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VIANA, Nildo. O Que é Marxismo? Rio de Janeiro, Elo, 2008.

PREFÁCIO

A “superação do marxismo” é uma cantilena que vem sendo


repetida há mais de um século por intelectuais e políticos representantes da
burguesia. Em 1920 o filósofo austríaco Georg Lukács em um pequeno
artigo, “A última superação do marxismo”1, afirmava: “É difícil que se
passe um ano sem que Marx seja ‘superado’ por algum solícito livre-
docente ou por algum filósofo da moda”. Nestes tempos “pós-modernos”,
segundo alguns intérpretes apressados, a mesma enxurrada dos
acontecimentos que arrastou as experiências do dito “socialismo real” para o
fundo do vale da história teria levado junto a teoria marxista. Se assim
ocorreu, então que dizer do resultado de uma pesquisa de opinião pública
realizada pela Rádio BBC de Londres em 2005, quando seus ouvintes
escolheram Marx como o mais importante filósofo de todos os tempos?
Seria por acaso que até mesmo alguns economistas burgueses mais
perspicazes reconheçam, neste início de século XXI, a atualidade da teoria
do capitalismo formulada por Marx?

Os arautos da “pós-modernidade” adotam uma postura burocrática


perfeitamente conjugada com uma visão idealista de mundo, típica da
ideologia burguesa, que quer fazer crer que a história é produto de sentenças
ditadas pelos donos do poder de plantão. Os críticos da modernidade, mas
não necessariamente dos fundamentos da sociedade moderna, mais
apropriadamente capitalista, não conseguem perceber que foi Marx quem
submeteu, de forma inigualável, tanto o pensamento moderno quanto a
realidade histórica de onde se originou e sobre a qual atua como

1
Lukács se referia às sentenças de Oswald Spengler contra Marx, na obra
Prussianismo e Socialismo. O artigo de Lukács está disponível em:
http://www.marxists.org/portugues/lukacs/1920/misc/superacao-marxismo.htm
Tradução de Nildo Viana.
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legitimador. Esses pensadores “pós-modernos” são incapazes de perceber


que o seu próprio pensamento é um dos produtos do seu tempo, diga-se de
passagem, numa versão bastante vulgar.

Um dos sinais da incapacidade desses intelectuais de ultrapassar os


condicionamentos da ideologia burguesa está no seu apego a especialidades
com recortes cada vez mais limitados, negligenciando a insuspeitável
relação entre todas as dimensões da vida humana. É essa incapacidade de
perceber que qualquer fenômeno humano não pode ser compreendido e
explicado isoladamente que leva esses ideólogos, por exemplo, a negarem o
papel fundamental das relações sociais e da luta de classes como
condicionantes da produção das idéias. Preferem acreditar na autonomia dos
pensadores ante a ordem social estabelecida, seja legitimando-a ou negando-
a. Acreditam tanto nessa independência que chegam a afirmar que a única
realidade existente é a representação. Certa vez, ouvi de um historiador que
“o passado não existe”, o que existiria seriam as representações que
construímos acerca do passado. Seria o caso de perguntarmos: se o passado
não existe, do que trata o historiador, visto que o presente também não
poderia existir, já que tudo não passa de representação?

Certamente, para esses intelectuais, a tese de Marx de que “O


modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida
social, político e espiritual”, arrematada com a afirmação de que “Não é a
consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu
ser social que determina sua consciência” 2, careceria de fundamentos. Por
vezes, chamam a isto de determinismo mecanicista ou economicismo ou,
ainda, reducionismo. Não há dúvidas de que ignoram o real significado do
materialismo histórico-dialético. Mais do que isso, desconhecem a obra de
Marx no seu conjunto. Na verdade, leram muito mais as obras de alguns
ditos “continuadores” do marxismo do que os textos do próprio Marx. O
lado cômico dessa história é ouvir grande parte desses indivíduos se

2
MARX, Karl. “Prefácio”. In: Para a crítica da economia política; salário, preço e
lucro; o rendimento e suas fontes: a economia vulgar. 2ª ed. – São Paulo: Nova
Cultural, 1986. p. 25.
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autoproclamarem “ex-marxistas”. As universidades e os partidos políticos


ditos de “esquerda”, convertidos à social-democracia, estão repletos dessa
subespécie, aqui e em muitas outras partes do mundo. A postura desses
ideólogos teria efeitos menos danosos, não fosse o fato de muitos deles
contarem com um numeroso público juvenil obrigado a ouvi-los
cotidianamente, durante horas a fio, nos bancos das universidades, por
determinações burocráticas.

Admitamos, entretanto que, embora tenhamos de apontar as


limitações das críticas dos políticos e pensadores burgueses, é necessário
reconhecer a responsabilidade de muitos vulgarizadores (no duplo sentido)
da obra de Marx. O próprio Friedrich Engels, o maior colaborador
intelectual de Marx, é considerado por alguns marxistas, dentre eles o autor
desta obra, Nildo Viana, como um dos primeiros a distorcerem algumas das
teses fundamentais do marxismo. Todavia, ninguém mais do que os
intelectuais bolcheviques, cujos principais expoentes são Vladimir Lênin,
Leon Trotsky e Joseph Stálin, teriam produzido interpretações equivocadas
do pensamento de Marx. Tanto mais quanto se verificou a partir da vitória
da Revolução Russa de 1917. A influência exercida pelo bolchevismo se
estendeu aos mais diversos rincões do planeta, e dura ainda hoje. Por isso,
não é estranho que se encontrem inúmeros continuadores dos equívocos
produzidos pelos seus criadores.

As diferentes “leituras” e (in)compreensões dos escritos de Marx


realizadas em contextos históricos – sociais, culturais, econômicos e
políticos – diversos deram origem a uma multiplicidade de “marxismos”.
Para um não marxista como Bobbio (1991), essa pluralidade não é
propriamente “um escândalo”, inclusive a existência de ‘neomarxismos’,
embora lamente que haja “um certo desperdício de energia intelectual na
controvérsia entre os vários caminhos”. Energia que, segundo ele, “seria
melhor empregada ao estudar com maior empenho os campos do saber que
ficaram fora dos confins dos interesses dos fundadores e de seus discípulos
mais diretos, bem como de seus seguidores e, o mais importante, a realidade

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sempre mais complexa do mundo que nos circunda” (p. 15).3 Bobbio parece
não entender que a crítica ao oportunismo dos marxistas de ocasião é
imprescindível para assegurar clareza na compreensão da teoria formulada
por Marx. Além do mais, dá a entender que o simples fato de ser adjetivada
como “marxista” uma corrente de pensamento é tão coerente com sua
autodeclarada filiação quanto outra qualquer.

É por se colocar na contramão desse tipo de entendimento, que


Nildo Viana continua produzindo trabalhos como este O que é o marxismo?
Ao mesmo tempo em que rejeita esse “relativismo” de tipo bobbiano, que
considera uma “manifestação da dispepsia dos intelectuais por motivos
bastante questionáveis”, Viana dispensa também o emprego do adjetivo
“marxiano”, bem ao gosto de Hobsbawm, que o utiliza para distinguir o
pensamento de Marx da produção dos marxistas. Ele prefere a expressão
“marxismo original”, entendido como “as idéias de Marx”, assumindo-se
como marxista, mas não como “marxólogo”, qualificativo atribuído a
estudiosos da obra de Marx como Raymond Aron.

Como um crítico das mais diversas formas de ideologia,


apresentem-se elas sob o rótulo de filosofia ou ciência, Nildo Viana tem
dado importante contribuição ao esforço de recuperação do marxismo
autêntico. Coerente com a sua opção teórica não se esquece de que “a arma
da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem
de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria converte-se em força
material quando penetra nas massas. A teoria é capaz de se apossar das
massas ao demonstrar-se ad hominem, e demonstra-se ad hominem logo que
se torna radical. Ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Mas, para o
homem, a raiz é o próprio homem”.4

Nildo Viana é um dos mais prolíficos escritores marxistas da


atualidade no Brasil. Além de publicar treze obras individuais em uma
década (algumas já na segunda ou terceira edição), organizou várias outras,
3
BOBBIO, Norberto et al. O Marxismo e o Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
4
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.
p. 151.
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sem contar os inúmeros artigos publicados em revistas e capítulos de livros


organizados por outros autores. Neste livro O que é o marxismo? o autor se
coloca a tarefa de “apresentar uma definição do marxismo que dê conta de
explicar, inclusive, o motivo da existência de vários ‘marxismos’”. Para
tanto, submete o marxismo a uma análise na perspectiva do próprio
materialismo histórico-dialético e procura explicitar o seu caráter
ontológico, com vistas a chegar à definição da sua essência: expressão
teórica do proletariado. Portanto, não se restringe a apresentar apenas uma
descrição do marxismo, ultrapassa os limites da sua aparência e delineia a
sua essência. Talvez, nesse ponto nesse ponto se encontra o maior mérito e
la raison d’être deste livro. Certamente, é mais um importante trabalho que
se soma aos demais, escrito em linguagem acessível, inclusive para leitores
iniciantes. Alguma lacuna por ventura existente, não diminui o seu valor.
Aos que tiverem o privilégio de lê-lo, bom proveito.

José Santana da Silva


Prefácio ao livro “O Que é Marxismo?”, de Nildo Viana (Rio de Janeiro,
Elos, 2008).

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