justamente por ostentar muitas das já conhecidas características que se fazem presentes em
sua filmografia, sem citá-las claramente, deixando apenas subentender o reaproveitamento
de clichês.
Aliás, a preocupação com as convenções também transparece ao longo do trabalho
do autor, que utiliza sua presença ou ausência como trampolim para a construção – e, por
vezes, mesmo como guia – do texto, característica evidenciada por passagens como a
seguinte:

Abusando desses planos, numa narrativa em que os eventos nem sempre


são apresentados cronologicamente, Bier torna intimista e até meio
surpreendente o que poderia ser apenas mais um drama sobre as
dificuldades de superação da perda de alguém muito querido. Mas não é
só isso. 29

E a seguinte:

O desdobramento disso é previsível para quem já assistiu comédias


românticas. Para não quebrar o maniqueísmo invariavelmente presente em
qualquer produção do gênero, Tess dá à boazinha Jane motivos de sobra
para que a irmã mais velha a desmascare. Como o bem sempre deve
vencer o mal, pode-se esperar que a ação de Jane resulte na redenção de
Tess. Como em toda comédia romântica, um ponto inicial de equilíbrio é
desestabilizado por elementos externos a ele – mas apenas para ser
restaurado até o final da narrativa. Na fita em tela, tais elementos são Tess
e Kevin que, a certa altura, expõe Jane como encalhada numa matéria de
jornal de página inteira. O desfecho da trama depende, portanto, da
capacidade de Jane se desencantar de algum modo com sua condição de
eterna dama de honra. 30

Considerando estrutura do texto, a profundidade das análises e o enfoque restrito do


olhar do autor, e comparando-se isso com todas as características apontadas para resenha e
crítica por todo o referencial teórico, é possível afirmar que tais textos se tratam da primeira
opção. Os mesmos princípios foram utilizados pelo autor em “Os pestinhas”, texto de 18 de

29
Excerto de “Aceite o que é bom”, do filme Coisas que perdemos pelo caminho, publicada em 2 de
fevereiro. Ver anexos.
30
Excerto de “Vinte e sete vestidos mais um”, do filme Vestida para casar, publicada em 15 de março.

49
janeiro em que analisa o filme Alvin e os esquilos. Ali, os apontamentos do autor voltam a
recair sobre a presença de mensagens – no caso, “sobre responsabilidade, paternidade,
riscos da fama e importância da infância” –, ainda que ensaie uma análise sobre os atos que
compõem o audiovisual e se mostre agradado pelo uso da computação gráfica. De fato, a
análise da moral é uma constante no trabalho de Gustavo, como as passagens abaixo
deixam claro.

Nem é preciso dizer quem vence a batalha do bem contra o mal em jogo
no filme a partir desse avanço das trevas. Mas o espectador – quiçá mais
até que o leitor dessas linhas – observará que há outros confrontos, além
desse, em curso ao longo da narrativa: os de Will com sua família, com os
mais velhos, com outros adolescentes e com ele mesmo. Trata-se dos
conflitos enfrentados durante a puberdade. Ao superar a dificuldade que
tem de lidar com as meninas (mais especificamente com Maggie (Amelia
Warner), de uma beleza capaz de intimidar qualquer marmanjo), o rapaz
perceberá que seu maior inimigo é ele mesmo. Para o público, a dica
então, é não confiar, como Will (apenas no início da trama), que ele é o
sétimo filho do sétimo filho.31

Ou ainda “Mais do que na outra aventura de Ben, essa confusão parece ter algo de uma
certa concepção pós-moderna, ao sugerir serem as verdades históricas meras construções
discursivas”.32

E também:

Em primeiro lugar, o sexo é utilizado como forma de representar o poder


– ou, antes, um poder: o masculino. A pulada de cerca de Pedro tem como
compensação um prazeroso exame ginecológico a que Mara se submete, e
as experiências extraconjugais dos dois garantem novo ânimo ao
relacionamento do casal. A de Jorge, por fazê-lo se apaixonar por Luísa,
resulta na decisão de que a mulher do escritor decida se separar dele.
Entretanto, como notará o espectador mais atento, ao final da projeção, os
vários casos amorosos de Rafael, dos quais Paula tem conhecimento,
fazem dele um garanhão, alguém a ser ovacionado pela platéia.33

31
Excerto de “Caçador de si”, do filme Os seis signos da luz, publicada em 25 de janeiro.
32
Excerto de “A lenda de um achado”, do filme A lenda do tesouro perdido: Livro dos segredos, publicada
em 18 de fevereiro.
33
Excerto de “Como numa pornochanchada”, do filme Sexo com amor?, publicada em 8 de março.

50
Bem como:

Ainda que direcionado, sobretudo, às crianças, “Horton” anda


interessando adultos – muito por conta de mensagens que se poderiam
extrair dele. Afora a leitura ecológica que a animação propicia (o grão de
pólen como a pálida mancha azul que é o planeta Terra em relação ao
universo), uma frase repetida ao longo de toda a projeção pelo elefante,
em defesa de qualquer pessoa, independente do tamanho que tenha, vem
sendo interpretada, principalmente por cristãos, como uma condenação ao
aborto.34

Tal artifício é pouco utilizado pelos demais colaboradores, que mais afirmam, tanto
no aspecto técnico quanto contextual, que interpretam. Por exemplo, Mateus Nagime – cuja
primeira contribuição surge, no ínterim escolhido, apenas em fevereiro – faz da análise da
técnica sua ceara, trabalhando principalmente as características da interpretação, direção,
fotografia, trilha sonora e do roteiro, prezando especialmente pela coesão e coerência deste,
ainda mais que a inovação, embora não a deixe de considerar um mérito. Observemos:

Toda a história é conduzida com um surpreendente controle pelo diretor


estreante Tony Gilroy, com a ajuda do experiente diretor de fotografia
Robert Elswit, que aqui cria um clima frio e distante, abusando do azul. A
trilha sonora, composta por James Howard, também eleva o filme.
Mas tudo fica parecendo muito similar ao filme que ajudou a levar
Clooney ao estrelato: “Syriana”, de dois anos atrás. Tanto a história, como
o clima, como o ator.
Claro que Clooney entrega um ótimo trabalho, mas não sentimos que
estamos assistindo algo realmente incrível, e sim, um grande filme, mas
que não tem muita coisa inédita a acrescentar.
Porém, existe um brilho de genialidade no filme, e este é dado por Tilda
Swinton. A composição que a atriz faz para sua personagem, uma mulher
atormentada e disposta a tudo por seu sucesso profissional.35

Surge, então, a cobrança com o roteiro:

34
Excerto de “Grande, para as crianças”, do filme Horton e o mundo dos quem!, publicada em 31 de março.
35
Excerto de “Surpresa com o mesmo”, do filme Conduta de risco, publicada em 1 de fevereiro.

51
Não há nada que justificar na trajetória de João Guilherme Estrela e isso
acaba levando o filme para mais baixo ainda. As personagens só servem
para levar a trama adiante, não parecendo ter nenhuma personalidade. A
juíza interpretada por Cássia Kiss é o maior exemplo. Entra na tela, como
uma “juíza durona”, que não mede esforços pra seguir os trâmites da lei e
punir os criminosos. Mas logo ao ver João Estrela, muda de idéia e decide
partir para um caminho humanitário. Devemos realmente acreditar
nisso?36

O que também está presente abaixo, junto de questionamentos a respeito da edição


do longa-metragem ora analisado:

O filme demora para iniciar a história, mas mesmo assim desenvolve


pouco o personagem de Agnus, e a sua relação com o monstro não é nada
verossímil. Ao contrário, tudo que se passa na tela, nos faz lembrar que é
apenas um (fraquíssimo) filme. Toda a seqüência final também parece um
tanto inacreditável, além de usar um contexto de flashback de forma
completamente inútil, apenas para usar uma pequena piadinha que poderia
muito bem ter passado sem, além de em certa maneira tirar todo o encanto
que a história poderia e tentou ter.37

Da mesma maneira que na seguinte passagem:

Anderson [...] acaba deixando muito de lado a relação de Plainview com o


filho, que em alguns momentos parece ter sido o mote de todo o caminho
para a resolução. As duas últimas cenas, aliás, são geniais, seja nos
diálogos e atmosfera da primeira e em toda a ambientação kubrickiana da
última, com também um conflito longamente esperado, mas parecem de
certa maneira pertencer a outro filme, não cabendo com todo o peso de
quase duas horas e meia que Anderson constrói antes.38

O quadro de referências cinematográficas de Mateus surge, também, como um outro


diferencial em suas apreciações, possibilitando ao leitor reconstituir o diálogo existente

36
Excerto de “Peca ao inocentar”, do filme Meu nome não é Johnny, publicada em 10 de fevereiro.
37
Excerto de “Falso encanto”, do filme Meu monstro de estimação, publicada em 15 de fevereiro.
38
Excerto de “Filme de um homem só”, do filme Sangue negro, publicada em 28 de março.

52
entre variados filmes tanto do diretor em pauta – de maneira cronológica e evolutiva –
quanto entre seu trabalho e aqueles que o influenciaram, característica que, já lembrada no
capítulo 1, é apontada por Machado de Assis como parte do arsenal de todo bom crítico.
Vejamos neste exemplo:

Assim como o homem tem um desejo de construir coisas, ele também tem
um impulso de destruirlas. Não cabe a mim analisar o porque, mas o
cinema se aproveitou muito bem desta faceta da natureza humana, de
várias maneiras. Criando um super mundo para denegrir a essência do
caráter humano (em “Metrópolis” de Fritz Lang), ou ainda usando as
grandes cidades como vítimas da própria evolução (“Fuga de Nova York”
ou “O Dia Depois de Amanhã”).
Talvez seja esta a grande diferença do cinema americano e do cinema
europeu: Enquanto para destruir suas cidades, Hollywood precisa recorrer
a monstros ou desastres dignos de ficção científica (ou atualmente, de
análises ambientais), o cinema europeu basta mirar suas lentes para o
passado e relatar as experiências da segunda guerra mundial, como faz
inclusive “Desejo e Reparação”, indicado para o Oscar de melhor filme
deste ano, ainda inédito na cidade.
Essa tendência de Hollywood já é antiga (“King Kong” é o marco do
gênero e data de 1933), mas sempre vemos novos exemplos, até como
reflexo do avanço dos efeitos especiais.39

Assim como neste:

A obra-prima “Marcas da Violência” tinha Ed Harris, William Hurt


(indicado ao Oscar de ator coadjuvante mesmo aparecendo em apenas
uma cena) e Viggo Mortensen. Viggo obviamente gostou da experiência,
já que volta em “Senhores do Crime” (“Eastern Promises”, 2007,
EUA/RUN/CAN), na companhia de Naomi Watts, Vincent Cassel e
Armin Mueller-Stahl em um olhar único sobre a presença da máfia russa
em Londres. 40

E neste:

39
Excerto de “Construção”, do filme Eu sou a lenda, publicada em 22 de fevereiro.
40
Excerto de “Os russos estão chegando”, do filme Senhores do crime, publicada em 14 de março.

53
Todo o ritmo talvez soará mais fácil para quem já é familiarizado com a
obra dos diretores. Muitos aspectos são retirados / inspirados em filmes
anteriores, como a figura do xerife, que se assemelha muito àquela vivida
por Frances McDormand em Fargo. 41

Porém, nas avaliações de Aristides, a capacidade de cruzar informações – muitas


das quais, a primeira vista, não guardam qualquer tipo de afinidade entre si – dá um salto
adiante, deixando as correlações puramente cinematográficas para agregar sentidos sociais,
históricos e contextuais consideravelmente mais amplos. É dele a maior parte das críticas
publicadas pelo jornal Folha da Manhã, assunto abordado na próxima sessão do presente
subcapítulo. Porém, mesmo assim, devido ao que presumimos ser fruto da necessidade de
um formato ou abordagens distintos ou da possível ausência de recursos – como tempo ou
conhecimentos específicos sobre o assunto, o que o autor comumente supera com pesquisas
ou analogias que engrandecem o texto à sua maneira, apesar de se evidenciarem, por vezes,
como não tão profundas por pequenas falhas nas referências coletadas 42 – para desenvolver
a análise e prover-lhe de maior profundidade, Aristides produz, também, resenhas. Estas
surgiram, segundo os nossos critérios, durante o período que compõe o recorte temporal,
pontualmente uma vez por mês, com as apreciações “Os verdadeiros vampiros estão de
volta”, do longa-metragem 30 dias de noite, publicada em 29 de janeiro; “Guerra na terra e
no céu”, sobre O caçador de pipas, de 19 de fevereiro, e “Pequena deusa romana”, no qual
avalia Juno, em 25 de março.
Em todos os três textos, Aristides se resume a contextualizar de forma breve e não
muito profunda o leitor, enumerar realizadores, como diretor e elenco, comentar a sinopse –
característica que, por tornar o leitor ciente do que se trata o audiovisual ora analisado é
onipresente, seja em resenha ou crítica –, e ressaltar pequenos bons e maus momentos.
Como exemplo dessas características, podemos citar a seguinte passagem:

Não é do século 19 que vêm os vampiros. A lenda é bem antiga e está


presente em várias civilizações. No ocidente, quem deu vida consistente
ao vampirismo foi Bram Stoker, com o romance “Drácula”, publicado em
1897. A inspiração vem do príncipe Vlad Tepes, nascido em 1431. Rei de
um país correspondente à atual Romênia, com o título de Vlad III, ele

41
Excerto de “Na natureza selvagem”, do filme Onde os fracos não têm vez, publicada em 21 de março.
42
No corpus teórico não ocorre esse tipo de problema, embora o mesmo já tenha sido notado na forma de
nomes incorretos ou dados trocados.

54
passou à história como um homem que tratava seus súditos e seus
inimigos com extrema crueldade, decepando-lhes as mãos e os empalando
vivos.
Seu pai, Vlad II, era membro da uma sociedade cristã chamada Ordem do
Dragão, criada por nobres para defender a cristandade dos turcos
otomanos. Dragão, em romeno, é dracul. Draculea significa filho do
dragão. Vlad III ficou conhecido como Draculea, daí Drácula.
[...]
Sam Raimi teve a intenção de transportar os quadrinhos para o cinema,
mas optou por ficar como produtor, junto com Robert G. Tapert, deixando
a direção a cargo de David Slade. O roteiro foi escrito pelo próprio Steve
Niles com a colaboração de Stuart Beattie e Brian Nelson. 43

Além desta:

Juno MacGuff (Ellen Page) é uma adolescente de 16 anos que, numa


relação meio aguada com Paulie Bleeker (Michael Cera) — como é
comum entre adolescentes — acaba grávida. Ela é uma menina
inteligente, falante, determinada. Diante de um fato consumado, pensa em
aborto, mas desiste da idéia nas dependências da clínica. Então, com ajuda
da amiga Leah (Olivia Thirlby), procura nos jornais um casal que deseja
adotar a criança ainda por nascer e acha. 44

E desta: “Tratando-se de um livro alentado, não foi possível passar para o cinema todos os
detalhes da história, mas o essencial se manteve”.45
Enfim, apesar de apresentarem alguns daqueles aspectos que o escritor Machado de
Assis classifica como seminais à boa execução da atividade crítica, é possível afirmar que a
abordagem dos mesmos nos textos até então citados comumente paira sobre sua superfície,
figurando apenas como justificativas do gosto, exprimido através da avaliação em nota, e
jamais esmiuçado em seus pormenores, não indo muito além daquilo que Afrânio Coutinho
classifica como estando “à margem” da obra analisada. Vale ressaltar, ainda, que quase
todas – senão todas – as resenhas realizadas no período estudado obedecem à já citada
estrutura organizada por Coutinho para o gênero, abordada no capítulo 1.

2.3.2 Crítica

43
Excertos de “Os verdadeiros vampiros estão de volta”.
44
Excerto de “Pequena deusa romana”.
45
Excerto de “Guerra na terra e no céu”.

55
A crítica trabalha analogias mais profundas; resgata histórias, conceitos e contextos
que abriram caminho para a – ou se refletiram na – obra ora apreciada; contrapõe idéias e
revisa carreiras. Nela, o diálogo toma amplitude, a troca traçada entre diferentes produções
e mídias distintas é evidenciada de forma mais contundente e ligações com conhecimentos
e pensamentos por vezes alheios ao fazer cinematográfico são estabelecidas, exibindo uma
rede de construções que vasculham o filme em sua profundidade, tocando sua essência e
desvendando parte das intenções de seus realizadores, seja nos complexos debates que
costumam subjazer às obras do chamado cinema de arte ou nos recados mais simples e
diretos comumente lançados pelo cinema de entretenimento. De fato, como a argumentação
perpassa níveis que não o da mera opinião, a sentença final sobre a obra analisada, seja ela
boa ou ruim, não atua como guia para todo o texto. Na verdade, a valoração do trabalho
fornece o estímulo necessário ao início da apreciação, que se faz sobre aspectos múltiplos,
de forma analítica e reveladora. Tem, assim, uma finalidade que ultrapassa a instrução para
a fruição, mas visa, também, à orientação do próprio autor da obra, no caso, o cineasta. Ali
se sugere, censura e elogia, mas, sem perder nunca de vista forma, técnica e conteúdo.
Muito embora nenhum dos textos publicados pelo jornal Folha da Manhã consiga
abarcar todas as atribuições já elencadas pelo Bruxo do Cosme Velho e demais teóricos
citados com igual sucesso, o trabalho desenvolvido por Aristides Soffiati e Aluysio Barbosa
são aquilo que mais se aproximam do modelo de crítica por eles propostas. E a forma como
ambos os autores trabalham os conceitos já levantados no capítulo 1 e relembrados no
parágrafo acima pode ser constatada em diversas ocasiões durante a leitura das colunas
Cinematógrafo e Caixa de luzes.
Por exemplo, a habilidade de Aristides em evidenciar e relacionar filmografias,
bibliografias, biografias e seus elementos comuns pode ser observada em passagens como a
seguinte:

Os intelectuais e artistas têm dessas coisas. Eles acalentam desejos


irrealizáveis e, para aplacá-los, externam fantasias em suas obras. Gabriel
García Márquez revelou esta fantasia em seu livro O amor nos Tempos do
Cólera, que serviu para o roteiro do filme com o mesmo nome (Love in
the Time of Cholera, EUA, 2007), dirigido por Mike Newell. Este livro
não foi o único em que García Márquez revela seus desejos eróticos.

56
Também em Memórias de Minhas Putas Tristes, ele narra a estória de um
homem que sempre viveu em prostíbulos, até que, aos noventa anos,
apaixona-se por uma adolescente. A epígrafe que figura neste livro do
escritor colombiano foi extraída de A Casa das Belas Adormecidas, do
romancista japonês Yasunari Kawabata. Os dois livros apresentam
incrível semelhança. A casa das belas adormecidas era um bordel
freqüentado por homens da terceira idade que se deitavam com
adolescentes adormecidas com tranqüilizantes só para contemplar a beleza
delas.
Mas esta fantasia erótica está em outros livros. Lolita, de Vladimir
Nabokov, talvez seja o mais conhecido. No Brasil, Benedicto Monteiro,
em A Terceira Margem, dá voz a um homem rude da Amazônia para falar
dos filhos que teve com mulheres de diferentes variedades fenotípicas:
uma negra, uma índia, uma japonesa, uma árabe etc. Por seu turno,
Rubem Fonseca escreveu o conto “Pierrô da caverna”, encerrado no livro
O Cobrador, tendo como personagem central um escritor de cinqüenta
anos, prematuramente envelhecido, que mora só num apartamento vizinho
a um casal com uma filha de doze anos. É uma menina linda e muito
desenvolvida para a idade. Entre o escritor e ela, nasce um romance
picante. O homem mantém seu relacionamento com outra mulher e acaba
se envolvendo também com a mãe da adolescente. Trata-se de um tema
recorrente entre os escritores de meio ou de terceira idade.46

Bem como a adiante:

George Orwell previu que, em 1984, a Terra estaria dominada por uma
ditadura impessoal controlada pelo Grande Irmão. Felizmente, ela não
ocorreu. Nem por isto, deixouse de pensar numa espécie de fascismo
mundial, agora jogado cada vez mais para o futuro. O mesmo pode-se
dizer do fim do mundo por três causas diversas: uma epidemia arrasadora
(tão em voga no cinema), uma guerra nuclear (já meio desaquecida com o
fim da Guerra Fria) e um melancólico declínio, com a crise ambiental
planetária (também bastante explorada pela literatura e pelas artes visuais,
inclusive pelo cinema).
É bem verdade que temos o HIV, o Ebola e uma superbactéria variante
específica do “Staphylococcus aureus” como ameaças. Todavia, elas
ainda não representam um risco de exinção em massa para a humanidade.
Como o futuro de Matheson foi transferido para 2012, pode ser que algo
catastrófico aconteça até lá.47

A subseqüente:

46
Excerto de “Fantasias de amor”, do filme O amor nos tempos do cólera, publicada em 15 de janeiro.
47
Excerto de “Civilização e barbárie”, do filme Eu sou a lenda, publicada em 22 de janeiro.

57
É inegável o talento de Tim Burton. Ele consegue manter seu universo
fabuloso, gótico e mágico no cinema norteamericano, cada vez mais
dominado por um realismo sobre-humano das grandes produções e dos
estonteantes efeitos especiais. Inegáveis também as qualidades de Johnny
Depp como ator, principalmente sob a batuta de Burton. Ambos se
completam e se superam cada vez mais.
No entanto, algumas considerações devem ser tecidas sobre “Sweeney
Todd - O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” (“Sweeney Todd: The
Demon Barber of Fleet Street”, EUA/Inglaterra, 2007), o mais recente
filme de Burton e Depp. A história de Sweeney Todd já teve sete
adaptações para o cinema antes da atual. As anteriores foram “Sweeney
Todd” (1926), “Sweeney Todd” (1928), “Sweeney Todd: The Demon
Barber of Fleet Street” (1936), “Bloodthirsty Butchers” (1970), “Sweeney
Todd: The Demon Barber of Fleet Street” (1982), “O Barbeiro de
Londres” (1998) e “Sweeney Todd” (2006), as três últimas para a TV.
Embora não conheça todas, creio que nenhuma ganhou o clima soturno e
fantasioso conferido por Tim Burton. Até o gênero do filme se torna
difícil de caracterizar. Drama? Comédia? Drama cômico ou comédia
dramática? Ele classificado como musical. Mas musical pode ser comédia,
drama ou outro gênero qualquer.
O risco que corre Burton não é o da sua linguagem própria e peculiar, mas
o de se aliar aos mesmos artistas com bastante freqüência. Helena
Bonham Carter, que faz o papel da Sra. Lovett, já trabalhou com Burton
em “Planeta dos Macacos” (2001), “Peixe Grande e Suas Histórias
Maravilhosas” (2003), “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (2005) e “A
Noiva-Cadáver” (2005). Quanto a Depp, nem se fala. Ambos já estiveram
juntos em “Edward Mãos-de-Tesoura” (1990), “Ed Wood” (1994), “A
Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” (1999), “A Fantástica Fábrica de
Chocolate” (2005) e “A Noiva-Cadáver” (2005). No fundo, no fundo,
Depp volta reapresentando Edward Mãos-de-Tesoura, agora com o nome
de Benjamin Barker/Sweeney Todd, mau e usando navalhas nas mãos em
vez de tesouras, fazendo barbas em vez de cabelos. Estas alianças não são
as únicas no cinema. Basta lembrar Werner Herzog com Klaus Kinski.
Por outro lado, Johnny Depp vem assumindo com tanto empenho seus
papéis de personagens exóticos que parece aprisionado neles. Parece que
Tim Burton contribuiu muito para desenvolver este seu lado meio
caricato. Até em filmes em que este perfil não é exigido, lá estão os
trejeitos de Depp, como, por exemplo, em “Enigma do Espaço” (1999),
“Do Inferno” (2001), “Era uma vez no México” (2003), “Janela Secreta”
(2004) e “O Libertino” (2004). Sem falar no capitão Jack Sparrow, de os
três “Piratas do Caribe”. Esta dimensão parece dificultar as interpretações
de Depp em outros filmes. Seu nome foi indicado para o Oscar de melhor
ator deste ano, mas ficou difícil competir com o bissexto e camaleônico.48

E a ulterior:

48
Excerto de “Quem com navalha fere com navalha será ferido”, do filme Sweeney Todd: O barbeiro
demoníaco da rua Fleet, publicada em 26 de fevereiro.

58
Que o espectador coloque “O despertar do mundo”, “Um milhão de anos
AC”, “A guerra do fogo” e “Apocalypto” num liquidificador, bata bem e
coloque tudo num estúdio. O resultado aproximado será “10.000 AC”
(“10.000 BC”, EUA/Nova Zelândia, 2008), o último filme do intrépido
cineasta alemão-norte-americano Roland Emmerich. Autor dos
conhecidos – mas discutíveis – “Independence Day” (1996), “Godzilla”
(1998) e “O Dia depois de amanhã” (2004), ele parte agora para a segunda
refilmagem de “O despertar do mundo” (“One million B.C”, 1940),
dirigido por Hal Roach e Hal Roach Jr. e tendo como ator principal Victor
Mature em início de carreira A primeira refilmagem foi dirigida por Don
Chaffey, com o nome de “Um milhão de anos AC” (“One million years
B.C.”, 1966), apresentando ao mundo a estonteante Rachel Welch num
sumário biquíni a transitar entre dinossauros.49

Outra das capacidades mais marcantes de Soffiati pai está em abstrair referências e
conceituar idéias de maneira teoricamente embasada, trabalhando contextos históricos,
sociais, acadêmicos e/ou literários que, propositalmente ou não, gravitam ao redor da obra,
segundo prova o texto abaixo, que reproduzimos quase na íntegra devido à sua coesão:

Muita bobagem vem sendo dita e escrita sobre a pós-Modernidade, a


começar por confundi-la com pós-modernismo. Talvez eu também
escreva bobagem sobre ela aqui. Os pensadores da pós-Modernidade
sustentam que não estão propondo uma superação da Modernidade, mas
sim analisando uma realidade já existente, que denominam de pós-
Moderna. Outros entendem que a pós-Modernidade é a fase atual da
Modernidade e a denominam de hiper-Modernidade, como o antropólogo
Marc Augé. Mas, uma coisa é certa: a pós-Modernidade não é um
momento da Modernidade mais feliz que os anteriores. Agora, a crença na
razão, na ciência e na tecnologia esmoreceu não apenas entre os
intelectuais, mas igualmente entre o povo. A esperança de redenção
prometida pelo Cristianismo, pelo Liberalismo e pelo Socialismo está em
crise. No geral, dizem os analistas da pós-Modernidade, principalmente
Jean-François Lyotard, que as ideologias, as utopias e as grandes teorias
explicativas falharam. As pessoas voltam às antigas crenças, abandonam
as grandes religiões, apelam para práticas antigas ou novas na tentava de
resolver seus problemas pessoais, desconfiam das soluções que passam
pela sociedade mobilizada e se sentem mais à vontade em pequenos
grupos de rua e de bairros. A grande utopia – universal e abstrata – deu
lugar à pequena utopia – local e concreta.
Os três filmes anteriores de Rambo [“Rambo – Programado para Matar”
(1982), “Rambo II” (1985) e “Rambo III” (1988)] mostram um guerreiro
preparado para matar sem piedade e senso crítico em defesa de uma causa

49
Excerto de “Salada completa”, do filme 10.000 AC, publicada em 11 de março.

59
e de uma pátria. Ele pode hesitar quanto às expectativas que lhe depositam
na Guerra do Vietnã e na luta a favor de resistência afegã contra a União
Soviética. John Rambo estava inserido no contexto da Guerra Fria e
defendia os valores da “democracia” norte-americana contra o
“comunismo” soviético. Mesmo a contragosto, Rambo lutava não por si,
mas por uma causa. No entanto, os norte-americanos apoiaram os telebãs
contra os soviéticos. O novo governo afegão deu abrigo a Osama Bin-
Laden, que o governo de George W. Bush derrubou depois dos atentados
às Torres Gêmeas e ao Pentágono, perpetrados pela organização terrorista
Al-Qaeda.
Rambo já está aposentado e esquecido. Ele agora vive no norte da
Tailândia, sem se interessar por política, por seu país e por sua família.
Seu trabalho – desprovido de qualquer nobreza – consiste em capturar
serpentes para espetáculos com seres humanos. Então, aparecem
evangélicos humanitários e assistencialistas norte-americanos tentando
contratá-lo para leválos de barco à Birmânia a fim de prestarem
assistência às vítimas do regime despótico do país, hoje conhecido como
Mianmar. Eles crêem na sua causa. Rambo não mais. Eles querem
continuar com seu trabalho, na esperança de que é possível mudar o
mundo por ação individual ou coletiva. Rambo, contudo, diz que o mundo
é como é e que não muda por ações pessoais ou de grupos, mas por si
mesmo. É o que diz Clément Rosset, um grande teórico da pós-
modernidade, com seu aquiagorismo.
Mas Rambo acaba indo ao encontro deles depois de saber que foram
capturados pelo exército ditatorial. Não mais por uma grande causa, mas
porque se sentiu atraído por uma mulher que estava no grupo humanitário.
Emil Michel Cioran, um pensador romeno-francês que escreveu seu
primeiro livro em 1947, ano em que o historiador inglês Arnold Toynbee
criou a expressão pós-Modernidade, num dos seus muitos aforismos, disse
que mais vale morrer por uma mulherzinha qualquer do que por uma
causa revolucionária ou nacionalista. Ele é pioneiro da pósmodernidade. E
é isto que Rambo faz. Nada o moveria mais, depois de todas as suas
experiências como guerreiro, do que um motivo bem pessoal. Ele se
descobre como um lutador que gosta da guerra e da violência, e que todo
seu passado no Vietnã e no Afeganistão não visou à defesa de um país ou
de uma ideologia, mas sim a expressão do seu ímpeto guerreiro.50

E o inferior:

Para vacinarse contra o determinismo vigente no século 18 europeu, é


salutar ler “Jacques, o fatalista”, de Diderot, e “Cândido”, de Voltaire.
Ambos os romances, escritos por racionalistas convictos, valorizam o
acaso, o imprevisível, o inesperado, embora sempre haja um personagem
que explique eventos aleatórios como fatalidade. Jacques, o fatalista,
entende tudo o que ocorre no mundo como determinado. No entanto,
Diderot o coloca como personagem caricato. O romance começa e termina

50
Excerto de “Um Rambo pós-moderno”, do filme Rambo 4, publicada em 4 de março.

60
no meio. Não se sabe de onde e para onde vêm e vão Jacques e seu amo.
O fatalismo de Jacques é pura interpretação dos acontecimentos por um
homem. O mesmo acontece com Cândido. Seu mestre, o professor
Pangloss, acredita que vivemos no melhor dos mundos, apesar de todas as
catástrofes. Cândido acredita no otimismo de Pangloss, mas se indaga,
com dúvidas: “se vivemos no melhor dos mundos, como será o pior?”.
De todos os irmãos cineastas – Taviani, Hughes, Wachowiski, Pang –, os
meus preferidos são os Coen. Ambos filmam roteiros originais e
adaptados pelo viés das teorias da física quântica e do caos. Uma ou mais
pessoas traça um plano perfeito, o crime perfeito, a ser colocado em
prática, assim como os meteorologistas, na verdade climatologistas
conservadores, não levam em conta dados novos a afetar o clima da Terra.
Contudo, pequenos detalhes vão sendo incorporados ao plano em
andamento e o transformam profundamente. O resultado obtido é bem
diferente do esperado ou até mesmo oposto dele. É o que se pode observar
nos filmes “Fargo” (1996), “O grande Lebowski” (1999) e “O homem que
não estava lá” (2001), para não citar toda a filmografia dos irmãos. Os
planejadores esperam que tudo dê certo, mas tudo dá errado, como em
Jacques e Cândido.
Creio que nenhum filme dos Coen seja mais parecido a Jacques, o
fatalista, que “Onde os fracos não têm vez” (“No country for old men”,
EUA, 2007), com também roteiro deles adaptado de livro de Cormac
McCarthy, de produção dos dois, em colaboração de Scott Rudin, e edição
de ambos, ocultos sob o pseudônimo de Roderick Jaynes. O título original
é baseado no poema "Sailing to Byzantium", de W.B. Yeats.51

Já Aluysio Abreu Barbosa demonstra grande conhecimento do desenvolvimento do


cinema através da História, bem como de fatos da biografia de muitos de seus atores,
atrizes, diretores, produtores, compositores e estúdios e é por esse conhecimento que se
pauta ao desenvolver suas críticas, que muito refletem essas trajetórias. No texto adiante,
discursa a respeito de duas franquias consagradas do cinema de ficção científica e dos
talentos dos vários diretores que por elas passaram.

Deixei a animação por conta da análise do Gustavo Soffiati, optando pela


continuação do encontro entre os dois personagens da ficção científica,
que povoam o imaginário dos cinéfilos desde o final dos anos 70 e final
dos 80. “Alien, o 8º passageiro” (“Alien”, EUA, 116 min.), de Ridley
Scott é de 1979; enquanto “Predador” (“Predator”, EUA, 106 min, com
Arnold Schwarzenegger), de John Mc Tiernan , é de 1987.
Sem sombra de dúvida, dois clássicos do gênero, sobretudo pela mistura
bem dosada da ficção científica com suspense e ação, “Alien” gerou uma
continuação do mesmo nível, “Aliens, o resgate” (“Aliens”, com o título
original passando apenas ao plural na seqüência, EUA, 137 min.), pelas

51
Excerto de “Onde os fracos são fortes”, do filme Onde os fracos não têm vez, publicada em 18 de março.

61
mãos de James Cameron, em 1986. A bem da verdade, o sucesso do
segundo filme foi tanto, que gerou até uma reprise, nas salas de cinema do
mundo, do original de sete anos antes. Em Campos, por exemplo, embora
“O resgate” tenha passado no Goitacá, o “8º passageiro” foi reprisado no
Capitólio.
Embora, a partir desses três primeiros títulos, não tenham havido direções
à mesma altura (menos conhecido e oscarizado que o inglês Ridley e que
o canadense Cameron, o estadunidense McTiernan já foi considerado,
pela tradicional revista francesa Cahiers du Cinéma, como um dos
cineastas mais originais de Hollywood), nenhuma das duas franquias
deixou de vender pipoca e prender o espectador na poltrona com a
continuação de Predador (“Predador 2 – A caçada continua”, de Stephen
Hopkins, com Danny Glover, EUA, 1990, 108 min.), com as outras duas
de Alien (“Alien 3”, estréia de David Fincher na direção, EUA, 92, 115
min; e “Alien – A ressurreição”, de Jean-Pierre Jeunet, EUA, 1997, 108
min, tido como o mais fraco da série, toda ela estrelada pela incansável
Sigourney Weaver) e na primeira versão do encontro de ambos: “Alien vs.
Predador”, de Paul W. S. Anderson, EUA, 2004, 87 min.
Aliás, é em “Predador 2”, no final do filme, quando Danny Glover entra
na nave do Predador e vê, entre os crânios expostos como troféus, um
muito similar ao do monstro Alien, que o encontro é proposto.52

Abaixo, revê a carreira da atriz Julia Roberts.

Julia Roberts estourou, internacionalmente, como a prostituta-Cinderela


de “Uma linda mulher” (“Pretty Woman”, de Garry Marshall, com
Richard Gere, EUA, 119 min.), em 1990. Embora não dotada de padrões
clássicos de beleza (teve, por exemplo, que recorrer a dublê de bunda, na
cena do banho de banheira), seus longos cabelos cacheados e sua bocarra
seduziram não só o público masculino, mas também o mulherio mundo
afora, que juntos fizeram dela o maior cachê feminino de Hollywood.
Garantida a grana, a irmã caçula de Eric Roberts buscou distinguir-se
deste pelo comportamento pessoal menos complicado, ainda que Steven
Spielberg, quando dirigiu “Hook, a volta do Capitão Gancho” (“Hook”,
EUA, 135 min.), em 1991, tenha confessado que a intérprete da fada
Sininho foi a mala do set. Com a insistência dos chatos, ela abraçou a
obsessão de provar que era uma atriz de verdade, dissociando-se também
da canastrice que sempre marcou as atuações do irmão.
Nos anos seguintes, em meio a produções pipoca, Julia testou suas
maiores pretensões cênicas. Com o diretor-cult Robert Altman, fez “O
jogador” (“The Player”, com Tim Robbins, EUA, 123 min.), em 1992,
onde satiriza ela mesma; e “Prêt-à-porter” (idem, EUA, 113 min.), em
1994, ao lado das lendas Marcello Mastroianni e Sophia Loren. Em 96,
em investidas mais “britânicas”, faria “O segredo de Mary Reilly” (“Mary
Reilly”, com John Malkovich, EUA, 108 min.), sob a batuta do inglês
Stephen Frears; além do épico “Michael Collins – O preço da liberdade”

52
Excerto de “Duelo: pipoca vs. cérebro”, do filme Aliens vs. Predador 2, publicada em 20 de janeiro.

62
(“Michael Collins”, com Liam Neeson, Irl/Ing/EUA, 132 min.), dirigido
pelo irlandês Neil Jordan.
Todavia, foi só em 2000, com “Erin Brokovich” (EUA, 145 min.), que a
“linda mulher” de 90, conseguiu realmente provar, uma década depois,
que era também “uma mulher de talento” (título complementar do filme
na versão brasileira). Baseado em estória real, foi na pele da incansável
personagem título (mais bonita que a atriz), no trabalho de pesquisa sobre
vítimas de uma indústria química, para o pequeno escritório de advocacia
que as defende, que Julia Roberts finalmente conseguiu levar seu Oscar de
protagonista.
Há quem diga que o fato de ter contracenado com o veterano inglês Albert
Finney (indicado ao Oscar como coadjuvante, na pele de Ed Masry,
advogado e chefe de Brokovich) e de ter sido dirigida por Steven
Soderbergh (duplamente indicado, levaria o Oscar, em 2001, pela direção
de “Traffic”) foi uma espécie de cama armada para Julia conquistar a
estatueta dourada de Hollywood.53

E no próximo, fala sobre a chegada dos profissionais da publicidade ao cinema,


tanto nacional quanto internacional.

Responsável pela excelência técnica que o cinema brasileiro alcançou, a


partir da fase conhecida como Retomada, na metade da década de 90
(após a extinção da Embrafilme, em 1989, pelo então presidente Fernando
Collor de Mello), a migração dos cineastas publicitários aos longas de
ficção foi uma conseqüência tardia do que ocorreu com uma década, um
oceano e um hemisfério de diferença.
Aqui, o fenômeno gerou talvez nossos dois maiores diretores atuais:
Walter Salles Jr. (“Central do Brasil”, 1998, 112 min.) e Fernando
Meirelles (“Cidade de Deus”, 2002, 130 min.). Mas na Inglaterra, desde
os anos 80, já havia revelado gente como Hugh Hudson (“Carruagens de
fogo”, ENG, 1981, 123 min.), Adrian Lyne (“9 ½ semanas de amor”,
EUA, 1986, 105 min.), Alan Parker (“Coração satânico”, EUA, 1987, 108
min.) e Tony Scott (“Fome de viver”, ENG, 1983, 98 min.).
A bem da verdade, coube ao irmão mais velho de Tony, Ridley Scott,
abrir o caminho, da publicidade à tela grande, desde o final dos anos 70,
na Inglaterra e no mundo. Afinal, seu excelente (e pouco visto) filme de
estréia, “Os duelistas” (“The duellists”, ENG, 101 min.), prêmio de diretor
revelação em Cannes, é de 1977. Uma carreira não de todo regular,
intercalando obras-primas como “Blade runner – O caçador de
Andróides” (“Blade runner”, EUA, 1982, 117 min.), com porcarias bem
filmadas, como o xenófobo “Falcão Negro em perigo” (“Black Hawk
down”, EUA, 2001, 144 min.), não impediu que Ridley, além de pioneiro,
se consolidasse também como o maior talento na sétima arte egresso da
publicidade e dos vídeos-clipes.54

53
Excerto de “Julia Roberts de saia?”, do filme Conduta de risco, publicada em 27 de janeiro.
54
Excerto de “Inglês para italiano ver”, do filme O gângster, publicada em 3 de fevereiro.

63
2.4 A título de discussão

É através da multiplicidade de pontos de vista, gostos e abordagens que a Folha da


Manhã e – não temos medo de afirmar – a maior parte dos veículos da mídia debatem o
cinema em suas páginas e espaços especialmente franqueados à cultura. Da resenha à
crítica, ou algo que a ela se assemelhe, os profissionais da comunicação seguem avaliando
os produtos da indústria cultural que chegam diariamente ao mercado e, por meio de ambos
os formatos, fazem cumprir os múltiplos deveres dos meios de comunicação de massa —
informar e formar opinião, entre outros.
Para melhor compreender esses tão variados papéis, é válido relembrar aquilo que
diziam os estudiosos da Escola de Frankfurt. Fundado em 1923 com o nome de Instituto de
Pesquisa Social de Frankfurt, era filiado à Universidade com o mesmo nome. Para Adorno
e Horkheimer, seus principais teóricos, os meios de comunicação são parte da engrenagem
da indústria cultural e, uma vez nas mãos da classe dominante, tendo o mercado como
meta, produzem e reproduzem cultura para consumo da massa, mas sem terem
necessariamente o compromisso com a autoconstrução humana, o que seria de se esperar de
uma manifestação da cultura.

A consciência específica desses setores só se mantém agora, no entanto,


em certas reservas, pois as leis do mercado já penetraram na substância
das obras, tornando-se imanente a elas como leis estruturais. Não mais
apenas a difusão e a escolha, a apresentação e a embalagem das obras,
mas a própria criação delas enquanto tais se orienta, nos setores amplos da
cultura de consumo, conforme os pontos de vista da estratégias de vendas
no mercado. Sim, a cultura de massa recebe o seu duvidoso nome
exatamente por conformar-se às necessidades de distração e diversão de
grupos de consumidores com um nível de formação relativamente baixo,
ao invés de, inversamente, formar o público mais amplo numa cultura

64
intacta em sua substância (HABERMAS [1962], 1984, p. 194 apud
RÜDIGER in HOHLFELDT, MARTINO & FRANÇA, 2001, p. 139)55

No entanto, é importante explicar que

os pensadores frankfurtianos criticaram a cultura de massa não porque ela


é popular mas, sim, porque boa parte dessa cultura conserva as marcas das
violências e da exploração a que as massas têm sido submetidas desde as
origens da história. A linguagem rebaixada, o menosprezo da inteligência
e a promoção de nossos piores instintos, senão da brutalidade e estupidez,
que encontramos em tantas expressões da mídia, sem dúvida se devem ao
fato de que há muitas pessoas sensíveis a esse tipo de estímulo mas, e isso
é o que importa, tal fato não é algo natural nem, também, algo criado pela
comunicação.
[...] os pensadores em foco não foram contra a tecnologia: criticaram, sim,
o seu uso, pelo fato de que, ao invés do bem comum, está a serviço do
militarismo, da razão de estado e do poder econômico organizado.
(RÜDIGER, op. cit., pp. 144-145)

Walter Benjamin, filósofo também alinhado à Escola de Frankfurt, tem uma posição
diferente de Adorno e Horkheimer. Adorno pensava que a arte, ao ser banalizada,
distanciava-se de seu verdadeiro sentido e se esvaziava, ou seja, a arte só continua íntegra
precisamente quando não participa da comunicação de massa. Mas, Benjamin defendia que,
ao negar as potencialidades da popularização da cultura, corria-se o risco de se perder as
possibilidades transformação social. Como explica Rüdiger (op. cit.), falando sobre
Benjamin e Kracauer: “Para ambos, o capitalismo criara sem querer as condições para uma
democratização da cultura” (p. 135). Essas condições, registra-se, deveriam ser articuladas
pelas massas, que dariam o rumo da nova ordem de coisas, de acordo com seu projeto de
sociedade. É essa capacidade de gerar o novo que Walter Benjamin admite como sendo a
grande possibilidade da cultura de massa — e do cinema.

O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações


exigidas por um aparelho técnico cujo papel crescer cada vez mais em
nossa vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo
o objeto das inervações humanas — é essa tarefa histórica cuja realização
dá ao cinema seu verdadeiro sentido (BENJAMIN, 1985, p. 174)

55
Queria o sentido etimológico da palavra cultura (Kultur em alemão) que esta servisse à elevação do espírito
através da experiência estética. Todo o contrário disso resultaria em barbárie moral, entre outras.

65
Apesar de reconhecermos a superficialidade dos produtos culturais e jornalísticos,
notadamente a análise crítica da obra cinematográfica, como já apontamos durante o estudo
do corpus da pesquisa, concordamos com Benjamin, a respeito das funções do cinema e de
sua análise, que já cumprem seu papel tão-somente por incitar o público a pensar, abrindo-
lhe novas perspectivas, garantindo-lhes o poder do gosto e da escolha.

66
CAPÍTULO 3
Subsídios para o bom exercício da crítica

Silveira (2007) nos esclarece, em suas elucubrações sobre “A dimensão estética da


cultura de massa”56, que a estética não se restringe ao observar, absorver. O esteta, ou seja,
aquele que aprecia a estética, não é meramente um contemplador, absorto pela beleza, ou,
como queira, Beleza. Afinal, “já no sentimento estético encontramos a ação” (pág. 53).
Assim sendo, por mais que se baseie nos sentidos, a própria construção da noção de Belo se
faz a partir de um “esforço de abstração” (idem). Juntam-se aí, as experiências pessoais do
indivíduo e o seu trato com o universo que o cerca, filtros de suas faculdades, que servirão
de fôrma ao seu “sentimento estético” (idem). É, portanto, ação; ação ainda mais necessária
ao “juízo estético”, que, de acordo com Benedetto Croce, citado por Silveira, é “a atividade
crítica que reconhece o Belo”. Aparta-se, com isso, a admiração do julgamento, fruto de
exercício específico. Portanto, “o juízo estético, segundo os estetas da velha guarda, seria
um juízo livre de qualquer interesse” (idem).
Se o juízo estético é codificado pelos sentidos e vivências do esteta em questão, eis
que se esbarra em um assunto comumente tratado como espúrio e desabonador no ramo da
análise: o gosto. Apesar de permear cada palavra traçada em uma crítica ou resenha, o
gosto pessoal é tratado pelo senso comum como algo que não deveria fazer parte da
atividade, nem mesmo estar sequer subjacente, concordando com o que já havia dito
Machado de Assis, citado no capítulo 1 do presente trabalho. Ainda que a questão do gosto
seja assunto para um estudo mais profundo, é pertinente lembrar que tanto o objeto de arte
quanto a crítica não estão à parte da vida daquele que as produz, o que Boris Tomashevsky
(1995) chamaria de “vestígios biográficos”. Tais marcas – que incluem curriculum vitae,
genealogia, construções sociais, concepções de vida, background e tudo o mais que surge
no processo criativo – implicariam na intenção autoral, resultado das circunstâncias da
análise.
A questão do gosto, assim, seria indissociável do campo. “Ainda que trate aqui e ali
da intenção, Bourdieu (1936, pág. 306, apud BARRETO, 2006) não lhe dá, portanto, muito

56
Ver referências bibliográficas.

67
peso como categoria analítica, principalmente porque não lhe parece de fácil mensuração
metodológica a ‘participação do cálculo consciente nas estratégias objetivas observadas’”.
Prova disso são as discrepâncias encontradas entre as diversas análises feitas por
diferentes autores a respeito dos mesmos filmes, muitas vezes separadas por um verdadeiro
abismo de extremos opostos. Por vezes, tal multiplicidade de visões e abordagens encontra
acolhida no mesmo espaço. Talvez almejando fazer jus ao ideal de imparcialidade, grandes
veículos impressos de circulação nacional – e mesmo alguns sites especializados na internet
– dedicam matérias especiais aos grandes lançamentos do cinema, confrontando críticas
positivas e negativas a seu respeito. Exemplo recente foi a capa do Segundo Caderno de O
Globo do dia 7 de outubro, data em que pré-estreava no Brasil, durante o Festival do Rio,
Bastardos inglórios (Inglourious basterds, 2009), então último filme do cineasta norte-
americano Quentin Tarantino. A matéria, intitulada “É hora dos bastardos”, trazia duas
resenhas. A primeira, escrita por André Miranda, chamava “Lados iguais em obra violenta
e de pouco humor” e tinha como avaliação o bonequinho dormindo57. Já em “Do
‘spaghetti’ de Leone à fúria de Sam Peckinpah”, de Rodrigo da Fonseca, o bonequinho
aplaudia de pé. Veja nos anexos a capa do Segundo Caderno em questão.
Da mesma forma, a Folha da Manhã, nosso objeto de estudo, contempla não apenas
a variedade de gêneros, mas, também, de opiniões ao divulgar – ainda que não da mesma
forma que O Globo, que se valeu da mesma edição e capa – diferentes análises sobre os
mesmos filmes, como ficou patente no capítulo 2, que trouxe apreciações de Eu sou a lenda
(I am legend, 2007) por Aristides Soffiati, em “Civilização e barbárie”, do dia 22 de
janeiro; e Matheus Nagime, em “Construção”, datada de exatamente um mês depois. Os
colabores atribuíram ao filme, respectivamente, 4 e 3 estrelas58. Conduta de risco (Michael
Clayton, 2007) também foi analisado ao par: por Aluysio Abreu Barbosa, em “Julia Roberts
de saia?”, de 27 de janeiro, que avaliou o longa-metragem em 3 estrelas; e por Mateus, em
“Surpresa com o mesmo”, de 01 de fevereiro, cujo julgamento rendeu 4 estrelas ao filme. O
mesmo acontece em relação a Onde os fracos não têm vez (No country for old men, 2008),
que ganhou avaliação novamente por Aristides e Matheus. O primeiro, em “Onde os fracos

57
O Globo se vale de reações gradativas de um ícone, chamado bonequinho, para medir a satisfação ou
insatisfação do resenhista. Assim, a avaliação vai do ato de dormir ao de aplaudir de pé, respectivamente o
pior e o melhor resultados. As reações são comumente acompanhadas de justificativas.
58
A Folha da Manhã, por sua vez, utiliza um ícone, cuja função é representar um espectador fictício
denominado Matheusinho que, porta-voz da atividade no jornal, exprime as apreciações e opiniões de todos
os colaboradores e atribui notas que variam entre uma e cinco estrelas, de acordo seu nível de satisfação. A
nota, assim como em O Globo, é apresenta junto de um breve argumento.

68
são fortes”, de 18 de março, atribui ao filme 5 estrelas, ao passo que o segundo, em “Na
natureza selvagem”, de 21 do mesmo mês, lhe concede 4. Tais análises, já esmiuçadas no
capítulo supracitado, encontram-se entre os anexos.
Feita tal ressalva, com a qual esbarramo-nos freqüentemente em nossas pesquisas,
observamos os conceitos defendidos pelos teóricos apresentados no capítulo 1 deste e
valemo-nos ainda de uma entrevista dada a nós pelo jornalista José Castello (2009) 59, em
que o mesmo observou o esvaziamento da crítica no que se refere ao seu aporte teórico, à
intertextualidade necessária e à densidade da análise, bem como a inexistência da crítica
nos jornais, que se ocupam principalmente da resenha por diversos motivos, para
fornecermos subsídios para a construção daquilo que entendemos como bons modelos tanto
para o exercício da resenha como da crítica esteticamente embasada. Muito embora as
escolhas tenham sido baseadas por gosto e as análises estejam impregnadas dele, houve um
critério mínimo: selecionamos diferentes filmes – representantes de gêneros tão distintos
quanto o horror e o drama, o cinema de arte e o blockbuster de ambições comerciais – e
formas de análise distintas, que vão desde a resenha casual e puramente indicativa à crítica
de fundamento acadêmico.

3.1 Resenhas60

3.1.1 A queda

Indicado aos prêmios Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Goya de Melhor Filme
Europeu, A queda: As últimas horas de Hitler (Der untergang, 2006) se baseia nos relatos

59
A entrevista foi concedida na sala de imprensa do 5º Fórum das Letras de Ouro Preto, em Minas Gerais, no
dia 30 de outubro de 2009, após sua fala na mesa O papel da crítica literária no Brasil: limites e
possibilidades. Ver detalhes em anexo na reportagem de cobertura.
60
O critério de avaliação do autor se dá da seguinte maneira: uma película, no blog Quadros por segundo (ou,
na Folha impressa, um Matheusinho), corresponde a um filme ruim; duas películas (ou dois Matheusinhos), a
um filme médio; três películas (ou seu correspondente no jornal), a um filme bom; quatro películas (ou
matheusinhos), a um filme ótimo, e, por fim, cinco películas (ou correspondente), ao que o apreciador
considera uma obra-prima, seja porque o autor tem conhecimento de causa profunda para julgar ou porque, de
algum modo, considerou o longa-metragem uma experiência estética arrebatadora. A aplicação desses valores
pode ser conferida nos anexos, já que todas as resenhas e críticas aqui exemplificadas já foram publicadas no
referido blog e no jornal em edições de sábado.

69
de Traudl Junge, secretária pessoal do ditador germânico durante os últimos três anos da
Segunda Guerra Mundial, que editou suas memórias no livro Até a hora final: A última
secretária de Hitler, e estudos do historiador Joachim Fest, publicados em No bunker de
Hitler: Os últimos dias do Terceiro Reich, para reproduzir da maneira mais fidedigna
possível o hiato que compreende o aniversário de 56 anos do Führer, em 20 de abril de
1945, e seu posterior suicídio, dez dias mais tarde, recriando o caos que se avultava sobre
Berlim com a marcha constante das tropas de Stálin rumo ao coração de Berlim e a
sentença representada por suas estrelas escarlates e rifles Mosin Nagant.
Em vias de extinção, o sonho do ditador que ousou conceber uma Europa dominada
por homens de tez branca e olhos claros (ainda que muitos de seus lugares tenentes não
apresentassem corpos de alabastro e pupilas de turquesa), unificada sob a mesma bandeira
vermelha e branca, ornada com a suástica negra usurpada dos povos do leste longínquo,
ruiria sobre seu orgulho e soterraria o que sobrara de sua sanidade. Antes da derrocada,
porém, o diretor Oliver Hirschbiegel (de A experiência, 2004) cede espaço para que Junge
se justifique e são dela as primeiras palavras – retiradas do documentário Eu fui a secretária
de Hitler, de 2002 – sobre o horror que se seguirá nos próximos 150 minutos.
A introdução ganha peso ao se fazer sobre o relato de uma figura que foi, ela
própria, abduzida pela máquina nazista e serve de ensejo a um breve prólogo que mostra a
contratação da então jovem moça de Munique, em 1942. Após um salto de três anos, a
narrativa passa ao tenso dia-a-dia no bunker que serviu como último refúgio de Hitler e
bastião da defesa da capital alemã enquanto a guerra se arrastava pela superfície, levando o
povo ao desespero e obrigando crianças a lançarem mão de armas e lutarem por cada palmo
de terra em escombros. Com Clausewitz, o estado de exceção, instaurado, oficiais das
Schutzstaffel, as temidas SS, incineram documentos e preparam sua retirada da cidade
condenada, enquanto figurões da Wehrmacht, as forças armadas alemãs, e principalmente
do Heer, o exército, tentam vencer a formação prussiana que lhes pesa sobre o instinto de
autopreservação e persuadir Hitler, que, segundo um deles, movimenta tropas que só
existem em seu mapa, a recuar e repensar sua estratégia, idéia prontamente repelida à base
de acusações de traição e covardia. E se algumas delas procedem, outras não passam de
delírio de uma mente minada pela paranóia.
Pouco a pouco, seus associados se evadem, se negando a partilhar do trágico destino
que o aguarda, e, enquanto aqueles com autoridade suficiente procuram negociar uma
rendição por suas costas, resta aos subalternos obrigados a ficar o álcool e a alienação. Ao
70
ditador cabe apenas a companhia de sua cadela de estimação, a mulher que o ama e alguns
poucos corajosos – ou despercebidos da realidade que os cercava.
Apesar de retratar apenas uma pequena parte deste então decadente universo
nazista, A queda serve como uma perfeita amostragem da praxis político-militar em vigor
na Alemanha de Hitler. O discurso nacionalista, a opressão brutal, o preconceito e fascínio
que o sistema conseguiu imputar ao povo dilapidado, estão todos lá, representados por
personagens e situações que fornecem subsídios suficientes ao espectador para que ele
possa delinear todo o restante do cenário.
Como era de se esperar, um grande número de figuras históricas desfila frente às
câmeras. Joseph Goebbels (Ulrich Matthes), ministro de Propaganda do Partido Nazista;
Heinrich Himmler (Ulrich Noethen), infame líder das SS; Herman Göring (Mathias
Gnädinger), comandante da Luftwaffe, a aeronáutica alemã; Albert Speer (Heino Ferch),
ministro do Armamento do Terceiro Reich; Eva Braun (Juliane Köhler) e a própria Traudl
Junge (Alexandra Maria Lara), todos soberbamente caracterizados, gravitam ao redor do
suíço Bruno Ganz, que dá vida a um Hitler jamais visto no cinema. Para dar maior
verossimilhança ao papel, o ator chegou a estudar com um fonoaudiólogo o sotaque
característico à região onde o ditador nasceu, Braunau am Inn, na Áustria. Além disso,
Ganz se debruçou sobre a única gravação conhecida da voz de Hitler em sua intimidade —
registrada na Finlândia, durante uma visita ao marechal e barão Carl Gustav Emil
Mannerheim —, quando, argumentam estudiosos, ao contrário das ocasiões em que se
encontrava em comícios e discursos políticos, falava discretamente. O resultado é uma
atuação que, não por acaso, lhe valeu a indicação ao European Film Awards de Melhor
Ator.
A direção impessoal de Hirschbiegel torna A queda um filme quase documental e a
fotografia, acertadamente fria, ajuda a criar cenários estéreis, que vão das grossas paredes
de concreto que protegem o refúgio subterrâneo de Hitler às inúmeras ruínas que à época
tomavam cada esquina de Berlim. A trilha sonora, embora quase ausente, soa no momento
correto, ampliando o efeito dramático de determinadas cenas.
Boicotado pelo povo israelense, mesmo após passar pelo rígido controle da censura,
o longa-metragem foi severamente criticado por humanizar a temida figura do ditador
alemão. Durante o filme, o Führer intercala momentos de plácida interação com amigos
queridos e subordinados mais íntimos com explosões de fúria incontrolável frente a seus
generais, que não conseguiam impedir o avanço do Exército Vermelho, e desprezo extremo
71
pelo próprio povo alemão, o qual estava disposto a sacrificar em nome de sua causa. Dessa
forma, cria-se um contraste que torna, sim, sua figura mais humana, mas, não por isso, mais
humanitária.
Construído puramente sob a ótica alemã, A queda evita concessões e estereótipos,
produzindo um retrato bastante fiel não só de Hitler como também de toda a elite nazista,
do próprio povo e da realidade bastante cruel daqueles dias terríveis. Resta, por fim, apenas
a constatação de Junge, que faleceu em 2001, dada em epílogo igualmente retirado de Eu
fui ...: “juventude não é desculpa para ignorância”.

3.1.2 Capote

O norte-americano Truman Capote entrou para o circuito de grandes escritores já


com seu primeiro romance. O ainda sem tradução para o português Other voices, other
rooms, de 1948, vendeu mais de 26 mil cópias e permaneceu durante nove semanas na lista
de bestsellers do New York Times. Seu segundo livro, Bonequinha de luxo (Breakfast at
Tiffany’s), lançado dez anos mais tarde, seguiu o mesmo caminho de sucesso, tendo sido,
inclusive, adaptado para o cinema em filme estrelado por Audrey Hepburn e dirigido por
Blake Edwards. Mas foi A sangue frio (In cold blood) que consolidou o nome de Capote no
mainstream da literatura estadunidense, inaugurando um novo gênero de escrita,
denominado pelo próprio autor como romance de não-ficção.
Fruto de uma minuciosa investigação dirigida por Capote e sua amiga de infância, a
premiada escritora Harper Lee, o livro reconta o brutal e misterioso assassinato de quatro
membros da família Clutter, ocorrido em 15 de novembro de 1959 na bucólica e
conservadora Holcomb, no Kansas. A chacina que abalou a pequena cidade forneceu ao
escritor a oportunidade de que necessitava para comprovar sua teoria de que um romance
baseado em fatos reais, se bem executado, poderia ser tão impactante, envolvente e
grandioso quanto uma obra ficcional.
O filme Capote (Capote, 2005) transporta para as telas o hiato de seis anos que
separou os assassinatos e a publicação de A sangue frio, incluindo as investigações, escrita
e demais trabalhos necessários à conclusão do romance. Destacam-se, contudo, o processo
de aproximação das fontes e coleta – muitas vezes ilegais e/ou antiéticas – de informações,
72
bem como o envolvimento altamente pessoal que dragou o afetado romancista para dentro
de sua própria história, prendendo-o de forma dúbia e poderosa a um dos membros da dupla
de assassinos, Perry Smith, até sua inevitável morte na forca, em 14 de abril de 1965,
evento que, por nada ter feito para impedir, visto que necessitava de um fim para seu livro,
o deixa abalado e colabora para que jamais viesse a terminar um novo trabalho.
Filmado em apenas 36 dias, Capote é um filme visualmente forte. Suas paisagens
desoladas, cenários cinzentos e cores exclusivamente frias propiciam uma atmosfera um
tanto apropriada à tragédia de Holcomb. A direção intimista de Bennett Miller; a trilha
sonora escassa, que surge apenas de forma a ampliar a carga dramática de determinadas
cenas; a edição repleta de cortes, por vezes bruscos, que, ao contrário do que se espera do
cinema moderno, não acelera o ritmo da história, antes disso, permite mostrar suas muitas
facetas sem comprometer o andamento; e uma acertada seleção de coadjuvantes – dentre os
quais se destacam Clifton Collins Jr. como um instável Smith, Catherine Keener como a
sóbria Harper Lee e Chris Cooper como o austero Alvin Dewey – criam um pano de fundo
perfeito para o desenvolvimento do verdadeiro astro do filme, Truman Capote, que, na pele
de Philip Seymour Hoffman, se revela um personagem tão interessante quanto o caso que
investiga.
Respaldado por irretocável atuação, Capote surge ambíguo, vaidoso e hedonista,
chocando aqueles que não o conhecem, inclusive o próprio espectador. Sua voz, óculos de
aros grossos e cachecóis, assim como a ironia acentuada e a empáfia flagrante, o tornam tão
estranho – e mesmo repelente – aos habitantes de Holcomb quanto seriam esses aos seus
conterrâneos nova-iorquinos. De fato, o choque cultural torna-se óbvio no contraste entre as
cenas em que o escritor freqüenta a família Dewey e aquelas em que retorna aos círculos
sociais habituais, em sua cidade natal. Nas demais, sobram auto-indulgência, sarcasmo,
inverdades e ordens.
Uma das grandes estrelas da premiação da Academia de Artes e Ciências
Cinematográficas de Hollywood em 2006, Capote concedeu o Oscar de Melhor Ator a
Philip Seymour Hoffman e foi indicado, ainda, nas categorias Melhor Filme, Melhor
Diretor, Melhor Atriz Coadjuvante, para Keener, e Melhor Roteiro Adaptado. Além disso,
recebeu premiações e indicações ao Globo de Ouro, BAFTA e Independent Spirit Awards.
Um filme indicado tanto para aqueles que pretendem conhecer algo sobre o autor –
cujo caráter é perfeitamente resumido na frase “Truman é apaixonado por Truman” – como
quem gosta de cinema, literatura, jornalismo e assuntos afins.
73
3.1.3 Rejeitados pelo Diabo

É certo que uma gama de outras influências ecoa pela obra de Robert Bartleh
Cummings — mais conhecido entre aficionados por heavy metal e pela série de games
Twisted Metal por sua alcunha artística, Rob Zombie. Porém, nenhuma delas é mais
evidente e determinante em sua carreira que o cinema de terror. Na temática ou estética (e,
na maior parte das vezes, em ambas), o trabalho de grandes mestres do gênero surgem
como fontes de inspiração aqui e acolá, seja no nome de sua mais famosa banda, White
Zombie, que alude ao clássico filme homônimo de Victor Halperin, lançado em 1932 e
estrelado por Béla Lugosi, ou quando o músico exibe sua atração grotesca em uma feira
itinerante de variedades, no clipe da música Living dead girl, em uma paródia óbvia de
Werner Kraus em seu mais famoso papel, o personagem título na obra-prima de Robert
Wiene, O gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920). Dessa forma, é o
diálogo contínuo com o segmento que empresta sentido de unidade a tudo o que o artista
multimídia faz, formando um background comum a qualquer empreitada de Zombie, seja
no mundo da música, dos games ou qualquer outro em que por ventura venha a atirar-se.
Portanto, não causa qualquer tipo de comoção o fato de ter sido o terror o gênero escolhido
para sua estrear como cineasta, da mesma forma que não o faz a decisão de com ele
continuar trabalhando. Surpresa, porém, vem com a mudança de rumos e, por que não
dizer, melhoria, conseguida por Zombie em seu segundo flerte com a sétima arte.
Se A casa dos 1000 corpos (House of 1000 corpses, 2003) o revelou diretor e
escritor de bom tino para enredos e situações, ainda que não fosse brilhante nos diálogos, e
que, a despeito do conturbado processo de edição, conseguiu reunir o horror árido e realista
estabelecido por Tobe Hoper em Massacre da serra elétrica (The Texas chainsaw massacre,
1974) à abordagem de cunho sobrenatural que invadiu o gênero a partir do início da década
de 80 com Jason e companhia, fazendo bom uso dos clichês presentes em ambas, a
continuação, Rejeitados pelo Diabo (The devil’s rejects, 2005), vai além.
Ao optar por abandonar as concessões à realidade representadas pelos monstros que
habitavam o velho casarão da família Firefly e seu pouco plausível líder, Dr. Satã, em A
casa..., para abraçar como força motriz de seu novo longa-metragem o sadismo e maldade
74
tão reais que tornaram famosas figuras como Jheffrey Dhamer, Ed Gein e Charles Manson,
o diretor empresta verossimilhança à trama. E é evocando lembranças de eventos tão
terríveis e trabalhando com a idéia de que tudo o que se apresenta na tela pode vir a ser, que
Zombie conduz Rejeitados..., com toques de road movie e western.
Não obstante a diferença de perspectiva — que se reflete em tudo, dos figurinos aos
cenários —, a seqüência não se divorcia totalmente do capítulo anterior e se vale de fatos e
personagens comuns para detonar seus 109 minutos de violência. Após um mal fadado
cerco policial à residência dos Firefly, clímax de A casa..., o xerife Wydell (William
Forsythe) reúne um novo grupo de homens da lei para vingar seu irmão, George (Tom
Towles), morto na campanha anterior. Entretanto, Otis (Bill Moseley) e Baby (Sheri Moon
Zombie) escapam, encontram-se com o palhaço Capitão Spaulding (Sid Haig) e iniciam
uma fuga desesperada, cujo saldo pouco concorre para seu sucesso. E se o xerife, que
enxerga a si próprio como a mão justiceira de Deus, prescinde dos deveres de seu cargo e
valores de cristão fervoroso para levar a cabo a punição que entende necessária, os caçados,
estimulados pelo senso de auto-preservação, tornam-se como inevitáveis forças da natureza,
dispondo de quaisquer vidas que se ponham em seu caminho.
Abusando dos recursos de edição, Zombie mescla diferentes filtros e técnicas de
filmagens para criar uma viagem áudio-visual que, lembrando Oliver Stone e seu
Assassinos por natureza (Natural born killers, 1994), ainda que de forma não tão radical,
vai do super 8 à película, da câmera no ombro à steadycam, com imagens sempre marcadas
pela paleta de cores amareladas e visual granulado, reforçado pelo uso de fotografias e
pseudodocumentários de cunho noticioso, que aumentam a sensação de realismo que
envolve a história ao dar-lhe física própria. Assim, ações ganham reações da mídia, da
polícia e da própria população, atingida pela passagem dos assassinos.
O elenco não guarda surpresas. Além de colabores habituais do cineasta e velhos
conhecidos dos fãs de horror, Moseley e Haig, apesar do texto ainda pouco chamativo —
com exceção de uma discussão a respeito da cômica relação existente entre Grouxo Marx,
cujos personagens batizam os protagonistas do longa, e Elvis Presley, travada pelo xerife
Wydell e um especialista em cinema —, roubam facilmente as cenas em que surgem,
deixando Moon, cuja personagem parece sofrer especialmente com suas linhas de diálogo,
na desconfortável situação de esposa do diretor. Ademais, Zombie incluiu no filme
participações que farão a alegria de muitos espectadores, como Danny Trejo (o mexicano
mais requisitado de Hollywood) e Geoffrey Lewis.
75
De forma distinta de A casa..., cuja trilha sonora era composta quase que apenas por
músicas do próprio Zombie, Rejeitados... acaba por privilegiar artistas como Blind Willie
Johnson, Terry Reid e Lynyrd Skynyrd, trazendo um acompanhamento rock/country um
tanto quanto apropriado para seu cenário sulista interiorano. Destaque para a bela canção
Free Bird, do Skynyrd, que acompanha os momentos finais de Otis, Baby e Spaulding.

3.1.4 X-men origens: Wolverine61

Parecia auspicioso que um filme solo de Wolverine fosse lançado em 2009, ano em
que a criação do escritor Len Wein e o desenhista John Romita Sr. completa 35 anos. Além
de um passo natural para carreira cinematográfica dos mutantes — que começou a dar sinal
de desgaste, enquanto grupo, após o fraco X-men 3: O confronto final (X-men 3: The last
stand, 2006) —, investir na carreira do canadense parecia ser uma aposta confiável para
renovar os ares, preservando aquele que sempre foi o grande chamariz da cinessérie e
abrindo possibilidades para explorar novas paragens e figuras do universo delineado ao
longo de tantos anos por nomes como Stan Lee, Chris Claremont e, mais recentemente,
Mark Millar, entre tantos outros. Além disso, seria refazer na tela grande o caminho
trilhado pelo personagem nas páginas dos quadrinhos, onde foi o primeiro x-man a gozar de
um título próprio.
Protagonista de Arma X (Weapon X, 1991), história escrita e ilustrada por Barry
Windsor-Smith, considerada por alguns como uma das maiores histórias dos mutantes e
mesmo da Marvel, Logan era, definitivamente, a escolha correta para o primeiro vôo longe
do ninho. A certeza se reforçava, ainda, pelo carisma de Hugh Jackman, ator australiano
que já havia vivido o personagem nos três filmes dos pupilos de Charles Xavier e
emprestado ao baixinho uma interpretação tão acertada que fazia possível ao espectador se
esquecer de seus mais de 1,80m de altura. Com tal premissa animadora, o filme foi
anunciado.

61
Como é possível notar nos anexos, na apreciação “O caminho é para baixo”, feita por nós para a Folha da
Manhã, mesmo a resenha pode encontrar problemas com relação ao espaço disponível em um jornal, visto
que teve de ser cortada para se adequar ao formato.

76
O início da pré-produção trouxe um dos momentos mais delicados e aguardados
pelos fãs em qualquer adaptação de quadrinhos: o anúncio dos personagens coadjuvantes.
As presenças de Raposa Prateada, Agente Zero (que nos quadrinhos chamou-se, primeiro,
Maverick), John Wraith e a volta de Dentes-de-Sabre (vilão pouco expressivo no primeiro
longa-metragem da equipe, contudo, de fundamental importância para a história de
Wolverine), apontavam diretamente para os anos em que o velho canadense passou a
serviço do governo norte-americano, no programa Arma X, projeto militar do universo
mutante que deu nome à graphic novel homônima. A confirmação da participação de
Deadpool, criação mais recente, mas que coexiste no mesmo contexto, e Gambit, figura
querida por muitos leitores e prometida desde o começo do grupo no cinema, foram adições
comemoradas. Já Blob e Bolt passaram sem alarde.
Na fase seguinte, também sujeita a polêmicas variadas, foram anunciados os atores
que encarnariam tais personagens. Além de Jackman, que reprisa o papel, embarcaram na
aventura Lynn Collins, Daniel Henney, o rapper Will.I.Am, do grupo Black Eyed Peas,
Liev Schreiber, Ryan Reynolds, o pouco conhecido Taylor Kitsch, Kevin Durand e
Dominic Monaghan, ambos ainda gozando do sucesso conseguido na telessérie Lost
(idem), além de Danny Huston. A essa altura, a expectativa já havia atingido níveis
perigosos, afinal, é balizado por ela que se mede qualidade.
Antes das primeiras imagens de relevância virem a público, entretanto, notícias
desanimadoras davam conta de conflitos entre o co-presidente do conselho de acionistas e
CEO da Fox Filmed Entertainment, Tom Rothman, e o diretor Gavin Hood, de Infância
roubada (Totsi, de 2005), presumidamente contratado por sua veia dramática e autoral, que,
imaginava-se, imprimiria ao filme o nível de humanização necessário a um bom retrato do
conflito entre besta e homem, assim como o trauma da transformação deste em uma
máquina assassina, sempre presentes na vida de Logan. Mais tarde, a convocação do elenco
para refilmagens trazia subentendida a insatisfação da Fox com o material apresentado e a
opção por Hood, revelou-se, não uma preocupação com o tratamento que seria dado à
história, mas, sim, com pressões que o estúdio poderia exercer sobre um cineasta de menor
renome.
Tais fatos, juntamente dos primeiros vídeos e fotos da produção, lançaram uma
nuvem negra sobre o projeto. Pairava a pergunta: “incorreriam, eles, nos mesmos erros de
X-men 3, o excesso de personagens e o esvaziamento dos subtextos cuidadosamente
trabalhados desde o primeiro filme?”. A resposta pôde ser conferida com quase um mês
77
antecedência em relação ao lançamento mundial, já que uma cópia não finalizada da obra,
com áudio e efeitos especiais inacabados, vazou na rede. Com a chegada do filme às salas
de cinema de todo o mundo, ela se tornou acessível a qualquer um que, com um mínimo de
senso crítico, não poderá concluir outra coisa senão: “em parte, boa parte”.
O longa-metragem, de 107 minutos, tem o início marcado pela impressão dúbia que
o acompanha até o meio da película. Apesar da péssima escolha por uma versão
simplificada do duvidoso gênesis do personagem exibido na graphic novel Origem (Origin,
2002), de Paul Jenkins e Andy Kubert, a seqüência inicial do filme é esmerada. Nela, o
espectador fica sabendo que Logan é, na verdade, James Howlett (Peter O’Brien, quando
criança), aparentemente o filho de um rico fazendeiro canadense da metade do século
XVIII. Após descobrir que o homem que chamou de pai durante anos, e que, então, jazia
morto aos seus pés, não era quem pensava, o garoto tem seu primeiro acesso de fúria. Com
ele, descobre as garras e sua herança mutante. Após assassinar seu verdadeiro genitor, o
caseiro bêbado que deu início à tragédia, James foge com seu revelado meio-irmão, Victor
Creed (Michael-James Olsen).
Os créditos que se seguem, à moda Watchmen: O filme (Watchmen, 2009), se
encarregam de contar parte da história e mostram a vida de ambos através dos anos,
utilizando como fio narrativo os quatro grandes conflitos em que os EUA se envolveram
desde então: Guerra de Secessão, Primeira e Segunda Guerras Mundiais e Guerra do
Vietnã. Victor (agora Schreiber) é violento e brutal, sendo controlado apenas por James.
Porém, um dos excessos cometidos pelo primeiro leva a dupla à corte marcial e ao paredão
de fuzilamento pelo assassinato de soldados americanos. Tentativa vã, visto que a poderosa
capacidade de cura dos meio-irmãos os mantém vivos não apenas pelos séculos como a
salvo dos mais graves ferimentos. Até este momento, as cenas empolgam, mas, resta o
questionamento a respeito da opção por Origem e não Arma X como base para o filme, o
que vai de encontro a todos os indícios anteriores, inclusive aqueles plantados nos dois
primeiros longa-metragens da franquia. Além disso, causa espécie a solução fácil pela qual
optou o roteirista, David Benioff, ao assumir a hipótese apenas insinuada nos quadrinhos do
parentesco entre Wolverine e Dentes-de-Sabre — como Creed é conhecido na celulose e em
X-men: O filme (X-men, 2000), em que foi interpretado pelo ex-lutador Tyler Mane.
O filme começa, de fato, na década de 70, com James e Victor na prisão, após a
frustrada execução. Abordados pelo coronel Willian Stryker — papel que foi de Brian Cox
em X-men 2 (X-men 2: X-men united, 2003) e agora é desempenhado por Huston —, lhes é
78
oferecida a chance de obter anistia em troca de serviços ao país. Proposta aceita, passam a
integrar um grupo de mutantes que atuam secretamente para o governo norte-americano ao
redor do globo. Junto deles, agem: Wraith (Will.I.Am), capaz de se teleportar; Zero
(Henney), que possui grande habilidade com armas de fogo; Wade Wilson (Reynolds),
mercenário cuja língua é tão afiada quanto suas espadas katana; Fred Dukes (Durand), de
imensa força física, e Bolt (Monaghan), dono da habilidade de intervir em campos elétricos
e controlar máquinas. Como sempre, James continua a ser o bastião de consciência de
Victor.
A desconfortável aliança dura apenas até o covarde ataque a um prédio na Nigéria.
A ação, motivada pela busca à jazida de um misterioso metal do interesse de Stryker, deixa
inúmeros mortos e separa o grupo. James adota o nome Logan e parte para as profundas
florestas canadenses, onde começa a trabalhar como lenhador. Poucos anos depois, ele é um
homem amargurado pelas lembranças de sua vida pregressa, que encontra no amor de
Raposa Prateada (Collins) o estímulo para seguir em frente. Mas, essa vida aparentemente
normal dura apenas até o mutante ser encontrado por Stryker.
Portador de más notícias, o coronel avisa à Logan que Victor está matando os
membros do antigo grupo. Wade havia sido o primeiro e Bolt, o mais recente. Todos os
outros corriam perigo. Ignorando o alerta, o canadense despacha Stryker e volta à sua
rotina. Entretanto, não tarda para que Creed venha ao encalço de seu meio-irmão. O vilão,
então, se aproveita de um descuido de Logan e assassina sua amada, despertando no velho
soldado um incontrolável desejo de vingança. O fiapo de história busca justificar a
transformação de James Howlett em Wolverine, apelando para os mais diversos clichês da
ação, repetidos à exaustão desde a década de 70, e varrendo para baixo do tapete a
possibilidade de fazer jus à obra de Windsor-Smith.
Assim, tudo no filme, como em um exemplar corriqueiro da carreira de Charles
Bronson, se resume à procura por desforra. Logan parte atrás de Stryker, que lhe havia
oferecido a, até agora rejeita, força necessária para vencer Victor, sempre tido como
fisicamente superior. Para tanto, o mutante se sujeita a uma operação para vinculação do
indestrutível metal adamantium — cuja mina foi localizada após a missão na Nigéria — ao
seu esqueleto, processo ao qual sobrevive apenas devido aos seus fantásticos poderes de
cura. A partir daí, assume a alcunha Wolverine, em memória a uma antiga lenda indígena
contada pela amada perdida (com isso, sai o perdedor abduzido por um programa
governamental que desconhecia de Arma X e entra o voluntário sedento de sangue tão
79
comum aos filmes do gênero). O que o anti-herói não imagina, é que tudo faz parte de uma
trama muito maior. Claro, maior, dentro da lógica torta da história, que segue pelo caminho
da obviedade e da simplificação, gerando um resultado muito aquém do que poderia, diante
do material disponível para construí-la.
Elementos basais do personagem são esquecidos e, quando muito, reciclados de
maneira pouco criativa. Sua agressividade é uma sugestão pouco crível diante do controle
que o personagem mostra sobre Victor Creed. O animal selvagem, brutal e destemperado,
assassino, visto nos quadrinhos, é dispensado em prol de uma pálida raiva que se manifesta
de forma contida em um indivíduo que ainda preza pela moralidade e o bom costume.
Sangue, não há. Morte, algo abundante nas mais famosas passagens do personagem, apenas
quatro, todas muito higiênicas. Um verdadeiro contra-senso quando se trata de um
personagem que possui garras afiadas e não tem medo de usá-las. Suas marcas registradas,
assim, voltam ao papel de cortar paredes e objetos, que desempenharam durante anos nos
desenhos animados, direcionados aos espectadores de pouca idade. Nada dos gritos dos
soldados do segundo filme. Menos ainda, da fúria exibida na maior parte das histórias dos
anos 80.
A amnésia, que nublou o passado de Wolverine durante décadas nos quadrinhos, é
providenciada de maneira que só pode ser descrita como risível, ao fim do filme, somente
para justificar a existência de tal fato nos primeiros exemplares da franquia. Sua causa não
reside na lavagem cerebral sofrida após a vinculação do adamantium, e, sim, no fato de ter
sido alvejado no crânio por balas do mesmo material. A escolha não soa apenas ilógica,
mas, também, improvável. Como um disparo aplicado indiscriminadamente em um local
qualquer da caixa craniana de Wolverine, causaria, antes da morte, a perda da memória?
Tentativa frustrada de traçar uma referência à figura do lobisomem, que deixa como saldo,
unicamente, dois orifícios no crânio do personagem que, por uma questão de bom senso, se
é permissível o uso da palavra quando se de um personagem de quadrinhos, não deveriam
sequer cicatrizar, visto que estão cobertos pelo resistente metal.
Por último, incomoda ver a deturpação e sub-aproveitamento de grande parte dos
personagens, algo que marcou negativamente X-men 3, onde desfilaram um grande número
de mutantes, que pareciam apenas fazer com que os fãs não desviassem sua atenção da
trama pobre. No caso de X-men origens: Wolverine (X-men origins: Wolverine, 2009), os
erros são muitos. Dukes é um bom exemplo. Seu histórico é alterado, sendo o personagem
colocado no mesmo grupo secreto de Wolverine. O poder, que nos quadrinhos é a
80
capacidade de aumentar a própria massa e, com isso, obter força e resistência descomunais,
apesar de, também, um corpo deformado pelo peso adicional, donde surgiu o codinome
Blob, passa por modificações, tornando-se mera e convencional superforça. O fato de ser
obeso ganha, portanto, explicação esdrúxula: abalado após as missões para Stryker, comeu
compulsivamente. Até sua presença é desperdiçada, visto que rende pouco mais que dois ou
três socos despropositados. Não pode, pois, sequer ser tido como antagonista.
Tal qual Blob, é Wilson, o Deadpool. Apesar da fidelidade inicial, em que é,
corretamente, retratado como um mercenário mortal e falastrão, desaparece com o passar
do filme. Na verdade, o próprio personagem desvanece-se e ressurge, ao fim, como outra
coisa que não aquele que o inspirou. Mudanças, que, dizem, foram os motivos das
refilmagens, cujo objetivo era dar mais importância a Deadpool, forte candidato a um filme
auto-intitulado. Assim, o amalgamaram a Arma XI, grande antagonista originalmente
previsto no script. Raposa Prateada, Emma Frost, Agente Zero, Bolt e outros sofrem de
deslocamentos semelhantes.
Juntam-se a isso momentos de comédia desnecessários, como Logan correndo nu
para um celeiro de fazenda; elementos pouco criativos, a exemplo do casal de idosos
fazendeiros (que mais lembra os Kent, das histórias do Super-Homem) que o acolhe com
roupas na cor do uniforme do personagem nos quadrinhos e uma moto devidamente
imponente e nova, apesar do antigo dono, filho deles, ter, aparentemente, morrido faz
tempo; cenas do mais absoluto clichê, como o protagonista caminhando, em câmera lenta,
em direção ao primeiro plano enquanto ocorre uma grande explosão ao fundo; e efeitos
visuais fracos, tais quais as garras de adamantium, recém cobertas, que o anti-herói olha,
admirado, em frente ao espelho, obviamente criadas por computador.
Ao menos, nem tudo é ruim. Liev Schreiber presenteia o espectador com um
Dentes-de-Sabre que é dos melhores vilões de toda a cinessérie, estando, em seus melhores
momentos, ombro a ombro com o Magneto de Ian McKellen. Taylor Kitsch também
apresenta um Remy LeBeau, ou Gambit, bastante satisfatório, apesar do sub-
aproveitamento na trama e a ausência de seu característico sotaque francês. O já citado
Wade, de Reynolds, apesar de ecoar um pouco de Hannibal King, personagem do ator em
Blade Trinity (idem, 2004), também faz bonito em sua primeira aparição.
Por fim, a melhor definição de X-men origens: Wolverine foi dada por Aristides
Soffiati, crítico de cinema da Folha da Manhã, a qual repito a seguir: “este é um filme não
de autor, mas de produtor”. Ficam óbvios o caráter de entretenimento juvenil e a ausência
81
de compromisso com o material original. Encaixa-se, dessa forma, com certa boa vontade
para com os trabalhos de Schreiber, Kitsch e Reynolds, na classe das adaptações de
quadrinhos apenas medianas, compartilhada por Demolidor: O homem sem medo
(Daredevil, 2003), O incrível Hulk (The incredible Hulk, 2008) e O Justiceiro em zona de
guerra (Punisher: War zone, 2008), ficando aquém do padrão estabelecido por Bryan
Singer em X-men e X-men 2. Padrão este, por lá mesmo abandonado. Resta aos fãs lamentar
a não aceitação da Warner Brothers a uma proposta feita por Zach Snyder, a quem o
estúdio chegou a oferecer o filme, que desejava uma história de classificação R (inadequada
para menores de 17 anos, segundo a Motion Picture Association of America, ou MPAA,
órgão que regulamenta a censura nos EUA), certamente muito mais fiel à essência de
Wolverine.

3.2 Crítica

3.2.1 Laranja mecânica

O romance Laranja mecânica (A clockwork orange, 1962) originou-se da


necessidade de se fazer cumprir um desígnio deveras funesto. Em 1960, ao retornar à sua
terra natal após um período de seis anos lecionando junto ao Serviço Colonial britânico na
Malásia, o inglês Anthony Burgess descobriu-se portador de um tumor cerebral maligno,
fatal e inoperável. Desacreditado pelos médicos, encontrou em seu talento de escritor –
tardiamente descoberto, mas já posto à prova com os romances que integram a chamada
The malayan trilogy – a única maneira de garantir o conforto de sua esposa após a própria
morte. Durante aquele que lhe havia sido feito crer derradeiro ano, Burgess retirou-se para a
pequena cidade de Hove, na costa de Sussex, e pôs-se a escrever. Os resultados deste
desvario produtivo gerariam os direitos autorais dos quais a futura viúva poderia viver.
Entre as obras produzidas neste ínterim estavam The right to an answer, The doctor
is sick, The worm and the ring, Devil of a state e uma versão inacabada de Laranja
mecânica. Este último, que muitos consideram como a maior contribuição de Burgess à
literatura, amargava um verdadeiro limbo criativo devido ao preciosismo do escritor. Sua
82
finalização e lançamento ocorreriam apenas um ano mais tarde, em 1962, o que só foi
possível devido a um afortunado erro nas previsões médicas acerca da expectativa de vida
do autor.
Ambientado em um futuro próximo, Laranja mecânica apresenta ao leitor uma
Londres decadente e niilista, onde a violação toma forma humana e a violência espreita em
cada um dos muitos becos escuros e insalubres. Nesse porvir medonhamente crível, a
população se vê acuada ante uma brutalidade endêmica, gerada pela ação de truculentos
grupos de adolescentes vestidos no “auge da moda” que, tal qual pequenos Calígulas, se
entregam à nada santa trindade de antigos vícios romanos, se refestelando em sexo, sangue
e vinho – aqui substituído por leite batizado com um sem número de drogas sintéticas. As
ruas noturnas são território proibido e o cair da noite impõe uma interdição clara, ignorada
apenas pelos mais corajosos ou incautos. Mesmo a polícia, juramentada sobre o velho lema
“servir e proteger”, age desmedidamente ocasionando tanta destruição quanto aqueles a
quem combatem. Após os cansativos dias de trabalho em fábricas governamentais, resta às
pessoas de bem o conforto de suas pequenas casas populares, a companhia da velha caixa
luminosa emburrecedora e a esperança de que o todo-poderoso governo trabalhe para sanar
o grave problema.
Na outra ponta do espectro temos Alex. Beligerante, sádico e destituído de remorso,
ainda que carismático e possuidor de uma inteligência afiada e gostos refinados, o
protagonista e narrador da história é definido pelo próprio Burgess como “um rebelde (...)
preparado para levar a vida, ferir, matar, roubar e estuprar pessoas sem pensar em termos
políticos"62. Junto de seus companheiros, George, Pete e Dim, Alex torna-se presença a
qual ninguém passa incólume e, ao chegar a casa, dorme embalado pelas notas melodiosas
dos compositores eruditos que lhe provocam novos devaneios de destruição.
A trajetória do delinqüente juvenil, entretanto, sofre uma guinada quando Alex é
atraiçoado por seus comparsas e pego. Na Prisão Estatal, passa a ser apenas 6655321.
Então, o ciclo de traição e morte se reinicia. Considerado instável e perigoso, é entregue às
autoridades, que submetem-no à inovadora Técnica Ludovico, ainda em fase de teste.
Prometendo torná-lo um “bom garoto” incapaz “de cometer atos contra a Paz do Estado”, o
processo dilapida seu livre arbítrio, enfraquece sua vontade e o impossibilita de realizar
escolhas éticas. Mas não é apenas disso que Alex se encontra privado.

62
Em entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto, reproduzida em:
http://www.geneton.com.br/archives/000150.html, último acesso em 27/10/2009.

83
...amante da música, ele respondeu a ela no tratamento, que era usada para elevar
a emoção acompanhando os filmes violentos que o fizeram assistir. Uma
substância química injetada no seu sangue induzia náusea, enquanto ele assistia
aos filmes, mas a náusea é também associada à música. Essa não era a intenção
dos seus manipuladores do Estado introduzir esse bônus (ou malus): foi
puramente um acidente que, ele reacionará a Mozart ou Bethoven como se fosse
matar ou estuprar. O Estado foi bem sucedido em seu objetivo primário: negar a
Alex a liberdade de escolha moral, que, para o Estado, era escolher o Espírito
maligno. Mas foi adicionado um castigo não previsto: as portas do paraíso foram
fechadas para o rapaz, já que para ele a música era uma felicidade celestial. O
Estado cometeu um duplo pecado: destruiu um ser humano, tendo que a
humanidade é definida pela liberdade de escolha moral, e também destruiu um
anjo.63

Reintroduzido ao convívio em sociedade, Alex inicia uma decida inexorável a um


hades particular, onde sofre nas mãos daqueles a quem feriu retribuição em igual medida.
Desalojado após encontrar seu quarto alugado a um desconhecido, o protagonista vaga sem
rumo até que, por obra sádica do destino, acaba encontrando a vítima da primeira agressão
confidenciada ao leitor. O suplício do linchamento de Alex, agora totalmente indefeso, não
encontra fim com a chegada dos policiais chamados para apartar o agressor, apenas uma
ainda mais dolorosa extensão, uma vez que os oficiais eram Billyboy, velho inimigo de
gangue rival, e Tosko, um dos companheiros traiçoeiros. Deixado para morrer em uma
longínqua paragem rural, Alex cambaleia em busca de ajuda, até que chega a uma isolada
casa estranhamente familiar. Nas garras de mais um de seus algozes, o incapaz protagonista
torna-se títere político e acaba enredado em uma trama que alia a luta de um grupo
subversivo e a retaliação de seu anfitrião, o que culmina em sua desesperada tentativa de
suicídio quando torturado com a música que um dia tanto amou.
Ao voltar a si, hospitalizado, Alex gradualmente se livra da influência controladora
da Técnica Ludovico. Colocado sob proteção do governo após o escândalo provocado por
sua quase morte – creditada pelos jornais ao tratamento opressor do Estado, que o teria
levado à loucura – o jovem se vê novamente cooptado por interesses políticos. Agora é seu
outrora verdugo que o alimenta e lhe promete benefícios. Contudo, mais uma vez é um
homem livre e senhor de sua vontade, capaz de ouvir música e manejar sua navalha
degoladora.
Tido como “um dos ícones literários da alienação pós-industrial que caracterizou o
século XX”64, posição que compartilha com 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo

63
http://lrebizzi.vilabol.uol.com.br/livro.htm, último acesso em 27/10/2009.
64
Orelha da capa de Laranja Mecânica, Editora Aleph, 2004.

84
Novo, de Aldous Huxley, o romance Laranja mecânica mostra-se uma contundente e ácida
metáfora para o conflito indivíduo versus Estado, formatada como uma distopia tipicamente
inglesa. E é esse universo abundante em tons de cinza que acabaria levado às telas pelo
cineasta norte-americano Stanley Kubrick, quase uma década após seu lançamento.
No início dos anos de 70, Kubrick ainda colhia os louros de um enorme sucesso de
público. Seu último trabalho, 2001: Uma odisséia no espaço (2001: A space odyssey),
apesar de recebido friamente pela crítica da época, arrecadou dezenove vezes seu custo de
produção e passaria à posteridade como a maior ficção científica já filmada.
Impossibilitado de concretizar seu projeto seguinte, um filme sobre a vida de Napoleão
Bonaparte, o diretor uma vez mais se voltou à literatura – fonte que já lhe havia rendido
Paths of glory, Lolita e com a qual havia flertado na concepção do próprio 2001 (cuja
versão romanceada ajudou Arthur C. Clarke a escrever durante a realização das gravações)
– em busca da inspiração para sua nova empreitada cinematográfica. A escolha por Laranja
mecânica veio da necessidade de uma filmagem rápida e pouco onerosa, características que
o livro de Burgess permitia sem incorrer na mutilação do enredo.
Filmado em sua maior parte nos arredores de Londres e empregando atores quase
que exclusivamente britânicos em seu cast, Laranja mecânica (A clockwork orange, 1971)
traz o inglês Malcolm McDowell no papel de Alex. Dandy de gênio maligno e espírito
indômito, seu personagem, assim como o Alex de Burgess, divide suas noites entre a ritual
confraternização na Leiteria Korova e a onda de delitos que a sucede. “A Korova servia
leite-com. Leite com velocete, sintemesque ou drencrom, que era o que bebíamos então.
Ele aguça os sentidos e deixa você pronto para um pouco da velha ultraviolência” explica,
logo no início do filme.
Seguindo fielmente o itinerário traçado no papel, Kubrick reconstrói em imagens as
"aventuras de um jovem cujas principais inclinações são a violência, a violação e
Beethoven"65, imprimindo-lhe, contudo, uma visão bastante característica, revelada numa
atmosfera ao mesmo tempo onírica, bizarra e fantástica. O diretor agrega esse novo
personagem ao seu panteão particular de figuras solitárias e desajustadas e revisita as
mazelas humanas que com tanta propriedade já havia destrinchado em sua obra.
Acusado de tratar a violência de forma apologética, Laranja mecânica cercou-se de
polêmicas. Sua exibição foi proibida para menores de idade nos Estados Unidos e mesmo

65
Campanha publicitária do filme; consulta na internet.

85
um corte de 30 segundos realizado por Kubrick não conseguiu evitar uma censura R que,
segundo o Motion Picture Association of America film rating system, restringe sua
exposição a maiores de 17 anos. O mesmo ocorreu em diversos outros países, porém, o
caso mais emblemático aconteceu no Reino Unido, onde uma série de crimes foi associada
ao filme. Diante destas insinuações, Kubrick solicitou à Warner Brothers que o retirasse de
circulação no país. No Brasil, Laranja mecânica chegou a ser banido pelo governo militar,
devido ao seu conteúdo sexual e violento.
Os processos envolvidos na transposição de um texto originado em uma
determinada mídia para outra são chamados adaptação — e é disso que aqui tratamos. O
termo carrega consigo uma conotação de ajuste, adequação, bastante apropriada ao ato, que
geralmente esbarra em incompatibilidades midiáticas ou executivas, maiores ou menores,
obrigando-se a uma série acomodações para que o material seja enfim produzido. De
acordo com Yannick Mouren, em seu ensaio Le film comme hypertexte (1993), o processo
de adaptação “pode ocorrer em três níveis: na diegese, na história (como sucessão de
acontecimentos) e, ainda, nas personagens” (p. 112-113), o que poderia ocasionar
deslocamentos espaço-temporais conforme as necessidades do cineasta. De fato, são
extremamente raras as adaptações que passam incólumes a decisões de produtores, fatores
comerciais ou à mera necessidade de simplificação necessária a um formato de
rentabilidade produtiva consideravelmente menor, e atravessam intactas todos estes níveis.
Os trâmites deste processo adaptativo nos remetem à Gérard Genette, que, em seu
livro Palimpsestes (1982), trabalha o conceito de transtextualidade. Conforme Genette
(op.cit,) a transtextualidade compreende “tudo o que coloca (um texto) em relação,
manifesta ou secreta, com outros textos” (p. 7), dividindo-se em intertextualidade,
paratextualidade, metatextualidade, arquitextualidade e hipertextualidade.
A intertextualidade considera “a presença efetiva de um texto em outro texto”, ou
seja, “a copresença entre dois ou vários textos”, seja através de “citação, plágio ou alusão”.
Estudá-la significa “analisar os elementos que se realizam dentro do texto (inter)”. Já a
hipertextualidade ressalta que “toda relação que une um texto (texto B – hipertexto) a outro
texto (texto A – hipotexto)”66.
O mais imediato sinal de identificação entre livro e filme vem não na forma de
imagens recriadas, mas de linguagem. Alex e companhia se vestem de maneira diferente,

66
http://www.cce.ufsc.br/~nupill/ensino/transtextualidade.htm, último acesso em 27/10/2009.

86
são mais velhos e freqüentam a psicodélica interpretação de Kubrick para a Leiteria
Korova, mas é no que se ouve onde jazem as primeiras semelhanças. Fortemente
influenciado por suas experiências pessoais, Anthony Burgess buscou incorporar ao livro a
nova realidade com que se deparou ao retornar à sua terra-natal, uma realidade “de
cafeterias, música pop e gangues de adolescentes” (FERNANDES in BURGESS, 2004, p.
8)67. Dentro deste panorama, sobressaiu ao instinto lingüista do autor as novas gírias e
dialetos empregados por grupos urbanos como os Rockers68 e os Mods69. A decisão de
integrar essa nova realidade à Laranja mecânica foi responsável pelo grande hiato entre o
término do primeiro rascunho e o lançamento do romance, uma vez que a fugacidade de um
fenômeno como o que Burgess presenciava impedia-no de se utilizar daquele jargão sem
correr o risco de torná-lo ultrapassado em bem pouco tempo. Dessa maneira, optou pelo
caminho mais difícil: criaria ele próprio um linguajar apropriado para seus “arruaceiros da
era espacial” (id. ibdem, p. 9), o que demorou a acontecer.
Da inusitada mistura de russo, inglês popular, gíria rimada e modo de falar cigano,
surgiu o nadsat70, amplamente utilizado pelos personagens. Devido ao fato de se utilizar de
influências completamente alheias à maioria dos leitores, o nadsat produz uma grande
sensação de confusão, o que era acentuado pela não inclusão proposital de um glossário
para elucidá-los, lançando-os numa experiência de pura dedução aturdida. Segue abaixo um
texto onde Alex escuta o novo concerto para violino do American Geoffrey Plautus e
descreve a experiência, se utilizando amplamente deste vocabulário:

Então, irmãos, aconteceu. Ah, êxtase! Êxtase e paraíso. Fiquei deitado


inteiramente nagoi virado para o teto, minha gúliver sobre as rukas no travesseiro,
glazis fechados, rot aberta em êxtase, sluchando o suco de sons adoráveis. Ah, era
lindo, a beleza encarnada. Os trombones esmagavam vermelho-dourados sob
minha cama, e atrás de minha gúliver os trompetes prataqueimavam
triplicemente, e perto da porta os tímpanos rolavam pelas minhas tripas e saíam
de novo esmagados como trovões feitos de doces. Ah, era a maravilha das
maravilhas. E então, um pássaro feito do mais raro heavenmental, ou tipo assim
vinho prateado fluindo numa espaçonave – a gravidade agora não fazia o menor
sentido – veio o solo de violino acima de todas as outras cordas, e essas cordas
eram como uma gaiola de seda ao redor cama. Então a flauta e o oboé

67
No prefácio.
68
Os Rockers são representantes de uma subcultura britânica surgida na década de 60. Vestiam couro,
andavam de motocicletas e ouviam rock n’ roll.
69
O movimento Mod (originalmente modernismo) surgiu mais cedo, na década de 50, em Londres e persistiu
até a década seguinte. Escutavam músicas características, vestiam roupas próprias e andavam de scooters.
N
Nome dado por Anthony Burgess ao conjunto de gírias empregadas por seus personagens. Significa
adolescente em russo, idioma do qual o autor tirou grande parte das palavras.

87
perfuraram, como vermes de platina, o caramelo espesso, espesso, de ouro e
prata. Eu estava em completo êxtase, meus irmãos.” (id. ibidem, p. 35)

Presente também na trama cinematográfica, as gírias causam efeitos semelhantes,


como pode ser conferido na passagem em que Alex e seu grupo retornam ao Korova para
uma última rodada de leite batizado após as barbáries da noite e se deparam com uma cena
incomum. Os diálogos são reproduzidos a seguir:

Havia uns sofistos da TV perto da gente, rindo e govoritando. A devotchka


esmecava sem se preocupar com os males do mundo. Aí, o disco do estéreo tocou
sua última nota e no curto silêncio antes do início da próxima música ela
repentinamente começou a cantar. E foi, por um momento, meus irmãos como se
um grande pássaro voasse para dentro da leiteria. Senti todos os malenques
pelinhos do meu plote ficando de pé, calafrios subindo, como malenques e lentos
lagartos, e descendo, porque eu conhecia aquilo. Era um trecho da gloriosa Nona
de Ludwig Van.
(Alex então aplica um golpe com sua bengala em Tosko que começara a gozar da
cantora)
- Por que fez isso?
- Porque é um infeliz sem modos, sem a mais pálida idéia de como se comportar
em público, irmão.
- Não gostei disso aí que você fez. Não sou mais teu irmão e nem quero ser.
- Cuidado. Toma cuidado, se continuar on-line é o que desejas.
- Iarbos! Iarbos grandões e quicantes pra você! Te enfrento com corrente, noje ou
britva quando quiser! Não vou deixar você me dar toltchoques sem motivo! Faz
sentido. Não vou deixar.
- Uma briga de noje. Quando quiser.
(Tosko fica reticente e desiste)
- Acho que estou cansado. É melhor ficar quieto. A cama é o certo agora. É
melhor a gente ir pra casa e tirar uma spatchka. Certo-certo?
(Ao que todos respondem)
- Certo-certo.

Além de uma soberba utilização dos recursos lingüísticos do romance, há de se


destacar a fidelidade do hipertexto ao hipotexto. A decadente Londres de Burgess surge em
ruas escuras, terrenos imundos e construções estéreis. As características dos personagens
principais foram preservadas. Alex é o mesmo pervertido de contornos faustianos; Tosko, o
abrutalhado esteio cômico e George, a personificação da perfídia. A crítica à violência
através de sua superexposição continua presente e ganha ainda mais impacto quando o
vermelho do sangue ganha as telas e enche os olhos. As poucas discrepâncias advêm
principalmente de decisões executivas ou acomodações intermidáticas, sem que isto exclua
a viabilidade de veiculação de idéias próprias ao filme e seu diretor/autor.
A fidelidade lingüística, todavia, cede espaço a mudanças quando se observa o
encadeamento dos fatos e mesmo características da história e seus personagens. O filme se

88
inicia, por exemplo, com uma ausência notável aos leitores do romance. Exceto pela
localização dos protagonistas, os fatos ocorridos no primeiro capítulo são ignorados por
Kubrick, que opta por partir do capítulo seguinte. De teor semelhante, ambos trabalham as
violentas práticas diárias do grupo, sendo, portanto, necessária a presença de apenas um
deles para transmitir aos espectadores esta noção. Este não seria o único capítulo não
utilizado do livro e a decisão de cortá-lo acaba ocasionando mudanças sutis adiante.
Todavia, alguns dos principais focos de alteração do hipertexto em relação ao
hipotexto estão nas personagens. Adolescentes no romance, Alex, George, Pete, Tosko e
todos os outros membros de gangues são interpretados por atores já adultos. Os motivos
para tanto envolvem escolhas criativas do próprio Kubrick. Certa vez, o diretor chegou a
afirmar que sem Malcolm McDowell no papel de Alex, provavelmente não teria realizado o
filme. O ator possuía, na ocasião, 28 anos de idade.
Da mesma forma, as garotas levadas por Alex para seu apartamento, onde realizam
uma cena de sexo a três, são, no original, crianças de apenas dez anos e chegam à casa do
personagem enganadas. Obviamente, uma cena de tamanho impacto encontra sérias
restrições quando levadas ao cinema, e mesmo um filme pouco preocupado com choques
como Laranja mecânica evitou-a.
O protagonista mostra ainda outras disparidades. Enquanto sua contraparte de papel
apresenta um gosto variado pela música clássica, apreciando durante o decorrer da trama
canções de um número variado, ainda que pequeno, de compositores, o Alex de Kubrick
parece incorporar um gosto monomaníaco pela obra de Ludwig Van Beethoven,
principalmente a nona sinfonia, seu extasiante entretenimento, salvação e provação. Além
disso, sua cobra de estimação, Basil, também foi incorporada às filmagens após o diretor
descobrir o repúdio de McDowell pelo animal. Vale destacar, ainda, a inclusão pelo diretor
de uma abordagem imagética ostensivamente agressiva, ao perverter símbolos da religião
cristã e se valer de figuras pornográficas ao longo do filme, características inexistentes no
original.
A exclusão do primeiro capítulo é a causadora de uma pequena série de mudanças
na seqüência em que Alex deixa a prisão após ser submetido à Técnica Ludovico e cai nas
mãos de suas vítimas. Originalmente, a primeira delas a ter sua chance de vingança é um
homem que se dirigia para casa após tomar emprestado alguns livros na biblioteca
municipal. No filme, quem lhe toma a oportunidade é o mendigo atacado pelo grupo no
segundo capítulo, primeira vítima na versão cinematográfica.
89
Ao fim da confusão, após Alex ter seu brutal espancamento frustrado pela chegada
súbita de policias, descobre que seus antigos companheiros, Tosko, e desafeto, Billy Boy,
são agora agentes da lei. Com a oportunidade de retribuir os maus tratos, pela parte do
primeiro, e as humilhação e surras, pela do segundo, os oficiais levam o protagonista a um
local distante, onde dão prosseguimento há imolação que a pouco abortaram. Já na película,
Billy Boy é substituído por George, o que serve ao propósito de reforçar o papel de
antagonista do personagem, morto nos livros, adquirido no momento em que se torna
mentor da traição que leva Alex à prisão.
A última, e talvez mais grave, alteração entre livro e filme encontra-se no final.
Stanley Kubrick se baseou na versão americana de Laranja mecânica para criar seu longa-
metragem, sem antes disso, consultar o original inglês. Devido a uma infeliz decisão
editorial, o romance foi publicado nos Estados Unidos sem seu capítulo final, considerado
não condizente com o clima proposto, pois revelava um amadurecimento e início de
regeneração do personagem. Essa decisão arbitrária, tomada à revelia de Burgess, afetou a
versão cinematográfica, mutilando-a da mesma maneira, ainda que não fosse a intenção do
diretor.

3.3 Breve debate

Ainda que se parta do gosto como motivo, há que se considerar o papel do crítico
(ou resenhista) elaborado por Walther Benjamin (1985): a descoberta do caráter
historicizante e significante do objeto de arte. O que se pretende buscar na análise é sua
novidade revolucionária acerca do já dado.

A atualização das idéias é fator de historicização porque, a seu tempo, toda e


qualquer idéia deve ser encarada como uma “interpretação objetiva” do mundo,
quer dizer, capaz de mergulhar “fundo em todo o real”; ela não é, pois o resultado
de um devaneio, mas antes uma sentença verbal que, por meio do emprego
rigoroso das palavras (quer dizer, de sua organização no pensamento pela teoria)
iluminará o setor da realidade até então adormecido (ou silenciado), o qual por
sua vez adquire um significado, um “sentido histórico” (PELOGGIO, 2005, p.
120, grifos no original)

90
Isso nos faz crer que para além da indústria cultural e da proposta de seus produtos a
obra de arte, no caso o filme, e a crítica do objeto de arte, no caso a crítica cinematográfica,
– e talvez até mesmo sua versão comercial, a resenha – ainda que isso pareça utopia
deveriam resguardar seu compromisso como um ato político e estético à “profanação
autêntica”, conforme Peloggio (op. cit.).71 Eis a proposta deste capítulo, que julgamos
alcançada, com todas as nossas limitações.

71
Resguardadas as especificidades de cada gênero, como no caso dos blockbusters e sua vocação evidente
para o entretenimento.

91
CONCLUSÃO

Após percorrer os meandros do jornalismo cultural, resgatar o surgimento da crítica


e elencar suas funções, bem como retomar a origem e o papel da resenha, nos parece livre
de quaisquer erros afirmar, em consonância com os teóricos levantados, que a crítica, de
fato, se restringe, hoje, a publicações especializadas e à academia, cabendo aos jornais e
demais periódicos a resenha, gênero comumente mais adequado a esses veículos devido às
próprias características dos mesmos, como o espaço limitado, a necessidade de falar a um
público leigo e o comprometimento com os meandros da chamada indústria cultural. Com
certa condescendência teórica, verificamos que algumas das características da crítica
esteticamente embasada podem eventualmente acabar por se manifestar no exercício diário
da resenha. Todavia, pulverizados, tais assomos dificilmente são o suficiente para
caracterizar o texto como crítica. Esse jogo de trocas e apropriações entre os gêneros – que,
aparentemente, se presta mais à adequação e ao estilo pessoal que a propósitos metódicos e
objetivos – pode, contudo, ajudar a perpetuar a confusão que paira sobre o adjetivo crítico,
visto que, apesar de praticarem a resenha, é raro que um escritor se denomine resenhista,
em oposição ao crítico acadêmico.
Clara, também, nos parece a impossibilidade de se transformar a crítica em ciência,
com códigos, regras e fórmulas que a rejam, como querem alguns teóricos, posto que o
resultado da apreciação surge justamente da interação entre os parâmetros pessoais do
crítico – indivíduo que carrega noções e formação próprias – e os conceitos trabalhados
através da obra de arte, no caso, o filme, por quem o executa. Este, por sua vez, é um
produto que, certamente, não encerra em si apenas a visão de seu criador ou criadores, mas
se abre a um diálogo no qual o público se apresenta como co-autor, não estando, portanto
restrito a esse ou àquele ponto de vista, mas a toda a vivência de quem o assiste, momento
no qual se renova enquanto experiência e se refaz a partir de um novo conjunto de códigos.
Tal situação encontra eco no jornal Folha da Manhã, no qual, apesar de, em grande
parte, se praticar a resenha em sua forma mais convencional, os colaboradores seguem
sendo qualificados como críticos, inclusive em matérias cuja temática é o cinema, o que
pouco concorre para a elucidação do correto uso do termo. Contudo, essa é apenas uma
falta menor – e, talvez, não percebida, visto que parte da reprodução de um comportamento
quase padrão entre jornais e revistas – em um veículo que tem o mérito de ser o único da
cidade de Campos dos Goytacazes a franquear seu espaço aos apreciadores da sétima arte.
92
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