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PUBLICAÇÃO EDITADA PELO PUBLICATION EDITED EVERY FOUR MONTHS BY

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)
Diretoria Nacional / National Board of Directors Diretoria Nacional / National Board of Directors
Rua Herpéria, 16 – Manguinhos – Rio de Janeiro/RJ Rua Herpéria, 16 – Manguinhos – Rio de Janeiro/RJ
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DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2006-2009) NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2006-2009)


Diretoria Executiva Executive Direction
Presidente Sonia Fleury (RJ) President Sonia Fleury (RJ)
1O Vice-Presidente Ligia Bahia (RJ) 1st Vice-President Ligia Bahia (RJ)
2O Vice-Presidente Ana Maria Costa (DF) 2rd Vice-President Ana Maria Costa (DF)
3O Vice-Presidente Luiz Neves (RJ) 3th Vice-President Luiz Neves (RJ)
4O Vice-Presidente Mario Scheffer (SP) 4th Vice-President Mario Scheffer (SP)
1O Suplente Francisco Braga (RJ) 1nd Substitute Francisco Braga (RJ)
2O Suplente Lenaura Lobato (RJ) 2nd Substitute Lenaura Lobato (RJ)

CONSELHO FISCAL FISCAL COUNCIL


Áquilas Mendes (SP), José da Rocha Carvalheiro (RJ), Assis Mafort (RJ), Sonia Ferraz (DF), Áquilas Mendes (SP), José da Rocha Carvalheiro (RJ), Assis Mafort (RJ), Sonia Ferraz (DF),
Maura Pacheco (RJ), Gilson Cantarino (RJ) & Cornelis Van Stralen (MG). Maura Pacheco (RJ), Gilson Cantarino (RJ) & Cornelis Van Stralen (MG).

CONSELHO CONSULTIVO ADVISORY COUNCIL


Sarah Escorel (RJ), Odorico M. Andrade (CE), Nelson Rodrigues dos Santos (SP), Lucio Sarah Escorel (RJ), Odorico M. Andrade (CE), Nelson Rodrigues dos Santos (SP), Lucio
Botelho (SC), Antonio Ivo de Carvalho (RJ), Roberto Medronho (RJ), José Francisco da Silva Botelho (SC), Antonio Ivo de Carvalho (RJ), Roberto Medronho (RJ), José Francisco da Silva
(MG), Luiz Galvão (WDC), André Médici (DF), Jandira Feghali (RJ), José Moroni (DF), Ary (MG), Luiz Galvão (WDC), André Médici (DF), Jandira Feghali (RJ), José Moroni (DF), Ary
Carvalho de Miranda (RJ), Julio Muller (MT), Silvio Fernandes da Silva (PR) & Sebastião Carvalho de Miranda (RJ), Julio Muller (MT), Silvio Fernandes da Silva (PR) & Sebastião
Loureiro (BA). Loureiro (BA).

EDITOR PUBLISHER
Paulo Amarante (RJ) Paulo Amarante (RJ)

CONSELHO EDITORIAL PUBLISHING COUNCIL


Jairnilson Paim (BA), Gastão Wagner Campos (SP), Ligia Giovanella (RJ), Edmundo Gallo (DF), Jairnilson Paim (BA), Gastão Wagner Campos (SP), Ligia Giovanella (RJ), Edmundo Gallo (DF),
José Gomes Temporão (RJ), Francisco Campos (MG), Paulo Buss (RJ), Eleonor Conill (SC), José Gomes Temporão (RJ), Francisco Campos (MG), Paulo Buss (RJ), Eleonor Conill (SC),
Emerson Merhy (SP), Naomar de Almeida Filho (BA) & José Carlos Braga (SP) Emerson Merhy (SP), Naomar de Almeida Filho (BA) & José Carlos Braga (SP)

SECRETARIA EXECUTIVA EXECUTIVE SECRETARIES


Marília Correia Marília Correia

INDEXAÇÃO INDEXATION

Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS)The articles about Health

Os artigos sobre História da Saúde estão indexados pela Base HISA – Base History are indexed according to the HISA Base – Base Bibliográfica em História da Saúde Pública na
Bibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe América Latina e Caribe (Bibliographic Base on History in Latin America and the Caribbean)

Apoio
A Revista Saúde em Debate é
associada à Associação Brasileira
de Editores Científicos
REVISÃO DE TEXTO PROOFREADING
Sonia Regina P. Cardoso & Therezinha Bomfim – português, Sonia Regina P. Cardoso & Therezinha Bomfim – portuguese,
Benjamin Adam Kohn – inglês, Benjamin Adam Kohn – english,
Arlete Santos de Oliveira – normatização bibligráfica Arlete Santos de Oliveira – bibliographic standardization

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Felipe Braga, Paulo Vermelho, Priscila Costa & Sandra Pereira Felipe Braga, Paulo Vermelho, Priscila Costa & Sandra Pereira

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2.000 exemplares 2,000 copies

Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em julho de 2007. This publication was printed in Rio de Janeiro on July, 2007.
Capa em papel couche 180 gr Cover in couche paper 180 gr
Miolo em papel off set 75 gr Core in off set paper 75 gr

Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez. 1976)
– São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2005.

v. 29; n. 71; 27,5 cm

Quadrimestral
ISSN 0103-1104

1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES

CDD 362.1
Rio de Janeiro v.29 n.71 set./dez. 2005

ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES


Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
ISSN 0103-1104
SUMÁRIO / SUMMARY

EDITORIAL / EDITORIAL ...................................................... 226 Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia
Development and Health: in search of a new Utopia
ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES Carlos Augusto Grabois Gadelha ............................................. 326

A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar
The exclusion of medical assistance coverage from HMOs a universalidade com integralidade, equidade e participação
Mário Scheffer ............................................................... 230 To regulate the EC nº 29, to improve the management model and realize the
universality with integrality, equity and participation
Municípios brasileiros fronteiriços e Mercosul: características e iniciativas de Nelson Rodrigues dos Santos ................................................. 338
cooperação em saúde
Brazilian border towns and the Mercosur: characteristics and initiatives of Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde
cooperation in health Notes on the decentralization process of health care
Luisa Guimarães & Ligia Giovanella ......................................... 247 Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato ........................................ 352

O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúde
The impact of the Lula government economic policy on Social Security and the The current situation and prospects of universal health systems
Unified Health System Hans-Ulrich Deppe ........................................................... 364
Ãquilas Nogueira Mendes & Rosa Maria Marques ........................... 257
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior considerações
Health Policy in the Lula government and the least worse dialectic From State Reform to the Reform of Federal Hospital Administration: Some
Carmen Fontes Teixeira & Jairnilson Silva Paim .............................. 267 Considerations
Lenir Santos ................................................................. 370
O direito à participação no Governo Lula
The right to participation in the Lula Government
José Antonio Moroni ......................................................... 283 DOCUMENTOS/DOCUMENTS
O lugar estratégico da gestão na conquista do SUS pra valer
The strategic place of management in the attainment of a genuine Unified
ARTIGOS DE OPINIÃO/ OPINION ARTICLES Health System ............................................................................. 381

O SUS pra valer: universal, humanizado e de qualidade


Poteção Social em um Mundo Globalizado
An Effective Unified Health System:
Social Protection in a Globalized World
universal, humanized and of high quality ........................................... 384
Sonia Fleury ................................................................ 304

A Identidade do CEBES
Saúde, Desenvolvimento e Globalização
The identity of CEBES ...................................................................... 396
Health, Development and Globalization
Edmundo Gallo, Janice Dornelles de Castro, Joseane Carvalho Costa, Vivian
CEBES entrevista José Gomes Temporão, ministro da Saúde
Studart & Sandra Willecke .................................................. 314
CEBES interviews José Gomes Temporão, the Health Minister ...................... 400

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 71, p. 107-108, set./dez. 2005 225
EDITORIAL

REFUNDAÇÃO DO CEBES

C om este número da revista Saúde em Debate a dire


toria nacional, eleita para o período 2006-2009, di-
vulga sua plataforma política (veja a seguir). O texto,
telista, patrimonial e processos que perpetuam o exer-
cício elitista do poder, em um campo permanente de
luta por espaços de participação e garantia dos direi-
juntamente com o documento “A identidade política do tos das populações marginalizadas. Portanto, o repen-
CEBES”, publicado no corpo da revista, constituem as sar sobre o processo de saúde-doença e suas repercus-
orientações políticas desta diretoria, as quais deverão sões sobre a organização das práticas, a renovação
ser seguidas de outros esforços de reflexão sobre nos- institucional e a inovação gerencial para democratiza-
sa estratégia. ção da saúde integram um projeto que merece mobili-
Outros documentos publicados neste número são: zação constante, e o CEBES será um ator autônomo,
“O SUS pra valer” e “O lugar estratégico da gestão na capaz de articular redes políticas que exerçam a crítica
conquista do SUS pra valer”. O primeiro é produto de como instrumento de reflexão e ação.
um esforço conjunto das entidades que compõem o
Fórum da Reforma Sanitária Brasileira e representa 2. Mais do que atuar na trincheira do aparato estatal, o
nossa posição comum em relação aos desafios atuais CEBES tem como missão a luta pela hegemonia, parti-
do processo da reforma; o segundo demonstra a posi- cipando na construção e ampliação da consciência sa-
ção que o CEBES levou para o debate sobre o modelo nitária e na constituição de sujeitos políticos emanci-
de gestão hospitalar, na última reunião do Conselho pados. A disputa por projetos de sociedade – da liberal
Nacional de Saúde, em junho 2007. à socialista – se dá com cada vez maior intensidade,
Com a publicação destes documentos, pretendemos incidindo no campo social por meio da difusão de va-
manter nosso compromisso de ampliar o debate políti- lores individualistas, consumistas e submissos a uma
co sobre nossa estratégia e análise de conjuntura. inexorabilidade que prescinde da história e da política.
Como o CEBES sempre aliou a análise política à Ao lutar pela compreensão da saúde coletiva, como
difusão do conhecimento científico, os artigos que com- um bem público e socialmente determinado, propug-
põem este número representam algumas das contribui- nando sistemas de atenção baseados nos valores da
ções mais importantes de especialistas, fruto de inves- solidariedade e na garantia de direitos; nas práticas
tigação original e/ou de reflexão crítica, para a com- integrais da promoção à reabilitação; na exigência da
preensão das políticas sociais e de saúde. participação ativa dos cidadãos nas decisões sobre sua
A qualidade destas contribuições atesta os compro- saúde e sobre a política de saúde, estamos permanen-
missos firmados por esta diretoria em relação à Refun- temente lutando por uma sociedade mais justa. O CE-
dação do CEBES e à revitalização de seus instrumentos BES precisa ampliar sua capacidade de se tornar um
tradicionais de comunicação, o mais importante deles interlocutor dos meios de comunicação massivos, di-
sendo a revista Saúde em Debate. fundindo conhecimentos e valores que nos conduzam à
busca de respostas que permitam aglutinar as forças
sociais que se orientam pela busca da paz e redução
Plataforma da Refundação do CEBES da violência.

1. O CEBES é um espaço plural e não partidário, com- 3. A trajetória da Reforma Sanitária é um enredo com-
prometido com a construção da Democracia e Saúde, plexo entre a força de um forte movimento de transfor-
entendendo que a democracia vai além da instituciona- mação social, ou seja, instituinte, e a bem-sucedida
lidade e da representação, passando pela construção estratégia de ocupação de espaços instituídos. Contra-
de uma esfera pública plural e inclusiva, na qual os ditoriamente, a cada vez que se avança nos espaços
cidadãos se reconheçam como iguais e sujeitos de di- instituídos, o que representa nossa pujança e presença
reitos. Isto implica, necessariamente, na transforma- na correlação de forças, novas contradições se colo-
ção do aparato institucional, forjado na tradição clien- cam, a principal delas sendo a redução do poder de

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transformação do movimento sanitário. Se o poder é 6. A institucionalização das políticas sociais no novo
mais bem percebido pelo que ele é capaz de concretizar padrão constitucional baseado na descentralização e
institucionalmente, ele só tem sentido e direção se man- participação gerou uma arquitetura institucional ino-
tiver unido às bases sociais que radicalizam a deman- vadora, porém de eficácia limitada, pois a participa-
da democrática. O CEBES não pode perder esta caracte- ção social ficou determinada pelo desenho institucio-
rística de movimento social, capaz de empolgar pelo nal do aparato estatal. A superação desta fragmenta-
vigor de sua proposta e, ao mesmo tempo, as caracte- ção nos permitirá levar à prática a integralidade das
rísticas de uma organização social, capaz de incidir na políticas cuja centralidade deverá ser sempre o cida-
realidade com a clareza de suas propostas e sua capa- dão usuário. Somente se articulando com os demais
cidade de articulação política. atores políticos da sociedade civil organizada podere-
mos transcender a fragmentação que nos retira poten-
cialidade. O CEBES poderá jogar um papel crucial na
4. A institucionalização da Reforma Sanitária corres-
articulação política da Seguridade Social, viabilizando
pondeu a um enorme avanço democrático e ao estabe-
o fortalecimento dos atores sociais no âmbito da Segu-
lecimento de um novo marco civilizatório, no qual o
ridade com a efetivação de Conselhos, Conferências e
direito à saúde se encontra legalmente entronizado. No
ações intersetoriais de forma a dar realidade ao Orça-
entanto, a não-realização deste direito no cotidiano da mento da Seguridade Social.
população, em sua interação com uma realidade insti-
tucional precária, é um permanente solapamento da 7. A sociedade civil organizada tem se articulado em
cultura e dos valores da democracia, levando cada dia redes que buscam pensar formas mais eficazes de atu-
mais a seu descrédito. Esta tarefa de fazer com que os ação política, permitindo superar os limites impostos
direitos enunciados se transformem em direitos em exer- pela setorialização, fragmentação e tentativas de coop-
cício pleno da cidadania continua pendente e requer tação. O CEBES necessita assumir um papel neste mo-
nossa ação política contundente e não conivente com a vimento social, articulando-se com a sociedade civil
ineficiência e ineficácia, com o clientelismo e a corrup- organizada para pensar os limites da democracia bra-
ção, com qualquer forma de discriminação. Nossa ta- sileira. Somente com uma organização forte da socie-
refa no CEBES é demonstrar que um sistema público dade civil podemos fazer a democracia avançar no sen-
universal, de qualidade e humanizado é viável, hoje. tido de redução do uso das políticas públicas como
moeda de troca para apoio dos governantes, exigindo o
5. O crescimento de um mercado de planos e seguros aumento da participação social nas áreas econômicas
de saúde subsidiado, em parte por recursos públicos. que decidem o uso dos recursos públicos, o aumento
Assim a regulação requer um esforço de nossa parte da transparência nas contas públicas e nos processos
para pensar formas de intervenção pública que garan- decisórios, o fortalecimento das carreiras públicas, a
tam simultaneamente a equidade da atenção à saúde, regulamentação dos mecanismos legislativos de inici-
ativa popular, o caráter impositivo do orçamento apro-
os direitos dos consumidores e a ética profissional. A
vado pelo Congresso com a eliminação das emendas
produção de insumos e tecnologias, subordinada a uma
individuais, a reforma eleitoral.
lógica de acumulação capitalista precisa ser revertida
para a produção de bens e serviços em função das ne-
cessidades. O CEBES deve se articular com os movi- A DIRETORIA NACIONAL
mentos nacionais e internacionais que se mobilizam
em torno da produção de medicamentos e garantia de
atenção à saúde para os países e populações do deno-
minado ‘terceiro mundo’.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 71, p. 107-108, set./dez. 2005 227
EDITORIAL

T hrough this edition of the magazine Saúde em De-


bate the national directorate, elected for the 2006-
2009 term, discloses its political platform (see below).
ate the elitist hold on power, set in a context of perma-
nent struggle for spaces for participation and the assu-
rance of rights of marginalized populations. Therefore,
The text, together with the document “The political iden- the reappraisal of the health-disease process and its
tity of CEBES", published in the body of the magazine, repercussions on the practicing organizations, and the
constitute the political orientations of this directorate, institutional renovation and managerial innovation in
which shall be followed up by other efforts to reflect on order to democratize health form a project that deser-
our strategy. ves constant activation, and CEBES shall represent an
The other documents printed in this edition are: autonomous author, capable of articulating political
“A genuine Unified Health System” and “The strategic networks that use criticism as an instrument of reflecti-
position of management in achieving a genuine Unified on and action.
Health System”. The former is the result of a joint effort
by the organizations that form the Brazilian Health Re- 2. More than working in the trenches of the state appa-
form Forum and represents our common position in ratus, CEBES has the mission of fighting for hegemony,
relation to the current challenges faced by the reform participating in the construction and amplification of
process; the latter demonstrates the stance adopted by health awareness and in the constitution of emancipa-
CEBES in the hospital management model debate at the ted political subjects. The dispute for societal projects -
last National Health Council meeting held in June 2007. from the liberal to the socialist - becomes ever more
With the publication of these documents, we in- intense, incurring into the social field by means of the
tend to maintain our commitment to extending the poli- inexorable diffusion of individualist, consumerist and
tical debate about our strategy and analysis regarding submissive values that dispenses with history and po-
the prevailing outlook. litics. By fighting for the understanding of collective
As CEBES has always united political analysis health as a publicly and socially determined asset, de-
with the diffusion of scientific knowledge, the articles fending the systems of health care based on the values
that compose this edition represent some of the most of solidarity and on the guarantee of rights; by the inte-
important contributions made by specialists; the result gral practices to promote rehabilitation; by demanding
of original investigation and/or critical reflection for active participation by citizens in the decision-making
our understanding of social health policies. about their health and the health policies; by such acti-
The quality of these contributions serves as testimony ons we are constantly fighting for a fairer society. CE-
to the commitments made by this directorate in relation BES needs to extend its capacity to become an interlo-
to the Refoundation of CEBES and the revitalization of cutor of the mass media, spreading knowledge and va-
its traditional instruments of communication, the most lues that lead us to the search for answers which may
important of which is the magazine Saúde em Debate. allow us to unite the social forces guided by the quest
for peace and diminishing violence.
Platform for the Refoundation of CEBES
3. The course of the Brazilian Health Reform is a com-
1. CEBES is a plural and non-partisan space, commit- plex plot involving the force of a strong campaign for
ted to building Democracy and Health, with the unders- social transformation, that is, the institutor, and the
tanding that democracy goes beyond institutionalism successful strategy of occupying the instituted spaces.
and representation, covering the construction of a di- Perversely, each time progress is made in the instituted
verse and inclusive public sphere, in which citizens re- spaces, representing our strength and presence in cor-
cognize one another as equals and subjects with rights. relation to the forces, new contradictions arise, the main
This necessarily implies the transformation of instituti- one being reduction to the transformative power of the
onal apparatus, currently cast in the tradition of clien- health reform movement. If the power is best construed
telism, patrimonial values and processes that perpetu- by that which it is capable of institutionally establishing,

228 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 71, p. 225-228, set./dez. 2005
then it only has sense and direction if it remains united architecture, one that is, nevertheless, of limited effec-
at the social bases that radicalize the democratic de- tiveness, as the social participation was determined by
mand. CEBES cannot lose this characteristic of a soci- the institutional design of the state apparatus. Overco-
al movement, capable of enthusing by the vigor of its ming this fragmentation will allow us to put into prac-
proposal and, at the same time, the characteristics of a tice all the policies which should always be aimed at
social organization, capable of affecting the state of the citizen end-user. Only by interacting with the other
affairs with the clarity of its proposals and its capacity political actors of the organized civil society will we be
of political coordination. able to transcend such fragmentation that deprives us
of such capability. CEBES will be able to play a crucial
4. The institutionalization of the Health Reform has cor- role in the political organization of Social Security, ena-
responded to a huge democratic advance and the esta- bling the strengthening of social actors within the soci-
blishment of a new milestone in the development of our al security scope by means of creating Councils, Confe-
civilization, in which the right to health care is now rences and private-public joint sector actions in such a
assured in law. However, the failure to uphold this way as to give substance to the Social Security Budget.
right in the everyday lives of people who find themsel-
ves in contact with a precarious institutional reality 7. The organized civil society has organized itself in
constantly undermines the culture and values of demo- networks that seeks to think of more effective forms of
cracy, leading to it being less and less credible with political action, enabling it to exceed the limits impo-
each passing day. The task of turning the rights on pa- sed by the division into private and public sectors, frag-
per into rights fully practiced by citizens continues to mentation and attempts at co-optation. CEBES needs to
be a pending matter and requires our categorical politi- assume a role in this social movement, cooperating with
cal action which will not accept ineffectiveness and ine- the organized civil society to conceive the limits of Bra-
fficiency, clientelism and corruption or any form of dis- zilian democracy. Only with the strong organization of
crimination. Our task at CEBES is to demonstrate that the civil society can we take democracy forwards inso-
a universal public system, of high quality and a huma- much as reducing the use of public policies as a cur-
nized nature is viable today. rency to trade for the support of governors, demanding
increased social participation in the economic areas that
5. The growth in a market of health insurance schemes decide on the use of public funds and increased trans-
and health maintenance organizations that are partly parency of public accounts and decision-making pro-
subsidized by public resources. Regulation thus re- cesses, the strengthening of public careers, the regula-
quires an effort on our part to think of forms of public tion of legislative mechanisms of popular initiatives,
intervention that simultaneously ensure equality of the indispensable character of Congress-approved bud-
health care, consumer rights and professional ethics. get with the elimination of individual amendments, and
The production of consumables and technologies su- electoral reform.
bordinate to a logic of capitalist accumulation needs to
be reverted to the production of goods and services ba-
sed on needs. CEBES should cooperate with the natio- THE NATIONAL DIRECTORATE
nal and international movements that act in relation to
the production of medications and guaranteeing health
care in countries and populations of the so-called "third
world".

6. The institutionalization of social policies in the new


constitutional standard based on decentralization and
participation has generated an innovative institutional

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 71, p. 107-108, set./dez. 2005 229
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados
ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES

A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde


privados
The exclusion of medical assistance coverage from HMOs

Mário Scheffer1 RESUMO

O artigo trata das ações judiciais relacionadas à cobertura assistencial de


planos de saúde julgadas em segunda instância pelo Tribunal de Justiça do
Recebido: Jan./2007 Estado de São Paulo. São descritas e analisadas as demandas levadas ao
Aprovado: Maio/2007
Poder Judiciário por usuários de planos de saúde que reclamam negação de
assistência ou restrição de atendimento. Também são avaliados o
comportamento e as argumentações da Justiça nas decisões, assim como as
possíveis implicações, para o sistema de saúde brasileiro, da exclusão de
coberturas praticadas pelos planos de saúde.

PALAVRAS-CHAVE: Prestação de Cuidados de Saúde; Poder Judiciário; Cobertura


de Serviços Privados de Saúde

ABSTRACT

This paper deals with lawsuits filed in relation to medical assistance


coverage of HMOs judged by the São Paulo State Court of Appeal. The article
describes and analyzes legal claims taken to court by users of such HMOs
complaining of denial or restriction of medical assistance. Also assessed are
the attitudes and arguments behind court decisions, as well as the
1
Comunicador social, sanitarista, Mestre e
implications that such exclusions and limitations of HMOs may have for the
Doutorando do Departamento de Medicina Brazilian health care system.
Preventiva da Faculdade de Medicina da
USP; membro da Diretoria do CEBES. KEYWORDS: Health Care Provision; The Judiciary; Private Health Care Service
Email: mscheffer@uol.com.br Coverage

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 231
SCHEFFER, MÁRIO

INTRODUÇÃO privada e ao lucro devem ser respei- gras impositivas. Todas as normas
tados, desde que prevaleçam o inte- constitucionais referentes à Justiça
A Constituição Federal (BRASIL, resse da coletividade e a busca do Social – inclusive as programáticas
1988) definiu a saúde como direito bem comum. O fornecimento de ser- – geram imediatamente direitos sub-
de todos e dever do Estado, estabele- viços de saúde adequados deve, por- jetivos para os cidadãos. Os concei-
ceu os princípios de universalidade tanto, se sobrepor aos interesses par- tos vagos ou imprecisos dessas nor-
e eqüidade, reconheceu a livre atua- ticulares e econômicos. mas não têm impedido o reconheci-
ção da iniciativa privada e atribuiu Ao regulamentar a ordem social, mento do Judiciário (MELLO, 1981).
relevância pública ao setor. estabelecer os direitos dos cidadãos Para Wagner (2005), quando a
As políticas e ações de saúde de- e definir em quais situações o Esta- atenção à saúde é pautada pela com-
vem, assim, se submeter à regula- do deve intervir para garantir justiça petitividade e pelas leis do mercado,
mentação, fiscalização e controle do e equilíbrio, a Constituição reservou tende a haver degradação da quali-
poder público, sejam executadas pelo especial atenção à saúde, tratada no dade, da eficiência e da responsabili-
Estado – por meio de serviços pró- dade. Por isso, completa, é necessá-
prios, conveniados ou contratados – rio manter, por meio da regulação, o
ou pela iniciativa privada. caráter público dessa atividade.
No entanto, somente dez anos de- Algumas justificativas para a uni-
pois da Constituição, com a aprova- MAS, AFINAL, O SERVIÇO formização do direito à saúde entre
ção da Lei 9.656(BRASIL, 1988), os o Sistema Único de Saúde (SUS) e os
PARTICULAR DE UMA EMPRESA DE PLANO DE
planos e seguros de saúde privados planos privados extrapolam o cam-
passaram a ser regulados pelo Esta-
SAÚDE, QUE OPERA UMA ATIVIDADE po da legislação, conforme pode-se
do. ECONÔMICA RELACIONADA À SAÚDE, POSSUIRIA observar em documento produzido
Mas, afinal, o serviço particular pelo Conselho Nacional de Saúde
OS MESMOS DEVERES DO ESTADO?
de uma empresa de plano de saúde, (CNS) (2001)1 :
que opera uma atividade econômica
relacionada à saúde, possuiria os (...) na prática, as interferências entre
mesmos deveres do Estado? Seus os recursos financeiros e assistenciais en-
contratos deveriam estar submetidos texto legal na condição de direito tre o público e privado na área da saúde,

às normas constitucionais e infra- em nosso país, são muito mais complexas


público fundamental e inalienável.
e extensas e requerem, respeitando-se o
constitucionais diretamente ligadas O texto constitucional não se li-
direito da atuação das empresas privadas,
à saúde? mita apenas a traçar recomendações
definições claras sobre a subordinação dos
Tem sido cada vez mais refutada que devem ser cumpridas quando da interesses privados aos públicos. (...) as
a idéia de que a iniciativa privada – elaboração de legislações específicas. clientelas são segmentadas, mas compar-
no caso, as operadoras de planos e A Constituição não é um simples ide- tilham a mesma base física de recursos no
seguros de saúde – possa ficar imu- ário, não é apenas a expressão de que se refere à capacidade instalada e aos
ne à normatividade mais rigorosa do anseios, aspirações e propósitos, mas subsídios fiscais que viabilizam as cober-
poder público. O direito à atuação a transformação de tudo isso em re- turas (BRASIL, 2001, p. 4).

Regulamentação dos Planos e Seguros Saúde (Notas Preliminares) – Grupo de Trabalho da Comissão de Saúde Suplementar do Conselho
1

Nacional de Saúde, 21/08/2001.

232 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados

Cohn (2001) vai além das dimen- explorador tem responsabilidades a reito de livre exploração da ativida-
sões legais e jurídicas ao apontar a saldar no ato exploratório. Ou seja, de econômica por meio da prestação
dificuldade de vislumbrar uma polí- tal ato não pode ser espoliativo. Se o de um serviço essencial, que é a saú-
tica que desvincule o direito de aces- lucro é uma decorrência lógica e de.
so dos indivíduos à saúde da lógica natural da exploração permitida, ele
do mercado. A vinculação, diz a au- não pode ser ilimitado; encontrará
tora, está relacionada à disponibili- resistência e terá que ser barrado toda AS EXCLUSÕES DE
dade de recursos para essa parcela vez que puder causar dano à socie- COBERTURAS ASSISTENCIAIS
da população, clientela de planos de dade.
saúde, mas também está ligada à A defesa do consumidor, confor- A exclusão ou limitação de co-
lógica implementada pelo órgão re- me estabelece a Constituição, é um berturas assistenciais sempre foi um
gulador, a Agência Nacional de Saú- princípio que deixa de conferir à ati- problema recorrente com repercussão
de Suplementar (ANS). vidade econômica a liberdade irres- direta na preservação da saúde e na
trita. É o que defende, entre outros, vida da população usuária dos pla-
(...) o que se verifica neste setor é uma Marques (2004): nos de saúde privados no Brasil.
crescente ‘tecnificação’ da política, isto é, a Esta prática, que também é res-
utilização de instrumentos técnicos como (...) Ao garantir aos consumidores a sua ponsável por interferências na orga-
fator determinante na definição das políti- defesa pelo Estado a Constituição criou uma nização de todo o sistema de saúde
cas (obviamente aí redominando as razões antinomia necessária em relação a muitas brasileiro, chama a atenção para a
econômicas) em substituição da política pro- de suas próprias normas, flexibilizando- as, necessidade de melhor entendimento
priamente dita. No entanto, enfrentar a impondo em última análise uma interpreta- acerca da atuação do setor privado,
questão da saúde como direito do cidadão e ção relativa dos princípios em conflito, que sua relação com as políticas de saú-
do consumidor exigiria exatamente o cami- não mais podem ser interpretados de forma de e os entraves que representa para
nho inverso: trazer a sociedade para dentro absoluta ou estaríamos ignorando o texto a plena efetivação do direito à saúde
do Estado, ao invés de distanciá-la por meio constitucional (MARQUES, 2004, p.577). no país.
da mistificação da técnica (COHN, 2001, p Antes mesmo do processo de re-
41). Ou seja, ao estipular como prin- gulamentação da saúde suplementar
cípios tanto a livre concorrência no Brasil, a restrição de coberturas
A atuação da iniciativa privada, quanto a defesa do consumidor, o era prática inerente ao negócio dos
subordinada a preceitos éticos, de boa legislador garante que os cidadãos planos e seguros saúde, que sempre
fé, de responsabilidade e justiça so- não podem ser explorados, pois a eles considerou a seleção de riscos e as
cial, foi tratada por Nunes (1999), são outorgados direitos. limitações de atendimento como cri-
para quem a leitura do texto consti- A seguir, será apresentado o pro- térios garantidores da preservação do
tucional define que o mercado de blema das exclusões de coberturas lucro e da sustentabilidade econômi-
consumo aberto à exploração não assistenciais pelos planos de saúde, ca das operadoras.
pertence ao explorador, mas sim à que revela, dentre outros aspectos, a Neste sentido a legislação especí-
sociedade, e em função dela, de seu dificuldade de compatibilização en- fica representou, em parte, um avan-
benefício, é que se permite a explo- tre os direitos à saúde e os do consu- ço para a parcela da sociedade aten-
ração. Como decorrência disso, o midor, de um lado e, de outro, o di- dida pelos planos de assistência mé-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 233
SCHEFFER, MÁRIO

dica suplementar, pois tratava-se de e do acesso à assistência à condição quada, uma vez que ele envolve in-
um segmento que, há mais de 30 de mercadoria. teresses e expectativas diferentes.
anos, atuava seguindo as “leis” do Nas análises sobre o setor de saú- Os temas ligados à regulação dos
livre mercado, sem normas regula- de suplementar no Brasil, a amplitu- planos de saúde, entre eles a cober-
mentadoras, controle ou fiscalização de das coberturas, assim como os tura assistencial, antes restritos aos
por parte do Estado. gastos com a remuneração dos pres- atores diretamente envolvidos – em-
A Lei 9.656/98(BRASIL, 1998) tadores de serviços e o valor das presas, prestadores e consumidores
trouxe, entre as inovações conside- mensalidades, são apontados como – passaram a contar com um órgão
radas ao mesmo tempo positivas e elementos determinantes para o fun- regulador e a chamar cada vez mais
insuficientes, a definição de padrões cionamento e o comportamento das a atenção dos sanitaristas, do meio
mínimos de cobertura e o estabeleci- empresas de planos de saúde presen- acadêmico e das instâncias de ges-
mento de critérios para a entrada, tes no mercado. tão e controle social do SUS, tendo
funcionamento e saída de empresas em vista as implicações com as polí-
no setor. Também transferiu para o ticas públicas de saúde.
Poder Executivo a responsabilidade Vários representantes destes se-
pela regulação e fiscalização dessas tores, até então ausentes ou omissos
operadoras privadas, tanto os aspec- ...uma década antes do primeiro no processo regulatório da saúde
tos assistenciais como aqueles liga- suplementar, passaram a discutir
dos à atividade econômica.
marco regulatório da saúde suple- regras e políticas que sejam capazes
Ao oferecer no mercado um pla- mentar, a sociedade já havia de tratar o sistema de saúde de uma
no de saúde, individual ou coletivo, forma mais ampla; que busquem o
decidido(...) qual o tipo de sistema
as operadoras hoje tendem a obser- equilíbrio entre a garantia do direito
var normas estabelecidas especifica- e de assistência à saúde à saúde e os aspectos econômico-fi-
mente para esta atividade, sendo queria para o país. nanceiros envolvidos; que mante-
muitas delas ainda restritivas quan- nham o norteamento pelos marcos
to à cobertura assistencial. doutrinários e de relevância pública
Vale ressaltar que, uma década do SUS; e que promovam a convi-
antes do primeiro marco regulatório Situações de exclusões de cober- vência democrática entre os legítimos
da saúde suplementar, a sociedade tura assistencial, constantemente interesses envolvidos, viabilizando-
já havia decidido, por meio das con- denunciadas ou reivindicadas por os minimamente e de forma negoci-
quistas constitucionais, qual o tipo usuários e consumidores, expõem, ada (SCHEFFER; BAHIA, 2005).
de sistema e de assistência à saúde na prática, o desequilíbrio e o confli- O Conselho Nacional de Saúde
queria para o país. Não havia espa- to entre operadoras, prestadores de (BRASIL, 2001), por meio da sua Co-
ço – na concepção cunhada pelo serviços e clientes. missão Permanente de Saúde Suple-
Movimento da Reforma Sanitária, Este fato evidencia que nem o mentar, afirma que uma política para
abordada na 8ª Conferência Nacional suposto virtuosismo da livre inicia- este segmento dos planos de saúde
de Saúde e respaldada pelo Congres- tiva, nem as normas reguladoras deve orientar-se pela defesa do direi-
so Nacional após ampla mobilização implementadas têm sido capazes de to à saúde, e não apenas se ocupar
social – para a diminuição da saúde solucionar o problema de forma ade- em ditar regras para o mercado. O

234 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados

CNS rechaça a idéia, bastante disse- as, que possuem planos de saúde clusões impostas pelos planos anti-
minada, que aponta a existência de individuais, familiares ou coletivos, gos ‘empurram’ para o SUS clientes
dois sistemas não relacionados e dis- precisam recorrer, com certa freqüên- de planos de saúde sem condições
tintos: o SUS, considerado o sistema cia, à rede pública de saúde diante de arcar com os custos de serviços
dos pobres, e os planos e seguros de de situações de exclusões de cober- particulares.
saúde, para os trabalhadores formais tura e de restrições de atendimento. As análises disponíveis sobre a
e a classe média. Tais limitações são impostas por regulamentação, ao se referirem à
Nesta perspectiva, defendida pelo cláusulas contratuais antigas, mas restrição das coberturas privilegiam
CNS, que é a instância maior de con- também são autorizadas pela própria a sua relação com o equilíbrio eco-
trole social das políticas de saúde, legislação vigente ou por normas nômico-financeiro das operadoras.
os problemas relacionados à saúde editadas pela ANS. Não raro, são li- Faz-se necessário avaliar também a
suplementar – a exemplo das cober- mitações resultantes de cláusulas intensidade das regras sobre cober-
turas assistenciais – devem ser abor- turas e a efetividade do seu cumpri-
dados não apenas como um assunto mento, o que poderá contribuir para
que diz respeito aos mais de 35 mi- uma melhor compreensão da com-
lhões de brasileiros ligados aos pla- plexidade do sistema de saúde bra-
nos de saúde privados, mas também sileiro.
considerando as repercussões da con- ... SABE-SE QUE NÃO SÃO POUCOS OS Devem ser levados em conta os
princípios constitucionais da digni-
figuração e das práticas deste setor RECURSOS DESPENDIDOS PELO SUS
nas diretrizes da política nacional de dade humana, do direito à vida e do
saúde.
PARA PRESTAR ASSISTÊNCIA A TODO direito à saúde; os pressupostos re-
Os limites e garantias contratu- TIPO DE COBERTURA NEGADA lativos ao sistema de proteção e de-
ais de coberturas estabelecidas pe- fesa do consumidor; as disposições
PELOS PLANOS DE SAÚDE ...
las empresas deste segmento confi- do Código Civil; e também os mar-
guram um dos aspectos mais con- cos legais específicos: a Lei 9.656/
troversos da relação público-priva- 98, combinada às Medidas Provisó-
do no sistema de saúde brasileiro. rias que a alteraram e a Lei 9.961/
Apesar de ainda não quantificados – contratuais leoninas e até de má-fé 00, promulgada em 2000 com o ob-
tendo em vista os poucos estudos dis- por parte das empresas. jetivo de criar e normatizar o funcio-
poníveis –, sabe-se que não são pou- Se comparadas às inúmeras res- namento da ANS.
cos os recursos despendidos pelo SUS trições impostas nos contratos de pla- Dentre os supostos méritos da Lei
para prestar assistência a todo tipo nos de saúde assinados antes da le- 9.656/98, propagados durante o seu
de cobertura negada pelos planos de gislação de 1998, as regras atuais processo de tramitação no Congres-
saúde, a exemplo das demandas re- promoveram a ampliação das cober- so Nacional e após a sua promulga-
lacionadas à urgência e à emergên- turas para os chamados planos no- ção, pelo Poder Executivo, figuravam
cia, procedimentos de alto custo e de vos, ou seja, os contratos assinados o impedimento das restrições de aten-
alta complexidade. Os cidadãos, prin- a partir de janeiro de 1999. Ainda as- dimentos e a exigência da cobertura
cipalmente os idosos e os portadores sim, uma série de limitações conti- integral de todas as patologias con-
de patologias crônicas e deficiênci- das na legislação em vigor e as ex- tidas na Classificação Internacional

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 235
SCHEFFER, MÁRIO

de Doenças (CID) da Organização motivos de queixas de usuários de de, o usuário tem poucas possibili-
Mundial da Saúde (OMS), incluindo planos de saúde. Além dos proble- dades de caminhos a seguir. A op-
todos os meios diagnósticos e tera- mas relacionados à cobertura assis- ção imediata é pagar pelo aten-
pêuticos disponíveis. Decorridos vá- tencial, a regulação pretendida para dimento particular. Como pou-
rios anos da vigência da Lei dos Pla- o mercado ainda não solucionou di- cos têm condição de arcar com
nos de Saúde, há muitos obstáculos versas outras situações. esses custos, restaria procurar
impedindo a real efetivação da co- São exemplos a rescisão unilate- o atendimento nas unidades do
bertura prevista ou pretendida nos ral de contrato, o descredenciamento Sistema Único de Saúde ou, até
marcos legais. de prestadores de serviços, as limi- mesmo, ficar sem a cobertura
Até a existência da nova legisla- tações de período de internação, os necessária.
ção, a extensão da cobertura assis- longos períodos de carência e as Outros podem tentar buscar
tencial era, na prática, determinada mensalidades abusivas em função de saídas mediante queixas e pro-
pelos contratos – individuais ou co- mudanças de faixa etária. Nem mes-
cessos administrativos junto à
letivos – assinados entre os usuári- operadora, junto aos departa-
os e as operadoras de planos de saú- mentos de recursos humanos
de. Com o novo marco legal, os con- das empresas (no caso dos pla-
tratos passaram a ser padronizados nos coletivos e autogestões),
e orientados pelas diretrizes da Lei NA PRÁTICA, APESAR DA REGULAMENTAÇÃO, A mediante denúncias aos órgãos
9.656/98, bem como por diversas de defesa do consumidor ou re-
EXCLUSÃO DE ATENDIMENTOS AINDA FIGURA
resoluções editadas pelo Conselho clamações à agência regulado-
Nacional de Saúde Suplementar (Con- COMO UM DOS PRINCIPAIS MOTIVOS DE ra (via Disque ANS, principal-
su) e, a partir de 2000, pelo órgão QUEIXAS DE USUÁRIOS DE PLANOS DE SAÚDE mente). D i a n t e d a i n e f i c á c i a
regulador: a ANS. destas alternativas, só resta ao
Assim, a assistência e a amplitu- usuário de plano de saúde, que
de da cobertura oferecida pelos pla- tiver condições de constituir
nos de saúde estão condicionadas a a d v o g a d o , r e c o r r e r a o Po d e r
vários fatores: época da contratação Judiciário para a exigência de
mo o ressarcimento ao SUS, a ser
(há contratos novos, antigos e adap- direitos supostamente desres-
realizado toda vez que um usuário
tados); cobertura definida pela lei peitados.
de plano de saúde é atendido em
para cada tipo de plano contratado unidade pública de saúde, foi total- A urgência da necessidade de
após janeiro de 1999 (há segmenta- mente equacionado pela regulamen- saúde, a consciência dos direitos
ção de coberturas); forma de contra- tação, que também pouco trata da de cidadania, a facilidade de aces-
tação (plano individual/familiar ou relação entre a saúde suplementar e so e a credibilidade das instânci-
plano coletivo) e normatizações es- o Sistema Único de Saúde. as que recebem queixas e recla-
pecíficas do Consu e da ANS. Diante da negativa de atendimen- mações, são alguns dos fatores
Na prática, apesar da regulamen- to ou da exclusão contratual de co- que determinam a busca de ajuda
tação, a exclusão de atendimentos bertura pelo plano de saúde, contra- na tentativa de reverter a situa-
ainda figura como um dos principais posta à iminente necessidade de saú- ção de negação de cobertura.

236 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados

A ANÁLISE DAS metade da receita dos planos de saú- • As doenças mais citadas fo-
AÇÕES JUDICIAIS de em todo o país. ram: câncer (97 menções), doenças
Os principais resultados podem cardiovasculares (78), Aids (30), me-
O presente artigo é baseado em ser agrupados em: a. perfil das co- ningite (21), acidentes e causas ex-
estudo que teve como objetivos: a.
2
berturas excluídas; b. perfil dos pla- ternas (20), cirrose hepática (16), in-
‘quantificar’ o universo de ações nos de saúde denunciados na Justi- suficiência renal (14), hérnia (14),
judiciais relacionadas à negação ou ça; c. teor das decisões e argumen- diabetes (12) e doenças congênitas
limitação de atendimentos e assis- tações. (12).
tência aos clientes de planos de saú- a. Perfil das coberturas excluí- • Dentre as coberturas citadas
de; b. descrever e analisar as prin- das nos acórdãos, a maioria (68%) não
cipais situações levadas aos tribu- • Dentre os grupos de doenças traz especificação de procedimentos.
nais relacionadas à negação de aten- (Classificação Internacional de Do- Mesmo nestes casos, foi possível
dimento, exclusão ou restrição de enças - CID 10) citados nos acórdãos agrupar as coberturas em: assistên-
cobertura; c. ‘analisar’ o comporta- devido a exclusão de cobertura, em cia médica (36%), seguida de inter-
mento do Judiciário nos julgamen- nações (27%), cirurgias (24%), inter-
tos proferidos em segunda instân- nações em UTI (12%) e consultas
cia, comparando-os com os resulta- médicas (1%).
dos de primeira instância. OS PRINCIPAIS RESULTADOS PODEM SER • Dentre as coberturas com es-
O estudo consistiu na análise de AGRUPADOS EM: A. PERFIL DAS COBERTURAS pecificação de procedimentos (32%),
735 decisões judiciais relacionadas os mais citados foram os procedi-
EXCLUÍDAS; B. PERFIL DOS PLANOS DE SAÚDE
a exclusões de coberturas e nega- mentos cirúrgicos e invasivos
ções de atendimento por parte dos DENUNCIADOS NA JUSTIÇA; C. TEOR DAS (39,9%), os procedimentos clínicos
planos de saúde, julgadas em segun- (27,0%), órteses e próteses (9,5%),
DECISÕES E ARGUMENTAÇÕES
da instância pelo Tribunal de Justi- procedimentos diagnósticos e tera-
ça do Estado de São Paulo, entre ja- pêuticos (8,3%), insumos e medica-
neiro de 1999 e dezembro de 2004. mentos (8,3%), procedimentos gerais
A pesquisa foi realizada no Estado (7,0%).
de São Paulo, que conta com cerca um total de 478 menções, prevale- • Agrupando todos os procedi-
de 900 operadoras de planos de as- cem os neoplasmas (20,3%), doen- mentos, os mais citados foram:
sistência médico-hospitalar em ati- ças do aparelho circulatório (16,3%) transplantes (16%), quimioterapia,
vidade; atinge 15,2 milhões de usu- e doenças infecciosas (11,1%). radioterapia e outros procedimentos
ários (40% do total do país); tem alto • Os dois grupos de doenças ligados ao tratamento de câncer
grau de cobertura (38% da popula- mais citados – câncer e cardiopati- (15%), órteses e próteses (9,5%), exa-
ção do estado e 55% da capital têm as – referem-se às duas principais mes diagnósticos (8,3%), implantes
planos de saúde); e movimentou, em causas de morte no Estado de São (5,5%), hemodiálise (5,2%), oxigeno-
2005, 15,2 bilhões de reais, quase a Paulo. terapia (4,6%), fisioterapia (3,7%),

2
Scheffer MC. Os planos de saúde nos tribunais: uma análise das ações judiciais movidas por clientes de planos privados de saúde e
relacionadas à negação de coberturas assistenciais no Estado de São Paulo. [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universi-
dade de São Paulo; 2006. 212 p. Disponível em www.teses.usp.br

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 237
SCHEFFER, MÁRIO

assistência ao recém-nascido (3,7%), cidência de ações relacionadas a b. Perfil dos planos de saúde de-
medicamentos de uso hospitalar procedimentos dispendiosos e espe- nunciados na Justiça
(3,7%) e outros (24,8%). cializados – a exemplo dos trans- • A medicina de grupo é o seg-
• A negação de cobertura de ca- plantes, do tratamento do câncer, da mento de operadoras de planos de
sos relacionados à urgência e emer- hemodiálise e de diversos procedi- saúde mais citado nos acórdãos ana-
gência esteve presente em 109 mentos cirúrgicos e invasivos – traz lisados (54,4%), seguido das segu-
(14,8%) acórdãos analisados. Os ca- indícios da prática adotada pelas radoras (30,2%), cooperativas/Uni-
sos de urgência estão relacionados, operadoras visando à economia de meds (9,8%), filantropia (2,6%), au-
principalmente, a doenças cardio- recursos e ao predomínio da lógica togestão (0,9%) e outros (2,1%).
vasculares, câncer e acidentes. financeira. Ao mesmo tempo indica • Dentre as decisões avaliadas,
• Nas 51 decisões analisadas que que o Sistema Único de Saúde, ao 87,6% referem-se a contratos indivi-
mencionaram a negação de cober- atender estes casos de exclusões de duais, enquanto 10,9% são contra-
tura de transplantes, dentre aqueles
tos coletivos. Os planos coletivos,
que são especificados, os mais cita-
apesar de corresponderem a mais
dos são os transplantes de fígado e
de 70% do mercado, são levados com
de medula. Chama a atenção que a
menos freqüência aos tribunais.
atual regulamentação também de-
Apresentados pelas empresas como
sobriga a cobertura desses procedi-
... O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, AO ‘benefício’ ou como ‘salário indire-
mentos: apenas são obrigatórios os
ATENDER ESTES CASOS DE EXCLUSÕES DE to’, geralmente pressupõem uma
transplantes de rins e córneas.
diluição do risco entre os beneficiá-
• Dentre as decisões judiciais COBERTURAS, ATUA DE FORMA A SUBSIDIAR
rios, que leva a cálculos de custos
analisadas, 31 (4,2%) mencionaram
OS PLANOS DE SAÚDE PRIVADOS per capita e à definição de cobertu-
a negação de cobertura de órteses e
ras. Já os contratos individuais, por
próteses, sendo mais mencionados
implicarem uma concentração do
os stents, marca-passos e cateteres.
• A exclusão de atendimento sob risco, tendem a restringir mais as

alegação de doença preexistente apa- coberturas. Mas também é possível

receu em 174 (23,6%) das decisões coberturas, atua de forma a subsi- supor que o usuário (pessoa física)
judiciais estudadas. Chama a aten- diar os planos de saúde privados. de plano coletivo não tenha alterna-
ção que a exclusão de preexisten- • Além de excluir aquelas doen- tivas diante da limitação imposta.
tes, muito comuns nos contratos ças cujos tratamentos são mais one- Resta-lhe, na maioria das vezes, o
antigos, foi perpetuada pela lei 9656/ rosos, também são excluídas aque- registro da queixa junto ao próprio
98 que manteve este conceito e esti- las que, na visão das operadoras, empregador (RH das empresas, por
pulou dois anos de carência. deviam ser obrigação exclusiva do exemplo). Os usuários podem temer
• Pode-se afirmar que, dentre os sistema público. Dois exemplos são reclamar externamente a negação de
procedimentos especificados, aque- o tratamento da Aids e as hemodiá- atendimento. Esta seria uma forma
les de alta complexidade e alto cus- lises, que são absorvidos em sua de manter a boa relação com o em-
to são mais freqüentemente citados quase totalidade pelo SUS, sem a pregador e até mesmo de preservar
nas decisões judiciais. A maior in- participação dos planos. o emprego. O beneficiário tem, por-

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A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados

tanto, pouco controle ou reduzida Em seguida, vem o Código Civil principal argumento utilizado é a
escolha sobre o plano coletivo. (14,6%). A Lei 9.656/98 fica em ter- ausência de prova de má-fé, uma
• Dos acórdãos analisados, a ceiro lugar (10%), seguida da Cons- vez que o usuário não fez exame
maioria (55,2%) não informa a data tituição Federal (7,3%). pré-admissional. Os juízes também
de contratação dos planos. Dentre • O fato de a Lei dos Planos de alegam, com base na Lei dos Pla-
aqueles que trazem essa informação, Saúde (9.656/98) ser pouco citada nos de Saúde, que o procedimento
a maior parte é de contratos anteri- nas decisões analisadas pode de- deve ser coberto, que o consumidor
ores à Lei 9.656/98 (44,1% dos acór- monstrar a limitação e o pouco al- tem direito à informação adequada,
dãos). O fato é que o grande núme- cance desta legislação, que não é e que a cobertura de urgência e
ro de contratos antigos no universo aplicada para os planos antigos (boa emergência tem que ser obrigatória.
pesquisado explica-se, em parte, parte dos contratos ainda em vigor) A Lei 9.656/98 ainda serviu de fun-
pela morosidade da Justiça, uma vez e com limitações de cobertura mes- damento para decisões favoráveis
que foram estudadas decisões de mo nas regras atuais.
às operadoras, quando, por exem-
segunda instância que tiveram iní- • Quando o CDC é utilizado nas
plo, a legislação permite a exclusão
cio antes da vigência da atual legis- argumentações favoráveis à conces-
de determinada cobertura.
lação. são de cobertura, os aspectos mais
• Algumas decisões favoráveis
c. Teor das decisões e argu- citados são: em caso de dúvida na
à cobertura utilizam argumentos
mentações jurídicas interpretação do contrato, a decisão
médicos, sendo os dois principais:
• A Justiça foi favorável à con- deve ser favorável ao consumidor;
a intervenção cirúrgica não é para
cessão de cobertura, na segunda ins- as cláusulas restritivas deveriam
fim estético; os planos devem cobrir
tância, em 73,5% das ações julga- estar expressas em destaque; a res-
os progressos da medicina e a in-
das, praticamente confirmando a trição atribui vantagem exagerada
corporação de novas tecnologias.
proporção verificada na primeira para a operadora; é abusiva a cláu-
• Há, ainda, decisões baseadas
instância, na qual 74,5% foram fa- sula que estipula limite de tempo
unicamente no contrato firmado en-
voráveis aos usuários. Em 3,7% dos de internação e valores; a operado-
tre usuário e operadora, em que o
acórdãos, o juiz concedeu parte da ra não provou má-fé ou desconheci-
juiz decide a partir das disposições
cobertura solicitada e, em 20,4%, foi mento da doença por parte do usuá-
contratuais. Nestes casos, o juiz afir-
negada a cobertura, com decisão rio; as limitações são abusivas,
favorável ao plano de saúde. Em quando se trata de urgência e emer- ma que o contrato não exclui a co-

algumas situações, como câncer gência; e a operadora não prestou bertura. O argumento do contrato é

(79,4% dos casos) e transplantes bom serviço. Nos casos em que o usado também nas decisões favorá-

(78,8% dos casos), as decisões fo- CDC é usado em decisões favoráveis veis aos planos de saúde. Nestes
ram ainda mais favoráveis em se- às operadoras, o principal argumen- casos, as principais argumentações
gunda instância. to é de que não há relação de con- são: as limitações/exclusões estão
• O Código de Defesa do Consu- sumo quando se trata de planos co- expressas no contrato; o médico ou
midor (CDC) é a legislação mais ci- letivos. hospital não são credenciados pelo
tada nas argumentações das deci- • Quanto à Lei 9.656/98, quan- plano de saúde e, portanto, o plano
sões judiciais: 62,7% do total de do ela é mencionada favoravelmen- não deve conceder a cobertura. Pre-
menções a legislações específicas. te à concessão de cobertura, o valece nestes julgados o princípio de

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 239
SCHEFFER, MÁRIO

que o contrato faz a lei entre as par- importante na determinação do prog- malizadas, quando o desfecho para
tes. nóstico e na sobrevida do paciente. o usuário é ser atendido nas unida-
• Os principais argumentos usa- O problema da exclusão de co- des do Sistema Único de Saúde, ar-
dos pelas operadoras na sua defesa berturas ainda não foi considerado car com os custos particulares ou
em juízo são: existência de cláusu- à altura de sua gravidade e de suas ficar sem o atendimento necessário.
la excludente no contrato; caso de repercussões na saúde e na vida da Traçar a real dimensão das limita-
doença preexistente; o médico/hos- população assistida. Também não ções assistenciais na saúde suple-
pital não é credenciado; não há re- são totalmente conhecidas a dimen- mentar demanda pesquisas com de-
lação de consumo, pois trata-se de são das ocorrências e suas implica- senhos específicos , que podem ser
associação/plano coletivo; a garan- ções para o sistema de saúde brasi- assumidas pelo órgão regulador e
tia de saúde irrestrita é dever do leiro. É razoável supor que o pre- implementadas em parceria com
Estado e não do plano de saúde; o sente artigo tratou da ‘ponta do ice- setores acadêmicos.
procedimento não está incluído na berg’ do problema, ao analisar de- O estudo das demandas de usu-
tabela vigente da Associação Médi- ários de planos de saúde levadas à
ca Brasileira (AMB); a finalidade do Justiça é, sem dúvida, um instru-
procedimento é meramente estética; mento relevante que merece ser con-
o usuário está inadimplente no pa- INÚMERAS SITUAÇÕES NEM SEQUER SÃO tinuado e aprimorado, não só junto
gamento da mensalidade; o proce- aos Tribunais de Justiça, mas tam-
FORMALIZADAS, QUANDO O DESFECHO PARA O
dimento não está incluído no Rol de bém junto aos Juizados Especiais
Alta Complexidade da ANS. USUÁRIO É SER ATENDIDO NAS UNIDADES DO Cíveis e ao Ministério Público, ins-

SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, ARCAR COM OS tâncias que, cada vez mais, aco-
lhem os pleitos relacionados a ex-
CONSIDERAÇÕES CUSTOS PARTICULARES OU FICAR SEM O clusões de coberturas assistenciais
ATENDIMENTO NECESSÁRIO e outros temas que envolvem a saú-
SOBRE A DIMENSÃO de suplementar.
DO PROBLEMA Apenas o monitoramento da ba-
talha travada no Judiciário, no en-
O perfil das coberturas assisten- mandas apresentadas ao TJ-SP, com tanto, não é suficiente.
ciais negadas pelos planos de saú- abrangência geográfica e espaço de Há que se considerar a dificul-
tempo delimitados e, ainda, restri- dade de acesso à Justiça, o ônus fi-
de e levadas ao Tribunal de Justiça
tas às decisões de segunda instân- nanceiro da contratação de advoga-
do Estado de São Paulo (TJ-SP) é pre-
cia. do, o desconhecimento dos direitos
ocupante, uma vez que relaciona
As informações sobre negações por parte do cidadão usuário de pla-
problemas de saúde e doenças res-
de cobertura não estão apenas nos nos de saúde (tendo em vista a com-
ponsáveis pelos maiores índices de tribunais. Encontram-se pulveriza- plexidade e a fragmentação da le-
adoecimento e morte da população. das nas várias instâncias que ser- gislação), a morosidade na tramita-
São negações de atendimento liga- vem de porta de entrada para quei- ção das ações judiciais e o descré-
das a situações clínicas cuja demo- xas e reclamações desse tipo. Inú- dito de parcela da sociedade quanto
ra no atendimento é uma variável meras situações nem sequer são for- à atuação do Judiciário.

240 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados

As demais instâncias, especial- Executivo e Legislativo que o apa- potencialmente, poderão ser levadas
mente os Procons e o Disque ANS, rato regulatório em vigor é frágil e aos tribunais. Compõem este cená-
precisam ser integradas a um siste- que algo precisa ser feito para dar rio os planos segmentados (ambu-
ma de informações. Da mesma for- respostas ao problema da exclusão latorial, hospitalar,hospitalar com
ma, deve ser aprimorado o registro de coberturas na saúde suplemen- obstetrícia ou referência); os perío-
dos dados sobre os atendimentos de tar, freqüentemente levado aos tri- dos de carência (24 horas para aten-
usuários de planos de saúde nas bunais. dimento de urgências e emergênci-
unidades do SUS. São motivos de demandas judi- as; 180 dias para consultas, exa-
ciais, conforme demonstrou o estu- mes, internações; 300 dias para par-
do, as exclusões de procedimentos tos; 24 meses para coberturas rela-
SOBRE A NECESSIDADE DE médicos de alto custo e alta com- cionadas a doenças preexistentes);
REVISÃO DA LEGISLAÇÃO plexidade, doenças preexistentes, os reajustes por faixas etárias (que,
transplantes, situações de urgência muitas vezes, ‘expulsam’ os usuá-
A convivência de dois ‘mundos’, rios idosos); a interpretação por ve-
antes e depois da regulamentação, zes equivocada, pelos planos de saú-
com regras distintas nos contratos de, do que são ‘procedimentos esté-
de planos de saúde, somada às dis- ticos’ passíveis de exclusão confor-
torções contidas em resoluções e me preconiza a legislação; os limi-
normas ditadas pela agência regu-
...A SITUAÇÃO DOS PLANOS PRÉ- tes da assistência psiquiátrica; a
ladora, poderá levar a população REGULAMENTAÇÃO PRECISA SER exclusão de cirurgia de correção de
usuária a acionar, cada vez mais, o miopia nos casos de grau igual ou
URGENTEMENTE TRATADA NO ÂMBITO DO
Poder Judiciário na tentativa de so- superior a 7 (sete)1; as exclusões
lucionar conflitos com as operado-
LEGISLATIVO E DA AGÊNCIA REGULADORA contratuais e a não obrigatoriedade
ras de planos de saúde. de cobertura de doenças profissio-
O fato de a Lei dos Planos de Saú- nais e acidentes do trabalho nos pla-
de (9.656/98) ter sido pouco citada nos coletivos; as limitações da co-
nas decisões analisadas – se com- bertura geográfica; o controle de
parada à menção ao Código de De- e emergência, órteses e próteses, acesso à rede e aos meios diagnós-
fesa do Consumidor e ao Código Ci- dentre outras restrições contidas ticos e terapêuticos , dentre outras
vil – demonstra a limitação e o al- principalmente nos contratos anti- possibilidades.
cance desta legislação. Ela é descon- gos. Portanto, a situação dos pla- É inadiável, portanto, o retorno
siderada até mesmo em acórdãos nos pré-regulamentação precisa ser da regulamentação dos planos de
que mencionam planos novos, ad- urgentemente tratada no âmbito do saúde ao Congresso Nacional, pau-
quiridos após a sua vigência. Legislativo e da agência regulado- ta que poderá ser assumida pela
Ao menosprezarem a Lei 9656/ ra. nova Legislatura que teve início em
98 e ao darem ganho de causa à Há, também, uma série de ou- 2007. Cabe ao Legislativo, e não só
concessão de cobertura na maioria tras possibilidades de exclusões, à ANS por meio de suas resoluções,
dos pleitos, as decisões judiciais contidas na atual regulamentação, a iniciativa de revisão da legislação
analisadas sugerem aos Poderes que devem ser consideradas e que, em vigor, de forma a corrigir as dis-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 241
SCHEFFER, MÁRIO

torções contidas nas regras atuais e de justiça, mas sim que tomam com nos de saúde). Nesta concepção, o
de estender as novas normas aos liberdade as decisões legais. que rege prioritariamente a relação
planos antigos e aos planos coleti- O que se espera do poder Judici- entre clientes e empresas de planos
vos, hoje excluídos ou parcialmen- de saúde são as normas do Código
ário em uma democracia é que suas
te alcançados pela legislação. de Defesa do Consumidor (CDC), que
decisões sejam imparciais e indepen-
predominam nas argumentações ju-
dentes, baseadas nos fatos de cada
rídicas dos acórdãos analisados.
caso apresentado, no mérito, nos
SOBRE O COMPORTAMENTO O entendimento de boa parte dos
E A AUTONOMIA DO JUDICIÁRIO argumentos legais e nas leis mais juízes de que a assistência à saúde
relevantes, sem qualquer influência reclamada nas ações judiciais é um
O estudo demonstra que o Poder das partes interessadas, asseguran- direito do consumidor, ainda que
Judiciário vem sendo chamado a do a igualdade da proteção legal. crie farta jurisprudência favorável
garantir e dar efetividade em ques- à concessão de coberturas, não tra-
tões sensíveis como o direito do con- ta o problema em todas as suas di-
sumidor e o direito à saúde previs- mensões. Muitas das decisões são
tos na Constituição. A sociedade tomadas não pela necessidade de
bate às portas da Justiça para exi- saúde apresentada, mas pelas cober-
turas definidas na legislação ou nos
gir respostas no que se refere à atu- ... É POSSÍVEL AFIRMAR QUE PREVALECE NO
contratos. O direito do consumidor
ação das empresas de planos de saú-
de ou à omissão e à insensibilidade
JUDICIÁRIO A VISÃO DE QUE estaria, assim, restrito à utilização
A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PELOS PLANOS DE dos serviços, quando requisitados
do poder público e do órgão regula-
por uma demanda individual. Con-
dor. SAÚDE É UMA MERCADORIA ...
forme o resultado da pesquisa, não
Em que pese o fato de a maioria
há consenso, no TJ-SP, sobre a apli-
das decisões terem obrigado a con-
cação do CDC aos contratos coleti-
cessão de coberturas, é importante
vos – maior fatia do mercado de pla-
ressaltar que há decisões contrári-
nos de saúde – o que vem a ser ou-
as, muitas vezes baseadas na mes-
SOBRE A SAÚDE REDUZIDA tro limitador desta concepção con-
ma legislação que serviu aos julga-
À CONDIÇÃO DE MERCADORIA sumerista.
dos favoráveis – Código de Defesa Em outro extremo, a redução da
do Consumidor, Código Civil, Lei A partir das ações judiciais ana- saúde à condição de mercadoria está
9.656/98 ou Constituição Federal. A lisadas junto ao TJ-SP, é possível afir- também contida nas argumentações
utilização da mesma base legal em mar que prevalece no Judiciário a das operadoras, quando da contes-
decisões divergentes demonstra a visão de que a prestação de servi- tação, em juízo, das solicitações de
independência e a autonomia do Ju- ços pelos planos de saúde é uma coberturas. A existência de cláusu-
diciário nesta matéria. Isto não sig- mercadoria, um bem de consumo la contratual que explicitamente li-
nifica que os juízes decidem estas oferecido por um fornecedor (as ope- mita a cobertura é o argumento mais
causas baseados exclusivamente radoras) para um consumidor des- utilizado pelas empresas de planos
nas suas próprias noções subjetivas tinatário final (os usuários dos pla- de saúde para negar o atendimento,

242 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados

reforçando a concepção de que o que presentes no mercado de planos de O perfil das exclusões reclama-
está em discussão não é uma ne- das na Justiça - principalmente tra-
saúde e no Judiciário – que tendem
cessidade de saúde, mas uma mera tamentos e procedimentos de alto
a subestimar a concepção do direi-
disposição contratual da descrição custo e alta complexidade– dá a di-
to à saúde. Isto é fundamental para mensão dos aportes públicos ao sis-
do “produto” a ser entregue ao con-
a conquista de um processo civili- tema supletivo, ainda que seja difí-
sumidor.
zatório mais amplo no campo da cil a quantificação exata dos recur-
Vários acórdãos mencionam,
saúde, no qual prevaleçam a justi- sos despendidos pelo SUS para aten-
com argumento favorável à conces-
der aquilo que não é coberto pelos
são de coberturas, o direito funda- ça social e a solidariedade, garanti-
planos de saúde.
mental à saúde e o direito inaliená- das por meio de políticas públicas e
O mercado da saúde suplemen-
vel à vida inscritos na Constituição também da maior atuação do Esta- tar foi artificialmente expandido e
Federal. E mesmo quando prevale-
do. ainda engloba centenas de empresas
ce a visão consumerista, o Judiciá-
sem as mínimas condições de ofere-
rio por vezes afirma que a saúde não
cer sequer as coberturas assegura-
pode ser tratada como qualquer das pela legislação. É possível su-
outra mercadoria. por que uma grande fatia deste mer-
Argumenta-se que o consumidor
A EXISTÊNCIA DE CLÁUSULA CONTRATUAL QUE cado sobrevive às custas das restri-
não consegue prever a ocorrência de ções praticadas e de conseqüente
EXPLICITAMENTE LIMITA A COBERTURA É O
uma doença ou necessidade de saú- subsídio do Sistema Único de Saú-
de e, por causa desta imprevisibili- ARGUMENTO MAIS UTILIZADO PELAS EMPRESAS de, que arca com as despesas dos
dade, que abarca riscos e incerte- atendimentos negados pelos planos
DE PLANOS DE SAÚDE PARA NEGAR O
zas, torna-se impossível o planeja- de saúde.
ATENDIMENTO... Quanto ao ressarcimento ao SUS,
mento do consumo futuro de assis-
tência à saúde. O tratamento e a previsto na Lei 9.656/98, ainda não
cura, afirmam alguns juízes, não se mostrou inteiramente viável na

são produtos que estão à venda no prática. É irrisório o montante de


SOBRE A RELAÇÃO COM recursos destinados aos serviços
mercado; na verdade, os interessa-
O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE públicos de saúde, via ressarcimen-
dos compram serviços de atenção à
to.
saúde que deveriam sempre resul-
É possível supor que os limites Desde março de 2005 todos os
tar na solução dos problemas de
de coberturas inscritos nos contra- procedimentos previstos nos contra-
saúde, quando eles surgirem.
tos de planos de saúde, previstos na tos de planos de saúde tornaram-se
Há quase duas décadas a socie-
legislação ou autorizados pela ANS objeto de ressarcimento. Trata-se de
dade decidiu, por meio das conquis- por meio de resoluções, são absor- pequeno avanço em relação às nor-
tas constitucionais, como gostaria vidos, em grande parte, pelo Siste- mas anteriores, que restringiam o
de ver garantidos os direitos para ma Único de Saúde (SUS). Assim, ressarcimento aos casos de interna-
os seus cidadãos. Assim, precisam pode-se afirmar que o SUS subsidia ção e atendimentos de urgência e
ser revistos os valores e práticas – o mercado de planos de saúde. emergência dos beneficiários dos

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 243
SCHEFFER, MÁRIO

planos atendidos nas redes pública mas estende-se principalmente ao vre acesso ao sistema público de
e conveniada. agendamento diferenciado, mesmo saúde.
Os acórdãos estudados contêm em se tratando de necessidades de As exclusões praticadas pelos
demandas de alto custo e alta com- saúde e atendimento de situações planos de saúde revelam uma das
plexidade, sobretudo eletivas e não clínicas semelhantes. Ao criar cida- faces da iniqüidade do sistema de
urgentes. Como estas exclusões es- dãos de primeira e segunda linha, saúde brasileiro. A solução deste
tão previstas em contratos ou têm o sem respaldo legal nem ético, a ‘du- problema requer não só o aprimo-
respaldo da regulamentação, não pla porta’ impõe a utilização priva- ramento da regulamentação especí-
são passíveis de ressarcimento nem da do equipamento público e afasta fica, mas principalmente a revisão
tampouco são registradas as referi- esses hospitais dos princípios de uni- da relação público-privado na saú-
das informações. Assim, são neces- versalidade e eqüidade - que são de, que passa pela transformação
sárias mudanças na legislação para diretrizes constitucionais - e da Lei dos modelos assistenciais, de finan-
que tudo aquilo que de fato é aten- Orgânica da Saúde. ciamento e de prestação de serviços
dido em hospitais públicos seja ob- atualmente hegemônicos.
jeto de ressarcimento.
As decisões analisadas apontam
no sentido de que não há fundamen- AO CRIAR CIDADÃOS DE PRIMEIRA E SEGUNDA SOBRE UM NOVO
to jurídico na maioria das exclusões INDICADOR DE QUALIFICAÇÃO
LINHA, SEM RESPALDO LEGAL NEM ÉTICO, A
de cobertura, tanto naquelas expres-
sas nos contratos antigos quanto ‘DUPLA PORTA’ IMPÕE A UTILIZAÇÃO PRIVADA O Programa de Qualificação no
naquelas que encontram respaldo na Setor de Saúde Suplementar, lança-
DO EQUIPAMENTO PÚBLICO E AFASTA ESSES
regulação recente. A ampliação das do pela ANS em 2005, pretende, se-
situações de ressarcimento – por HOSPITAIS DOS PRINCÍPIOS DE gundo a Agência, incentivar a me-
meio de mudanças na legislação – UNIVERSALIDADE E EQÜIDADE... lhoria da atenção à saúde prestada
teria, assim, o respaldo da jurispru- pelos planos de saúde. O presente
dência acumulada nos tribunais. artigo traz elementos que podem vir
Cabe citar a preocupação levan- a ser considerados pela ANS na cons-
tada por Scheffer e Bahia (op. cit): É imprescindível, para o deline- trução ou aprimoramento de indi-
na razão inversa do ressarcimento, amento das políticas de saúde e para cadores que satisfaçam aos usuári-
mas não menos eloqüente do ponto o aperfeiçoamento da regulamenta- os e da qualidade dos serviços pres-
de vista das distorções da relação ção da saúde suplementar, explici- tados pelas operadoras. As decisões
público-privado na assistência à tar a utilização das unidades do SUS judiciais de segunda instância, ali-
saúde suplementar, está a “dupla por clientes de planos de saúde, seja adas a outras informações, podem
porta” ou “fila-dupla” do SUS. Tra- porque foi negado o atendimento servir para o acompanhamento da
ta-se do atendimento a planos de pela operadora, seja porque o hos- evolução do desempenho de quali-
saúde nas unidades públicas, espe- pital público tem convênio com o dade das operadoras.
cialmente nos hospitais universitá- plano de saúde, ou simplesmente Para tal, a ANS teria que incor-
rios. A desigualdade não se resume porque os usuários de planos exer- porar, em sua prática, o monitora-
apenas a acomodações e hotelaria, ceram o direito de cidadania de li- mento permanente das ações contra

244 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados

os planos de saúde que tramitam na monstra a utilização do meio exis- lítica pública. Assim, é preciso se
Justiça , além de elaborar um novo tente para fazer valer direitos des- efetivar o controle social sobre o
indicador semelhante ao já utiliza- respeitados. setor, entendido como o controle dos
do em relação às reclamações regis- Mas estas ações não são capa- cidadãos e da sociedade sobre a
tradas pelo Disque ANS. zes de interferir na lógica do siste- política pública.
ma de saúde em vigor. No âmbito Atualmente, os espaços legal-
do Judiciário, são muito pouco ex- mente instituídos em torno do SUS,
SOBRE A NECESSÁRIA ploradas as possibilidades de ações os conselhos e as conferências de
AMPLIAÇÃO DO coletivas, a exemplo das ações ci- saúde, não têm sido acionados para
CONTROLE SOCIAL vis públicas que podem ser movi- tratar dos planos de saúde privados.
das pelo Ministério Público. Sejam A exemplo do Conselho Nacional
Tornam-se necessárias mudanças ações judiciais ou de controle soci- de Saúde, que já discute o tema da
na concepção e no funcionamento al, elas devem caminhar na perspec- saúde suplementar em comissão
dos espaços da agência reguladora específica, os conselhos estaduais e
destinados a ouvir a opinião da so- municipais, sobretudo aqueles de
ciedade: Câmara de Saúde Suplemen- Estados e cidades com grande con-
tar, consultas públicas, Ouvidoria e centração de população usuária de
Disque ANS. Tais instâncias preci- A PROLIFERAÇÃO DE DEMANDAS INDIVIDUAIS planos de saúde, deveriam incorpo-
sam se viabilizar como mecanismos rar, em sua agenda permanente, o
PARA EXIGIR COBERTURAS NEGADAS PELOS
democráticos de participação, para debate sobre a relação do SUS com
que a sociedade não só tenha res- PLANOS DE SAÚDE DEMONSTRA A UTILIZAÇÃO a saúde suplementar.
postas adequadas, mas possa inter- DO MEIO EXISTENTE PARA FAZER VALER É necessário, ainda, romper a
vir para a melhor solução de pro- noção de que o segmento dos pla-
DIREITOS DESRESPEITADOS
blemas que repercutem diretamente nos de saúde e o SUS são dois siste-
em suas vidas, como é o caso da mas que não se relacionam, diferen-
exclusão de coberturas. ça hoje reiterada no plano legal e
Há que se criar, sob a responsa- institucional. A aproximação entre
bilidade do órgão regulador, meca- tiva de soluções coletivas que con- as instâncias de regulação do siste-
nismos administrativos e alternati- siderem o sistema de saúde como ma público e da saúde suplementar
vas ágeis na solução de conflitos um todo. poderá trazer o potencial de forma-
relacionados à exclusão de cober- A saúde é um item de relevância lização de princípios e diretrizes
turas. pública, um direito de cidadania e é comuns a todos os componentes da
Este instrumento deve ser descen- obrigação do Estado fornecer dire- política nacional de saúde.
tralizado nos estados, com envolvi- tamente ou regularmente a oferta de O diagnóstico preliminar apresen-
mento dos gestores do SUS e dos serviços de promoção e assistência tado pelo presente estudo sobre ex-
órgãos de defesa do consumidor. à saúde. Os planos de saúde priva- clusões de coberturas dos planos de
A proliferação de demandas in- dos são componentes do sistema saúde levadas à Justiça aponta pos-
dividuais para exigir coberturas nacional de saúde e, por isso, de- sibilidades de desdobramentos para
negadas pelos planos de saúde de- vem estar condicionados a uma po- além da quantificação de ações ju-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 245
SCHEFFER, MÁRIO

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GUIMARÃES, Luisa & GIOVANELLA,
ARTIGOS ORIGINAIS Ligia ARTICLES
/ ORIGINAL

Municípios brasileiros fronteiriços e Mercosul: características e


iniciativas de cooperação em saúde
Brazilian border towns and the Mercosur: characteristics and initiatives of cooperation
in health

Luisa Guimarães1 RESUMO


Ligia Giovanella2
Os municípios brasileiros fronteiriços são, em geral, de pequeno porte,
com rede predominantemente de atenção primária, oferta hospitalar com-
Recebido: Mar./2006 patível com a média nacional, mas não homogênea. Apresenta-se parte
Aprovado: Jun./2007 dos resultados de pesquisa, concluída em 2007 com o apoio do CNPQ, sobre
acesso e demanda por serviços de saúde nessas localidades. Revisa-se a
bibliografia sobre integração e MERCOSUL, apresentando-se a caracterização
selecionada em bancos de dados de aspectos geográficos, demográficos e
da rede de serviços destes municípios. Descrevem-se os resultados de estu-
dos e de duas iniciativas de cooperação em saúde nas fronteiras.

PALAVRAS-CHAVE: MERCOSUL; Saúde na Fronteira; Integração Regional.

ABSTRACT

1
Doutoranda em Saúde Pública da In general, Brazilian border towns are small and possess basic health
Escola Nacional de Saúde Pública care and hospital networks which are in line with national average, al-
Sergio Arouca (ENSP), Fundação though not homogenous. This article presents a portion of the results of a
Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Ministério research study completed in 2007 with the support of the Brazilian Resear-
da Saúde, Rio de Janeiro. ch Center about access and demand for health services in these locations.
E-mail: The bibliography about integration into the Mercosur is revised, and infor-
luisa.guimaraes@solar.com.br.
mation is presented from databases about characteristics relative to geo-
graphic and demographic aspects as well as the service network present in
these towns. The results of studies and of two health care initiatives for
2
Pesquisadora titular ENSP ,
cooperation in border regions are described.
FIOCRUZ, Ministério da Saúde, Rio
de Janeiro.
E-mail: giovanel@ensp.fiocruz.br. KEYWORDS: MERCOSUR, health care in border regions, regional integration

248 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005
Municípios brasileiros fronteiriços e Mercosul: características e iniciativas de cooperação em saúde

INTRODUÇÃO e para o fortalecimento das políti- de saúde integral e humanizada na


cas nacionais de saúde. fronteira, face ao avanço da integra-
O artigo é parte de estudos de- Objetiva-se propiciar análise do ção econômica no MERCOSUL. Uma
senvolvidos no Programa Doutora- processo de integração como con- versão preliminar deste artigo foi
do em Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ/ texto, as características de municí- apresentada no 10º Congresso Inter-
MS) sobre repercussões da integra- pios fronteiriços como desafios e as nacional do Centro Latino-america-
ção econômica regional nas políti- iniciativas de cooperação fronteiri- no de Administração para o Desen-
cas e sistemas de saúde. Aqui se ça como potencialidades e discute volvimento sobre Reforma do Esta-
trata especificamente da situação de como a integração regional pode do e da Administração Pública (GUI-
municípios brasileiros fronteiriços somar-se à saúde para a redução MARÃES e GIOVANELLA, 2005).

do MERCOSUL, nos segmentos com a de desigualdades na fronteira. A linha de fronteira do MERCOSUL

Argentina, Paraguai e Uruguai, lo- Para tanto, revisa-se a bibliogra- é formada por 69 municípios brasi-
fia sobre integração e conformação leiros, distribuídos nos limites com
cais privilegiados para observar e
Argentina, Paraguai e Uruguai. Nes-
analisar impactos da integração
se artigo é apresentada parte de re-
econômica regional, considerando
sultados de pesquisa concluída em
que os efeitos desta são percebidos
2007 com o apoio do CNPq, sobre
com antecipação e cotidianamente.
A INTEGRAÇÃO OCASIONA acesso e demanda por serviços de
Os processos de integração se
intensificaram com a globalização
NAS FRONTEIRAS AUMENTO DE FLUXOS, saúde nestas localidades (GIOVANELLA
ET AL., 2007). A fronteira com a Ar-
e lentamente vem sendo construída GERANDO TENSÕES E DESAFIOS DIVERSOS
gentina tem o maior número de
uma agenda social pari passu à re-
PARA OS SISTEMAS LOCAIS DE SAÚDE municípios (36), a maioria com
gulamentação da livre circulação
menos de 10 mil habitantes (24) e
de pessoas, mercadorias, serviços
no trecho correspondente ao Paraná
e capital (G UIMARÃES e G IOVANELLA
o maior número de leitos por habi-
2006). A integração ocasiona nas tantes (3,5). A fronteira com o Para-
fronteiras aumento de fluxos, geran- guai é a mais extensa (37%), predo-
do tensões e desafios diversos para do MERCOSUL e apresenta-se a carac- minam municípios de médio porte
os sistemas locais de saúde. Refle- terização selecionada em bancos de (16%), reside a maior parte da po-
tir sobre a situação de municípios dados nacionais de aspectos geográ- pulação fronteiriça do M ERCOSUL
fronteiriços, assim como observar ficos, demográficos e da rede de (43%), existe o maior número de
iniciativas de cooperação, contribui saúde de municípios brasileiros hospitais (49%) e o menor número
no MERCOSUL para análises específi- fronteiriços. Destacam-se os resul- de leitos por habitantes: 2,3, no Mato
cas de repercussões da integração tados de estudo na tríplice fronteira Grosso do Sul, e 2,6, no Paraná. A
nos sistemas de saúde, e pode in- e registram-se duas iniciativas de fronteira com o Uruguai é seca em
fluir na pauta de acordos e progra- cooperação em saúde nas frontei- um terço; tem o menor número de
mas voltados para regiões frontei- ras, a partir de observação partici- municípios do MERCOSUL (11), dos
riças, apoiar esforços de garantia pante e informes. Nas considerações quais seis são cidades-gêmeas; tem
de atenção integral e humanizada, finais, discutem-se as perspectivas a menor população fronteiriça resi-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005 249
GUIMARÃES, Luisa & GIOVANELLA, Ligia

dente (25%); o segundo maior nú- A integração européia busca re- No MERCOSUL, a saúde é aborda-
mero de leitos hospitalares por ha- forçar os objetivos dos sistemas de da especificamente em duas estru-
bitantes (3,3); e de municípios sem proteção social de combinar solida- turas: Reunião de Ministros de Saú-
cobertura de saúde da família (7). riedade com sustentabilidade, de de (RMS), criada em 1995, e
Em resposta aos desafios locais, introduzir incentivos de mercado Subgrupo de Trabalho 11 Saúde
surgem iniciativas cooperativas mantendo o papel do Estado e de (SGT 11 Saúde), criado em 1996.
entre cidades fronteiriças de países adotar inovações na organização e Nestas, os debates contemplam te-
do MERCOSUL para o planejamento e oferta de serviços (GUIMARÃES e GIO- mas prioritários relacionados às li-
execução de atividades em saúde VANELLA 2006; FIGUERAS ET AL., 2002). berdades de circulação. Os consen-
que configuram espaços de ação Fundado em 1991 por Argentina, sos se expressam em acordos e re-
conjunta para a melhoria do acesso gulamentação incorporada pelos
integral e humanizado à saúde. Estados-parte (BRASIL, 2006). A pauta
da saúde no MERCOSUL foi pouco a
NO MERCOSUL, A SAÚDE É ABORDADA pouco ampliada para além de temas
INTEGRAÇÃO ECONÔMICA E ESPECIFICAMENTE EM DUAS ESTRUTURAS: relacionados ao comércio de bens
CONSTITUIÇÃO DO MERCOSUL REUNIÃO DE MINISTROS DE SAÚDE (RMS), (MERCOSUL, 2005; LUCCHESE, 2001).

CRIADA EM 1995, E SUBGRUPO DE No final do ano de 2006, foi apro-


O estabelecimento de relações
TRABALHO 11 SAÚDE (SGT 11 SAÚDE), vada na Reunião de Ministros da
econômicas privilegiadas tem cada
CRIADO EM 1996 Saúde do MERCOSUL Proposta de Pro-
vez maior relevância política e so- jeto de Cooperação Técnica Interna-
cioeconômica (OMS/OMC, 2002; BO- cional. O objetivo geral dessa é
LIS, 2000). Os países elegem o grau
Brasil, Paraguai e Uruguai, o MER-
identificar estrategias para la in-
da integração que pretendem assu-
COSUL objetiva a constituição gradu- tervención en salud de fronteras, por
mir (BASSO, 1998; ALTVATER e MAHNKO-
al de mercado comum com livre cir- medio del análisis, desarrollo de expe-
PF, 1996). A inclusão de temas soci- riencias y sistematización de las mis-
culação de bens, serviços, pessoas
ais na agenda regional é tardia, con- mas, de manera de contribuir el desar-
e capitais, como no caso europeu
rollo de los Sistemas Locales de Salud
tudo, os ajustes para implementar (VENTURA, 2003; BASSO, 1998). Cinco integrando acciones de salud de las
os acordos econômicos repercutem países são Estados Associados do Fronteras de los Estados Partes del MER-

nas políticas de saúde de modo in- Mercosul: Bolívia, Chile, Colômbia, COSUR (URUGUAY)

tencional e não intencional (BUSSE, Equador, Peru. A Venezuela passou Ao afirmar a tese de que se (…)

WISMAR e BERMAN 2002; LEIDL, 1998). em 2006 à categoria de Estado-par- considera que la salud es un factor

te (BRASIL, s/d a; BRASIL, s/d b).

250 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005
Municípios brasileiros fronteiriços e Mercosul: características e iniciativas de cooperação em saúde

favorecedor de la integración regi- tural específicas (BARCELLOS et al., fronteira com a Argentina é de 1.263

onal y que acciones concretas en 2001). Nas fronteiras, as identida- km, dos quais 2% são secos; com o

fronteras contribuirán a ese propó- des nacionais são diluídas e na saú- Paraguai é de 1.339 km, dos quais

sito general os Países destacam a de impõem a realização articulada 31% são secos; e com o Uruguai é

importância das correlações entre de atividades de negociação e de de 1.003 km, dos quais 30% são se-

integração econômica regional e identificação e uso de recursos para cos (FIOCRUZ, 2007). A fronteira bra-

saúde (URUGUAY). alcançar efetividade e adequada sileira com o MERCOSUL totaliza 3.605

provisão de ações face às particu- km e representa cerca de um quinto

laridades mantidas pela barreira de da fronteira continental do País. Nos

ESPECIFICIDADES DOS MUNICÍPIOS fronteira e as diferenças normati- municípios fronteiriços residem

FRONTEIRIÇOS DO MERCOSUL 0,82% da população total brasilei-

NAS FRONTEIRAS, AS IDENTIDADES NACIONAIS ra, a maior parte na fronteira com

Os movimentos de integração o Paraguai (43%) e 55% das cidades


SÃO DILUÍDAS E NA SAÚDE IMPÕEM A REALIZAÇÃO
tendem a aumentar fluxos, primei- têm até 10 mil habitantes (ver Tabe-
ARTICULADA DE ATIVIDADES DE NEGOCIAÇÃO E DE
ro e com maior intensidade, nas ci- la 1). É território que, devido ao
IDENTIFICAÇÃO E USO DE RECURSOS PARA
dades fronteiriças, onde mais que dinamismo, tem importância signi-
ALCANÇAR EFETIVIDADE E ADEQUADA PROVISÃO
diferenças de língua e cultura, dá- ficativa no processo de integração
DE AÇÕES FACE ÀS PARTICULARIDADES MANTIDAS
se a convivência cotidiana entre sis- (BRASIL, 2005). Foz do Iguaçu, no
PELA BARREIRA DE FRONTEIRA E AS DIFERENÇAS
temas políticos, monetários, de se- Paraná, com cerca de 300 mil habi-
NORMATIVAS E DE DIREITOS
gurança, de proteção social distin- tantes é a mais populosa de toda

tos, geradores de tensões e contra- vas e de direitos. As características fronteira brasileira e apenas dois

dições entre as realidades local e locais configuram segmentos defi- municípios brasileiros fronteiriços

regional e o conjunto de instituições, nidos da fronteira (BARCELLOS, ET AL., têm mais de cem mil habitantes,

normas e práticas dos países (BAR- 2001). ambos no Rio Grande do Sul: Bagé

CELLOS et al., 2001; BOLIS, 1999; CIC- As paisagens da fronteira brasi- (cerca de 120 mil) e Uruguaiana (cer-

COLELLA, 1994). As bordas dos países leira com o MERCOSUL conformam ca de 130 mil). Onze municípios

– os limites – são territórios dinâ- territórios variados que ora apro- fronteiriços do MERCOSUL estão entre

micos que constituem unidades com ximam e ora afastam as populações aqueles com maiores taxas médias

trocas espacial, demográfica, soci- fronteiriças e criam interações e di- de homicídios na população total

oeconômica, epidemiológica e cul- nâmicas diversas (BRASIL, 2005). A (WAISELFISZ, 2007).

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005 251
GUIMARÃES, Luisa & GIOVANELLA, Ligia

TABELA 1 – Características dos municípios brasileiros fronteiriços com Ar-


Da rede de serviços públicos de
gentina, Paraguai e Uruguai, 2005.
saúde na linha de fronteira do MER-

COSUL constam 70 estabelecimentos

hospitalares, dos quais apenas nove

são de natureza pública e os demais

são contratados (FIOCRUZ , 2007).

Quase metade dos hospitais (49%)

localiza-se na fronteira com o Pa-

raguai, concentrados junto ao Pa-

raná (ver Tabela 2). Na fronteira do

MERCOSUL, a oferta de leitos na rede

pública é de 2,9 leitos por mil ha-

bitantes, entretanto, esta varia de

2,3 no segmento de Mato Grosso do

Sul com o Paraguai até 3,5/1.000

habitantes no trecho Paraná com a

Argentina. A estratégia de saúde da

família está implantada em mais da

metade dos municípios fronteiriços

com coberturas entre 81 a 100% da

população.

Os municípios fronteiriços são,

portanto, dependentes, para a ga-

rantia da integralidade da atenção,


1
Contagem populacional para os anos intercensitários (IBGE, 2004); 2 Índice de Desenvol-
de serviços especializados e de re-
vimento Humano no Brasil (Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2003); 3Minis-
tério da Integração Regional (Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira, 2005).
ferência localizados em outros mu-
Fonte: Elaboração própria com base nas informações do Relatório Consolidado da Pesqui-
sa Saúde nas Fronteiras: estudo do acesso aos serviços de saúde nas cidades de fronteira nicípios.
com países do MERCOSUL, NUPES/DAPS/ENSP/FIOCRUZ/Pesquisa Saúde na Fronteira (FIOCRUZ 2007).

252 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005
Municípios brasileiros fronteiriços e Mercosul: características e iniciativas de cooperação em saúde

TABELA 2 – Características da rede pública de serviços de saúde nos ESTUDOS E EXPERIÊNCIAS


municípios brasileiros fronteiriços com Argentina, Paraguai e Uruguai, 2005 DE COOPERAÇÃO EM SAÚDE NAS
FRONTEIRAS DO MERCOSUL

A análise da rede de serviços de


saúde na tríplice fronteira – Puerto
Iguazú/Argentina, Foz de Iguaçu/
Brasil e Ciudad del Este/Paraguai –
traça detalhado perfil epidemiológi-
co, populacional, de recursos (hu-
manos, infra-estrutura, equipamen-
tos, financeiros), modelos estrutu-
ral e funcional da rede de serviços
de saúde (OPAS/OMS, 2002). Os indi-
cadores de saúde refletem iniqüida-
des socioeconômicas, semelhanças
no perfil epidemiológico, diversida-
des no perfil da rede, nos recursos
disponíveis e no modelo de atenção
e déficits na troca de informações.
A maior parte dos atendimentos de-
rivados a outro país é espontânea e
não formalizada. As propostas apon-
tam para estratégias locais e regio-
nais de cooperação e articulação
entre redes assistenciais, capacita-
ção e intercâmbio de informações
em conformidade com as políticas
e os sistemas de saúde de cada país.
Destaca-se a importância de um
marco político para ações regionais
e locais com prioridades sanitári-
as, coberturas programáticas e me-
canismos de financiamento conside-
rando a situação de fronteira (idem).
Na paisagem da fronteira, inici-
ativas de cooperação em saúde en-
Fonte: Elaboração própria com base nas informações do Relatório Consolidado da
Pesquisa Saúde nas Fronteiras: estudo do acesso aos serviços de saúde nas cidades de tre governos mostram-se como ob-
fronteira com países do MERCOSUL, NUPES/DAPS/ENSP/FIOCRUZ/Pesquisa Saúde na Fronteira (FIO-
CRUZ 2007).
servatórios de repercussões da in-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005 253
GUIMARÃES, Luisa & GIOVANELLA, Ligia

tegração. Uma destas iniciativas é mam cerca de 200 mil habitantes câmbios e fluxos, impõe na saúde
o Grupo de Trabalho para Integra- (NAVARRETE, 2006). O Comitê de Saú- a articulação de estratégias para a
ção das Ações de Saúde na Área de de foi conformado a partir do Pri- efetivação de programas e políticas
Influência da Itaipu –GT Itaipu Saú- meiro Encontro Binacional de Fron- públicas nacionais. São espaços que
de –, criado em 2003, pela Empre- teiras Brasil-Uruguai realizado em vão se afirmando frente ao desafio
sa Pública Itaipu Binacional é inte- 2005 e organizado pelo Conselho de comum de implantar prioridades
grado por representantes dos gover- Saúde de Sant’Ana do Livramento. nacionais no território de fronteiras.
nos locais, regionais e nacionais da O debate entre as duas localidades Tais iniciativas têm promovido par-
saúde do Brasil e do Paraguai e tem sobre questões de saúde concen- ticipação e debate com atores locais
caráter consultivo. Com atuação na trou-se em temas de atenção à saú- sobre o processo de integração re-
área de influência do Lago de Itai- de, vigilância, direitos sexuais e re- gional e as problemáticas da saúde
pu, articula ações de saúde entre produtivos. O Comitê atua como na fronteira.
28 municípios brasileiros e 31 pa- organismo de controle social e de
raguaios, que totalizam cerca de um
milhão e meio de habitantes. O ob- CONSIDERAÇÕES
jetivo do GT Itaipu Saúde é melho- FINAIS
rar, com apoio da Empresa, a qua- FALTA DETALHAR DE CADA LADO DA FRONTEIRA
lidade das ações de saúde na fron- As repercussões da integração
IMPLICAÇÕES ORGANIZACIONAIS E FINANCEIRAS,
teira mediante planejamento e exe- econômica regional nas políticas e
cução de atividades conjuntas prio- DEMANDAS E ATENÇÃO PRESTADA, sistemas de saúde de cidades fron-
ritárias das políticas nacionais de teiriças do MERCOSUL ainda estão in-
INSTRUMENTOS PARA A GARANTIA DO DIREITO
saúde, com atenção para especifi- suficientemente descritas, para im-
cidades regionais. Diagnóstico rea- À SAÚDE NA REDE ASSISTENCIAL PARA NÃO plicar atores na busca de soluções
lizado pelo GT identificou os princi- RESIDENTES ... objetivas nos debates regionais. Fal-
pais problemas na fronteira: infor- ta detalhar de cada lado da frontei-
mação, atenção primária e de mé- ra implicações organizacionais e fi-
dia complexidade, cultura partici- nanceiras, demandas e atenção pres-
pativa, articulação interinstitucio- fomento de atividades conjuntas nas tada, instrumentos para a garantia
nal e recursos humanos. Elaborou- políticas públicas em ambas as ci- do direito à saúde na rede assisten-
se um plano de ação a ser empreen- dades, integrado por representantes cial para não residentes, e tratar da
dido cooperativa e conjuntamente, de diferentes segmentos institucio- participação dos governos locais
abordando sistemas e serviços, vi- nais e da sociedade civil organiza- nas relações bi e multilaterais. Es-
gilância, informação, educação per- da. tes fatores combinados têm corres-
manente e saúde indígena. Ambas as iniciativas configuram pondência na compreensão do pro-
Outra iniciativa de cooperação é espaços de debate e planejamento blema e na formulação de alterna-
o Comitê Binacional de Saúde de atividades reconhecendo as di- tivas, as quais podem tender para
Sant’Ana do Livramento e Rivera, versidades entre os sistemas sani- aspectos financeiros ou distanciar
cidades-gêmeas do segmento Rio tários de saúde e a integração regi- pautas regionais do cotidiano da
Grande do Sul e Uruguai que so- onal que, ao incrementar os inter- fronteira.

254 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005
Municípios brasileiros fronteiriços e Mercosul: características e iniciativas de cooperação em saúde

As garantias de saúde são im- e heterogêneo, em parte influencia- Projetar avanços do MERCOSUL a
portantes em processos de integra- do por aspectos estruturais, priori- partir da perspectiva e experiências
ção econômica, como demonstra a dades e critérios de distribuição de de cidades fronteiriças evidencia que
União Européia. No MERCOSUL, a in- recursos. a convivência com a diversidade, ao
clusão de temas sociais no debate Embora seja prematuro traçar lado da construção da integração,
regional vem se consolidando. Fren- um perfil definitivo de repercussões abre caminho para iniciativas coo-
te ao perfil dos municípios frontei- da integração econômica regional
perativas locais. As duas iniciati-
riços brasileiros e à luz do estudo e sobre as políticas e serviços de saú-
vas aqui apresentadas oferecem ele-
iniciativas de cooperação fronteiri- de de municípios fronteiriços e se-
mentos para a formulação de estra-
ça em saúde aqui apresentados é jam necessários estudos sobre mo-
tégias para fronteiras no MERCOSUL,
possível afirmar que no MERCOSUL é delo de atenção, sistemática de or-
entre os quais: monitoramento de
fundamental permear o debate po- ganização e de acesso nas políticas
condições de saúde, intercâmbio de
lítico da integração com as reper- de saúde de cada Estado-parte,
informações, aproximação entre
cussões nos sistemas e serviços de
práticas sanitárias, oferta de capa-
saúde, de modo que avanços daque-
la não impliquem em acentuar de- citação conjunta, criação de condi-

sigualdades na saúde. As iniciati- ções de apoio mútuo. As experiên-


vas do GT Itaipu Saúde e do Comitê cias indicam a importância de for-
de Saúde de Sant’Ana do Livramen- AS GARANTIAS DE SAÚDE SÃO IMPORTANTES talecimento de mecanismos jurídi-
to e Rivera revelam que temas coti- EM PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO ECONÔMICA, cos internacionais para a atuação
dianos de comunidades e de servi- articulada e cooperativa em saúde
COMO DEMONSTRA A UNIÃO EUROPÉIA
ços de saúde fronteiriços devem se na fronteira.
incorporar à agenda e às estratégi- As iniciativas fronteiriças de-
as local, regional e multilateral da monstram que acordos bilaterais em
integração. saúde podem ser considerados eta-
As características gerais apre- pas preparatórias para os entendi-
sentadas e da rede dos municípios
mentos multilaterais e que dispor
brasileiros fronteiriços do MERCOSUL, sabe-se que estes condicionam pa-
de recursos financeiros e estratégi-
ainda que não exaustivas, ilustram drões da busca por serviços na ci-
cos para o planejamento conjunto
as múltiplas faces da fronteira que dade vizinha de fronteira. Cidades
na fronteira incentiva a cooperação
compõem segmentos não uniformes. fronteiriças têm concretizado a ar-
e solidariedade. Além de fortalecer
Na perspectiva interna do Brasil, os ticulação local, ainda com autono-
os entes locais na gestão dos siste-
segmentos fronteiriços são diferen- mias diferenciadas e graus varia-
ciados entre os estados federados, dos de dependência das instâncias mas de saúde, apóia programas e

exibindo contrastes dentro de um nacionais. A descentralização do contrapõe mecanismos informais.


mesmo estado, como é o caso do sistema de governo brasileiro leva Os valores de universalidade, inte-
Rio Grande do Sul e do Paraná. A os municípios a acumularem res- gralidade, equidade, e participação
oferta de serviços e as coberturas ponsabilidades e autonomias signi- social podem ser fortalecidos com
apresentadas exibem perfil desigual ficativas na gestão da saúde. um modelo de integração econômi-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005 255
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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005 257
MENDES,
ARTIGOSÁquilas Nogueira
ORIGINAIS & MARQUES,ARTICLES
/ ORIGINAL Rosa Maria

O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade


Social e no SUS
The impact of the Lula government economic policy on Social Security and the
Unified Health System

Áquilas Nogueira Mendes1 RESUMO


Rosa Maria Marques2
O artigo discute a relação entre a política econômica do governo Lula
(especialmente a adoção do regime de metas de inflação e a busca de ele-
Recebido: Dez./2006 vados superávits primários) e o financiamento da Seguridade Social e do
Aprovado: Mar./2007 Sistema Único de Saúde - SUS. De forma específica, evidencia que o resul-
tante dessa política - baixo crescimento, manutenção de elevadas taxas de
juros, precarização do mercado de trabalho, redução do gasto público –
impede o crescimento das receitas e recursos como seria necessário, o que
compromete a plena aplicação dos princípios do SUS. Apesar disso, alguns
avanços são apontados, como o crescimento da cobertura do Programa de
Saúde da Família.

PALAVRAS-CHAVE: política econômica; seguridade social; SUS

ABSTRACT

The article discusses the relationship between the economic policy of


the Lula government (especially the adoption of inflation targets and the
1
Professor Doutor do Departamento de
attempt to achieve high primary surplus) and the funding of the Social
Economia da PUCSP e da Faculdade de
Economia da FAAP/SP, vice-presidente da Security system and Unified Health System (SUS). It demonstrates in a
Associação Brasileira de Economia da Saú-
de e coordenador da Coordenadoria de specific manner that the results of this policy – low economic growth,
Gestão de Políticas Públicas do Centro de
Estudos e Pesquisa de Administração Mu- maintenance of high interest rates, instability of the job market,
nicipal – Cepam/SP. reduction in public spending — prevents the increase in revenue and
E-mail: aquilasn@uol.com.br
resources as would be necessary, thus compromising the full application
of the SUS principles. Despite this, some advances are identified, such as
2
Professora Titular do Departamento de
Economia e do Programa de Estudos Pós-
the increased coverage of the Family Health Program.
graduados em Economia Política da PUCSP
Departamento de Economia – PUC-SP
E-mail: rosamarques@hipernet.com.br KEYWORDS: Economic Policy; Social Security; Unified Health System

258 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005
O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS

APRESENTAÇÃO receitas da Previdência Social e dis- mo de divulgação na grande im-


cute como os fundamentos da polí- prensa, que trataram de sua políti-
Esse artigo tem como objetivo tica econômica se concretizam em ca econômica. Afinal, entre outros
discutir de que forma a política proposições que visam a alterar o motivos, tratava-se de acompanhar
macroeconômica do primeiro gover- quadro legal de vinculação de re- a experiência de quem havia sido
no Lula condicionou as condições ceitas para a Seguridade Social e o eleito exatamente para mudá-la,
de financiamento de dois importan- amplo consenso construído em re- promovendo o crescimento econô-
tes ramos da Seguridade Social: a lação ao financiamento do SUS. mico, o emprego, além da redistri-
Previdência e a Saúde. Em geral, o É da compreensão de que a po- buição da renda e da riqueza. Con-
acompanhamento das tensões entre lítica econômica subordina o soci- tudo, desde os primeiros momentos,
a área econômica e os ministérios al no país que se pode, de fato, uni- ficou claro que, em matéria de po-
responsáveis pela aplicação das ficar a luta pela retomada dos prin- lítica econômica, Lula, no lugar de
políticas desses ramos, evidentes na cípios do SUS com aquela de um implementar uma transição para
época em que a Lei de Diretrizes um novo modelo, defendida duran-
Orçamentária é elaborada, restrin- te a campanha eleitoral, não só ha-
ge-se em destacar o tamanho do via mantido a política macroeconô-
déficit da Previdência (questionado Lula, no lugar de implementar mica do segundo mandato de Fer-
por muitos) e a demonstrar como, nando Henrique Cardoso – FHC,
mais uma vez, a equipe econômica
uma transição para um novo como a havia aprofundado, o que
procura introduzir, como se fossem modelo (...) não só havia mantido fica evidente com a manutenção do
da saúde pública, gastos que não compromisso de promover superá-
a política macroeconômica do
têm natureza nenhuma com as vit fiscal primário, o que é descrito
ações e serviços contemplados pelo segundo mandato de (...) FHC, mais a seguir.
SUS. como a havia aprofundado ... Em linhas gerais, a política ma-
Compreendendo que é preciso ir croeconômica foi fundamentada no
além dessas constatações e denún- regime de metas de inflação; na ele-
cias - mas sem desmerecê-las, pois vação do superávit primário; e na
elas foram fundamentais na rever- manutenção do regime de câmbio
crescimento sustentável, com distri-
são das tentativas que ocorreram flutuante. No ‘regime de metas de
buição de renda e riqueza.
durante o governo Lula, como se inflação’, de origem neoclássica, o
verá adiante – este artigo procura, nível de inflação constitui o princi-
num primeiro momento, esclarecer A POLÍTICA ECONÔMICA pal objetivo a ser atingido, de for-
quais são os pilares da política eco- ma que todas as demais variáveis
DO GOVERNO LULA1
nômica do governo, e descrever, econômicas a ela devem se subor-
mesmo que brevemente, quais fo- dinar. Assim, sempre que os direto-
ram os resultados dessa política. Durante os quatro anos do pri- res do Banco Central - Bacen - con-
Numa segunda parte, destaca o meiro governo Lula, não foram pou- sideravam que havia uma tendên-
impacto desses resultados sobre as cos os artigos acadêmicos, e mes- cia de a inflação superar a meta

1
Esta parte e a próxima se beneficiaram largamente de Sanchez et al (2006) e Marques e Nakatani (2007).

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 259
MENDES, Áquilas Nogueira & MARQUES, Rosa Maria

fixada, elevava-se a taxa básica de Produto Interno Bruto - PIB, por li- para reduzir a dívida externa pú-
juros (taxa Selic, determinada pelo vre iniciativa do governo Lula, no blica, como para diminuir a parce-
Comitê de Política Monetária do ano de 20032. Durante o governo la da dívida interna corrigida pela
Bacen), para com isso deprimir a anterior, esse esforço girou em tor- variação cambial. Além disso, os
demanda agregada. É isso que ex- no de 3,5% do PIB e o acordado com resultados derivados da redução do
plica os ciclos de aumento e de re- o FMI havia sido de 3,75%. Para os gasto público foram em parte anu-
dução da taxa de juros vivenciados anos seguintes, embora a meta não lados pela elevação do peso da con-
nos últimos quatro anos. No início tenha sido formalmente ampliada, ta juros, provocada pelo aumento
do governo, frente à tendência al- o superávit primário ficou em cer- e/ou manutenção de alta taxa bási-
tista dos preços, a taxa de juros foi ca de cerca de 4,6% do PIB em 2004, ca de juros. Dessa forma, os juros
elevada para 25,5% em janeiro e e de 4,8% em 2005. nominais devido pelo setor públi-
26,5% em fevereiro de 2003. Já par- Apesar desse esforço, a dívida co, que eram de 8,5% do PIB em
tir de junho, estando a inflação sob mobiliária federal (títulos públicos 2002, e já eram bem elevados, au-
controle, inicia-se uma redução gra- mentaram para 9,3% do PIB em 2003,
dual desta taxa, até que essa atin- mas fecharam 2005 com 8,12%. A
gisse 16% em abril de 2004. Mas, a diferença entre esses percentuais e
partir de setembro desse ano, no- A combinação do esforço fiscal com os do superávit primário resultou
vos aumentos da taxa básica de ju-
as elevadas taxas de juros resultou em ‘rolagem’ de parte dos juros de-
ros começariam, até que essa ba- vidos.
tesse 19,75% em maio, ficando as- em baixo crescimento econômico, Em outras palavras, ao atrelar
sim até setembro, quando tem iní- aumento das rendas dos detentores os juros básicos à meta inflacioná-
cio uma nova rodada de reduções, ria, o governo impediu que sua po-
de riqueza financeira e contínua
de forma que, em outubro de 2006, lítica fiscal restritiva fosse plena-
a taxa básica de juros chegou a pressão sobre os gastos sociais... mente eficaz. A combinação do es-
13,75%. Comparada à de fevereiro forço fiscal com as elevadas taxas
de 2003, essa taxa estava 12,75 de juros resultou em baixo cresci-
pontos percentuais menor do que mento econômico, aumento das ren-
aquela. Mesmo assim, continuava fora do Bacen) continuou a aumen- das dos detentores de riqueza finan-
extremamente alta, para qualquer tar: de R$ 623 bilhões em 2002, fe- ceira e contínua pressão sobre os
padrão internacional que se adote. chou 2005 com R$ 980 bilhões. Já a gastos sociais, como se verá adian-
Em relação ao ‘superávit primá- dívida líquida do setor público, de te.
rio’, medida de esforço fiscal que 55,5 % do PIB em dezembro de 2002, A manutenção do ‘regime de
visa o pagamento do serviço da dí- caiu para 51,5% em dezembro de câmbio flutuante’, por sua vez, re-
vida, adotado no governo FHC no 2005 e, em agosto de 2006, estava sultou em extrema valorização do
momento da negociação com o Fun- em 50,3% do PIB. Essa queda de- real, sem que as compras de dólar
do Monetário Internacional – FMI, veu-se especialmente à revaloriza- realizadas pelo Bacen tenham con-
esse foi aumentado para 4,25% do ção do real, que contribuiu tanto seguido alterar essa situação. As-

2
Esse aumento foi anunciado em 28 de fevereiro, mediante a Carta de Intenção enviada ao FMI. Para sua efetivação, o governo Lula
promoveu cortes no orçamento da União de R$ 14,1 bilhões, o que reduziu a disponibilidade dos ministérios da área social em 12,44%.

260 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005
O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS

sim, à parte os primeiros meses do tações foi de 11,6%. Dessa maneira, da participação dos produtos bási-
governo Lula, o câmbio registrou aumentou a dependência do país cos no total das exportações, o fato
quedas contínuas. com relação à performance do res- de que parte dos manufaturados
to do mundo, principalmente da apresenta baixa ou média intensi-
China demandante de commodities. dade tecnológica, o que dá um sen-
OS PRINCIPAIS Além disso, diversos economistas tido mais amplo à utilização do ter-
RESULTADOS ECONÔMICOS passaram a dizer que o aumento da mo ‘reprimarização’.
participação relativa de produtos O mau desempenho econômico
Durante o primeiro governo com baixo valor adicionado na pau- ocorrido no primeiro ano do gover-
Lula, a evolução do PIB seguiu sua ta de exportação configura uma cer- no Lula provocou redução de 12,6%
trajetória anterior, indicando a difi- ta ‘reprimarização’ dessa mesma do rendimento médio habitual5 real
culdade da economia brasileira em pauta3. Os produtos básicos que do trabalhador brasileiro em rela-
crescer de forma continuada no qua- representavam, em 2000, 22,8% do ção a 2002. Essa redução foi obser-
dro dos marcos da política macroe- vada em todas as categorias de ocu-
conômica implementada: expansão pação, apesar de as mais organiza-
de apenas 0,5% em 2003, de 4,9% das terem firmado acordos de rea-
em 2004 e de 2,3% em 2005. Em juste salarial favoráveis no segun-
dezembro de 2006, o Instituto de Durante o primeiro governo Lula, a
do semestre, quando o nível de ati-
Pesquisa Econômica Aplicada — evolução do PIB seguiu sua vidade se recuperou um pouco.
IPEA — estimava que o crescimen-
trajetória anterior, indicando a Nesse primeiro ano, ainda, a taxa
to do PIB em 2006 seria de 2,8%.
média de desemprego aberto das
Nesses anos, o crescimento, mes- dificuldade da economia brasileira
cinco regiões metropolitanas, calcu-
mo que pequeno do PIB, foi princi- em crescer de forma continuada... lada pelo IBGE (IBGE, 2002), regis-
palmente fundado na expansão das
trou aumento (12,3%; quando era
exportações que, apesar da valori-
11,7% em 2002). Em 2004, muito
zação do real, aumentaram signifi-
embora a economia tenha crescido
cativamente durante todo o primei-
ro governo Lula. Em 2005, por total do valor das exportações, ti- 4,9%, o rendimento médio real dos

exemplo, o setor agropecuário ex- veram sua participação elevada ocupados recuou mais 0,7%, mas a
pandiu-se somente 0,8%, a indústria para 29,3% em 2005. Já a contribui- taxa média de desemprego no ano
,2,5% e os serviços, 2,0%. Do lado ção dos produtos semimanufatura- caiu para 11,5%. Em 2005, o rendi-
da despesa, o consumo das famíli- dos e dos manufaturados se redu- mento médio habitual real apresen-
as cresceu 3,1%, a formação bruta ziu, passando de 15,4% para 13,5%, tou uma pequena recuperação, cres-
do capital fixo, 1,6%, as importa- e de 59% para 55,1%, no mesmo pe- cendo 2% em relação ao ano anteri-
ções, 9,5% e o consumo do gover- ríodo, respectivamente . Soma-se a
4
or. Esse desempenho, contudo, não
no, 1,6%. Já a expansão das expor- esse movimento, de intensificação atingiu os trabalhadores com car-

3
Ver Belluzzo e Carneiro, 2003.
4
O total não atinge os 100% devido às operações especiais.
5
No cálculo do rendimento habitual não são consideradas as horas extras, os atrasados, as férias, etc.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 261
MENDES, Áquilas Nogueira & MARQUES, Rosa Maria

teira assinada, os quais sofreram para a situação de dezembro de ou mais no trabalho principal, não
redução de 0,8% em seu rendimen- 2002 com a de setembro de 2006. contribuiam para qualquer institu-
to médio habitual real (em 2004 ele Contudo, vale mencionar que a re- to de previdência.
havia aumentado 0,3% e, em 2003, cuperação de seu valor teve início
havia se reduzido em 4,9%). Nesse durante o governo FHC. Dessa for-
ano, a taxa média de desemprego ma, se compararmos o referido va- O IMPACTO DA POLÍTICA
continuou a cair, registrando 9,8%. lor ao de 1995, constatamos que
ECONÔMICA E DE SEUS RESULTADOS
NA SEGURIDADE SOCIAL E NO SUS.
Em relação ao rendimento, vale houve um aumento de 97% em ter-
salientar ainda que, além do rendi- mos reais. Nos primeiros dois anos O primeiro aspecto destacável,
mento médio real habitual dos ocu- do governo Lula, o processo de re- entre a relação da política macroe-
pados ter registrado redução duran- cuperação foi desacelerado, reto- conômica do governo Lula e a ‘Se-
te o primeiro governo Lula, apro- mando fôlego em 2005 e 2006. guridade Social’, foi a extensão da
fundou-se o processo de concentra- vigência da Desvinculação das Re-
ção dos ocupados nas faixas de ren- ceitas da União – DRU6 para 2007.
da mais baixas. Considerando-se o No momento da criação desse dis-
rendimento principal dos ocupados
O primeiro aspecto destacável, positivo, em 1994, durante o primei-
com 10 anos ou mais, 89,9% rece- entre a relação da política ro governo FHC, houve franca opo-
sição dos setores comprometidos
biam até 5 salários mínimos em macroeconômica do governo Lula e
com a Seguridade Social, e o Parti-
2004. Em 2002, esse percentual era
a ‘Seguridade Social’, foi a do dos Trabalhadores fechou ques-
de 87,6% (IBGE, 2002).
Embora o salário mínimo não extensão da vigência da tão contra sua aprovação no Con-
gresso Nacional. Por isso, os seto-
seja reflexo direto da política ma- Desvinculação das Receitas da res que apoiaram a eleição de Lula
croeconômica adotada, e sim resul-
União – DRU para 2007 em 2002 esperavam que o novo
tado de uma decisão política de
governo desse fim a esse dispositi-
governo, o fato de o piso dos bene-
vo. Contudo, não foi isso que acon-
fícios previdenciários e o Benefício Um outro elemento importante teceu: no bojo da reforma tributá-
de Prestação Continuada serem de- que deve ser registrado, e que tem ria encaminhada pelo governo e
finidos por ele, justifica seu desta- reflexo sobre a Seguridade Social, aprovada em 2003, ficou definida
que nesta parte do artigo. Vale lem- diz respeito ao grau de precariza- sua vigência até 2007.
brar que apesar de o governo não ção das relações de trabalho. Em No ano de 2004, o volume de
ter cumprido sua promessa de cam- 2005, segundo a Pesquisa Nacional recursos assim desviados da Segu-
panha de dobrar seu valor real, pro- de Amostra por Domicílios (PNAD), ridade Social totalizou R$ 24,9 bi-
moveu um aumento de 40% em seu realizada pelo IBGE( IBGE, 2005), lhões, o que correspondeu a 77,5%
poder aquisitivo, quando se com- 52,8% dos ocupados, com 10 anos do gasto realizado pelo governo fe-

6
Permite que 20% das receitas de impostos e contribuições sejam livremente alocados pelo governo federal, inclusive para pagamento dos
juros da dívida. Na época de sua criação, em 1994, chamava-se Fundo Social de Emergência; em 1997 foi renomeado como Fundo de
Estabilização Fiscal e, em 2000, finalmente seu nome passa a expressar seu verdadeiro conteúdo – Desvinculação das Receitas da União.

262 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005
O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS

deral em saúde nesse ano. Em 2005, expansão observada nesse último tor privado, segurados pelo RGPS.
foram R$ 32,129 bilhões, isto é, 93% ano deveu-se ao comportamento Essa contribuição, que fere o prin-
do gasto em ações e serviços de favorável do mercado de trabalho cípio previdenciário de reciprocida-
saúde, efetuados pelo Ministério da formal, à ação da Secretaria da Re- de, somente incide a partir de um
Saúde (ANFIP, 2005). Desnecessário ceita Previdenciária principalmente determinado valor de aposentado-
dizer que os recursos desvincula- na recuperação de créditos junto a ria. À introdução de um valor má-
dos mediante a DRU alimentam a devedores, e à elevação do teto da ximo para a aposentadoria dos fun-
formação do superávit primário, contribuição. cionários públicos, foi associada a
descrito na parte 1 deste artigo. Para Ainda em relação à Previdência, criação de fundos de pensão, os
o segundo mandato do governo o governo promoveu, em seu pri- quais, assim como para os traba-
Lula, as expectativas são ainda meiro ano de mandato, uma refor- lhadores do setor privado, podem
mais desanimadoras, pois integran- ma no regime pertinente aos funci- ser organizados e administrados por
tes de seu governo, vinculados à onários públicos. Essa reforma re- sindicatos e pelas centrais sindicais
esfera econômica, falam em aumen- (MARQUES e MENDES, 2004). Até o
tar o percentual da desvinculação momento, contudo, eles não foram
para cerca de 40%. regulamentados, pois a legislação
Em relação à ‘Previdência Soci- ...o crescimento da arrecadação necessária não foi ainda objeto de
al’ do Regime Geral - RGPS, o im-
líquida das contribuições não foi discussão e aprovação. Vale ressal-
pacto da economia se fez sentir prin- tar que essas medidas foram de en-
cipalmente sobre a receita das con- suficiente para dar conta da contro com a tradição e o posicio-
tribuições. Essas, resultantes da defasagem existente entre as namento dos representantes do PT
aplicação de alíquotas sobre a mas- em momentos anteriores, quando da
receitas e as despesas
sa salarial dos ocupados junto ao reforma da Previdência encaminha-
mercado de trabalho formal, senti- previdenciárias ... da por FHC.
ram o peso da informalidade e o Evidentemente, como o cresci-
elevado desemprego, principalmen- mento da arrecadação líquida das
te nos anos em que a economia apre- contribuições não foi suficiente para
sentou os piores resultados, estan- tirou direitos dos servidores, ao in- dar conta da defasagem existente
do longe de evoluir de acordo com troduzir um teto para o valor do entre as receitas e as despesas pre-
as taxas de crescimento de décadas benefício (anteriormente o valor da videnciárias, membros do governo,
anteriores. Mesmo assim, o total da aposentadoria correspondia ao va- logo depois da reeleição de Lula,
arrecadação líquida, depois de ter lor do provento, não sofrendo redu- têm firmado um diálogo intenso
decrescido em 2003, com relação ao ção). Além disso, o governo implan- com a mídia sobre um possível en-
ano anterior, aumentou 9,3% em tou uma contribuição sobre o valor caminhamento de novo projeto de
2004 e 9,4% em 20057. Segundo o da aposentadoria para os servido- reforma da Previdência, desta vez
Ministério da Previdência Social, a res e para os trabalhadores do se- alterando as condições de acesso à

a arrecadação líquida foi de R$ 92,3 bilhões em 2003; R$ 100,9 bilhões em 2004 e R$ 110,4 bilhões em 2005, a valores de dezembro
A
2005. Diponível em: www.mpas.gov.br/pg_secundarias/previdencia_social_10.asp. acesso em: dezembro. 2006

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 263
MENDES, Áquilas Nogueira & MARQUES, Rosa Maria

aposentadoria e o valor do benefí- Tentativas de redução do orça- Apesar de diversos e intensos


cio tanto para os trabalhadores do mento do Ministério da Saúde debates terem ocorrido entre entida-
setor privado da economia como A Lei de Diretrizes Orçamentári- des vinculadas ao SUS e o Ministé-
para os funcionários públicos. as - LDO - para o orçamento de 2004 rio do Planejamento, nada foi mo-
Em relação ‘à saúde pública’, os previa que os Encargos Previdenci- dificado sobre essa questão. Somen-
principais impactos da política eco- ários da União - EPU, o serviço da te após o parecer do Ministério Pú-
nômica em seu financiamento ocor- dívida e os recursos alocados no blico Federal, contrariando a deci-
reram no momento da elaboração Fundo de Combate e Erradicação da são presidencial e solicitando ao
da proposta orçamentária e não no Pobreza fossem contabilizados presidente Lula a retirada do veto
encaminhamento da regulamenta- como gastos do Sistema Único de ao dispositivo que esclarecia que os
ção da Emenda Constitucional nº Saúde do Ministério da Saúde. Con- recursos do Fundo de Combate à
29(BRASIL, 2000. A importância as- tudo, a forte reação contrária do Erradicação da Pobreza não poderi-
sumida pela proposta orçamentária Conselho Nacional de Saúde e da am ser contabilizados como gastos
deveu-se ao fato de a meta relativa em saúde, sob pena do orçamento
ao superávit primário, além de se aprovado vir a ser considerado in-
traduzir em contingenciamentos, re- constitucional, o governo recuou.
sultar em diferentes tentativas de re- Foi assim que a Lei nº 10.777, de
... em todos os anos do primeiro
dução dos gastos, inclusive os so- 25 de novembro de 2003, contem-
ciais. No caso da saúde pública, em governo Lula, a equipe econômica pla, no parágrafo segundo do arti-
todos os anos do primeiro governo tentou introduzir itens de despesa go 59, que o EPU, o serviço da dívi-
Lula, a equipe econômica tentou da e as despesas do MS com o Fun-
introduzir itens de despesa que não
que não são considerados gastos do de Combate e Erradicação da
são considerados gastos em saúde em saúde no orçamento do Pobreza não fossem considerados
no orçamento do Ministério da Saú- Ministério da Saúde como ações e serviços públicos de
de. Entre esses itens figuraram, en- saúde.
tre outros, o pagamento de juros e Da mesma forma, o projeto de
a despesa com a aposentadoria dos Lei de Diretrizes Orçamentárias
ex-funcionários desse ministério. Frente Parlamentar da Saúde deter- (LDO) para o orçamento de 2006,
Embora essas tentativas estivessem minou que o Poder Executivo envi- encaminhado pelo governo federal
sendo apoiadas por toda a área eco- asse mensagem ao Congresso Naci- à Câmara, previa que as despesas
nômica do governo, não foram a onal estabelecendo que, para efeito com assistência médico-hospitalar
termo, pois as entidades da área da dos militares e seus dependentes
das ações em saúde, seriam dedu-
saúde — o Fórum da Reforma Sa- (sistema fechado) fossem conside-
zidos o EPU e o serviço da dívida.
nitária (Abrasco, Cebes, Abres, Rede radas no cálculo de ações e servi-
Em relação ao Fundo da Pobreza a
Unida e Ampasa) —, o Conselho ços de saúde. Caso fossem conside-
mensagem era omissa.Essa omis-
Nacional de Saúde e a Frente Parla- radas, os recursos destinados para
mentar da Saúde rapidamente se são resultaria na redução de R$ o Ministério da Saúde seriam dimi-
mobilizaram e fizeram o governo 3.571 milhões no orçamento SUS do nuídos em cerca de R$ 500 milhões.
recuar. Ministério da Saúde. Frente à declaração pública do MS,

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O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS

repudiando essa interpretação, e cionais; e, dos municípios, 15%, tal absolutamente necessária para ga-
frente à mobilização das entidades como define a EC 2910. rantir o financiamento e o compro-
da saúde, o governo federal foi obri- Quando Lula foi eleito pela pri- metimento das diferentes esferas de
gado a recuar, reformulando sua meira vez, pensava-se que, final- governo na construção do SUS. É
proposta. mente, não haveria obstáculos para por isso que, durante o primeiro ano
A vinculação da EC 29 é objeto que finalmente saísse a regulamen- do governo Lula, a fim de finalizar
da atenção da área econômica. tação da EC 29. Afinal, os temas tra- os encaminhamentos pró-regula-
Em fins de 2003, o governo Lula tados por ela haviam sido objeto de mentação da EC 29, foram realiza-
encaminhou documento referente ao longa discussão entre representan- dos, em Brasília, mais dois semi-
novo acordo com o Fundo Monetá- tes dos conselhos municipais e es- nários, promovidos pela Câmara
rio Internacional8, comunicando sua taduais, do Conselho Nacional de Técnica do Sistema de Informações

intenção em preparar um estudo Saúde, o Ministério da Saúde, os sobre Orçamentos Públicos em Saú-
Tribunais de Contas dos Estados e de - SIOPS e pela Comissão para
sobre as implicações das vincula-
Elaboração de Proposta de Lei Com-
ções constitucionais das despesas
plementar (PLC) do Ministério da
sociais — saúde e educação — so-
Saúde, onde foi intensa a discussão
bre as receitas dos orçamentos da
das entidades presentes11.
União, dos estados ou dos municí-
Quando Lula foi eleito pela Contudo, para surpresas de mui-
pios. A justificativa apoiava-se na
idéia de que a flexibilização da alo- primeira vez, pensava-se que, tos, a regulamentação da EC 29 não
se constituiu prioridade do gover-
cação dos recursos públicos pode- finalmente, não haveria obstáculos no. Mesmo assim, em abril de 2003,
ria assegurar uma trajetória de cres-
para que finalmente saísse a fruto da ação da Frente Parlamen-
cimento ao País9. No âmbito do SUS, tar da Saúde, passou a integrar a
a intenção do governo era tirar do
regulamentação da EC 29
pauta do Congresso, estando à es-
Ministério da Saúde a obrigação de pera de sua votação.
gastar, em relação ao ano anterior, A não prioridade da matéria ex-
valor igual acrescido da variação pressa, na verdade, a tensão exis-
nominal do PIB; dos estados, 12% Municípios. O resultado dessas dis- tente entre a área da saúde e a área
de sua receita de impostos, compre- cussões era, portanto, expressão de econômica do governo. A primeira,
endidas as transferências constitu- um grande consenso, visto como compromissada com a trajetória

8
O documento referente ao novo acordo com o FMI é dirigido ao seu diretor executivo, Köhler (Ministério da Fazenda, 2003).
9
Ministério da Fazenda, op. cit, p. 3
10
A Proposta de Emenda Constitucional 169, vinculando recursos para a saúde pública, foi elaborada pelos deputados Eduardo Jorge e
Waldir Pires. A motivação foi o fato de o Ministério da Saúde, em 1993, não ter recebido os recursos previstos no orçamento da União, de
origem nas contribuições de empregados e empregados, o que levou à ocorrência do seu primeiro empréstimo junto ao Fundo de Amparo
ao Trabalhador - FAT (PEC 169). Depois disso, várias outras propostas de vinculação foram elaboradas e discutidas no Congresso
Nacional, mas somente em 2000 - foi aprovada a emenda constitucional (EC 29). De acordo com a EC 29, a União deveria alocar, para
o primeiro ano, pelo menos 5% a mais do que foi empenhado no orçamento do período anterior, e, para os seguintes, o valor apurado no
ano anterior corrigido pela variação do PIB nominal.
11
Conasems; Procuradoria Geral da República; Banco do Brasil; representante da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas;
Conselho Federal de Contabilidade; assessoria do Deputado Roberto Gouveia; asssessoria do Deputado Guilherme Menezes – PT/Bahia;
IBGE/Depto. Contas Nacionais; técnicos do SIOPS; Secretaria Gestão Participativa/MS; STN; técnicos do Departamento de Economia da
Saúde/MS; assessoria da bancada do PT na Câmara Federal.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 265
MENDES, Áquilas Nogueira & MARQUES, Rosa Maria

histórica do SUS, e por isso, preo- Nos três primeiros anos dessa ges- dado continuidade a seu processo
cupada em garantir seu financia- tão, a taxa de cobertura do Progra- de implantação é, em si, digno de
mento e em definir as ações e servi- ma Saúde da Família, com relação nota, indicando seu grau de com-
ços de saúde pública; e a segunda, ao total da população brasileira, promisso com relação a um progra-
restringida por uma política econô- aumentou significativamente: 35,7% ma considerado prioritário por to-
mica fundada em metas de inflação (2003); 39% (2004) e 43,04% em das as instâncias participativas do
e na geração de superávits primá- 2005. No último ano do governo SUS.
rios. Nessa situação, a regulamen- FHC, esse percentual era de 32,4%. Entre os programas iniciados
tação das vinculações previstas na O grau de cobertura varia muito durante o primeiro governo Lula,
EC 29 é vista como um retrocesso, entre as regiões e os municípios: em destacam-se o Brasil Sorridente e o
pois impõe despesas mínimas e 2004, por exemplo, enquanto no programa Farmácia Popular. O pri-
comprometimentos mínimos de re- nordeste era de 54,85%, na região meiro, integrante da Política de Saú-
ceitas, o que estaria contrariando o sudeste atingia apenas 29% . 12
de Bucal, propiciou que a cobertu-
esforço de geração de superávit. Ao ra do atendimento da saúde bucal
mesmo tempo, no entender da equi-
aumentasse de 17,5%, em 2002,
pe econômica, isso limitaria o po-
para 33,7%, em 2005. Já o progra-
der discricionário do governo, o
ma Farmácia Popular, consiste em
qual não poderia alocar os recur- Apesar das restrições impostas pelo oferecer medicamentos essenciais a
sos de acordo com seus interesses
mais imediatos. Dessa forma, o
marco macroeconômico, houve baixo custo. Em 14 de dezembro de
2006, o Ministério da Saúde inau-
gasto mínimo definido e a vincula- avanços na área da saúde pública
gurava a 243ª Farmácia Popular do
ção mínima de recursos estariam durante o primeiro governo Lula país. Dessa forma, segundo infor-
respondendo a interesses que inde-
mação do site do MS, esse progra-
penderiam do governo de ocasião,
ma atingia “60 milhões de brasilei-
expressando compromissos de lon-
ros, em 193 municípios de 24 esta-
go prazo.
dos e do Distrito Federal”. Desde o

Não se pode dizer, entretanto, lançamento do programa, em junho

que esse programa tenha sido (e de 2004, já foram realizados mais


AVANÇOS RELATIVOS
seja) propriamente uma marca do de 6,5 milhões de atendimentos e
DA SAÚDE PÚBLICA. governo Lula, pois seu início data fornecidos mais de 40 milhões de
de 1994, embora somente em 1998 produtos”. Essa iniciativa não está,

Apesar das restrições impostas tenha se consolidado como uma po- contudo, isenta de críticas. Há quem
pelo marco macroeconômico, hou- lítica prioritária do Ministério da considere que a cobrança pelo me-
ve avanços na área da saúde públi- Saúde. Poder-se-ia argumentar, con- dicamento fere o princípio da gra-
ca durante o primeiro governo Lula. tudo, que o fato de o governo ter tuidade, presente no SUS.

12
Ver site do Ministério da Saúde, www.saude.gov.br. Acesso em: 10 de dezembro de 2006

266 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005
O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS

CONSIDERAÇÕES FINAIS ção ao SUS, a luta incessante dos Transitórias, para assegurar os re-
últimos anos pela defesa de níveis cursos mínimos para o financiamen-
Para a Seguridade Social, em mínimos de recursos que, a bem da to das ações e serviços públicos de
geral, e para o SUS, em particular, verdade, não começou com o go- saúde. DOU. 13 set. 2000
a forte possibilidade de que a políti- verno Lula , pode converter-se em
13

ca econômica do segundo governo crescente descompromisso dos di- MARQUES, R. M., MENDES, A. O
Lula tenha como base os mesmos ferentes níveis de governo com a Governo Lula e a Contra-Reforma
fundamentos da que foi desenvolvi- saúde pública. Frente à não-regu- Previdenciária. São Paulo Perspec,
da em seu primeiro mandato é mais lamentação da EC 29 e ao efeito de- São Paulo, v.18, p.3-15, set./ jul.
do que preocupante. Isso porque, do monstração dado pela União, difi- 2004.
ponto de vista das políticas susten- cilmente o MS, o Conselho Nacio-
tadas pelos diferentes ramos da Se- nal de Saúde, o Conasems e o Co- ______. Democracia Y Universali-
guridade Social, especialmente para nass terão força para fazer valer o dad: Discutiendo las condiciones de
a Previdência e para a Saúde, não pacto que gerou a proposta da EC aplicar tales conceptos a las accio-
será o enfretamento das mesmas 29. nes y servicios de salud pública de
restrições e problemas. No caso da Brasil. In Revista: Bienestar y Polí-
Previdência, a crescente defasagem tica Social - Universidad IberoA-
entre as receitas de contribuições e REFERÊNCIAS mericana - Ciudad de México, v. 2
as despesas com benefícios (muito n.1 primer semestre 2006.
embora a Seguridade como um todo ANFIP - Associação Nacional dos
apresente um superávit também Auditores Fiscais da Previdência MARQUES, R. M. e NAKATANI, P. A
crescente, mas que é desconhecido Social. Análise da Seguridade So- política econômica do governo Lula:
do grande público e esquecido pela cial em 2004 e 2005. Disponível: como mudar para ficar no mesmo.
mídia, para dizer o mínimo) é fonte http://www.anfip.org.br/. Acesso Texto no prelo, a ser publicado no
de argumento para justificar a im- em: 12 de dez. 2006. número 189 da revista Tiers Mon-
plantação de uma reforma radical, de. Sorbonne, Paris.
que resulte na redução dos gastos BELLUZZO L.G., CARNEIRO R.. Glo-
futuros com benefícios. balização e Integração Perversa. MINISTÉRIO DA FAZENDA. Carta de
Em relação à Seguridade como Política Econômica em Foco, Cam- intenção referente ao novo acordo,
um todo, a intenção de aumentar o pinas, v. 1, p.1-11, maio/ag. 2003 Brasília, 2003. Disponível em: http:/
percentual das contribuições na com- /www.fazenda.gov.br. Acesso em: 30
posição da DRU - mais do que sig- BRASIL. Constituição, 1988. Emen- de setembro de 2004.
nificar mais um passo no sentido da Constitucional 29, 13 de setem-
da destruição da idéia de um orça- bro de 2000. Altera os arts. 34, 35, SÁNCHEZ, F. et al. - A política eco-
mento para a Seguridade - pode re- 156, 160, 167 e 198 da Constitui- nômica da esquerda latino-ameri-
sultar na sua inviabilidade e/ou na ção Federal e acrescenta artigo ao cana no governo: o caso do Brasil.
perda de sentido material. Em rela- Ato das Disposições Constitucionais Projeto Madison 2, 2006. Mimeo.

13
Para detalhes dessa luta, ver Marques e Mendes, 2006.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 267
TEIXEIRA,
ARTIGOSCarmen Fontes & PAIM,
ORIGINAIS Jairnilson ARTICLES
/ ORIGINAL Silva

A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior


Health Policy in the Lula government and the least worse dialectic

“Uma pessoa corresponde ao seu próprio tempo mais quando combate


do que quando colabora com as ‘formas de vida oficial’” (Badaloni,
1987:85).

Carmen Fontes Teixeira1 RESUMO


Jairnilson Silva Paim2
O objetivo do artigo é analisar a política de saúde do Governo Federal
na conjuntura iniciada em 2003. A metodologia empregada incluiu pesquisa
documental de planos, programas, projetos e relatórios elaborados no
Recebido: Jun./2006 Ministério da Saúde, bem como a extração de trechos de discursos de
Aprovado: Jul./2007
autoridades governamentais e dirigentes do setor, publicados em jornais e
revistas de grande circulação. Os resultados incluem a sistematização e
discussão do processo de formulação e implementação de políticas de saúde,
cotejando-o com algumas iniciativas do Governo Lula nas áreas econômica
e social. Aponta a frustração das expectativas em torno da gestão do Estado
por forças consideradas de esquerda, embora reconheça esforços realizados
para a manutenção e continuidade do processo de reforma setorial em
curso.
PALAVRAS-CHAVE: Política de saúde, Sistema Único de Saúde, Reforma Sanitária
Brasileira.

ABSTRACT

This article aims to analyze the federal government health policies in


the situation which began in 2003. The methodology employed included
documentary research of plans, programs, projects and reports elaborated
by the Ministry of Health, as well as the extraction of passages from speeches
made by governmental authorities and leaders of the sector published in
large circulation newspapers and magazines. The results include the
1
Doutora em Saúde Pública. Professora
systematization and discussion of the process of formulating and
Adjunta do Instituto de Saúde Coletiva da
implementing health policies, comparing it to some initiatives of the Lula
Universidade Federal da Bahia (ISC- government in economic and social areas. It reveals how expectations of
UFBA). E-mail: carment@ufba.br State management by supposedly left-wing powers have been frustrated,
whilst also acknowledging efforts that have been made to maintain and
2
Professor Titular em Política de Saúde do continue the sectorial reform process underway.
Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. Pes-

quisador 1-A do CNPq. E-mail: KEYWORDS: Health policies, Brazil’s Unified Health System, Brazilian Health
jairnil@ufba.br Reform.

268 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

INTRODUÇÃO Analisar a policy implica identi- No que diz respeito à politics,


ficar o conjunto de proposições re- cabe considerar a luta política tra-
O término da gestão 2003-2006
lativas ao enfrentamento dos pro- vada no âmbito do governo (inter-
do Presidente Lula estimula a refle- blemas e ao atendimento das neces- namente as instituições de saúde e
xão e demanda por um balanço de sidades de saúde da população, se- destas com outras organizações go-
suas políticas públicas. No caso da gundo a perspectiva adotada por vernamentais enão-governamentais)
saúde, o respeito ao passado e o um determinado ator social. Tais e na sociedade civil. A dinâmica
compromisso com o futuro da Re- proposições geralmente são apre- desse processo político tanto pode
forma Sanitária Brasileira sentadas e sistematizadas em docu- contribuir para consolidar ou para
(RSB)exigem, que se proceda a um mentos como programa de gover- subverter, no cotidiano da imple-
exame crítico da política formula- no, políticas, planos, programas e mentação em organizações públi-
da e implementada nessa gestão. projetos de intervenção, expressões cas, a direcionalidade indicada no
Trata-se de “fazer uma análise dos das políticas planificadas. Podem, programa de governo e nos planos
processos e questões políticas que de ação derivados ou subsidiários.
se acham envolvidas na avaliação Essa luta política se expressa pela
dos planos e programas do setor disputa entre atores das organiza-
público de um país” (BUSTAMEN-
O TÉRMINO DA GESTÃO ções visando à apropriação e ao
TE & PORTALES, 1988 p. 79). acúmulo de poderes técnico, admi-
Para o desenvolvimento dessa 2003-2006 DO PRESIDENTE LULA nistrativo e político (TESTA, 1992).
análise, algumas perguntas prelimi- ESTIMULA A REFLEXÃO E DEMANDA POR UM Esses enfrentamentos podem se re-
nares podem ser apresentadas: velar em torno das opções estraté-
BALANÇO DE SUAS POLÍTICAS PÚBLICAS
quais os compromissos explícitos gicas a serem adotadas no cotidia-
no programa de governo antes das no das instituições responsáveis
eleições presidenciais de 2002? pela implementação da proposta
Quais os fatos políticos relaciona- política que refletem a luta pelo
dos com a saúde produzidos no pe- poder, quer no ambiente interno,
ríodo de governo? Como os atores também, ser apreendidas mediante quer nas relações estabelecidas en-
políticos atuaram na conjuntura? declarações e discursos de autori- tre os diferentes órgãos. Como exem-
Que relações poderiam ser identifi- dades e atores sociais que ilustram plos, podem ser mencionadas as
cadas entre tais fatos e o programa certos componentes da agenda po- relações de cooperação ou conflito
de governo? Perguntas como essas lítica e podem ser examinadas, ain- entre instituições do poder executi-
sugerem uma avaliação centrada na da, a partir de atos normativos, tais vo (Ministério da Saúde, secretari-
formulação e no processo político como: leis, decretos, portarias, re- as estaduais e municipais de Saú-
correspondente à implementação. soluções, etc. No caso em questão, de, agências executivas etc) e des-
Em outras palavras, remetem à aná- trata-se de identificar as propostas tas com o poder legislativo, judici-
lise da política de saúde em suas de saúde incluídas no programa de ário, organizações não-governamen-
dimensões de policy e de politics governo e seus desdobramentos ao tais, mídia e grupos organizados da
(PAIM, 2003). longo da gestão. sociedade civil.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 269
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

Conseqüentemente, as políticas so de mudança no financiamento, mais abrangentes, inovadores e con-


de saúde de um governo não podem gestão e organização do sistema sistentes.
ser avaliadas apenas setorialmen- público de saúde. Também se apos- Após a vitória, a excitação do
te, ou seja, pelas ações exclusivas tou na possibilidade de se intensifi- “mercado” e da mídia, pela indica-
do sistema de serviços de saúde ou car o processo de participação e con- ção imediata do Presidente do Ban-
do ministério correspondente. Há trole social do SUS, avançando-se co Central e do Ministro da Fazen-
que se examinar passos, traços e na democratização do conhecimen- da, correu ao lado da iniciativa do
produtos do governo que têm reper- to, na reorientação das práticas e então Presidente Fernando Henrique
cussões na saúde da população e na melhoria das condições de saú- Cardoso no sentido de disponibili-
na organização do sistema de ser- de da população. zar cargos para integrantes do “gru-
viços. Com essa perspectiva, o pre- Ao se tomar, como ponto de par- po da transição” (GT) a serem indi-
sente artigo tem como objetivo ana- tida, a análise do componente saú- cados pelo presidente eleito, visan-
lisar a política de saúde do Gover- de do Programa de Governo apre- do à passagem dos trabalhos de um
no Federal na conjuntura iniciada governo para o outro. Foi designa-
em janeiro de 20033. do para dirigir os trabalhos do GT,
o então prefeito da cidade paulista
de Ribeirão Preto, que se tornara
DO PROGRAMA À EQUIPE DE GOVERNO: coordenador do programa de Lula
O PRESENTE ARTIGO TEM COMO
DISCURSO TÍMIDO E devido a uma tragédia (assassina-
PRÁTICA FRAGMENTADA. OBJETIVO ANALISAR A POLÍTICA DE SAÚDE DO to do prefeito de Santo André, Celso

GOVERNO FEDERAL NA CONJUNTURA INICIADA Daniel, que seria o coordenador do


Depois de perder as eleições pre- Programa de Governo). Nas várias
sidenciais de 1989, 1994 e 1998, o EM JANEIRO DE 2003 entrevistas concedidas à mídia, o
Partido dos Trabalhadores (PT) lide- coordenador do GT reforçava o dis-
rou uma coligação partidária que curso que, segundo a mídia, o mer-
elegeu o ex-operário, ex-líder sindi- cado precisava ouvir para se acal-
cal e ex-deputado constituinte Luiz mar. Assim, era cada vez mais fes-
Inácio Lula da Silva, como Presi- sentado no período eleitoral4 cons- tejado pelos porta-vozes do “merca-
dente da República, em 2002. Além tata-se, de um modo geral, uma rei- do” e pela mídia.
da relevância histórica do aconteci- teração de proposições já contidas Tanto o presidente eleito quanto
mento e das esperanças cultivadas e formalizadas na Constituição Fe- o então presidente do PT, José Dir-
durante a campanha, amplas expec- deral, na Lei Orgânica da Saúde e ceu, destacavam que o GT era ‘téc-
tativas foram expressas em relação em distintas normas operacionais nico’, e que ninguém deveria espe-
à direcionalidade da política de saú- do Sistema Único de Saúde (SUS). rar tornar-se ministro a partir des-
de, especialmente tendo em vista a Houve candidatos concorrentes que se trabalho. Mas, na viagem a Wa-
necessidade de se acelerar o proces- chegaram a apresentar programas shington, Lula deixou escapar, por

3
O material utilizado na pesquisa documental será identificado mediante notas de pé de página ao longo do texto, reservando-se as
referências bibliográficas exclusivamente para publicações em livros e periódicos.
4
Saúde para a família brasileira (Programa de Governo 2002 - Coligação Lula Presidente: PT-PC do BPL-PMN-PCB). Setembro, 2002.
24p.

270 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

aparente ato falho, o nome do Mi- Tal como na Fazenda, o político Atenção à Saúde); um destaque
nistro da Fazenda que a mídia, o indicado para Ministro da Saúde foi, para as questões dos recursos hu-
‘mercado’, o governo americano e também, um dos integrantes do GT, manos (Secretaria de Gestão do Tra-
os bancos aparentemente já sabiam. desmentindo, mais uma vez, as de- balho e da Educação em Saúde);
E ainda fez piada com a tragédia clarações anteriores do presidente uma atenção para os insumos es-
do país: se a economia brasileira eleito. Seu nome foi um dos últi- tratégicos (inclusive assistência far-
está na UTI, ninguém melhor que mos a ser divulgado numa equipe macêutica) e desenvolvimento cien-
um médico para tratar dela... As- de mais de três dezenas de minis- tífico e tecnológico (Secretaria de
sim, para dirigir uma complexa eco- tros5, muitos deles recentemente Ciência e Tecnologia e Insumos Es-
nomia de um país de mais de 170 derrotados nas urnas. Contudo, a tratégicos); uma prioridade para a
milhões de habitantes, foi indicado composição da equipe do segundo gestão democrática (Secretaria de
um político cujo currículo insinua- escalão prestigiou atores políticos Gestão Participativa); e certa ambi-
va algum interesse em questões fis- com participação no movimento da güidade em relação aos programas
cais e econômicas, mas que a mí- especiais vinculados à Fundação
dia comemorava entusiasticamen- Nacional de Saúde (FUNASA) que
te. passaram a constituir a chamada
O Relatório da Transição, apre- SVS (Secretaria de Vigilância em
sentado pelo seu coordenador e A REFORMA ADMINISTRATIVA Saúde).
Após a festa da posse do Presi-
transmitido ao vivo pela TV, prati-
DO MINISTÉRIO DA SAÚDE(...) SUGERIA UMA
camente nada informava sobre os dente, o Ministro da Saúde conce-
ÊNFASE NA INTEGRAÇÃO DA ATENÇÃO BÁSICA deu entrevista na televisão discu-
trabalhos dos grupos. Concentrava-
se em aspectos macro-econômicos, COM A ASSISTÊNCIA ESPECIALIZADA E tindo um aumento de 9% no preço
dos remédios para março. Ao assu-
sinalizando para tópicos que o ca- HOSPITALAR... mir o cargo, diante da presença de
pital financeiro valorizava. A pala-
mais de 600 pessoas, deu destaque
vra saúde não foi mencionada uma
para a mortalidade infantil, o ‘es-
vez sequer, nem pelo coordenador
cândalo’ da mortalidade materna, a
do GT nem por Lula no seu discur- RSB e com experiência prévia de manutenção do Programa de Saúde
so, mesmo que fosse para se referir gestão pública. da Família (PSF), o fortalecimento
à ‘saúde da economia’. Quanto ao A reforma administrativa do Mi- do SUS e o monitoramento da den-
‘social’, apenas foram feitas men- nistério da Saúde, apresentada logo gue. No seu discurso6, reafirmava
ções vagas à educação,à fome e no início do governo, sugeria uma certos princípios e diretrizes da Re-
àsegurança pública. Esta omissão ênfase na integração da atenção forma Sanitária, o compromisso
era o primeiro sinal de como a saú- básica com a assistência especi- com o SUS, a continuidade dos pro-
de seria tratada pelo governo. alizada e hospitalar (Secretaria de gramas de controle da AIDS e do

5
A prodigalidade com que foram criadas pastas ministeriais para acomodar interesses e apetites partidários visando à ocupação dos
milhares de cargos de confiança - “Ministério dos Derrotados” - já anunciava a reprodução ampliada do clientelismo, além de dificuldades
na coordenação política e na gestão. Se o Presidente reservasse por dia um despacho por ministro só conseguiria vê-lo de novo um mês
depois. Mas os fatos foram demonstrando que a gestão não era o que mais importava para o Presidente.
6
Ministério da Saúde. Assessoria de Comunicação Social. Divisão de Imprensa. Transmissão de cargo do senhor ministro da Saúde
Humberto Costa. 02.01.03.7p.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 271
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

tabagismo7, mas não avançava com O INÍCIO DA GESTÃO ção à saúde: ampliação do acesso
proposições consentâneas com as da população aos serviços de saú-
expectativas em relação à conjun- No encontro com os prefeitos, de;
tura que se iniciava: nada sobre a realizado em março de 2003, o Pre- 2. Combate à fome: atendimen-
regulação dos ‘planos de saúde’; sidente e o Ministro da Saúde anun- to às carências nutricionais;
muito pouco em relação à indús- ciaram a expansão da Atenção Bá- 3. Atendimento a grupos com
tria farmacêutica e à produção de sica e do PSF, além do aumento dos necessidade de atenção especial:
genéricos; nenhum plano de expan- valores do Piso da Atenção Básica atenção à saúde da criança, da
são dos investimentos nos serviços (PAB) e da assistência farmacêuti- mulher e do idoso. Prevenção, con-
públicos; nenhum compromisso cla- ca. Posteriormente, o anúncio da trole e assistência aos portadores
ro com a força de trabalho em saú- implantação de 4.000 equipes de DST e AIDS;
de. saúde da família, do reforço ao aten- 4. Controle da dengue e outras
dimento de urgência e emergência doenças endêmicas e epidêmicas.
Combate a endemias e doenças
FATOS POLÍTICOS DA SAÚDE: transmitidas por vetores (priorida-
REMANDO CONTRA A MARÉ DA de para a dengue e a malária);
POLÍTICA ECONÔMICA E 5. Acesso a medicamento: ga-
DO MODO CONVENCIONAL ANALISAR O PROCESSO POLÍTICO rantia do acesso da população a
DE FAZER POLÍTICA DA SAÚDE NO BRASIL SUPÕE CARACTERIZAR A estes produtos;
6. Qualificação dos trabalhado-
SITUAÇÃO CONFIGURADA NO ÂMBITO DAS
Analisar o processo político da res do SUS. Qualificação dos traba-
Saúde no Brasil supõe caracterizar INSTITUIÇÕES, ESPECIALMENTE O MINISTÉRIO lhadores da saúde 8.
a situação configurada no âmbito
DA SAÚDE E AS AGÊNCIAS DO SETOR... Em consonância com tais dire-
das instituições, especialmente o trizes, podem ser destacadas as se-
Ministério da Saúde e as agências guintes ações: expansão da atenção
do setor, a Agência Nacional de Saú-
básica, com ampliação de recursos
de Suplementar (ANS) e a Agência
e de equipes de saúde da família;
Nacional de Vigilância Sanitária
e do novo modelo de gestão dos convocação da 12ª Conferência Na-
(ANVISA). Busca-se, assim, estabe-
hospitais universitários indicavam cional de Saúde em caráter extra-
lecer um contraponto entre algumas
a produção de fatos políticos con- ordinário9; ampliação de credenci-
das iniciativas desencadeadas na
área da saúde e os fatos produzi- sistentes com o programa de gover- amento para leitos de unidades de
dos em outras instâncias do gover- no. Além disso, um elenco de dire- tratamento intensivo (UTI); apoio fi-
no, cujos efeitos contribuíram para trizes foi estabelecido para o primei- nanceiro aos hospitais universitá-
fragilizar ou favorecer a formula- ro ano de gestão: rios redefinindo suas relações com
ção e implementação das políticas 1. Melhoria do acesso, da qua- o SUS; reajuste nos repasses para
de saúde. lidade e da humanização da aten- consultas especializadas em hospi-

7
“Aliás, eu quero avisar aos fumantes de plantão que serei tão implacável quanto o ministro Serra no combate ao tabagismo” op. cit. p.4.
8
Ministério da Saúde. Diretrizes e Metas do MS para 2003 – Andamento das Ações. 10 de julho de 2003.p.11.
9
Os temas selecionados foram: Direito à saúde; Intersetorialidade das Ações de Saúde; As Três Esferas de Governo e a Construção do SUS;
Organização da Atenção em Saúde; Gestão Participativa; Trabalho em Saúde; Ciência, Tecnologia e Saúde; e Financiamento. Radis, 11:8,
2003.

272 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

tais públicos, em estados e municí- de saúde coletiva, agências regio- ais à promoção da eqüidade ”( BRA-
pios de gestão plena; nova campa- nais; e outras medidas específicas11.
SIL, 2003)12.
nha antitabagista na mídia (Fique
esperto!) para jovens de 13 a 19
anos; criação da Câmara de Regu- Mereceu destaque o processo
O PRIMEIRO ANO DE GOVERNO
lação do Mercado de Medicamentos participativo para a construção do
(CAMED) e fixação de normas para Plano Plurianual 2004-2007, envol-
o controle de preços destes produ- Nos seis primeiros meses de go- vendo os trabalhadores, colegiados
tos (Medida Provisória Nº 123, de verno, muita energia institucional e fóruns do ministério, inclusive as
26 de junho de 2003; apoio aos la- foi gasta para superar a fragmenta- instâncias de controle social, como
boratórios oficiais, isenção de ICMS ção das ações e implantar a nova o Conselho Nacional de Saúde13. A
para medicamentos de alto custo, organização do ministério. Assim, tentativa de mudança do modelo de
reforço aos genéricos, 18 novas re- segundo a equipe dirigente, atenção à saúde, a partir de proje-
soluções da ANVISA regulamentan- tos que priorizam o acolhimento e
do os medicamentos e condenando a humanização14, poderia ser con-
o uso de antigripais e hepatoprote- siderada um ‘marcador’ dessa von-
tores, além da convocação da 1ª A TENTATIVA DE MUDANÇA DO MODELO DE tade política da nova equipe. Do
Conferência Nacional de Medica- mesmo modo, a ampliação do PSF
mentos e Assistência Farmacêuti-
ATENÇÃO À SAÚDE, A PARTIR DE PROJETOS e dos recursos do PAB, maiores re-
ca10; capacitação de profissionais de QUE PRIORIZAM O ACOLHIMENTO E A passes para atenção especializada
saúde, com destaque para a pro- em hospitais públicos, expansão
HUMANIZAÇÃO , PODERIA SER CONSIDERADA
posta de constituir Pólos de Educa- dos Centros de Atenção Psicossoci-
ção Permanente nos estados e mu- UM ‘MARCADOR’ DESSA VONTADE POLÍTICA DA al (CAPS), reforço do atendimento de
nicípios com mais de 100 mil habi- NOVA EQUIPE... urgência e apoio aos hospitais uni-
tantes, estruturando núcleos inte- versitários federais, indicavam
rinstitucionais e envolvendo gesto- uma concepção mais abrangente
res estaduais e municipais, univer- para a organização do sistema pú-
sidades, escolas técnicas, hospitais “os esforços concentraram-se, em blico de saúde.
universitários, escolas de saúde pú- Os fatos acima mencionados si-
especial, na adequação da gestão do
blica, estruturas de formação dos nalizavam para redefinições rele-
ministério às diretrizes do governo e
serviços de saúde, pólos de capaci- vantes na política de saúde,apesar
tação de saúde da família, núcleos na implementação de medidas essenci- da falta de indicações de como en-

10
Ver, ainda: redimensionado o projeto da fábrica de preservativos em Xapuri/Acre e repasse de recursos para a assistência farmacêutica
nos municípios do Fome Zero. Brasil. MS, 2003, Op. cit, .p.15.
11
Vacinação de 12,3 milhões de pessoas acima dos 60 anos de idade, representando 82,2% de cobertura vacinal e de 93,45% de crianças
entre zero e quatro anos de idade; mobilização e recursos para o combate à dengue tuberculose, hanseníase e AIDS; adoção do novo cartão
da criança; multas da ANS sobre planos de saúde; ações de controle da violência contra a mulher (Disque Saúde Mulher); notificação
obrigatória de óbitos de mulheres em idade fértil. Brasil. MS. 2003, op cit, .p.16; Saúde, Brasil, 87:7, junho de 2003.
12
Ministério da Saúde. Diretrizes e Metas do MS para 2003 – Andamento das Ações. 10 de julho de 2003. p.1.
13
op. cit.
14
Todos os projetos novos do Ministério conteriam como requisitos o fortalecimento de práticas de acolhimento, respeito ao cidadão,
capacitação dos profissionais de saúde, maior conforto, responsabilidade definida pelo paciente, com adoção de planos de metas de
humanização da atenção e da gestão. op. cit,.p.3.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 273
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

frentar a segmentação do sistema (FIA), somente para beneficiar um indignaram-se diante de uma deci-
de saúde brasileiro. Embora a limi- evento esportivo na cidade de São são leviana e autoritária contra evi-
tação de recursos orçamentários Paulo, macularam uma política pe- dências científicas e contra as lutas
não permitisse assegurar a sufici- nosamente construída, com a aqui- históricas dos trabalhadores de saú-
ência de muitas dessas medidas em escência de um Ministro da Saúde de pela promoção e proteção da saú-
relação às necessidades insatisfei- que, no discurso de posse, apresen- de. Cidadãos, eleitores e militantes
tas acumuladas, elas apontavam tou-se como ‘implacável’ no com- sentiram-se traídos quanto às espe-
certa direcionalidade da política. bate ao tabagismo.. ranças e confiança que depositavam
Nesse sentido - a redefinição do Tal decisão envergonhava os bra- no novo Governo, alimentadas por
modelo de atenção e a busca de sileiros aos olhos do mundo civili- décadas de lutas democráticas.
acesso universal e integral dos ser- zado, pois a autoridade maior do Como assinalava a carta de um lei-
viços de saúde -, iniciava-se medi- país descumpria a lei e a Constitui- tor do Jornal Folha de São Paulo:
ante a reorganização da atenção bá- ção recorrendo a uma MP, procedi-
sica articulada à vigilância da saú- O fato de o Brasil ter se tornado re-
de e à atenção especializada. fém do circo da Fórmula 1, impedindo
Todavia, na contramão dessa a vigência de leis cujo objetivo é preser-
política de saúde, a Nação foi sur- var a saúde pública (restrição à propa-
preendida com o contingenciamen- PROFISSIONAIS DE SAÚDE INDIGNARAM-SE ganda de tabaco), causa consternação,
to de recursos logo em março 15
e DIANTE DE UMA DECISÃO LEVIANA E além de ser péssimo exemplo para a afir-
com um fato da maior gravidade, mação da cidadania. Melhor seria se o
AUTORITÁRIA CONTRA EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS
ocorrido no início de abril. O Jornal país deixasse de fazer parte do roteiro
Hoje da Rede Globo anunciou, em E CONTRA AS LUTAS HISTÓRICAS DOS de um esporte mercenário e elitista e
primeira mão, uma Medida Provi- TRABALHADORES DE SAÚDE PELA PROMOÇÃO E passasse a respeitar a sua condição de
sória do Presidente Lula autorizan- país soberano (FOLHA DE SÃO PAULO,
do propaganda de cigarro em even-
PROTEÇÃO DA SAÚDE
2003)16.
tos internacionais, desrespeitando a
Lei 10.167 de 27/12/2000 e, conse- O próprio Ministro da Saúde,
qüentemente, a Constituição da Re- mento tantas vezes criticado pelo durante audiência pública na Co-
pública (BRASIL, 1988) quando de- presidente e seu partido durante os missão de Seguridade Social e Fa-
termina que a publicidade de taba- governos anteriores. Ministros con- mília, na Câmara dos Deputados,
co deve estar sujeita a restrições siderados de esquerda, como os da revelava semanas depois que foi por
legais. Assim, interesses econômi- Saúde, do Esporte e da Casa Civil, chantagem da FIA que o Governo
cos, políticos e midiáticos, vincu- sucumbiram às pressões do capital editou a Medida Provisória 118/03,
lados a pressões da Federação In- comprometido com aquele evento autorizando a propaganda de cigar-
ternacional de Automobilismo esportivo. Profissionais de saúde ros em eventos esportivos interna-

15
Como em outras oportunidades, a área econômica deu o tom para as políticas de saúde. Assim, o Ministério da Saúde sofreu logo no
início do governo- uma intervenção da área econômica com um contingenciamento de 1,6 bilhões de reais, o maior de todos os ministérios
em termos absolutos. Promessas do Ministério do Planejamento de providenciar a liberação dos recursos não apagavam o sentido da ação
política de governo através dessa primeira surpresa negativa para o setor.
16
Painel do Leitor, Folha de São Paulo, 8/6/03.pA.3.

274 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

cionais até julho de 2005. Segundo com os governadores que permiti- tra a saúde, urdido pelo Presidente
o ministro, a FIA deixou claro que ria gastar livremente 20% das recei- e seu Ministro da Fazenda:
o Brasil seria excluído do circuito tas, ou seja, possibilitando a des- É importante que se diga que o SUS,
da Fórmula 1, caso a MP não fosse vinculação dos recursos de saúde e e mesmo os seus nobres princípios bási-
editada, permitindo que as escude- educação nos orçamentos dos esta- cos, não são fruto de um consenso, mas
rias tivessem a logomarca de cigar- dos18. E o Ministro da Fazenda con- de um longo caminho de batalhas en-
ros estampadas em seus veículos siderava natural o pleito dos gover- frentadas por todos aqueles que, ao lon-
durante o Grande Prêmio Brasil, re- nadores já que a União assim pro- go das duas últimas décadas, coloca-
alizado no dia 6 de abril de 2003, cedia: “Se nós aplicamos a DRU ram as questões de saúde pública aci-
em São Paulo. Diante da ameaça, o (Desvinculação de Receitas da ma das motivações políticas, ideológi-
Governo teria levado em considera- União), por que seríamos contra que cas, partidárias e corporativas (...). A
ção os empregos gerados pelo even- eles (governadores) apliquem?” 19. mais recente e expressiva vitória do
to, a imagem do Brasil que um GP SUS se deu com a aprovação da emen-
projeta no exterior e a situação ju- da 29, no ano de 2000, pelo Congresso
rídica complexa de um eventual Nacional. A emenda vincula as recei-
rompimento de contrato.17 tas da União e de Estados e municípios
Decisões semelhantes assumidas a gastos na área de saúde. Sua apro-
pelo governo contra a saúde conti- vação foi resultado de uma ampla mo-
O GOVERNO CONTINUA COMPROMETENDO AS
nuaram a ser tomadas como aque- bilização da sociedade civil, de parla-
las relacionadas à liberação da ex- POLÍTICAS DE SAÚDE, TAL COMO OCORREU mentares e gestores em todo o Brasil
portação da soja transgênica, bem DURANTE A ELABORAÇÃO DAS PROPOSTAS (COSTA, H., 2003, p. A 3). 20
como o seu plantio, à importação
ORÇAMENTÁRIAS NOS ANOS SEGUINTES
de pneus usados e às tentativas de A postura do Ministro, desta vez,
desobedecer à Emenda Constitucio- provocava certo alento. Seu discur-
nal 29 durante a elaboração das so enfatizava o fortalecimento da
propostas orçamentárias. Aliás, as descentralização, a responsabilida-
manobras para desviar recursos do de partilhada, a melhoria do aces-
SUS vinham se configurando desde so e a qualidade do atendimento,
que o Presidente e o seu Ministro Dessa vez, o Ministro da Saúde não a desresponsabilização sobre o
da Fazenda discutiram um acordo reagiu diante de mais um golpe con- financiamento. Mas o Ministro,

17
O ministro disse que, apesar de ser produto das pressões da FIA, a medida provisória teria pontos positivos. Dentre eles, o dispositivo
que possibilita a transmissão de mensagens gratuitas, durante os eventos esportivos, com advertências sobre os malefícios do fumo. Em
seu depoimento, Humberto Costa apresentou uma série de propostas para aperfeiçoamento da MP. Ele sugeriu, por exemplo, a proibição
da comercialização de produtos derivados do tabaco em estabelecimentos de livre acesso para menores de 18 anos. “A proibição atingiria
pontos de venda como supermercados e mercearias e seria regulamentada pelas prefeituras no prazo máximo de dois anos”. Fonte:
Agência Câmara.
18
Governo libera Estados para reduzir verbas da área social. Para conseguir o apoio dos governadores às reformas tributária e da
Previdência, o presidente Luiz Inácio da Silva fechou um acordo que desobriga os Estados de aplicarem 20% de suas receitas em setores
como educação e saúde. A Tarde, 1/07/03.p.1. Acordo autoriza Estados a gastar menos no social. Folha de São Paulo, 1/07/03.pA 1.
19
A Tarde, 1/07/03.p.14. Aécio defende desvinculação em Estados: “mas quando veio à tona que os Estados poderiam cortar recursos da
educação e da saúde, as bancadas na Câmara ligadas às questões sociais reagiram. E em uma reunião da última quarta-feira na casa do
presidente da Câmara, João Paulo Cunha (PT), com a presença do ministro José Dirceu (Casa Civil), essa permissão aos estados foi
rechaçada”. Folha de São Paulo, 5 de junho de 2003.
20
Costa, H. Em defesa da saúde. Folha de São Paulo, 6 de julho de 2003. P.A 3.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 275
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

mais uma vez, se equivocara. O mentos do governo. Era possível ção à saúde da população, não pa-
governo continuava comprometen- notar esforços para a gestão parti- recem suficientes para produzir
do as políticas de saúde, tal como cipativa, a exemplo da antecipação mudanças na forma de organização
ocorreu durante a elaboração das da convocação da 12ª Conferencia dos serviços, muito menos nas con-
propostas orçamentárias nos anos Nacional de Saúde e a elaboração dições de saúde e seus determinan-
seguintes. Fatos políticos importan- do Plano Nacional de Saúde que exi- tes.
tes como a implementação da Re- giu várias reuniões e seminários no O ano encerrou-se com a reali-
forma Psiquiátrica21, com base na âmbito do MS. Todavia, não foi pos-
zação da 12a. Conferência Nacional
Lei 10.216/2001, e a manifestação sível lograr a consolidação de um
Saúde Sérgio Arouca, precedida de
pioneira pela assinatura da Conven- Projeto de Governo em Saúde mais
conferências municipais e estadu-
“robusto”, de modo que o discurso
ção Quadro contra o Tabagismo22
oficial ficou limitado a algumas ais. Pela primeira vez na história
não chegaram a sobrepor-se aos
propostas cujo conteúdo parece re- das conferências nacionais o Minis-
efeitos negativos daquele “pacote de
tério da Saúde explicitou suas con-
abril” 23 e das manipulações ardilo-
cepções e diretrizes mediante docu-
sas dos recursos do SUS. As políti-
mento prévio contemplando dez ei-
cas de saúde executadas nos primei-
xos temáticos. Ainda que em alguns
ros meses de gestão, apesar de coe-
tópicos insinuasse certo dirigismo
rentes com o programa do candida- ... O DISCURSO OFICIAL FICOU LIMITADO A
sobre movimentos sociais, o docu-
to, sofreram sérios constrangimen-
ALGUMAS PROPOSTAS CUJO CONTEÚDO PARECE mento base tinha a possibilidade de
tos políticos e econômicos (MEN-
REFLETIR MAIS UMA PREOCUPAÇÃO COM A facilitar a discussão de grandes te-
DONÇA et al., 2005).
ses, talvez no sentido de evitar a
Tal como nos governos anterio- “MARCA” E O MARKETING DO QUE COM O
reprodução das queixas e denúnci-
res, em que a área econômica do-
AVANÇO DA REFORMA SANITÁRIA as locais que chegavam às confe-
minava com sua política moneta-
rista, enquanto a gestão da saúde rências nacionais. Tal propósito, en-

tentava avançar nas franjas do pos- tretanto, não foi alcançado, impon-
sível, o primeiro ano do governo do aos relatores um trabalho insa-
Lula encontrou no Ministério da no para sistematizar centenas de
fletir mais uma preocupação com a
Saúde um dos poucos espaços onde propostas apresentadas no evento,
“marca” e o marketing do que com
a equipe dirigente procurava hon- o avanço da Reforma Sanitária. Al- o que impediu, inclusive, a vota-
rar compromissos históricos, mes- gumas iniciativas, apesar de inci- ção do seu relatório final. A alter-
mo diante das limitações orçamen- direm sobre aspectos importantes nativa criada foi a realização de con-
tárias e dos estratagemas de seg- das carências e necessidades de aten- sultas aos delegados e a aprovação

21
Projeto de Lei instituindo o auxílio-reabilitação psicossocial para estimular a ressocialização de pessoas com transtornos mentais
egressas de longas internações. Contempla, ainda, a criação de mais 178 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) destinados a adultos,
crianças e adolescentes a aos portadores de problemas mentais devidos ao álcool e outras drogas. Saúde, Brasil 87:3, junho de 2003.
Assim foi lançada pelo Presidente da República, a política de saúde mental compreendendo o “incentivo-bônus” de R$ 200,00, destinado
a apoiar a reintegração sócio-familiar dos pacientes com alta hospitalar (“De volta para casa”). Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes e
Metas do MS para 2003 – Andamento das Ações. 10 de julho de 2003.p.13.
22
Brasil será o primeiro país a assinar a Convenção-Quadro. Veja, 10 de junho de 2003.
23
Diante da “chantagem da FIA”, a MP autoritária faz merecer a alusão ao “pacote de abril” dos tempos do General Geisel, quando o
Congresso foi fechado para ser instituída a figura do “senador biônico” que alteraria a composição do colégio eleitoral para indicar o
próximo general-presidente.

276 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

do relatório pelo Conselho Nacional tência Psiquiátrica Hospitalar no medicamentos essenciais27, um edi-
de Saúde meses depois. SUS – 2004 24
, estimando que 15 torial analisava a economia e des-
Do ponto de vista político, cabe mil pacientes pudessem voltar à so- tacava a meta de inflação de 5,5%
registrar a presença do Presidente ciedade.25 Foram implantados 218 em 2004 e 4,5% em 2005, a taxa de
da Organização Mundial da Saúde novos centros de atenção psicosso- câmbio flutuante, com livre movi-
(OMS), na cerimônia de abertura da cial (CAPS) e 160 novas residências mento de capitais, e o compromis-
Conferência, apesar da ausência do terapêuticas, enquanto o programa so com o superávit fiscal de 4,25%
Presidente da República e dos mi- De Volta para a Casa devolveu 1264 do PIB28. E se havia, ainda, algu-
nistros de Estado convidados, mes- pacientes para o convívio social. A ma esperança entre os otimistas
mo com o rigoroso esquema de se- relevância dessa política pode ser quanto a uma fase dois do gover-
gurança montado, nunca visto nas constatada pela redução de 5.519 no, o próprio presidente deu-lhes um
conferências anteriores. De última leitos psiquiátricos entre 2003 e ju- choque de realidade: “Não mexo na
hora, surgiu o Vice-Presidente da nho de 2005 26. economia, não tem volta. O cami-

República na solenidade, tendo o nho está tomado e ponto final”29.

Presidente Lula só aparecido no úl- Mas, como afirmou um dos cola-

timo dia do evento para fazer o dis- boradores do governo Lula,

curso do encerramento.
RESTOU PARA A SAÚDE CONFORMAR-SE sempre há os que buscam razões,
mesmo quando a irracionalidade vai
COM AS INICIATIVAS DE GRANDE APELO
sendo percebida por quase todos, para
A IMPLEMENTAÇÃO
PUBLICITÁRIO, TAIS COMO O BRASIL justificar as opções de um governo que
DAS POLÍTICAS
SORRIDENTE, A FARMÁCIA se deseja defender (POLETTO, 2005

Embora o Ministro da Saúde te- POPULAR E O SAMU p.81).

nha declarado, publicamente, que


Restou para a saúde conformar-
o Ministério apoiaria as conclusões
se com as iniciativas de grande ape-
da 12a. CNS, nos anos seguintes, o
lo publicitário, tais como o Brasil
governo já não parecia ter o mesmo Mas, no mesmo dia em que o Sorridente, a Farmácia Popular e o
ímpeto para iniciar processos e pro- Ministro da Saúde anunciava o SAMU (Serviço de Atendimento Mó-
jetos. Uma das exceções foi a Re- compromisso com a ampliação do vel de Urgência). Assim, a política
forma Psiquiátrica que alcançou atendimento e melhoria da qualida- de saúde bucal recebeu uma priori-
novo ânimo através do Programa de dos serviços no SUS, com o com- dade por parte do Ministério da Saú-
Anual de Reestruturação da Assis- bate às endemias e com o acesso a de, com um investimento previsto

24
PTGM - 60 de janeiro de 2004
25
Até o final de 2004, o MS esperava expandir para 650 o número de Caps implantados no país: “A ampliação da rede será fundamental
para continuar crescendo o número de atendimentos realizados nos centros. Em 2002, foram 389,8 mil. No ano passado, ultrapassou a
marca de 3,69 milhões de atendimentos , quase dez vezes mais em relação ao ano anterior www.saude.gov.br Brasília 2/2/04. Radis 19 -
Mar/2004 - p.14. RADIS, n. 5 abril, 2004.. http://portalweb01.saude.gov.br/saude/23/06/04. http://portalweb01.saude.gov.br/saude/29/06/04.
26
Ministério da Saúde. Balanço da Saúde, janeiro de 2003 a julho de 2005. 143p.
27
Humberto Costa. Ver :Folha de São Paulo, 19/9/04.
28
Editorial Folha de São Paulo (19/9/04).
29
Frase em aspas atribuída ao Presidente Lula durante reunião com ministros na semana de 22/11/2004. Ver: Luiz Cláudio Cunha e Weiller
Diniz. Coalizão X Colisão. Isto é. No. 1834, 1o de dezembro/2004, p.37.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 277
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

de R$ 1,3 bilhão para atendimento O governo aprovou o Estatuto do Escolas ao Programa Nacional de
básico e especializado. Em pouco Idoso buscando suprimir o proces- DST/Aids, além da educação sexu-
mais de dois anos foi duplicado o so asilar e atuar na promoção e re- al nas escolas, tentando prevenir
número de equipes de saúde bucal, cuperação da sua saúde , e apre-
32 DST e gravidez na adolescência.35
passando de 4.261, em dezembro de sentou a Política Nacional de Aten- A implementação da Política Naci-
2002, para 10.628, em junho de ção Integral à Saúde da Mulher onal de Alimentação e Nutrição
2005. Sob a marca foram criados (2004-2007). 33
Nesse particular, contou com distribuição de suple-
137 Centros de Especialidades Odon- cabe registrar a importância do mentos medicamentosos de sulfa-
tológicas em 21 estados, possibili- to ferroso para crianças, gestantes
lançamento de duas normas técni-
tando algum acesso à cirurgia oral, e mulheres.36 Em relação à saúde
cas para o atendimento às vítimas
endodontia e periodontia.30 do trabalhador, o MS tem procu-
de violência sexual e para atenção
No caso do chamado programa humanizada ao abortamento 34 . rado implantar a Rede Nacional de

Farmácia Popular do Brasil, trata- Atenção Integral à Saúde do Tra-

se da concretização de um item da balhador (RENAST), com novas uni-

campanha eleitoral, iniciado em ju- dades de saúde do trabalhador sob

nho de 2004, com grande apelo de gestão dos municípios e criação de

marketing, na contramão da pro- centros colaboradores, ligados a

posta da farmácia básica que vinha universidades, laboratórios e ins-


...UM DOS FEITOS MAIS SIGNIFICATIVOS DA tituições de ensino e pesquisa 37.
sendo implantada na rede pública
de serviços de saúde, conforme a GESTÃO FOI A AMPLIAÇÃO DA COBERTURA DO Finalmente, cabe mencionar
ações relativas à saúde da popu-
política nacional de medicamentos PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA (PSF)...
definida desde 1998. No que se re- lação negra, dos quilombolas, dos

fere ao SAMU, representou um in- indígenas e dos assentados; ações

vestimento de R$ 167 milhões, com de vigilância sanitária e controle

um repasse mensal de R$ 11,9 mi- de doenças transmissíveis e do ta-

lhões para 275 municípios de vinte bagismo; ciência e tecnologia;

estados e integra a Política Nacio- Quanto à saúde da criança e do ado- transplantes; formação de recursos

nal de Atenção às Urgências desde lescente, o MS buscou articular o humanos; e promoção da saúde

setembro de 2003 31. Programa Saúde e Prevenção nas (Brasil Saudável)38 . Porém, um dos

30
Balanço da Saúde, 2005.op. cit.
31
Cabe ainda registrar a Política de Qualificação da Atenção à Saúde no Sistema Único de Saúde, Qualisus/Emergência, contemplando
hospitais de emergência, e o credenciamento de 2.749 novos leitos de UTI até julho de 2005. op cit.
32
Jornal Folha de São Paulo (05/ 2003); Revista do Conselho Federal de Medicina (01/2003). Radis 02/2004 p. 6. http://
www.quadranews.com.br/index.php?materia=7423.
33
www.saude.gov.br Brasília, acesso em 27 de maio de 2004
34
Balanço da Saúde, 2005 op. cit.
35
http://portalweb01.saude.gov.br/saude/aplicacoes/noticias/noticias_detalhe.cfm?co_seq_noticia=8974 acesso em 26/03/2004
36
http://portal.saude.gov.br/saude/ acesso em 04/03/04.
37
http://portal.saude.gov.br/saude acesso em 05/03/04.
38
Merece destaque, nesse particular, a formalização da Política Nacional de Promoção da Saúde no último ano do governo. Ver: Brasil.
Ministério da Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. Portaria No. 687. De 30 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de
Promoção da Saúde. Diário Oficial da União, No. 63, 31/3/2006. Disponível em: www.saude.gov.br/svs
39
Balanço da Saúde, 2005 op cit.

278 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

feitos mais significativos da gestão ados 2.260 novos leitos em Unidades ações do Ministério da Saúde, po-
foi a ampliação da cobertura do Pro- de Tratamento Intensivo (UTIs)40. der-se-ia dispor de uma apreciação
grama de Saúde da Família (PSF), positiva, mesmo faltando recursos
com 22.683 equipes, em junho de e ousadia para intervenções mais
2005 (crescimento de 31,89%) , e 39
COMENTÁRIOS FINAIS amplas. A realização da Conferên-
atingindo 25.141 em 2006 em 5.028 cia Nacional de Saúde Sérgio Arou-
municípios, ou seja, mais da meta- Não sendo monolíticos nem o ca42, da III Conferência Nacional de
de da população brasileira. Estado nem os governos, mas cris- Saúde Bucal e da II Conferência Na-
Apesar desse conjunto de ações talização dinâmica de correlação de cional de Ciência, Tecnologia & Ino-
produzidas pelo MS, a Subsecreta- forças políticas e culturais, cabe vação em Saúde43 indicavam o com-
ria de Comunicação Institucional da ressaltar a possibilidade de produ- promisso do gestor federal do SUS
Secretaria Geral da Presidência da
ção de fatos políticos relevantes com o controle social. A ampliação
República, ao realizar o balanço dos
da atenção básica através do PSF,
30 meses de gestão, valorizava ou-
tros aspectos privilegiando o mode- os esforços para a formulação de
lo médico hegemônico: políticas para a assistência hospi-
talar, urgências e a chamada ‘mé-
A decisão política do Governo Fede-
....AVALIAR A POLÍTICA DE SAÚDE NA dia e alta complexidade’, além da
ral de optar por mais recursos (...) fez CONJUNTURA EXCLUSIVAMENTE PELAS AÇÕES elaboração e aprovação do Plano
Nacional de Saúde e dos Pactos pela
com que a saúde pública no Brasil pro- DO MINISTÉRIO DA SAÚDE, PODER-SE-IA
Saúde,44 também podem ser consi-
DISPOR DE UMA APRECIAÇÃO POSITIVA, MESMO
movesse mudanças evidentes, como o
deradas intervenções relevantes
setor nacional de transplantes, que con-
FALTANDO RECURSOS E OUSADIA PARA para o SUS.
seguiu, de janeiro de2000, a maio de
Contudo, iniciativas como Far-
2005, realizar 33.189 transplantes de INTERVENÇÕES MAIS AMPLAS
mácia Popular e Brasil Sorridente
órgãos e tecidos (...); implantação de
,que compuseram a publicidade do
94 Serviços de atendimento Móvel de
governo na saúde, reforçam a ten-
Urgência (SAMU), envolvendo 606 dência de privilegiar projetos de
mesmo por um setor não prioriza-
municípios, com 901 ambulâncias dis- do pelo governo41. Se fosse possí- impacto na mídia em detrimento de
tribuídas e cobertura populacional de vel avaliar a política de saúde na políticas públicas comprometidas
mais de 82 milhões de pessoas (...); cri- conjuntura exclusivamente pelas com a radicalização da RSB. Por-

40
Ver; em questão. Balanço de 30 meses de governo - Parte 3 Especial Nº 14 - Brasília, 11 de outubro de 2005
41
Saúde não merecia destaque em publicações do governo nem no discurso dos dirigentes.
Ver: em questão, Balanço - 36 meses de governo - Parte 3. No.17, 8 de fevereiro de 2006.
42
www.ensp.fiocruz.br/publi/radis (04/03/2002), www.ensp.fiocruz.br/publi/radis (03/03/2003).
43
Brasil. Ministério da Saúde. Saúde no Brasil. Contribuições para a Agenda de Prioridades de Pesquisa. Brasília, 2004. 306p.
44
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Departamento de Apoio à Descentralização. Coordenação-Geral de Apoio à Gestão
Descentralizada. Diretrizes operacionais dos Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão. Ministério da Saúde: Brasília, 2006. 76p.
45
Somente no último ano de gestão foi criada por decreto presidencial, no âmbito do Ministério da Saúde, a Comissão Nacional de
Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS), dispondo de um grupo de trabalho com representantes de vários ministérios (Decreto de 13 de
março de 2006). DOU, No. 50:21, 14 de março de 2006.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 279
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

tanto, se saúde for considerada a sados de julgar “com crescente se- Mas a possibilidade de redefini-
partir da conceituação expressa na veridade o governo Lula”50, ainda ção da política econômica já pare-
Constituição da República, a polí- mais diante da simpatia desperta- cia, desde o início do governo, mui-
tica de saúde realizada pelo gover- da por um ex-metalúrgico carismá- to improvável. Seja por uma impos-
tico51. Alguns consideravam a crí-
no Lula foi desastrosa: não se sibilidade lógica 53
, seja pelo com-
tica precoce e precipitada, já que
avançou na ação intersetorial ; o 45 promisso da ‘Carta aos Brasileiros’
muitos acreditavam na chamada
desemprego e a violência continu- e do Ministério da Fazenda com a
“fase dois” ou de reorientação do
aram negando o direito à vida; fal- sua manutenção, seja pelas indica-
rumo do governo:
tam evidências de prioridade para ções contidas no Plano Pluri-Anual
a saúde; e o setor não foi poupado (PPA) com a reiteração da meta de
“Não faz sentido dizer que o jogo
nos cortes dos gastos públicos nem superávit primário de 4,25% até o
acabou sugerindo que o jogo poderia
no contingenciamento de verbas já final do governo54. Assim, desde
ser jogado de outra maneira, quando
garantidas pelo orçamento46. En- aquela época, a análise do sociólo-
isso não é verdade”.52
quanto o SUS enfrentava dificulda- go Chico de Oliveira apresentava
des, o sistema de assistência médi- uma conclusão desconcertante:
ca supletiva (SAMS) ganhou ânimo
novo durante o governo Lula, cres-
A luta foi ganha pela continuidade.
cendo 21%47.
A vertente da ruptura perdeu (...) Para
Portanto, a continuidade das ...A CONTINUIDADE DAS POLÍTICAS DE AJUSTE
falar a verdade, o programa do Serra
políticas de ajuste macro-econômi-
MACRO-ECONÔMICO E AS REFORMAS DA era melhor do que o do Lula. Mais bem
co e as reformas da previdência48 e
tributária contrastam com a debi- PREVIDÊNCIA E TRIBUTÁRIA CONTRASTAM COM estruturado, mais claro. Talvez por isso
lidade das políticas sociais49. Os ele tenha perdido 55.
A DEBILIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS...
que desde o primeiro ano de ges-
tão tiveram a coragem de expor pu- No interior do governo, alguns
blicamente suas críticas foram acu- reconheciam que a opção por uma

46
No final de 2005, a MP 261 tentou tirar R$ 1,2 bilhão da saúde para o Fome Zero, além de recursos para hospitais das Forças Armadas (11/2005), e
transferiu R$ 186 milhões para o Ministério das Cidades tratar esgotos. Ver: Westin, R. Brecha na lei tira R$ 9 bi da saúde. O Estado de São Paulo, 28/11/
2005. Ver, ainda: Entrevista: Financiamento do SUS é o grande desafio. Medicina CFM, 156:20-22, agosto/setembro/outubro 2005; Ministério da Saúde
investiu apenas 5,59% de seu orçamento. Medicina CFM, 156:23, agosto/setembro/outubro 2005; 2o Encontro Nacional do Ministério Público em Defesa
da Saúde. Palmas para a luta do MP! Radis, 39:14-17, novembro de 2005.
47
Entre 2000 e 2002 o SAMS esteve estacionado na faixa de 35 milhões de beneficiados de planos de saúde, voltando a crescer na gestão petista:
37.103.604 em 2003; 39.567.190 em 2004; e 42.452.067 em dezembro de 2005. www.ans.gov.br/portalv4/site/home/default.asp (acesso em 11/4/2006).
48
“Cadê a ‘ampla e democrática negociação’ tanto sobre reforma trabalhista como sobre reforma previdenciária?” (item 56 do Programa de Governo –
Coligação Lula Presidente). Rossi, C. Folha de São Paulo, 1º de julho de 2003. P. A 2.
49
Não confundir políticas sociais com programas de assistência social (Pro poor programs) ou programas de transferência condicionada (PTC), prescritos
pelos organismos internacionais, a exemplo do Bolsa Família.
50
Carta aos Petistas (Flávio Koutzii, deputado estadual, PT-RS, 29/6/03).
51
“Lula atingiu aquele estágio em que não precisa provar nada, apenas que está realmente preparado para ser o presidente que ele prometeu ser e que todos
nós também queremos que ele seja”. Cony, C.H. O presidente que todos desejamos. Folha de São Paulo, 18/7/03. p. E 10.
52
Ver o cientista político Fábio Wanderley dos Reis (UFMG) na Folha de São Paulo, 8/06/03p.A.8.
53
Segundo o filósofo Paulo Arantes, “uma vez adotada a atual política macroeconômica, que não é especificamente brasileira, mas mundial, a saída é uma
impossibilidade lógica (...) Não posso dizer para os mercados, para os investidores, para banco internacional, para a administração americana: ‘agora que
vocês viram como sou eficiente, de absoluta confiança, que não vou fazer nenhuma irresponsabilidade na condução da política macroeconômica, agora
que vocês podem acreditar definitivamente em mim, eu vou mudar”. Folha de São Paulo, 8/06/03p.A.8.
54
O Ministro Palocci “elevou a meta de superávit primário (a economia de receitas destinadas a pagar os juros da dívida) de 3,75% para 4,25% do PIB”,
comprometendo-se a “manter esse patamar mínimo ao longo de todo o mandato de Lula”, apesar das divergências internas da área econômica: a ala
liberal da Fazenda X intervencionistas do Planejamento (Mantega) e do Desenvolvimento (Furlan). Ver: Patú, G. Ajuste compromete “espetáculo”. Folha
de São Paulo, 29 de junho de 2003, p. A.4.
55
Folha de São Paulo, 8/06/03p.A.8.

280 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

política monetarista provocava au- nizados, responsabilizados pelo su- lítica Econômica do Ministério da
mento do desemprego e redução da posto déficit da previdência e ame- Fazenda, em abril de 2003, regis-
atividade econômica, mas, por fal- açados nos seus direitos como tra- trando um controle severo dos gas-
ta de alternativa a tal política ou balhadores que assinaram contra- tos públicos até o final do governo:
por insuficiência de poder para re- tos sob determinadas regras, en-
formulá-la, admitiam que interven- quanto estas eram mudadas sem a “Uma das tarefas do governo é a
ções nas franjas do capitalismo se- sua participação? execução de uma política fiscal sólida,
riam capazes de retomar o desen- Mesmo que as políticas sociais nos próximos ano,s que traga consis-
volvimento do país: não apresentassem mais retrocessos tência de médio e longo prazo às con-
e conseguissem se proteger das in- tas públicas, e uma melhoria da quali-
Lula está procurando combinar vestidas do Banco Mundial e dos dade do ajuste fiscal realizado nos úl-
uma política macroeconômica ortodo- assessores da área econômica, her- timos anos (p.7)(...).No que se refere a
xa com políticas mesoeconômicas que dados do governo FHC, contra a políticas sociais, é fundamental que se
vão na direção oposta. Enquanto man- implementem reformas que corrijam
tém juros altos e oferta de crédito ban- grandes distorções no que tange à es-
cário restrita, o presidente promove a trutura tributária do governo e à foca-
liberação das cooperativas de crédito e lização e à eficácia dos programas so-
a ampliação do microcrédito. O resul- ciais”57.
tado esperado seria a expansão de cré-
dito a juros mais baixos para pequenos
COMO IMPLANTAR UMA “CARREIRA DO Para o governo as medidas ado-
e microempresários, enquanto as em- SUS”, QUANDO OS SERVIDORES PÚBLICOS tadas se faziam imprescindíveis,
presas de maior tamanho continuari- pois considerava que pior seria o
ERAM SATANIZADOS, RESPONSABILIZADOS PELO risco de uma desorganização da
am tendo de lidar com uma política mo-
netária restritiva. Lula aposta na vol- SUPOSTO DÉFICIT DA PREVIDÊNCIA... economia. E o presidente, que de-
ta do crescimento pela expansão dos pe- sejava um crescimento com face
quenos, ou seja, com distribuição de humana58 e anunciava, a cada ano,
renda. ( SINGLER, 2003 p.10)56 o espetáculo do crescimento, con-
tentou-se por ter evitado o risco de
Mas se a política econômica au- descontrole inflacionário e ter obti-
mentava o desemprego, produzia universalização estabelecida pela do maioria parlamentar para apro-
doenças e violências, além de com- Constituição da República, a políti- vação das propostas de reformas
prometer os serviços públicos, como ca econômica continuava produzin- enviadas para o Congresso Nacio-
avançar no SUS, movido a gente e do desemprego, desigualdades, es- nal, mediante uma articulação po-
a recursos públicos? Como implan- tagnação e vulnerabilidade externa. lítica com métodos escusos. Estes
tar uma “carreira do SUS”, quando Esses tempos já eram anunciados passaram a ser utilizados para
os servidores públicos eram sata- no documento do Secretário de Po- manutenção da base de apoio ao

56
Entrevista Paul Singer. A Tarde, 9/6/03.p.10.
57
Ministério da Fazenda. Política Econômica e Reformas Estruturais.Brasília, abril de 2003. 95p. Esta mesma equipe volta a atacar o
gasto social dedicando mais de três páginas à saúde com a seguinte conclusão: “Embora a proporção de gastos com saúde destinados ao
atendimento hospitalar e curativo tenham diminuído nos últimos anos, o seu nível ainda é relativamente alto” (p.33).
Ver: Ministério da Fazenda. Secretaria de Política Econômica. Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002. Brasília, novembro de
2003.47p.
58
Lula quer “crescimento com face humana” .Folha de São Paulo, 3 de julho de 2003.p. B 10. Ver também: ‘Espetáculo do crescimento’ não
ocorre neste ano, diz BC. Folha de São Paulo, 1/07/03 p.A 1. .

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 281
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva

governo e desencadearam a crise tenção dessa situação, além dos damento externo como “solução” e
política conhecida como o escânda- quadros partidários que se deslum- abrindo as portas à financeirização
lo do ‘mensalão’, que marcou o ano braram com o exercício do poder e da economia e das contas do Esta-
de 2005 e progrediu em 2006. 59 As suas benesses: de um lado, os ban- do. No pós-85, possibilitou a emer-
reuniões do Congresso na espiral de queiros, ínfima minoria de privile- gência de uma nova classe social
CPIs representaram a face mais vi- giados, e, do outro, a massa de que se estrutura sobre
sível do espetáculo de arrogância e miseráveis que continua apostan-
desprezo pelos princípios e valores do em Lula por agradecimento às (...) técnicos e economistas “dou-
republicanos60. E se a efetividade migalhas recebidas por meio das blés” de banqueiros (núcleo duro do
das políticas sociais é reconhecida políticas assistencialistas. PSDB) e trabalhadores transformados
a partir dos efeitos observados (in- Melancólica a primeira experi- em operadores de fundos de previdên-
dicadores sociais), as evidências, ência de gestão do Estado capita- cia (núcleo duro do PT) com controle do
também, não são alentadoras: lista no Brasil por forças conside- acesso aos fundos públicos e conheci-
radas de esquerda. O ‘transformis- mento do “mapa da mina (OLIVEIRA,
A julgar pelo que foi realizado até 2003 p. 147).
agora, a política de Lula segue a das
administrações anteriores (...). Ao mes- É possível creditar a essas for-
mo tempo, a ênfase da atividade go- ças aquilo que alguns autores (COS-
vernamental parece ter se deslocado das
...FICA A IMPRESSÃO DE UM GOVERNO SEM TILLA, 2001; IVO, 2001). chamam
políticas universalizantes e habilitado- FISIONOMIA, SEM COLUNA VERTEBRAL, de estatização de partidos políticos,
ras, como educação e saúde, para os destituição do social, reforma neo-
CARACTERIZADO PELA RENDIÇÃO À POLÍTICA
programas assistenciais destinados liberal do Estado e esvaziamento da
aos mais pobres, como o Bolsa-Família ECONÔMICA NEOLIBERAL E PELA democracia. O governo Lula, no
(ALMEIDA, 2004, p.16-17). continuísmo da política econômica
IMPLEMENTAÇÃO DE UM CONJUNTO DE
de FHC (que tanto deplorou) e na
Do balanço mais geral, fica a MEDIDAS DE CUNHO POPULISTA ... mesmice da gestão das políticas
impressão de um governo sem fisi- sociais, brindou os brasileiros não
onomia, sem coluna vertebral, ca- com a dialética do possível, 61 mas
racterizado pela rendição à política com a dialética do menos pior.
econômica neoliberal e pela imple- mo’ brasileiro há tempos se apre- Manter e consolidar conquistas
mentação de um conjunto de medi- sentou como modernização conser- históricas permanecem como desa-
das de cunho populista, configuran- vadora, com revolução produtiva fios, inclusive diante das modifica-
do uma situação apoiada pelos ex- sem revolução burguesa. Recorreu ções da equipe dirigente do Minis-
tremos da sociedade brasileira, úni- à ditadura militar (1964-1985) como tério da Saúde62. Ao mesmo tempo,
cos a se beneficiarem com a manu- ‘via prussiana’, adotando o endivi- a natureza suprapartidária do mo-

59
O momento da verdade. Isto é, 19 de abril de 2006, p.28-32.
60
Menos de duas semanas antes das eleições presidenciais a sociedade brasileira viu-se surpreendida com mais um escândalo político: o
chamado, pela mídia, “dossiêgate”. Ver: Sismo sob o PT. Folha de São Paulo, 25 de setembro de 2006. A2 (Editoriais).
61
Expressão utilizada por Campos (1988:189) para questionar a política de setores de esquerda que ocuparam posições de governo na
Nova República.
62
Como parte das manobras realizadas com o intuito de administrar a crise e tentar levar o governo até o final, a reforma ministerial feita
às pressas em 2005, contemplou a substituição do Ministro Humberto Costa, pelo Deputado Saraiva Felipe, do PMDB. Tal episódio revelou,
entretanto, o esforço dos atores envolvidos com o movimento da Reforma Sanitária em continuar disputando, palmo a palmo, o terreno
minado da política brasileira. Mesmo uma articulação partidária de caráter fundamentalmente fisiológico, contemplou um personagem
vinculado ao projeto histórico da Reforma Sanitária. Assim, diversos atores continuam se revezando no espaço institucional, mesmo
depois da saída do Ministro Saraiva Felipe, em 2006, para evitar o mal maior, no caso, a saúde voltar a ser “terra de ninguém”, presa do
clientelismo, da irresponsabilidade e da corrupção endêmica.

282 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior

vimento sanitário brasileiro ainda BRASIL, Ministério da Saúde. Dire- ARAÚJO, Manuela Santana et al. Po-
permite pensar a Reforma Sanitária trizes e Metas do MS para 2003 – líticas de Saúde do Governo Lula:
como uma utopia concreta, um pro- Andamento das Ações. 10 de julho avaliação dos primeiros meses de
jeto civilizatório que de 2003. p.1. gestão. Saúde em Debate, Rio de
Janeiro, v.29, n.70, p.109-124, maio/
pretende produzir mudanças dos BUSTAMENTE, Fernando; PORTA- ago. 2005.
valores prevalentes na sociedade bra- LES, Carlos. Evaluación de Políticas
sileira, tendo a saúde como eixo de y Programas de Salud. In: OPS/CLAD. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à
transformação e a solidariedade como Políticas de Salud en América Lati- razão dualista - O ornitorrinco. São
valor estruturante (CARTA DE BRASÍ- na. Aspectos Institucionales de su Paulo, Boitempo, 2003. 150 p.
LIA 2005) 63
Formulación, Implementación y
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tituição da República Federativa do do “social”: Estado, governo e polí-
Brasil: promulgada em 5 de outu- ticas sociais. Caderno CRH, Salva-
bro de 1988. Organização do texto: dor-Bahia, n. 35, p. 41-84. 2001
Juarez de Oliveira. 4. ed. São Pau-
lo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série Le- MENDONÇA, Ana Carolina Oliveira;
gislação Brasileira). DIAS, Camila Pereira Fernandes;

63
Carta de Brasília. Documento final do 8o. Simpósio sobre Política Nacional de Saúde. Medicina CFM, 156:12-13, agosto/setembro/
outubro 2005.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 283
MORONI, José Antônio
ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES

O direito à participação no Governo Lula


The right to participation in the Lula Government

José Antônio Moroni1 RESUMO


Pretende-se analisar como o Governo Lula tratou a questão da
participação, tendo como olhar especial a criação e a reformulação de
conselhos de políticas públicas nacionais, a realização de conferências
Recebido: Dez./2006
Aprovado: Mar./2007 nacionais e o processo participativo de debate do Plano Plurianual (PPA
2004-2007), ocorrido em 2003. A análise foca o sistema descentralizado e
participativo, sem deixar de reconhecer outras formas de participação e
sua importância. Procura-se trazer algumas questões para os movimentos
sociais e as organizações que se propõem a interferir de forma propositiva
na deliberação das políticas públicas, e, portanto, construir a participação
como um direito humano fundamental.

PALAVRAS-CHAVE : Participação no Poder; Conselho de Política Pública;


Conferências Nacionais.

ABSTRACT
This article intends to analyze how the Lula government has handled
the issue of participation, especially in terms of the creation and
reformulation of national public policy councils, the staging of national
conferences and the participative debate process of the Multi-Year Plan
1
Filósofo; é membro do colegiado de ges-
(PPA 2004-2007) in 2003. The analysis focuses on the decentralized and
tão do Instituto de Estudos Socioeconô- participative system, without failing to acknowledge other forms of
micos (I NESC), da executiva nacional da participation and their importance. It looks to drawn on some issues in
Associação Brasileira de Organizações Não relation to social movements and organizations that purposefully
Governamentais (ABONG), secretário nacio- interfere in the resolution of public policies, and thus establish
nal do FNPP (Fórum Nacional de Partici- participation as a fundamental human right.
pação Popular) e membro do CEBES.

E-mail: moroni@inesc.gov.br KEYWORDS: Participation in power; Public Policy Council; National Conferences.

284 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
O direito à participação no Governo Lula

INTRODUÇÃO A própria idéia de participação resses dos ‘donos do poder’ que


de todos e de todas como elemento suprimem a voz dos dominados,
Homens e mulheres sempre lu- fundamental e constituinte do espa- criando a ilusão de que todos têm
taram para participar da esfera pú- ço público foi abandonada em ra- as mesmas oportunidades e de que
blica. Assim, além da igualdade e zão de seu potencial desestabiliza- as desigualdades entre as pessoas
da liberdade, a demanda por parti- dor das estruturas de dominação. têm origem nas diferentes capaci-
cipar sempre esteve presente nas A democracia passa a ser entendi- dades individuais ou depende de
lutas sociais nos diferentes perío- da apenas como um método, ou sorte. Os mais bem-sucedidos seri-
dos da historia e de diversas for- seja, um procedimento de escolha am os mais capazes e talentosos.
mas. Por isso, participar significa dos representantes por meio de elei- Em especial nos países da Amé-

incidir politicamente nas questões ções. Dentro dessa concepção, os rica Latina, esta concepção de de-

que dizem respeito à vida concreta regimes políticos democráticos são mocracia e participação política li-
aqueles que seguem os procedimen- mitada, aliada a uma igualdade
das pessoas, mas também, nos pro-
estabelecida apenas do ponto de vis-
cessos de tomada de decisão do
ta formal, esconde uma estrutura
Estado e dos governos, o que, por
de dominação e opressão construí-
sua vez, afeta sempre de uma for-
A PRÓPRIA IDÉIA DE PARTICIPAÇÃO DE TODOS E da historicamente e perpetrada pelo
ma ou outra a vida concreta das
DE TODAS COMO ELEMENTO FUNDAMENTAL E próprio Estado, que nunca foi de-
pessoas.
mocrático ou de fato público, mas
Ao longo dos tempos, as ‘dife- CONSTITUINTE DO ESPAÇO PÚBLICO FOI patrimonialista ao extremo, patri-
renças’ entre as pessoas e grupos
ABANDONADA EM RAZÃO DE SEU POTENCIAL arcal e, no caso brasileiro, escra-
sempre foram a origem das ‘desi-
vocrata e burocrático.
gualdades’, por isso, quase sempre, DESESTABILIZADOR DAS ESTRUTURAS DE
achamos que as duas coisas são a DOMINAÇÃO
mesma coisa. As estruturas de do-
UM POUCO DE HISTORIA
minação e manutenção de privilé- DA PARTICIPAÇÃO NO BRASIL
gios de uma classe ou de um grupo
sobre outros (status), que é a desi- tos eleitorais e garantem certas li- Em nosso país, sempre ocorre-
gualdade, têm como base as dife- berdades e igualdades formais, para ram movimentos de resistência à
renças de etnia/raça, local de nas- que os/as ‘eleitores-clientes’ possam dominação e à apropriação do es-
cimento ou de moradia, sexo, ori- escolher no mercado eleitoral a pro- paço e dos bens públicos e do pró-
entação sexual, nacionalidade, etc. posta mais adequada às suas pre- prio Estado por interesses privados.
e originaram formas muito diferen- ferências racionais. Recentemente, no final da déca-
ciadas de participação e, em mui- Essa redução da democracia e da de 1970 e início dos anos 80, o
tas casos, de negação do próprio da participação política a um pro- movimento social1 retomou a ques-
direito a participar. cedimento formal atende aos inte- tão da democratização do Estado,

1
Apesar de existirem vários e diversos movimentos sociais, usaremos a expressão’movimento socia’ no singular, pois não falamos de um
movimento específico mas de um conjunto de ações da sociedade civil que se materializou na organização de um movimento social amplo,
com características, filosofias e concepções comuns – que se denominou ‘campo democrático e popular’ –, tendo como agenda política a
construção do Estado Democrático e Social e o combate a todas as formas de desigualdades.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 285
MORONI, José Antônio

debatendo a seguinte questão: Que porando cinco dimensões: 1) formu- Foi por ocasião da regulamenta-
mecanismos são necessários para lação; 2) deliberação; 3) monitora- ção dessas diretrizes constitucionais
democratizar o Estado e torná-lo de mento; 4) avaliação; e 5) financia- que começaram a ser estruturados
fato público? Na formulação desta mento das políticas públicas (orça- espaços públicos institucionais
questão estava embutida a avalia- mento público). A Constituição de como os conselhos de políticas pú-
ção de que a democracia represen- 1988(BRASIL, 1988) transformou blicas e as conferências, mecanis-
tativa – via partidos e processo elei- essas questões em diretrizes de di- mos que concretizam os princípios
toral – não é suficiente para respon- versas políticas, em especial as cha- constitucionais de democratização
der às complexas necessidades da madas políticas sociais. e de controle social. A exceção é a
sociedade moderna e da multiplici- O inciso II do artigo 204 da Cons- política de saúde, que incorporou a
dade dos sujeitos políticos. Era ne- tituição Federal (1988), que trata da participação na sua formulação
cessário criar outros mecanismos de política pública de assistência so- antes da Constituição de 1988.
participação que permitissem fazer cial, por exemplo, diz: “participa- Vale ressaltar que na política
a expressão política desta multipli- econômica não se criou nenhum
cidade emergir na esfera pública e, mecanismo institucionalizado e
ao mesmo tempo, influenciar as público de participação, assim
decisões políticas. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 APRESENTOU como não foi criado nenhum meca-
Isso significava criar estratégi- nismo participativo em arenas de
GRANDES AVANÇOS EM RELAÇÃO AOS DIREITOS
as e propostas para além da garan- decisão que definem as diretrizes do
tia e efetivação de direitos civis, SOCIAIS, APONTANDO, CLARAMENTE, PARA A modelo de desenvolvimento brasi-
políticos, sociais, econômicos e cul- CONSTRUÇÃO DE UM ESTADO DE BEM-ESTAR leiro.
turais, permitindo e assegurando a A Constituição de 1988 apresen-
PROVEDOR DA UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS
participação popular efetiva nas tou grandes avanços em relação aos
políticas públicas e em todas as SOCIAIS ... direitos sociais, apontando, clara-
decisões de interesse público. Por- mente, para a construção de um
tanto, tornar a participação também Estado de Bem-Estar provedor da
um direito humano fundamental, universalização dos direitos soci-
fundante e estruturante dos demais ção da população, por meio de or- ais.2 Além disso, introduziu instru-
direitos. ganizações representativas, na for- mentos de democracia direta (ple-
No processo da Constituinte mulação das políticas e no contro- biscito, referendo e iniciativa popu-
(1986-88), essas concepções políti- lar) – que foram regulamentados
le das ações em todos os níveis”
cas foram detalhadas e aprofunda- pelo Congresso Nacional de forma
(BRASIL, 1988, p. 41). Este proces-
das. O movimento social levou para limitada, abrindo a possibilidade de
so criou o que chamamos do ‘siste-
ela, além da luta pela democratiza- se criarem mecanismos de democra-
ção e publicização do Estado, a ne- ma descentralizado e participativo’ cia participativa (os conselhos de
cessidade do controle social, incor- das diferentes políticas públicas. políticas públicas, por exemplo).

2
Estamos utilizando como conceituação de Estado de Bem-Estar a definição apresentada por Falcão (1991). Conforme esta autora, o Estado
de Bem-Estar é aquele constituído nos países de capitalismo avançado, possuindo como características: a) direitos sociais como paradigma;
b) origem num pacto social e político entre Capital-Estado-Trabalho; c) configuração como agente central na reprodução social; d) gestor
poderoso das políticas sociais, que são a expressão essencial do Estado.

286 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
O direito à participação no Governo Lula

Entretanto, no que se refere à autônoma e independente. A concep- O presente artigo procura anali-
ordem econômica, ao sistema polí- ção neoliberal entendia a descentra- sar como o Governo Lula tratou a
tico (financiamento público exclu- lização como estratégia de enfra- questão da participação, tendo
sivo de campanha, democratização quecimento do Estado (desregula- como olhar especial a criação e a
dos partidos, processos eleitorais mentação) e a participação como reformulação de conselhos de polí-
transparentes, mecanismos que vi- meio de repassar para a sociedade ticas públicas nacionais, a realiza-
abilizem a participação da mulher atribuições do Estado, sobretudo na ção de conferências nacionais e o
na política, possibilidade de cassa- área social. processo participativo de debate do
ção de mandato pela população, As mais importantes forças Plano Plurianual (PPA 2004-2007),
etc.) e a democratização da infor- sociais/políticas que atuaram na ocorrido em 2003. Centramos a aná-
mação e da comunicação, dimen- construção desse ‘modelo’ de parti- lise do sistema descentralizado e
sões fundamentais para a constru- cipação foram o chamado campo participativo, o que não quer dizer
ção de um Estado democrático, a democrático e popular, cujo princi- que não reconheçamos outras for-
Constituição de 1988 foi extrema- mas de participação e sua impor-
mente conservadora. tância. Procuramos trazer algumas
Existe uma contradição entre questões para os movimentos soci-
esse processo e o momento históri-
NO BRASIL, AO MESMO TEMPO QUE SE ais e as organizações que se pro-
co vivido internacionalmente, mar- ELABORAVA UMA CONSTITUIÇÃO QUE põem a interferir de forma proposi-
cado pela ampliação e pelo fortale-
APONTAVA PARA A CONSTRUÇÃO DO ESTADO DE tiva na deliberação das políticas
cimento das políticas neoliberais. públicas, portanto, para construir
No Brasil, ao mesmo tempo que se BEM-ESTAR SOCIAL, DO PONTO DE VISTA DA a participação como um direito hu-
elaborava uma Constituição que POLÍTICA ENTRÁVAMOS NA ERA NEOLIBERAL mano fundamental.
apontava para a construção do Es-
COM A ELEIÇÃO DE FERNANDO COLLOR DE
tado de Bem-Estar Social, do ponto
de vista da política entrávamos na MELLO PARA A PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
era neoliberal com a eleição de Fer- E O SISTEMA DESCENTRALIZADO
nando Collor de Mello para a Presi-
dência da República. Aqui, é impor- pal canal partidário era o Partido Como ponto de partida, quere-
dos Trabalhadores (PT). Com a elei-
tante assinalar certa coincidência mos fazer quatro afirmações: 1) que
ção de Luiz Inácio Lula da Silva para
dos discursos em relação à descen- a democracia participativa não se
presidente da República, em 2002,
tralização e à participação. O mo- reduz ao sistema descentralizado e
criou-se a expectativa de que o cha-
vimento social falava em descentra- participativo; 2) que existem outras
mado ‘sistema descentralizado e
lização no sentido do poder de deci- formas legítimas de participação,
participativo’ fosse realmente efeti-
são estar mais perto da população vado. Esperava-se que os cidadãos sejam institucionalizadas ou não
e não concentrado em ‘Brasília’, e cidadãs do Brasil pudessem par- (não se pode reduzir a participação
isto é, no município e não mais na ticipar de modo ativo e cada vez ao sistema descentralizado e parti-
União. Falava em participação das mais das decisões públicas e que cipativo); 3) que a concepção de um
organizações da sociedade civil na novos canais de participação fossem sistema descentralizado e participa-
definição das políticas, de forma criados. tivo (conselhos e conferências com

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MORONI, José Antônio

caráter deliberativo) escapa aos tra- diferentes segmentos da população agregando grupos sociais que pas-
dicionais mecanismos políticos de podem ser expressadas no espaço sam a agir como sujeitos políticos
decisão e legitimação (democracia público de forma democrática, es- coletivos, com perspectivas e cons-
representativa ou direta); 4) Reco- tando associada ao modo como es- truções próprias, reivindicando re-
nhecemos, apesar das críticas e do tes ‘grupos’ se percebem como ci- conhecimento, direitos, redistribui-
quadro atual do sistema, o não-es- dadãos e cidadãs. A participação é ção de riquezas e de poder perante
gotamento da estratégia construída um processo educativo-pedagógico. as estruturas de interesses domi-
pela sociedade civil do campo de- Expressar desejos e necessidades, nantes na sociedade e no Estado.
mocrático e popular nas últimas construir argumentos, formular pro- Na década de 1980 os então de-
décadas. postas, ouvir outros pontos de vis- nominados ‘novos sujeitos políticos’
As modalidades tradicionais do ta, reagir, debater e chegar ao con- – movimento negro, de mulheres,
direito de participação política – senso são atitudes que transformam socioambientalista, indígena, ho-
como o direito de votar e ser vota- todos aqueles que integram proces- mossexual, de pessoas com defici-
do, a filiação partidária, etc. – não ência, de crianças e adolescentes,
são suficientes para a cidadania de sem-terra, sem-tetos, etc. –, até en-
hoje. Há necessidade de se criar tão sub-representados na política
novas modalidades de participação AS MODALIDADES TRADICIONAIS brasileira, juntamente com os mo-
política, isto é, novas formas de vimentos e organizações tradicio-
exercer o direito fundamental do ser
DO DIREITO DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA – nais, se inter-relacionam para trans-
humano de “tomar parte no gover- COMO O DIREITO DE VOTAR E SER VOTADO, A formar demandas em direitos, cons-
no de seu país diretamente ou por truindo processos democráticos e
FILIAÇÃO PARTIDÁRIA, ETC. – NÃO SÃO
intermédio de representantes li- um outro modelo de sociedade.
vremente escolhidos” (artigo XXI da SUFICIENTES PARA A CIDADANIA DE HOJE Foi esse amplo movimento soci-
Declaração Universal dos Direitos al e popular que elaborou a estra-
Humanos). tégia de criação do sistema descen-
A participação tem valor em si tralizado e participativo (conselhos
mesma, por isso não é instrumen- e conferências) como instrumento de
tal de um projeto político. Podemos sos participativos. É uma verdadei- democratização e publicização do
dizer que a participação tem duas ra educação republicana para o Estado. Vale ressaltar aqui a impor-
dimensões fundamentais interliga- exercício da cidadania, que amplia tância que teve neste processo os
das e que interagem permanente- um espaço público real, em que a profissionais que atuavam no inte-
mente: a dimensão política e a pe- construção dialogada do interesse rior do Estado e que, em aliança
dagógica. Participação, antes de público passa a ser o objetivo de com esse movimento, ajudaram na
mais nada, é partilha de poder e todos os homens e mulheres. Por construção da estratégia política.
reconhecimento do direito a interfe- isso, participar também é disputar Partindo destas premissas, va-
rir de maneira permanente nas de- sentidos e significados. mos situar e analisar o sistema des-
cisões políticos (dimensão política). A interação de homens e mulhe- centralizado e participativo, pois
É também a maneira pela qual as res nesse espaço público produz entendemos que sua legitimidade
aspirações e as necessidades dos solidariedade e identidades comuns, está no reconhecimento da democra-

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O direito à participação no Governo Lula

cia participativa como arranjo ins- CONSELHOS j) Liberdade de escolha da presidên-


titucional que amplia a democracia a) órgão público e estatal; cia do conselho pelo próprio conse-
política e o espaço público. Por sua b) com participação popular, por lho;
vez, a legitimidade da democracia meio de representação institucio- k) Presente nas três esferas de go-
participativa fundamenta-se no re- nal; verno, funcionado em forma de sis-
conhecimento do direito à partici- c) representantes da sociedade ci- tema descentralizado.
pação, da diversidade dos sujeitos vil eleitos em fórum próprio e pela Com base na concepção, pode-
políticos coletivos e da importân- própria sociedade; mos definir ‘conselho de política
cia da construção do espaço públi- d) com composição paritária entre pública’ como espaço fundamental-
co de conflito/negociação. Por isso, governo e sociedade (reconhecimen- mente político, institucionalizado,
amplia os processos democráticos, to da multiplicidade dos sujeitos funcionando de forma colegiada,
não atuando em substituição ou políticos); autônomo, integrante do poder pú-
oposição à democracia representa- blico, de caráter deliberativo, com-
tiva. posto por membros do governo e da
O sistema descentralizado e par- sociedade civil, com as finalidades
ticipativo é um espaço essencial- de elaboração, deliberação e contro-
mente político, instituído por repre-
... A CONCEPÇÃO DO SISTEMA le da execução das políticas públi-
sentações governamentais e não DESCENTRALIZADO E PARTICIPATIVO cas.
governamentais, responsáveis por Na verdade, o conselho é um ins-
elaborar, deliberar e fiscalizar a
(ESPECIALMENTE OS CONSELHOS E
trumento para a concretização do
implementação de políticas públi- CONFERÊNCIAS) CRIADO NA CONSTITUIÇÃO DE controle social – uma modalidade
cas, estando presentes nos âmbitos
1988 ESTÁ RELACIONADO À QUESTÃO DA do direito à participação política
municipal, estadual e nacional. Des- que deve interferir efetivamente no
sa forma, inauguram uma nova DEMOCRATIZAÇÃO E DA processo decisório dos atos gover-
concepção de espaço público ou PUBLICIZAÇÃO DO ESTADO namentais.
mesmo de democracia. Podemos Numa leitura simplificada, po-
afirmar, também, que a concepção demos dizer que os conselhos des-
do sistema descentralizado e parti- locam o espaço de decisão do esta-
e) criado por lei ou outro instru-
cipativo (especialmente os conselhos tal-privado para o estatal-público,
mento jurídico, portanto, espaço
e conferências) criado na Constitui- dando oportunidade à transforma-
institucional;
ção de 1988 está relacionado à ques- ção dos sujeitos sociais em sujeitos
f) com atribuições deliberativas e
tão da democratização e da publi- políticos, em que a governabilida-
de controle social;
cização do Estado. Em outras pala- de é democrática e compartilhada
g) espaço público da relação e da
vras, é uma das possibilidades cri- por todos.
interlocução entre Estado e socie-
adas para enfrentar a ausência de dade;
mecanismos eficazes de controle da h) mecanismo de controle da soci- CONFERÊNCIAS
população sobre os atos do Estado. edade sobre o Estado; São espaços institucionais de
O sistema descentralizado e par- i) com atribuições de discutir a deliberação das diretrizes gerais de
ticipativo foi concebido com as se- aplicação dos recursos, isto é, do uma determinada política pública.
guintes características: orçamento público; São espaços mais amplos que os

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MORONI, José Antônio

conselhos, envolvendo outros sujei- ção, etc. Mas aqui vale a pergunta: foram tornados desiguais. ‘Univer-
tos políticos que não estejam neces- por si só, este processo democrati- salizar’ significa estender a todos e
sariamente nos conselhos, por isso, za a definição das políticas públi- a todas a cobertura de iguais direi-
têm também caráter de mobilização cas? tos e, também, responsabilizá-los
social. Governo e sociedade civil, de pela efetivação de tais direitos. A
forma paritária, por meio de suas DEMOCRACIA PARTICIPATIVA universalização da cidadania, no
representações, deliberam de forma Podemos afirmar que o princi- caso brasileiro, não será alcançada
pública e transparente. Estão inse- pal objetivo estratégico da democra- sem a implementação de políticas
ridas no que chamamos de ‘demo- cia participativa é a universaliza- reparadoras dos danos causados
cracia participativa’ e do ‘sistema ção da cidadania, portanto, a cons- por séculos de exploração, desigual-
descentralizado e participativo’, trução de uma democracia cotidia- dades, preconceitos e discrimina-
construído a partir da Constituição na. A democracia não pode ser algo ções.
de 1988 e que permite a construção abstrato na vida das pessoas ou, de A construção da democracia nos
de espaços de negociação, a cons- impõe vigilância permanente e cons-
trução de consensos e dissensos, tante no sentido de criar mecanis-
compartilhamento de poder e a co- mos institucionais de participação,
responsabilidade entre o Estado e a com regras definidas e claras, que
sociedade civil. As conferências na- ... O PRINCIPAL OBJETIVO ESTRATÉGICO DA equacionem as pressões das maio-
cionais são precedidas de conferên- rias sobre as minorias, ou das mi-
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA É A
cias municipais/regionais e estadu- norias ativistas contra as maiorias
ais e são organizadas pelos respec- UNIVERSALIZAÇÃO DA CIDADANIA, PORTANTO, A passivas. Neste sentido, esses espa-
tivos conselhos. CONSTRUÇÃO DE UMA DEMOCRACIA COTIDIANA ços devem ter estratégias claras e
eficazes com vistas a incorporar
SISTEMA DESCENTRALIZADO indivíduos ou grupos sociais alhei-
E PARTICIPATIVO os à participação – os chamados
A criação do sistema descentra- ‘desiludidos’ da vida social.
lizado e participativo (conselhos e Da mesma forma que uma soci-
conferências nas três esferas de go- concreto, apresentar apenas as elei- edade democrática força o Estado a
verno e nas diferentes políticas pú- se democratizar, o inverso também
ções. Deve proporcionar ao cidadão
blicas) foi – e ainda é – uma das tem de ser verdadeiro, pois a demo-
e à cidadã a participação plena nas
fórmulas encontradas para que haja cracia exige uma postura democrá-
questões que lhes dizem respeito,
efetivo controle e exercício popular
além de favorecer sua soberania, tica dos cidadãos e cidadãs, seja nos
do poder, tendo como pressuposto
autodeterminação e autonomia. espaços públicos ou nos privados.
a democracia participativa. Isso sig-
A universalização da cidadania, Um último registro: no Brasil,
nifica que é uma das formas de
exercício do direito de participação do ponto de vista ético-político, pres- por tradição (infelizmente temos de
política cujo pressuposto é a exis- supõe o combate a todas as formas reconhecer) a corrupção é uma for-
tência de outras modalidades de tal de discriminação, a promoção da ma de se fazer e se pensar a políti-
direito, como o direito de votar e igualdade de condições e de opor- ca. Em outras palavras, a corrup-
ser votado, liberdade de organiza- tunidades entre os diferentes que ção é o modo como o Estado bra-

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O direito à participação no Governo Lula

sileiro opera, e serve para que gru- cas. É a despolitização da partici- e cidadãs é o momento do voto. Esta
pos se apropriem dos recursos pú- pação. concepção torna o Estado privado,
blicos e do poder para defender in- 2) ‘A sociedade não está prepa- por intermédio do partido que ga-
teresses privados. A corrupção não rada para participar, como protago- nha a eleição. Durante o mandato,
se caracteriza apenas por aspectos nista, das políticas públicas’. Este o partido decide o que fazer confor-
monetários/financeiros. Caracteriza- mito baseia-se no preconceito do me os interesses partidários.
se, principalmente, pelo uso do po- saber, em que a burocracia e/ou o 4) ‘A sociedade é vista como ele-
der político em benefício de interes- político detém o saber e a delega- mento que dificulta a tomada de
ses privados e particulares (aqui ção para decidir. Tal mito justifica decisões’, seja pela questão tempo
incluído o desejo de se perpetuar no a tutela do Estado sobre a socieda- (demora em decidir, obrigatorieda-
poder). ‘O bem mais valioso rouba- de civil, o que leva, por exemplo, o de de convocar reuniões, etc.), seja
do pela corrupção é o poder de de- Estado a não criar espaços institu- pela questão de posicionamento crí-
cisão do povo’. Portanto, corrupção cionalizados de participação ou a tico diante das propostas ou da au-
e participação são formas comple- sência delas por parte do Estado.
tamente diferentes de operar a polí- Estes mitos, na verdade, são dis-
tica.
farces ideológicos forjados por
aqueles que detêm o poder político
A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NAS no Brasil (seja este poder oriundo
ALGUNS MITOS RELACIONADOS INSTÂNCIAS DE DECISÃO É, NA MAIORIA DAS do poder econômico, da ocupação
A PARTICIPAÇÃO
VEZES, CERCADA DE MITOS CRIADOS PELOS de um cargo burocrático ou de um
cargo eletivo). Por isso, tais mitos
A participação da sociedade ci- DISCURSOS GOVERNAMENTAIS devem ser desconstruídos com base
vil nas instâncias de decisão é, na
E DA SOCIEDADE CIVIL em uma concepção ampliada de
maioria das vezes, cercada de mi- democracia e da politização da par-
tos criados pelos discursos gover- ticipação.
namentais e da sociedade civil. Va-
mos citar apenas quatro destes mi-
tos que dificultam a participação: indicar, escolher e determinar quem A PARTICIPAÇÃO
1) ‘A participação por si só muda são os representantes da sociedade EM NÚMEROS
a realidade’. É um mito que despo- nos espaços criados, assim como
não disponibilizar as informações Não se tem levantamento atua-
litiza a participação, pois não per-
(por que a ‘sociedade não vai en- lizado e preciso do número dos con-
cebe que há sujeitos políticos que
tender’). selhos no Brasil, nem das organi-
não querem que as coisas mudem,
3) A sociedade não pode com- zações e pessoas envolvidas, mui-
não percebe a correlação de forças
partilhar da governabilidade, isto é, to menos, análises mais globais da
e, por conseqüência, não percebe
da construção das condições políti- efetividade destes instrumentos na
que há outras formas e interesses, cas para tomar e implementar deci- construção de políticas públicas. O
alguns legítimos, outros nem tan- sões, porque o momento de partici- que seriam hoje as políticas públi-
to, que definem também as políti- pação da sociedade e dos cidadãos cas sociais no Brasil, com o des-

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monte do Estado em curso com as políticas neoliberais, sem a criação do sistema descentralizado e participativo?
Ë uma bela pergunta a ser feita. A impossibilidade de responder a ela dificulta qualquer análise qualitativa que se
queira fazer. Portanto, só podemos – e ainda de forma limitada – nos ater aos números disponíveis, mesmo que
insuficientes e desatualizados.
O quadro que apresentamos a seguir se refere aos conselhos municipais em dez políticas sociais e foi elaborado
a partir da Pesquisa de Informações Básicas Municipais do IBGE(1999), portanto, praticamente com seis anos de
defasagem. Nota-se que o mesmo se refere aos conselhos criados, não entrando na análise do funcionamento e
eficácia deles. Não apresentamos dados de conselhos estaduais por não encontrá-los.

QUADRO 1 – Conselhos municipais existentes em 1999

Fonte: IBGE. Perfil dos Municípios Brasileiros, 1999. Elaboração Luciana Jaccoud e Frederico Barbosa do IPEA

QUADRO 2 – Conselhos Nacionais existentes em 2006

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O direito à participação no Governo Lula

* Conselhos criados no Governo Lula; ** Conselhos reformulados no Governo Lula


Fonte: Pesquisa Realizada nos sites dos órgão dos quais os conselhos são vinculados e no Diário Oficial da União

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Identificamos 64 Conselhos Na- verno Lula (e o texto a seguir é bas- peito apenas ao fato de o presidente
cionais, destes 13 foram criados no tante crítico) não podemos deixar ser operário, mas, muito mais, por
Governo Lula, e nove foram rees- de mencionar o significativo avan- ser oriundo do chamado lumpen
truturados neste mesmo período. ço que tivemos neste período. No proletariado. Isto, por si só, explica
Portanto, 42 foram criados antes do governo anterior, os movimentos as expectativas que se criaram nas
Governo Lula. sociais e as organizações não go- forças que apostaram em seu suces-
Cabe ressaltar que a distribui- vernamentais que defendem direi- so ou em seu fracasso, por razões
ção por área foi uma escolha do tos eram chamados de “neobobos” políticas, ideológicas ou de precon-
autor, que levou em conta o órgão (isso pelo próprio presidente Fernan- ceito.
ao qual o conselho é vinculado e do Henrique Cardoso). Não é a toa Analisar um governo com este
suas atribuições. Neste estudo, tor- que foi neste período que o chama- perfil, seja em que aspecto for, não
nou-se, às vezes, difícil diferenciar do Terceiro Setor foi alçado a in- é tarefa fácil, pois o Governo Lula
as atribuições entre dois conselhos, trouxe para o interior do Estado to-
ou até onde vai o poder de um e das as contradições e conflitos pre-
começa o poder de outro, ou mes-
sentes na sociedade brasileira. Em
mo se tem algum poder, pois mui-
seu desenho político/institucional
tos têm competências e atribuições
há, por exemplo, um ministério que
parecidas, difusas, concorrentes e ... POR MAIS QUE POSSAMOS
cuida dos interesses do agronegó-
sobrepostas, mostrando a ausência FAZER CRÍTICAS À QUESTÃO DA PARTICIPAÇÃO cio e outro que promove a reforma
de uma política para esses espa-
NO GOVERNO LULA NÃO PODEMOS DEIXAR DE agrária e a agricultura familiar; pre-
ços, que chamamos de ‘arquitetu-
valece no ministério da Fazenda e
ra da participação’. MENCIONAR O SIGNIFICATIVO AVANÇO QUE
no Banco Central uma política anti-
Não apresentamos dados
TIVEMOS NESTE PERÍODO desenvolvimento, mas há no gover-
das conferências realizadas até o
no um ministério de ‘Desenvolvi-
momento por impossibilidade de
mento’ ligado à produção e um ban-
reunir informações. Vamos traba-
co, o BNDES, para financiar o de-
lhar as conferências no capítulo a
seguir e somente em relação ao terlocutor político da sociedade ci- senvolvimento. No que diz respeito

Governo Lula, período que permi- vil organizada. à participação popular, o Governo

tiu reunir informações consistentes A eleição de um líder operá- Lula levou para seu interior setores
para análise. rio para a presidência da Repúbli- que nunca tiveram qualquer com-
ca, oriundo de uma classe social promisso com a participação ou que
originariamente excluída de qual- a viam unicamente como instrumen-
O LUGAR DA PARTICIPAÇÃO NO quer conceito de cidadania, tendo to para chegar ao poder e não como
GOVERNO LULA migrado de uma região miserável força capaz de provocar transforma-
para a capital econômica brasilei- ções sociais, culturais e políticas.
Cabe registrar, de início, que por ra, é um marco histórico em nosso Talvez o que melhor caracterize o
mais que possamos fazer críticas país, que repercute em âmbito in- Governo Lula sejam suas contradi-
à questão da participação no Go- ternacional. O marco não diz res- ções – aqui lembradas como falta

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O direito à participação no Governo Lula

de um projeto de Nação e não no Analisar o Governo Lula, como populares, havia a ‘certeza’ de que
sentido marxista do termo. já mencionamos, é tarefa comple- o PT (como força hegemônica na
Um governo (aqui entendido xa, ainda mais quando esta avalia- aliança que venceu as eleições)
como o conjunto de forças políticas ção é feita sob a perspectiva da par- ‘usaria’, no mínimo, a participação
que o apóia e/ou constitui) que não ticipação. Quando nos dispomos a como elemento de pressão para as
tem um projeto de Nação, que não analisar e avaliar um governo, in- transformações. Algumas adminis-
tem forças ou não quer contrariar dependentemente de ser o Governo trações municipais tiveram a parti-
interesses e privilégios, que acredi- Lula ou qualquer outro, uma ques- cipação como elemento central da
ta ser possível diminuir as desigual- tão preliminar se apresenta diante estratégia política, priorizando a
dades sociais distribuindo o fruto de nós: para realizar qualquer pro- participação de setores populares na
do desenvolvimento (reedição do cesso de avaliação é necessário ter definição das políticas e dos orça-
‘primeiro crescer para depois dis- uma referência. E qual é nossa re- mentos públicos.
tribuir’), por meio de políticas com- Uma das primeiras ações do
pensatórias e focalizadas, portanto, Governo Lula foi repensar o dese-
que não se propõe a redistribuir as nho institucional ou a arquitetura
riquezas já produzidas, opera poli- da participação. Se nos basearmos
ticamente como? Por intermédio dos no desenho inicial, podemos con-
tradicionais meios de fazer política UMA DAS PRIMEIRAS AÇÕES DO GOVERNO cluir duas coisas: 1) a participação
no Brasil, que são o clientelismo, o LULA FOI REPENSAR O DESENHO era vista como estratégia de gover-
fisiologismo e a apropriação priva- nabilidade; 2) os diferentes sujeitos
INSTITUCIONAL OU A ARQUITETURA DA
da da coisa pública, isto é, a nega- políticos da participação eram re-
ção mais completa de qualquer pro- PARTICIPAÇÃO conhecidos com pesos diferencia-
cesso participativo. Mas, ao mes- dos, com prioridade para os sujei-
mo tempo, como vamos ver no item tos políticos da relação capital-tra-
5.2, é um governo que abriu dife- balho.
rentes e diversos processos de in- O governo e, principalmente, a
terlocução. esquerda (e aí não envolve apenas
O Governo Lula foi eleito num ferência se o governo foi eleito para o PT, mas os outros partidos, as-
movimento construído ao longo de provocar grandes transformações? sim como boa parte da intelectuali-
décadas para mudar a forma de fa- Nossa referência não é o passado dade) ainda olham para a socieda-
zer e pensar a política no Brasil. e, sim, o futuro. Por isso, nossa re- de apenas do ponto de vista da re-
Elementos essenciais dessa transfor- ferência para a avaliação deve ser lação capital-trabalho. Até agora,
mação seriam a participação popu- o que chamamos, de forma genéri- não houve rompimento radical com
lar e o controle social. Portanto, ca, de ‘projeto de sociedade’. Ape- essa visão bipolar. Ao enxergarem
participação e controle social como sar de tal projeto ser um projeto em a sociedade apenas do ponto de vis-
elementos propulsores e fundantes construção, ele nos dá elementos ta da relação capital-trabalho, re-
das transformações sociais, cultu- para essa avaliação. conhecem como atores políticos
rais, ambientais, econômicas e po- Pelo discurso e pelas experiên- somente os empresários e os tra-
líticas. cias de algumas administrações balhadores, pois somente eles atu-

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MORONI, José Antônio

am nessa relação. Aqui vale ressal- estrutura. Portanto, não existe uma à secretaria do Conselho de Desen-
tar que se trata dos trabalhadores e única voz a falar por esse conjun- volvimento Econômico e Social
trabalhadoras sindicalizados, pois to, mas várias vozes e de lugares (CDES)3 a interlocução com o mun-
esse olhar sobre a sociedade não diferentes. É o que chamamos de do empresarial e com os sindicatos.
‘enxerga’ a imensa massa de ho- ‘multiplicidade de sujeitos políti- Por isso, o CDES é formado, em sua
mens e mulheres que estão na eco- cos’. grande maioria e de forma hegemô-
nomia informal. Acostumados a lidar com o nica, por empresários e sindicalis-
Conforme essa concepção, as movimento sindical e com a con- tas, além de alguns intelectuais, que
organizações e movimentos sociais cepção de que a sociedade se orga- são chamados de ‘personalidades’,
não são reconhecidos como sujei- niza com base apenas nos interes- e representantes de movimentos so-
tos políticos, mas como atores so- ses da relação capital-trabalho, o ciais e ONGs. Na concepção do go-
ciais ou sujeitos sociais. Portanto, Governo Lula não conseguia e não verno, o CDES é o espaço de diálo-
bons na mobilização e na capilari- consegue dialogar com esse conjun- go e de atuação essencialmente po-
dade, mas não para participar dos lítica (“colegiado de assessoramen-
processos de tomada de decisões to direto e imediato do presidente
políticas. Historicamente, quem da República”), em que se discutem
trouxe para o debate político a ques- as questões da macroeconomia e da
tão da participação foi justamente ... AS ORGANIZAÇÕES E MOVIMENTOS SOCIAIS agenda de desenvolvimento. Se nes-
esse campo de organizações e mo- se espaço estratégico, na definição
NÃO SÃO RECONHECIDOS COMO SUJEITOS
vimentos sociais. O movimento sin- do governo, não há equilíbrio míni-
dical nunca teve a participação POLÍTICOS, MAS COMO ATORES SOCIAIS OU mo entre os diferentes sujeitos polí-
como estratégia política, que dirá ticos é porque estes mesmos sujei-
SUJEITOS SOCIAIS
como elemento central na constru- tos não são reconhecidos como tais.
ção dos processos democráticos. É importante ressaltar que usa-
Outro complicador dessa concep- mos o termo ‘interlocução’ porque
ção é procurar nas organizações e é dessa forma que esses espaços são
nos movimentos sociais a estrutu- vistos pelo Governo Lula. Não são
to de organizações e movimentos,
ra do movimento sindical – um espaços de deliberação e controle
considerado ‘muito difuso’ por não
movimento centralizado, hierarqui- social e, sim, de interlocução do
tem uma ‘central’ nem um ‘presi-
zado e com rígida estrutura. Por sua governo com representantes da so-
vez, as organizações e movimentos dente’.
ciedade. E, na maioria das vezes,
sociais, pela própria natureza, não Essa concepção bipolar está pre- esta representação é pessoal e não
apresentam tal hierarquia e muito sente no desenho institucional do institucional e o governo escolhen-
menos tal centralização. Organi- governo, em que a interlocução com do com quem ele quer ‘interlocu-
zam-se de forma mais descentrali- os movimentos sociais e as organi- tar’.
zada e mais horizontal, procuran- zações da sociedade civil é feita pela Há, no Governo Lula, desrespei-
do se construir mais como sujeitos Secretaria-Geral da Presidência da to total à autonomia da sociedade
políticos coletivos e menos como República (SGP). Por sua vez, cabe civil, pois na maioria dos novos

3
Um quadro com detalhes sobre os conselhos criados no Governo Lula é apresentado em outro item deste artigo.

298 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
O direito à participação no Governo Lula

espaços participativos criados e/ou realizadas em governos anteriores, Nacional. O PPA é elaborado a cada
reformulados quem determina a re- quem organizava e comandava todo quatro anos, a LDO e a LOA todos
presentação da sociedade é o Gover- o processo era a sociedade civil. O os anos. O PPA é essencial no pla-
no. As únicas exceções foram os governo chegava, como se fosse um nejamento das políticas públicas,
Conselhos das Cidades e Gestor da espectador, e ia embora. Agora, es- pois define em linhas gerais, as
Internet no Brasil. E isso em razão ses espaços têm registrado qualida- concepções, os programas, os ob-
da pressão do movimento de refor- de e participação governamental jetivos e as metas para os próxi-
ma urbana e das organizações que bem diferente do que estávamos mos quatro anos. A LDO define os
lutam por uma governança demo- acostumados. As conferências, por programas prioritários, as metas
crática da Internet no país. Sem fa- exemplo, viraram verdadeiros espa- físicas e as linhas gerais de como
lar da não-possibilidade de escolha ços de disputas políticas. deverá ser elaborado o orçamento
do presidente pelos próprios conse- do próximo ano. A LOA é como e
lhos. Os presidentes são indicados onde os recursos públicos serão
pelo Governo. aplicados, isso é, o orçamento pú-
Na verdade, ocorreu no Gover- blico.
no Lula a multiplicação dos espa-
ços de interlocução, sem que hou-
...OCORREU NO GOVERNO LULA A Em 2003, a Associação Brasi-
leira de Organizações Não Gover-
vesse nenhuma política de fortale- MULTIPLICAÇÃO DOS ESPAÇOS DE namentais (ABONG) e um conjunto de
cimento do sistema descentralizado INTERLOCUÇÃO, SEM QUE HOUVESSE redes e fóruns que constituem a
e participativo e muito menos de Inter-Redes4 estabeleceram relação
NENHUMA POLÍTICA DE FORTALECIMENTO DO
ampliação dos processos democrá- política com o governo federal para
ticos. A participação ficou reduzi- SISTEMA DESCENTRALIZADO E PARTICIPATIVO E contribuir na dinâmica de partici-
da à estratégia de governabilidade pação da sociedade civil no debate
MUITO MENOS DE AMPLIAÇÃO DOS PROCESSOS
e ao faz-de-conta, sem ter-se confi- sobre as orientações estratégicas
gurado como elemento essencial nas DEMOCRÁTICOS
para a construção do ‘Plano Pluri-
transformações sociais, políticas, anual 2004-2007: um Brasil para
culturais, ambientais e econômicas. todos e todas’. Foram realizadas
Cabe ressaltar, contudo, que PROCESSO DE audiências públicas em todos os
ocorreram algumas mudanças po- PARTICIPAÇÃO NO PPA estados brasileiros e no Distrito
sitivas no Governo Lula no que diz Federal.
respeito ao envolvimento dos agen- A Constituição de 1988 criou o Essa iniciativa do governo fe-
tes governamentais nos processos processo orçamentário, que com- deral, capitaneada pela Secretaria-
e espaços de participação, sobretu- preende três peças: PPA (plano plu- geral da Presidência, revestiu-se de
do os conselhos e as conferências. rianual), LDO (lei de diretrizes or- especial relevância, pois instalou
Houve mudança de postura do atu- çamentárias) e LOA (lei orçamentá- a possibilidade de debate entre go-
al governo em relação aos gover- ria anual), elaborados pelo Execu- verno e redes, articulações e movi-
nos anteriores. Nas conferências tivo e aprovado pelo Congresso mentos da sociedade civil sobre as

4
A Inter-Redes: Direitos e Política é um espaço de articulação de redes e fóruns de organizações da sociedade civil brasileira que atuam, de
diversas formas e com diversos temas, para o fortalecimento da esfera pública, a promoção de direitos e a proposição de políticas.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 299
MORONI, José Antônio

diretrizes para um novo modelo de de vigência do PPA. Definição esta • Elaboração de indicadores
desenvolvimento brasileiro, social- questionada em todo o processo de desagregados por gênero, raça, et-
mente justo e ambientalmente sus- participação no PPA. nia, rural, urbano, etc., permitin-
tentável, que também possibilitas- Além disso, nenhum dos acor- do acompanhamento mais qualita-
se aprofundar as estruturas demo- dos firmados com a Secretaria-ge- tivo do impacto real das políticas
cráticas de controle social sobre o ral da Presidência durante o processo públicas por parte da sociedade ci-
processo orçamentário e sobre os de consulta, até momento, não fo- vil.
recursos públicos. ram cumpridos. São eles:
Um estudo realizado pela Inter-
A expectativa era de que a par-
• Formação de grupo de traba- Redes demonstrou que, do fruto da
ceria do momento inicial de debate
lho paritário entre governo e socie-
se tornasse efetiva, com o acompa- participação, o Plano Plurianual
dade civil para acompanhar o mo-
nhamento do PPA, para dar conti- incorporou questões periféricas,
nitoramento do PPA 2004-2007;
nuidade à abertura desse espaço de que ajudavam a desenhar melhor
participação cidadã e permitir que os megaobjetivos das orientações
a sociedade civil organizada, desa- estratégicas do governo para o PPA,
fiada no primeiro momento, pudes- mas nada que viesse a mudar a
se participar do monitoramento da ... DO FRUTO DA PARTICIPAÇÃO, O PLANO lógica das políticas – a principal
implementação do PPA e dos proces- PLURIANUAL INCORPOROU QUESTÕES demanda das organizações nas
sos de revisão anual, assim como audiências estaduais.
PERIFÉRICAS, QUE AJUDAVAM A DESENHAR
da elaboração de uma política de Contudo, o mais grave foi a to-
participação e de controle social do MELHOR OS MEGAOBJETIVOS DAS ORIENTAÇÕES tal falta de continuidade do proces-
processo orçamentário federal. ESTRATÉGICAS DO GOVERNO PARA O PPA, so. Havia um compromisso políti-
Após os debates em todo o país co de continuidade, inclusive cor-
e o envio do Projeto de Lei do PPA
MAS NADA QUE VIESSE A MUDAR A LÓGICA DAS
rigindo os erros do processo inici-
ao Legislativo, diversas organiza- POLÍTICAS ... al (pouco tempo para os debates,
ções e redes acompanharam a tra-
objeto de discussão limitado, pou-
mitação do PPA no Congresso Naci-
co espaço para a expressão da so-
onal e constataram que o rico pro- • Construção, com a sociedade
ciedade civil, processo centraliza-
cesso participativo de consulta não civil, dos mecanismos e da meto-
do no governo, etc.) para ampliar
foi sequer tema de debate no con- dologia de participação nos proces-
a participação e os temas tratados.
junto do governo e muito menos no so orçamentários;
Assim, verificamos que esse
Congresso Nacional. O que mono- • Acesso às informações sobre
processo foi um verdadeiro ‘espe-
polizou a atenção dos parlamenta- a execução física e financeira do
res e da mídia foi a insistência do táculo’ da participação, em que as
PPA, especificamente a disponibili-
governo e da base governista no dade on-line, para qualquer cida- contribuições da sociedade civil
Congresso em manter, a todo o cus- dão, dos dados do Sistema Integra- não foram consideradas nem exis-
to, o compromisso de superávit pri- do de Administração Financeira (SI- tiu qualquer estratégia de governo
mário de 4,25% do Produto Interno AFI) e do Sistema de Informações para criar e aprofundar, de fato,
Bruto (PIB) durante os quatro anos Gerais e de Planejamento (SIGPLAN); espaços institucionais de participa-

300 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
O direito à participação no Governo Lula

ção popular em áreas estratégicas CONSELHOS

para a efetivação de direitos no No total foram criados 13 novos Conselhos Nacionais. Como demonstra-
mos antes (item 3), esses conselhos foram criados com concepções diferen-
país, como o orçamento e o plane-
tes da do movimento social que construiu a estratégia política de constru-
jamento públicos e, principalmen-
ção do sistema descentralizado e participativo nas diferentes políticas.
te, o ‘modelo de desenvolvimento’.
Além de criar novos conselhos nacionais, o Governo Lula reformulou
Hoje, após muitas idas e vindas
nove conselhos nacionais, adaptando as novas exigências legais e/ou polí-
e longos períodos de total silêncio, ticas.
a Secretaria-geral voltou a procu-
rar as organizações para retomar a QUADRO 3 – Conselhos Nacionais criados no Governo Lula
discussão sobre os acordos não
cumpridos desde 2003.
Uma grande contribuição deste
processo foi o de chamar a atenção
para uma peça essencial no plane-
jamento das políticas públicas que
é o PPA. Isso teve e ainda tem des-
dobramentos na elaboração dos
PPAs estaduais e municipais. Até
2003, a grande maioria das organi-
zações não sabia do que se tratava,
e os PPA eram elaborados por ‘es-
critórios de consultorias’. Este
mérito o Governo Lula tem. Fonte: Quadro sistematizado pela autor com base no quadro 2

QUADRO 4 – Conselhos Nacionais reformulados no Governo Lula


A PARTICIPAÇÃO NO
GOVERNO LULA EM NÚMEROS

Se olharmos unicamente na
perspectiva numérica e de quanti-
dade, vamos ver que no Governo
Lula houve grande avanço na cria-
ção de espaços de participação (con-
selhos, conferências, etc.) e de in-
terlocução.
Fonte: Quadro sistematizado pela autor com base no quadro 2

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 301
MORONI, José Antônio

CONFERÊNCIAS QUADRO 5 – Conferências Nacionais/Internacionais realizadas no Gover-

No total, foram realizadas no no Lula

Governo Lula 40 Conferências Naci-


onais (já incluídas as que vão se
realizar ate o final do mandato) e
três Conferências Internacionais.
Segundo dados oficiais do governo
federal, ao final do ciclo de confe-
rências nacionais 2003/2006, mais
de dois milhões de brasileiros e bra-
sileiras participaram das conferên-
cias municipais, regionais, estadu-
ais e nacional. Isso sem contar com
os estudantes que participaram das
conferências infanto-juvenis de meio
ambiente.
Vale ressaltar que das 37 confe-
rências nacionais, 15 foram reali-
zadas pela primeira vez, e a de Di-
reitos Humanos foi a primeira vez
convocada pelo Executivo.
Conferências realizadas pela pri-
meira vez: meio ambiente (versão
adulta e infanto-juvenil); aqüicultu-
ra e pesca; cidades; medicamentos
e assistência farmacêutica; terra e
água; arranjos produtivos locais;
políticas para as mulheres; espor-
te; cultura; promoção da igualdade
racial; povos indígenas; direitos da
pessoa com deficiência; direitos da
* Soma dos participantes das etapas municipais, estaduais e nacional; ** Soma dos
pessoa idosa; econômica solidária participantes das etapas estaduais e nacional; *** Não foi convocada pelo Executivo e
sim pelo Congresso Nacional e Fórum de Entidades Não Governamentais (FNEDH).
e educação profissional e tecnoló-
Fonte: Informativo Especial da Secretaria-Geral da Presidência da República, 2006.
gica.

302 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
O direito à participação no Governo Lula

DESAFIOS QUE 3. resgatar o papel de mobili- multiplicidade dos sujeitos políticos


DEVEMOS ENFRENTAR zação social das conferências. As e de suas ‘causas’ não levem à frag-
conferências foram pensadas com mentação total da luta política.
Como organizações da socieda- um espaço ampliado dos conse- 5. reconhecer outras formas de
de civil que defendemos a partici- lhos, nas quais se envolveriam organização. Como, nesses proces-
pação como Direito Humano, pre- outros sujeitos políticos e de diálo- sos, agregar outros sujeitos políti-
cisamos enfrentar alguns desafios: go com a população que não parti- cos, que possuem novas e criativas
1. reconstruir a arquitetura da cipa em organizações e movimen- formas de organização, na maioria
participação, embora isso não sig- tos. Resgatar este papel das confe- das vezes não institucionalizadas.
nifique repensar apenas o sistema rências significa ter estratégias po- Olhar e enxergar estes novos atores
descentralizado e participativo (os líticas de mobilização e comunica- e articular esses processos partici-
conselhos e as conferências). Preci- ção com a população de modo ge- pativos são um grande desafio para
samos repensar os processos demo- ral. as organizações e movimentos.
cráticos, o desenho da democracia 6. recolocar a questão da Re-
e a maneira de conjugar a demo- forma do Estado. Precisamos defi-
cracia representativa, a democracia nir melhor que Estado queremos, o
participativa e a democracia dire- papel e como exercer o controle pú-
ta. Enfim, uma verdadeira reforma PRECISAMOS REPENSAR OS PROCESSOS blico do Estado. Aqui, é fundamen-
do sistema político brasileiro, por- DEMOCRÁTICOS, O DESENHO DA DEMOCRACIA E tal a luta pelo acesso universal às
tanto, do poder. informações públicas. Não podere-
2. resgatar o papel político dos
A MANEIRA DE CONJUGAR A DEMOCRACIA
mos pensar nenhum tipo de contro-
conselhos. Os conselhos ainda são REPRESENTATIVA, A DEMOCRACIA le social e de controle público do
mecanismos, não os únicos, de par- Estado se este Estado não for pú-
PARTICIPATIVA E A DEMOCRACIA DIRETA
ticipação. Porém, não como se apre- blico. E isto envolve um projeto
sentam hoje, em sua maioria sem maior, que é a definição de projeto
espaço para o debate político, a de- e projetos de sociedade.
liberação e o controle social, carac-
terizando-se como espaços formais 4. respeitar a multiplicidade
ou de faz-de-conta de participação. dos sujeitos políticos. Estabelecer CONSIDERAÇÕES FINAIS
Isso reflete a maneira como são comunicação e relação política en-
escolhidos os representantes da so- tre os diferentes espaços – conse- O sistema descentralizado e par-
ciedade civil, que não se vêem en- lhos e conferências –, que até ago- ticipativo é um instituto político não
quanto representação da sociedade ra têm permanecido estanques, ver- tradicional de gestão de políticas
civil, mas como representação de ticais, fragmentados e sem ligação. públicas, voltado para a democra-
interesses da sua organização. Sem Como a Conferência das Cidades, tização do Estado e da sociedade,
falar que, em muitos casos, os pro- por exemplo, comunica-se com a podendo impulsionar mudanças
cessos de eleição desta representa- questão da criança, com a questão culturais, econômicas e políticas
ção não ficam em nada devendo aos de segurança, com a questão do que nos aproximam mais da utópi-
métodos tão criticados na democra- meio ambiente? O desafio é o como ca radicalidade democrática. Até
cia representativa. o reconhecimento da riqueza da agora, temos como integrantes des-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 303
MORONI, José Antônio

te sistema os conselhos e as confe- REFERÊNCIAS Participação Social - Informativo


rências. O desafio é como incorpo- Especial da Secretaria-Geral da Pre-
rar outras formas de participação BOBBIO, Norberto. O futuro da de- sidência da República, abril 2006.
neste sistema, como por exemplo,
mocracia. Rio e Janeiro: Paz e Ter- www.brasil.gov.br
as ouvidorias, consultas públicas
ra, 1986.
e formas não institucionalizadas de
organizações da sociedade civil.
FALCÃO, Maria do Carmo. A segu-
Não consideramos os conse-
ridade na travessia do Estado as-
lhos espaços únicos nem exclusi-
sistencial brasileiro In: SPOSATI,
vos, mas importantes e estratégicos
Aldaiza et al. Os direitos (dos de-
para serem ocupados pela socieda-
sassistidos) sociais. 2a ed. São Pau-
de civil organizada e comprometi-
lo: Cortez, 1991.
da efetivamente com as transforma-
ções políticas, econômicas e soci-
MORONI. Jose Antonio. Participa-
ais. Os conselhos são mecanismos
mos e daí?, artigo para o Observa-
limitados para operar essas trans-
tório da Cidadania. Disponível em:
formações. Porém, para a realidade
www.ibase.org.br. Acesso em 12 de
brasileira, são mecanismos que
dezembro de 2006.
podem provocar mudanças substan-
tivas na relação Estado-sociedade.
Estes mecanismos podem contribuir MORONI, Jose Antonio e CICONE-

com a construção/consolidação de LLO, Alexandre, Participação, Avan-

uma cultura política contra-hegemô- çamos?, Cadernos da ABONG, 2005

nica, por meio da prática da socia-


lização da política e da distribui- RAICHELIS, Raquel. A construção

ção do poder. da esfera pública no âmbito da po-

Não se deve desistir do processo lítica de assistência social. 1997.

de implementação desses mecanis- 325f. Tese (Doutorado em Serviço

mos de participação democrática, Social) PUC, São Paulo, 1997.

apesar do pouco avanço em dire-


ção a transformar em poder de fato SOUZA FILHO, R. Rumo à democra-
o poder legal que esses espaços cia participativa. 1996.
participativos possuem. 169f.Dissertação (Mestrado em Ser-
E a pergunta que não temos viço Social) Universidade Federal do
como responder, agora, é: Qual o Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996.
impacto do Governo Lula neste pro- Mimeo,.
cesso todo. Isso é uma incógnita e
com certeza ‘nada será como antes’.

304 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
Proteção social em um mundo globalizado
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

Proteção social em um mundo globalizado1


Social Protection in a Globalized World

Sonia Fleury2

Recebido: Jun./2006
Aprovado: Jul./2007

RESUMO

Neste artigo, procura-se tratar as seguintes questões: Quais as alterações


nos padrões de proteção social e na saúde que estão em curso em face à
globalização?; Que contradições foram introduzidas por estas mudanças
no âmbito da proteção social?; Que potencialidades são geradas em
decorrência deste processo? Por meio da análise das transformações da
proteção social em um mundo globalizado, apontam-se as principais tensões
e contradições neste campo, mas também as novas energias e potencialidades
de geração de uma cidadania integral e emancipatória.

PALAVRAS-CHAVE: Proteção Social; Cidadania; Globalização.

ABSTRACT

In this paper the author addresses the following questions: What changes
to the patterns of social and health care protection are underway in light of
globalization?; What contradictions have been introduced by such changes
into the context of social protection?; What potentialities have emerged as
a result of this process? By analyzing the transformations to social protection
in a globalized world, the main tensions and contradictions in this field
are identified, as are the new powers and capacities to generate an integral
and emancipative citizenship.
1
Doutora em Ciência Política; professora KEY-WORDS:Social Protection, Citizenship, Globalized World.
da EBAPE/FGV e presidente do CEBES, elei-
ta em 2007.
1
Conferência pronunciada no 8° CONGRESSO BRASILEIRO DE SAÚDE COLETIVA – ABRASCO,
Email: sfleury@fgv.br 21 a 25 de agosto de 2006

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005 305

305
FLEURY, Sonia

Neste artigo, procura-se tratar as Neste contexto de profunda a polêmica sobre o crescimento po-
seguintes questões: Quais as transformação social, a proteção pulacional em Malthus (1983)
alterações nos padrões de proteção social deixa de ser parte das rela- referência)e Marx (1980) – um ad-
social e na saúde que estão em cur- ções tradicionais entre desiguais, vogando que o número crescente de
so em face à globalização?; Que quando senhores protegiam e tute- pobres era fruto do ritmo de cresci-
contradições foram introduzidas por lavam servos leais ou entre iguais, mento desproporcional da popula-

estas mudanças no âmbito da pro- no interior das corporações, para se ção em relação ao crescimento da

teção social?; Que potencialidades colocar como uma questão social a riqueza, enquanto o outro demons-
ser resolvida nos marcos de uma trava que era a mesma lógica da
são geradas em decorrência deste
nova sociedade que se fundava com acumulação capitalista que produ-
processo?
base nos valores de liberdade e zia uma superpopulação relativa.
Para tratar a primeira questão,
igualdade genérica dos indivíduos. As Leis dos Pobres, as profissões no
partimos da constatação de que a
campo social, as instituições para
emergência e consolidação dos sis-
o cuidado da população são todos
temas de proteção social se deram
instrumentos produzidos em respos-
em um contexto radicalmente dife-
ta à questão colocada pela pobreza
rente do atual, que chamamos ge-
urbana.
nericamente de ‘globalização’. Os ... A PROTEÇÃO SOCIAL DEIXA DE SER PARTE Além da perda dos vínculos de
diferentes modelos de proteção so-
DAS RELAÇÕES TRADICIONAIS ENTRE DESIGUAIS tutela, a necessidade de uma políti-
cial foram originários de um mes-
ca de proteção social decorre tam-
mo contexto socioeconômico, carac- (...) PARA SE COLOCAR COMO UMA QUESTÃO bém da dissolução das relações so-
terizado pelos processos de Moder- SOCIAL A SER RESOLVIDA NOS MARCOS DE UMA ciais de solidariedade existentes no
nização, Democratização e Desenvol- interior das famílias e das comuni-
NOVA SOCIEDADE
vimento Industrial. A modernização dades, e sua substituição por vín-
social diz respeito à complexifica- culos formais entre os indivíduos e
ção da estrutura social, que foi o Estado. Estes novos vínculos, abs-
acompanhada também por uma es- tratos e impessoais, em base à igual-
pecialização funcional. A democra- Libertos dos laços de tutela, os dade natural entre os indivíduos,
tização incluiu o reconhecimento de indivíduos perderam seus vínculos foram o substrato da emergência do
atores políticos coletivos e a aber- de proteção social e a pobreza emer- elemento civil da cidadania.
tura do sistema político competiti- giu como questão social, isto é, O rompimento das relações de
vo para a participação política das como ameaça à coesão social. Uma solidariedade orgânica no seio da
massas. O processo de desenvolvi- questão social, quando se coloca, comunidade requer a construção de
mento industrial em unidades fabris politiza o tema e requer, por conse- uma mediação entre os indivíduos
alterou a estrutura produtiva e au- guinte, uma intervenção política. dispersos no mercado e o poder po-
mentou a produção de riquezas, Para seu enquadramento são desen- lítico, o Estado, capaz de assegurar
gerando processos concomitantes de volvidos novos conhecimentos, no- a reconstrução, com base neste cons-
urbanização e de organização soci- vas tecnologias, surgem novas pro- truto político igualitário – a cida-
al. fissões e instituições. Basta lembrar dania –, de uma integração mecâni-

306 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005
Proteção social em um mundo globalizado

ca na comunidade nacional. A co- burocrática; o domínio das técnicas sim, aprofundar a democracia de
munidade se reconstrói como nação, administrativas de gestão. massas.
se identifica pelo pertencimento a Este foi o ponto de partida bri- Em resumo, as condições de
um legado de valores compartilha- lhantemente analisado por T.H. Mar- emergência dos sistemas de prote-
dos e a um patrimônio civilizatório shall (1967), quando propôs o para- ção social foram dadas por vários

comum. doxo do desenvolvimento da cida- fatores, como: o fortalecimento da

A necessidade de novas bases dania, um princípio igualitário e autoridade pública; a construção de


individualista, no contexto de uma uma ordem política baseada no prin-
para o estabelecimento da ação co-
economia de mercado, baseada na cipio da igualdade; a existência de
letiva solidária encontra sua condi-
desigualdade de classe, desigualda- um ator político protagonista, a
ção material na própria produção
de esta baseada na condição de pro- classe trabalhadora, organicamen-
coletiva nas fábricas e na reprodu-
priedade, em face à construção do te orientada por uma ideologia soli-
ção cada vez mais interdependente,
Estado-nação. dária e uma prática política refor-
nas cidades. A emergência da clas-
madora; e a expansão da cidadania
se trabalhadora como ator protago-
e inclusão dos direitos sociais como
nista é fruto desta produção e re-
forma de integração e preservação
produção coletivizadas, da organi-
da coesão social.
zação de classe com base em prin- ... CONTRADIÇÃO ENTRE IGUALDADE FORMAL E
As conseqüências deste proces-
cípios de solidariedade e na luta DESIGUALDADE REAL É O MOTOR DAS LUTAS so de modernização, democratiza-
política que se trava para a trans-
SOCIAIS QUE TERMINAM POR CONFORMAR O ção e desenvolvimento industrial
formação da igualdade legal em
foram profundas e complexas, em
igualdade substantiva. ESCOPO DA CONDIÇÃO DE CIDADANIA COM A
âmbitos como o territorial (a cidade
Se a demanda teve o operariado
INTRODUÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS E, ASSIM, passa a ser o espaço da diversidade
industrial como seu porta-voz cen-
APROFUNDAR A DEMOCRACIA DE MASSAS e também o da igualdade dos cida-
tral, a resposta à questão social foi
dãos, materializando territorialmen-
dada, fundamentalmente, pelo Esta-
te a democracia); o social (gerando
do, por meio das políticas públicas.
reconhecimento e integração, parti-
As transformações nas formas pro- cipação e legitimação do exercício
A possibilidade de compreender
dutivas e nas relações sociais foram do poder, distribuição da riqueza e
a cidadania só se completa quando
acompanhadas, ou mesmo antece- concentração dos meios de produ-
entendemos que a negação real do
didas, pela construção de uma au- ção; o cultural (definição de um
princípio igualitário que estrutura
toridade pública central no âmbito novo padrão civilizatório com base
a nova ordem jurídica e política leva
do território nacional, pela concen- à existência de uma contradição em valores de igualdade, liberdade
tração e centralização do poder es- persistente. Esta contradição entre e autonomia dos indivíduos e em
tatal. Assim, ocorreram: a subordi- igualdade formal e desigualdade certos pactos sociais sobre direitos
nação dos interesses privados ao real é o motor das lutas sociais que e dignidade humana); a política (am-
interesse público; a construção de terminam por conformar o escopo pliação do direito de participação no
um aparelho estatal unificado e de da condição de cidadania com a in- processo eleitoral e inclusão dos
uma organização hierárquica e trodução dos direitos sociais e, as- direitos sociais); o institucional

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005 307

307
FLEURY, Sonia

(transformação do aparato estatal de a cidadania transcender o território uso intensivo das tecnologias de in-
um estado mínimo e repressor a um nacional, e ainda pela existência, no formação.
Estado Ampliado, responsável pelos seu interior do Estado nacional, de As mudanças que acompanham
direitos cidadãos e pela garantia de discriminações de classe, etnia e esta desterritorialização dos merca-
benefícios e serviços sociais); e o raça, gênero e idade e, no seu exte- dos e da produção vão ter efeitos
econômico (desmercantilização da rior, pela possibilidade de convivên- sociopolíticos de grandes dimen-
reprodução da força de trabalho, cia com o colonialismo; sões, já que a construção da moder-
socialização dos custos desta repro- • A proteção social institucio- nidade envolvia o casamento entre
dução, produção capitalista estatal- nalizada nos Estado do Bem-estar o mercado, o Estado e a cidadania,
mente regulada, gerando condições Social contribuiu para minar os va- com base no reconhecimento políti-
para o ciclo virtuoso do capitalis- lores libertários, a dimensão coleti- co de um povo e o exercício da au-
mo, no qual a maior geração da ri- vista e solidária – fatores necessá- toridade sobre um território.
queza representava também melho- rios à manutenção de uma cidada- Enquanto o trabalho havia sido
res condições de sua redistribuição). nia ativa –, ao transformar a condi- a categoria organizadora da socie-
O desenvolvimento dos sistemas ção de cidadania em uma pauta de dade industrial, nesta nova fase ele
de proteção social expressa este con- benefícios individuais; perde tal centralidade. O trabalho já
junto de transformações, e a expan- • As transformações, econômi- não se associa ao crescimento de
são dos direitos sociais por meio de cas, sociais, tecnológicas e culturais forma irreversível e a economia pas-
modalidades institucionais distintas provocaram mudanças demográfi- sa a crescer eliminando trabalho de
é conseqüência das diferenças nas cas profundas, relativas ao cresci- forma intermitente ou permanente,
relações existentes, em cada socie- mento populacional, expectativa de gerando uma nova estrutura do
dade, entre Estado e sociedade, e, vida, padrão de morbimortalidade, mercado de trabalho. Estas transfor-
dentro desta última, variações acer- custos de insumos e tecnologias in- mações na estrutura e relações de
ca da correlação de forças e valores corporados aos cuidados sociais. trabalho ficaram caracterizadas pela
prevalecentes. No último quarto do século XX, denominada ‘flexibilização do traba-
Os limites a esta expansão tam- assistimos à crise do padrão de de- lho’ e também pela necessidade de
bém são conhecidos e podem ser lis- senvolvimento capitalista. Esta cri- os indivíduos investirem em sua
tados: se permitiu gerar, cumulativamen- condição pessoal de ‘empregabilida-
• A capacidade de inclusão so- te, acumulação e redistribuição nas de’.
cial e de redistribuição por meio de sociedades capitalistas desenvolvi- A vida dos indivíduos, a sua in-
políticas sociais tem seu limite últi- das, ao mesmo tempo que a econo- serção social, seus mecanismos de
mo na dinâmica de acumulação ca- mia mundial se transformava em proteção social deixam de estar as-
pitalista, mediada pela correlação de uma economia cada vez mais glo- sociados à sua inserção laboral. Isto
forças sociais e pela institucionali- balizada. Isto é, onde os processos tem um enorme impacto na organi-
dade existente; de produção e circulação de capital zação e no financiamento da prote-
• O processo de modernização e mercadorias estavam cada vez ção social, baseada em uma incor-
e expansão dos valores iluministas mais conectados, com a liberaliza- poração maciça de trabalhadores
e das instituições democráticas es- ção dos mercados e a interconexão jovens que sustentariam os depen-
teve limitado pela incapacidade de entre etapas produtivas, por meio do dentes e os idosos beneficiários do

308 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005
Proteção social em um mundo globalizado

sistema. Portanto, uma crise de fi- e conseqüente redução da sua atua- tando o conhecimento da população
nanciamento da proteção social tor- ção em todos os domínios da pro- sobre suas condições de saúde. No-
na-se inexorável. dução e da reprodução social. vos padrões de desigualdade foram
Por outro lado, os Estado nacio- Um duplo movimento de deslo- resultantes dos fluxos migratórios
nais, que foram o fiador dos direi- camento do poder se processou, des- dos países do Sul para os do Norte,
tos relativos à proteção social, são de o nível central estatal até os ní- drenando profissionais e cientistas
enfraquecidos em sua autoridade veis subnacionais, e, desde a dimen- altamente capacitados por um lado,
diante do surgimento e/ou fortaleci- são estatal para a societária. Novos e uma massa de mão-de-obra sem
mento dos poderes supranacionais arranjos entre Estado, mercado e qualificações por outro. Neste últi-
e do aumento do poder das empre- comunidade foram estabelecidos, mo caso, tais grupos de imigrantes
sas transnacionais e do capital fi- seja por meio de processos de pri- permanecem sem direitos à proteção
nanceiro, favorecidos pela elevada vatização e descentralização, seja social, mesmo em países onde exis-
mobilidade e volatilidade dos inves- pela rearticulação entre as organi- te o Welfare State.
timentos propiciados pela tecnolo- Essa mobilidade populacional
gia informacional, que permite o criou, por outro lado, enormes po-
imediato deslocamento de um país tencialidades de conexões reais ou
a outro. Os Estados nacionais pre- virtuais entre indivíduos e organi-
cisaram se adequar a uma conjun- UM DUPLO MOVIMENTO DE DESLOCAMENTO zações em pontos diferentes do pla-
tura de ajuste fiscal e redução de DO PODER SE PROCESSOU, DESDE O NÍVEL neta. Este novo tipo de coletivismo
seu aparato, aumentar sua capaci- difere, em muito, do coletivismo da
CENTRAL ESTATAL ATÉ OS NÍVEIS
dade de regulação do mercado, in- sociedade industrial, em que os in-
serir-se de forma estratégica no ce- SUBNACIONAIS, E, DESDE A DIMENSÃO ESTATAL divíduos pertenciam a grupos, clas-
nário político e econômico interna- ses e organizações. No momento
PARA A SOCIETÁRIA
cional. atual, cada um, sejam indivíduos ou
Neste cenário, deixa de existir a organizações, vinculam-se a nume-
polarização ideológica entre EUA e rosas redes das quais se sentem per-
URSS, permitindo a consolidação do tencendo enquanto estão ligados,
poder econômico imperial do primei- zações não governamentais, as em- podendo desligar-se a qualquer
ro. Assiste-se a uma reorganização presas e os governos. A estrutura momento. As identidades, portanto,
do cenário internacional em blocos hierárquica que caracterizou o Es- são muito mais complexas e volá-
regionais, mas, diferentemente da tado e suas políticas sociais vem teis, porém, são também muito mais
polarização da Guerra Fria, o que sendo substituída por novos arran- capazes de coletar informações e
está em jogo são opções para forta- jos reticulares, com a participação criar novas conexões.
lecer o poderio econômico e não de diferentes parceiros. Toda a lógica do pensamento li-
mais confrontações ideológicas. A globalização implicou em um beral assentou-se em um reforço do
Essa mudança na geografia do processo de circulação de capital, individualismo, que se bem rompe
poder vem embasada no predomí- informações, mercadorias e pesso- com a homogeneização implícita nas
nio da ideologia liberal que propug- as, aumentando a circulação de en- políticas e organizações coletivistas,
na pela redução do papel do Estado fermidades, mas também, aumen- o que poderia anunciar uma pers-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005 309

309
FLEURY, Sonia

pectiva libertadora, não chega a ser Trata-se, portanto, de uma dis- sociais, cujos aumentos são insufi-
emancipadora, pois termina por re- puta ideológica que se trava no cam- cientes para garantir proteção soci-
duzir-se a um individualismo nega- po da saúde sobre concepções da al universal de qualidade.
tivo, um hedonismo egóico. A bus- sociedade que queremos. A conjun- A convivência de políticas soci-
ca individual do prazer – o ideal do tura atual na América Latina mos- ais universalistas com sistemas fo-
sofrimento zero e da felicidade total tra um cenário de contradições e calizados de combate à pobreza não
–, elevados à condição de norma algumas tendências que afetam o tem sido capaz de incluir os excluí-
campo das políticas de proteção so-
social, tornam possíveis todos os dos na comunidade política daque-
cial.
tipos de experimentações do prazer, les que possuem direitos sociais.
É inegável que a região vive, pela
até mesmo a reinvenção do eu, sua A financeirização das políticas
primeira vez e de forma difundida
produção e seu consumo. O corpo sociais se deu por meio da explo-
em quase todos os países e por cer-
passa a ser absolutizado como ex- são dos seguros de aposentadorias
ca de um quarto de século, em regi-
pressão do eu, um corpo que não é e de saúde, eliminando possíveis
mes eleitorais competitivos que são
natural, mas uma criação do indi- laços de solidariedade entre aque-
a base institucional da democracia.
víduo por meio de ginásticas, tatu- les que participam dos sistemas de
agens e cirurgias plásticas. proteção social. A individualização
A fisiocultura, para além dos dos riscos ocorre nas duas pontas
benefícios da promoção à saúde in- das políticas sociais: seja para a
dividual, pode ser vista como ex-
A CONVIVÊNCIA DE POLÍTICAS SOCIAIS classe média que alcança a prote-
pressão desta perspectiva egocêntri- UNIVERSALISTAS COM SISTEMAS FOCALIZADOS ção por meio dos seguros privados,
ca; tende à perversão, pois a busca DE COMBATE À POBREZA NÃO TEM SIDO CAPAZ seja para os pobres que recebem
individual do prazer sem a interme- bolsas e outros benefícios assisten-
diação da normatividade social é
DE INCLUIR OS EXCLUÍDOS... ciais.
perversa, pois o outro é destituído A insegurança deixa de ser vista
da condição de sujeito e passa a ser como uma condição coletiva e pas-
objeto do meu prazer. Esta é a base sa a ser um risco individual. Da
da perversão: a relação objetal. A mesma forma, a proteção social
este fenômeno social denomino Sín- No entanto, persistem as desigual- passa a ser para os indivíduos e não
drome de Michael Jackson. dades injustas entre as nações e in- para coletivos e grupos sociais.
Pensar a saúde como ausência tranações, apresentando condições A perda da centralidade do tra-
de sofrimento e busca do prazer nos sociais e de saúde incompatíveis balho, acentuada em nossos países
distancia da perspectiva solidária e com o padrão nacional de acumu- pela escassez do trabalho formal,
emancipadora da saúde como valor lação de riquezas e domínio tecno- não foi capaz de alterar os vínculos
universal e como núcleo subversi- lógico. existentes entre benefícios sociais e
vo da estrutura social. Em outros A drenagem de recursos financei- contribuições, perpetuando assim a
termos, como projeto civilizatório ros no sentido Sul-Norte, por meio exclusão social.
que requer a radicalização da de- do pagamento dos serviços da dívi- A desmontagem do aparato esta-
mocracia por meio da ação coleti- da tem acarretado uma escassez de tal, das carreiras públicas e da inte-
va. recursos para a área das políticas ligência estatal ocorreu concomitan-

310 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005
Proteção social em um mundo globalizado

temente ao fortalecimento sem regu- uma lógica da ‘guetização’, na qual nacional e inclusão na esfera públi-
lação do mercado de serviços soci- ricos e pobres se fecham em guetos ca. A nossa questão social aparece
ais, quando os interesses privados intransponíveis, em uma cidade que como sendo a exclusão e seus efei-
predominam sobre os interesses nada guarda do ideal democrático tos sobre a sociabilidade deteriora-
públicos. de ser o espaço do ‘encontro das di- da.
As conseqüências deste proces- ferenças’, igualadas na condição A exclusão não pode ser confun-
so contraditório de democratização política da cidadania. Ao contrário, dida com um grau a mais na desi-
sem inclusão social tem sido o au- a cidade passa a ser a expressão da gualdade por tratar-se de fenômeno
mento da discrepância entre a de- incapacidade de coesionar socieda- de natureza distinta, que implica em
mocracia eleitoral e a democracia des tão profundamente injustas e transformar a diferença em uma
substantiva, entre os novos textos excludentes. A violência urbana norma social que sanciona o impe-
constitucionais e as políticas reais. aflora como o sintoma da desagre- dimento do outro partilhar da comu-
Governos eleitos democratica- gação social. O aumento da intole- nidade, de pertencer à mesma esfe-
mente que não cumprem suas pro- ra pública onde os cidadãos, igua-
messas de campanha e parlamentos lados politicamente, podem estabe-
que são incapazes de defender algo lecer trocas simbólicas.
mais que seus próprios interesses Este outro – favelado, mulher,
são os elementos causadores do de- homossexual, negro, idoso, índio,
sencanto com a política. Se, por um A NOSSA QUESTÃO SOCIAL APARECE COMO muçulmano, ou até mesmo o pobre
lado, assiste-se a uma tendência de – é visto como algo a ser elimina-
SENDO A EXCLUSÃO E SEUS EFEITOS SOBRE A
anomia social, caracterizada pela do, não para ser incorporado sequer
consciência comum da irrelevância SOCIABILIDADE DETERIORADA na condição de dominado.
da política, por outro, assistimos a Isto leva a uma fratura sociopo-
inumeráveis crises de governabili- lítica que se manifesta como convi-
dade, com o povo nas ruas, por sen- vência, em uma mesma sociedade,
tir a incapacidade dos seus interes- de um híbrido institucional, uma
ses serem representados pelos go- institucionalidade para os que es-
rância com a diferença, a visão do
vernantes. tão incluídos e outra para os exclu-
outro como potencial ameaça, a
Esta ocupação da rua como es- ídos. Basta ver como o Estado está
ausência de uma ética pública, a
paço público denota a volta do povo ausente dos territórios marginais,
visão do governo como corrompido
como categoria política na região e ou mesmo como a insidiosa diferen-
e incapaz de assegurar condições de
também a emergência de lideranças segurança, reforçam o individualis- ça se manifesta na diferença de aco-
populistas que se apresentam como mo e corrompem a dimensão cívica lhimento e qualidade dos serviços
representantes das massas inorgâ- da cidadania. públicos.
nicas, em detrimento da institucio- Em resumo, esta é a nossa ques- Uma democracia com exclusão
nalidade democrática recém con- tão social, ou seja, aquela que pode retira legitimidade da ordem políti-
quistada. ser o analisador da perda dos vín- ca, pois o poder político não é naci-
As grandes metrópoles da região culos sociais capazes de coesionar onal, já que não incorpora a popu-
são reorganizadas de acordo com a comunidade, gerando integração lação na comunidade nacional; não

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005 311

311
FLEURY, Sonia

é democrática, pois o exercício do segmentação e a desigualdade pois Em todos os três casos, houve
poder não se baseia em um princí- não permite mecanismos solidários; aumento da cobertura, embora os
pio de justiça e igualdade; não é re- • Um modelo público univer- três sistemas tenham sido incapa-
publicano, pois o Estado é patrimô- sal, estabelecido no Brasil na Cons- zes de eliminar as desigualdades,
nio das elites e está a seu serviço. tituição Federal de 1988, implanta- seja porque seu desenho já compor-
No âmbito das políticas sociais, do de forma descentralizada e parti- tava uma lógica diferencial, seja pela
a dualidade institucional se repro- cipativa, carecendo, no entanto, de incapacidade de construir uma éti-
duz na dicotomia entre políticas de recursos financeiros capazes de al- ca do cuidado e as condições hu-
integração (de caráter universal) e terar a lógica da oferta curativa e manas, gerenciais e materiais para
políticas de inclusão (dirigidas a altamente concentrada da rede de assegurar igualdade de acesso e
grupos focais). Neste último caso, serviços. Tal sistema convive com utilização de serviços de qualidade.
por não incorporar os benefícios um mercado de seguros de saúde Diante destas experiências de li-
sociais à condição dos direitos de para onde migrou a classe média; mitada eficácia para assegurar a
cidadania, introduz-se a contradição proteção social e a garantia do di-
entre a redução da desigualdade reito à saúde nos perguntamos
econômica por meio de um meca- quais são as tendências e potencia-
nismo que reafirma a diferença de lidades que se apresentam neste ce-
NO CAMPO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE,
status político, além de disciplinar nário de globalização.
o cotidiano dos assistidos. ASSISTIMOS A UM MOVIMENTO REFORMADOR Como procuramos mostrar, são
No campo das políticas de saú- IMPORTANTE NA REGIÃO, EM BUSCA DA complexos os efeitos dos processos
de, assistimos a um movimento re- atuais de reorganização das lógicas
SUPERAÇÃO DOS ELEVADOS NÍVEIS DE
formador importante na região, em produtiva e reprodutiva, gerando
busca da superação dos elevados EXCLUSÃO AO DIREITO À SAÚDE... ambivalências e contradições em
níveis de exclusão ao direito à saú- relação à inclusão social.
de, estratificação dos benefícios e Novas e renovadas dinâmicas de
instituições para os incluídos, irra- exclusão convivem com aquelas que
cionalidade e superposição institu- • Um modelo de seguro, es- já fazem parte da nossa história na-
cional e má qualidade da atenção. tabelecido na Colômbia com a Lei cional. Por outro lado, há uma ten-
São experimentados três mode- 100, de 1993, que se pretende plural são crescente entre o limitado invó-
los de reforma: por comportar instituições públicas lucro nacional da cidadania e as
• Um modelo de mercado, es- e privadas, competitivas com base potencialidades geradas pela circu-
tabelecido pela reforma no Chile em na demanda de serviços. Criou tam- lação de informações e o aumento
1980, o qual assume a dualidade bém um mecanismo solidário de in- das expectativas em relação à pro-
institucional como seu princípio de clusão progressiva dos pobres na teção social. As migrações questio-
estruturação: os que podem vão ao condição de assegurados, porém não nam o nacionalismo da cidadania;
mercado de seguros, e o Estado pro- foi capaz de universalizar ou reduzir os direitos humanos se impõem
tege os remanescentes no sistema as diferenças entre os dois tipos de como universais e desterritorializa-
público. Tal modelo aumentou a seguros. dos, os poderes nacionais se su-

312 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005
Proteção social em um mundo globalizado

bordinam a estratégias regionais. A ficar padrões normativos de domi- individual, para se colocar como
perda do referente nacional mostra nação. prática social transformadora, pois
a existência de uma sociedade cada Trata-se de repensar as políticas a autonomia é mediada social e ins-
vez mais policêntrica, descentrada sociais a partir da centralidade do titucionalmente, requerendo a acei-
e descentralizada. cidadão-usuário e não do predomi- tação e reconhecimento do outro (al-
Ainda que estes fenômenos pos- no da lógica da burocracia e das teridade) e das interdependências
sam ser vistos como ameaças à co- especializações profissionais. En- mútuas.
esão social, porque geram identida- fim, trata-se de pensar em condições A revolução dos excluídos nesta
des competitivas, também é certo de igualdade complexa e de cidada- perspectiva emancipadora tem sido
que fortalecem o poder local, seja nia diferenciada. uma revolução molecular, que per-
ele o poder público ou a sociedade A possibilidade de emancipação mite formular os dramas cotidianos
local, gerando novas condições de é cada vez mais decorrente da com- em uma linguagem pública dos di-
governança local, potencialmente preensão do lugar desta singulari- reitos. Ao contrário dos modelos de
mais favorável à inovação social. proteção social que tiveram como
Desta forma, existe a possibilidade ator central a classe trabalhadora,
de reconciliar a cidadania com a o novo desenho das políticas e mo-
comunidade, resgatando a noção de delos de proteção não é fruto de uma
cidadania ativa, por meio de proces- EXISTE A POSSIBILIDADE DE RECONCILIAR A ação coletiva organicamente direci-
sos de deliberação e co-gestão. onada. Ao contrário, enquanto todos
CIDADANIA COM A COMUNIDADE, RESGATANDO
A tensão entre o local, o nacio- falam dos pobres e excluídos como
nal e o global impõem a busca de A NOÇÃO DE CIDADANIA ATIVA, POR MEIO DE um lugar vazio de poder, estamos
uma nova territorialidade para a deixando de reconhecer o intenso
PROCESSOS DE DELIBERAÇÃO E CO-GESTÃO
cidadania, já que direitos distintos movimento molecular de adensa-
passam a ser reivindicados em ní- mento da esfera pública e da cida-
vel também diferenciado, como os dania que se processa de forma in-
direitos humanos e ambientais cada visível e subterrânea. Restaria pen-
vez mais globalizados, os direitos sar como as políticas públicas po-
sociais e políticos em âmbito nacio- dade no contexto social e, a partir dem favorecer estes processos mo-
nal e os de participação e delibera- daí, gerar condições para a recons- leculares, sem correr o risco de que-
ção restringidos ao nível local. trução de auto-imagens e hetero- rer discipliná-los ou cooptá-los.
Outra tensão presente é relativa imagens deterioradas pelas políticas As novas formas organização em
à igualdade implícita na condição universais normalizadoras. Lingua- forma de redes de políticas impõem
de cidadania e as reivindicações gens simbólicas que remetem à uni- desafios quanto a uma gestão com-
atuais de respeito às diferenças. As versalidade, como a arte e o traba- partilhada, mais democrática porque
diferenças são afirmadas não como lho corporal, se colocam como pos- mais capilar, diversa e plural. Bus-
incapacidades, mas como singula- sibilidade de construção de sujeitos car mobilizar recursos e coordenar
ridades que não podem ser desca- autônomos e emancipados. A auto- interdependências passa a ser o
racterizadas por meio de políticas nomia deixa de ser pensada em ter- grande desafio da gestão. No entan-
homogêneas, que terminam por rei- mos liberais, do cálculo utilitário to, não há como diluir o papel do

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005 313

313
FLEURY, Sonia

Estado nesta nova forma reticular MALTHUS, T.R. Ensaio sobre a po-
de sociabilidade e organização. Há pulação. São Paulo: Abril Cultura,
que ter em conta o papel do Estado 1983. (Coleção Os Economistas).
como mediador dos conflitos, espe-
cialmente os distributivos, o que MARSHALL, Theodor H. Cidadania,
requer fortalecer sua institucionali- Classe Social e Status. Rio de Janei-
dade e os princípios de transparên- ro: Zahar Editores, 1967.
cia, mérito e imparcialidade de sua
burocracia. MARX, Karl. O Capital. Rio de Ja-
A combinação de estruturas bu- neiro: Civilização Brasileira, 1980.
rocráticas com formas reticulares,
da responsabilização e regulação
com a co-gestão, a democracia re-
presentativa com a deliberativa, es-
tes são os novos desafios para cons-
trução de uma proteção social que
seja capaz de ampliar a esfera pú-
blica, por meio do reconhecimento,
participação e redistribuição. O fra-
casso em um destes elementos será
o fracasso da democracia entre nós.
As potencialidades, no entanto, são
tão grandes quanto os desafios que
estão colocados.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição, 1988. Dispõe


sobre a Constituição da Republica
Federativa do Brasil. DOU-I, Brasí-
lia-DF, 126(191-A):1-32, 5 out.1988.

CONGRESSO MUNDIAL DE SAÚDE


PÚBLICA, 11.; CONGRESSO BRASI-
LEIRO DE SAÚDE COLETIVA, 8.,
2006, Rio de Janeiro.

314 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005
Saúde, Desenvolvimento e Globalização
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

Saúde, Desenvolvimento e Globalização


Health, Development and Globalization.

Edmundo Gallo 1 RESUMO


Janice Dornelles de Castro2
Uma das principais questões da atualidade é a articulação entre saúde
Joseane Carvalho Costa 3
e desenvolvimento. Como alcançar o desenvolvimento soberano e susten-
Vivian Studart4
tável com crescimento e justiça social?. O objetivo desse artigo é, através
Sandra Willecke5
da revisão bibliográfica, identificar estudos que analisaram o setor en-
quanto pólo dinâmico de desenvolvimento, gerador de renda e capaz de
Recebido: Mar./2006
propiciar a integração regional e entre países, contribuindo para a revisão
Aprovado: Jun./2007
da visão da saúde enquanto uma atividade que apenas traz elevados cus-
tos para a sociedade. Abordando a discussão da saúde, desenvolvimento e
globalização buscando um novo sentido, e assim construindo uma nova
concepção de desenvolvimento que deve considerar a garantia das necessi-
1
Pesquisador Adjunto e Coordenador de
Programas e Projetos Estratégicos da Fio- dades sociais básicas.
cruz Brasília, Vice-presidente do Cebes
(1989/1990), Conselheiro Editorial do Cebes.
E-mail: gallo@fiocruz.br PALAVRAS –CHAVE: Saúde Global, Economia da Saúde, Desenvolvimento.
2
Doutora em saúde coletiva – Unicamp,
Pesquisadora visitante da Fiocruz, direto-
ria da Associação Brasileira de Economia
da Saúde. ABSTRACT
E-mail: janice@fiocruz.br
One of the main contemporary issues is regarding the relationship be-
3
PhD em Ciências – Professora pesquisa-
dora da Universidade Federal do Pará –
tween health and development. How can sovereign and sustainable deve-
Assessora da Coordenação de Programas lopment be achieved with growth and social justice? This article aims to
e Projetos Estratégicos da Fundação
Oswaldo Cruz/Brasília. identify through a bibliographical review studies which examine the health
E-mail: joseane@fiocruz.br sector as a dynamic center for development and income, capable of gene-
4
Gerente de Projeto, Assessora Técnica da rating regional and international integration, contributing to revise the
Fiocruz, Especialista em Saúde Pública –
ENSP/Fiocruz, Mestranda em Saúde Públi- vision of health as an activity that only brings about high costs for the
ca – ENSP/Fiocruz. society. The discussion of health, development and globalization is appro-
E-mail: vivian@fiocruz.br
ached in order to establish a new meaning and therefore build a new con-
5
Analista em C&TSP da Fiocruz, Mestre cept of development, which must consider ensuring basic social needs.
em Políticas e Gestão Públicas – UFRN e
Analista em Relações Internacionais
E-mail: willecke@fiocruz.br KEYWORDS: Global Health, Health Economics, Development.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 315
GALLO, Edmundo et al

APRESENTAÇÃO segundo destaca a saúde na totali- Ao longo dos tempos, a teoria


dade de seu complexo produtivo, econômica tem evoluído na sua con-
Este artigo pretende identifi- valorizando-a como fator de desen- cepção de desenvolvimento. O libe-
car como os conceitos de desenvol- volvimento pelo elevado grau de ralismo de Adam Smith afirma que
vimento e globalização foram abor- inovação, lucratividade e emprega- são os interesses individuais reali-
dados pela política de saúde, espe- bilidade do setor, com potencial eco- zados livremente no mercado, har-
cialmente em sua relação com as nômico e tecnológico para incremen- monizados pela “mão invisível”,
políticas econômica, externa e de tar a integração regional. (GADE- que levariam a sociedade ao está-
desenvolvimento regional, propon- LHA, 2003, 2006; GALLO et al, 2004, gio de bem–estar. A riqueza das
do uma abordagem teórico-concei- 2005; BRASIL, 2004; CASTRO,2004; nações depende do trabalho produ-
tual que possibilite analisar e des- FERLA,2004). tivo, capaz de produzir excedente de
tacar o seu potencial de contribui- No Brasil, o desenvolvimento as- valor sobre o custo de reprodução
ção para um projeto global contra- sumiu principalmente a característi- da mão de obra. A divisão do tra-
hegemônico em uma perspectiva balho é a força dinâmica deste pro-
multipolar e solidária. Para alcan- cesso e depende da extensão dos
çar este objetivo, o texto foi organi- mercados interno e externo
NO BRASIL, O DESENVOLVIMENTO ASSUMIU
zado iniciando pela apresentação do Para Marx, o desenvolvimento
pensamento de alguns autores so- PRINCIPALMENTE A CARACTERÍSTICA DE capitalista ocorre por meio de ciclos
bre o desenvolvimento econômico e CRESCIMENTO ECONÔMICO, DETERMINANDO e crises periódicas. O progresso téc-
as possíveis articulações deste con- nico libera trabalhadores e aumen-
ELEVADOS ÍNDICES DE URBANIZAÇÃO E
ceito com a questão da saúde, se- ta a taxa de exploração, elevando a
guido de um breve panorama da INDUSTRIALIZAÇÃO, MAS TAMBÉM CRIANDO taxa de lucro. Mas reduz a deman-
relação entre desenvolvimento e ENORMES DESIGUALDADES ENTRE AS REGIÕES da por trabalho e, em longo prazo,
saúde no Brasil, continuando na reduz a taxa de lucro, pois aumen-
discussão das relações entre Saúde
E EM RELAÇÃO À DISTRIBUIÇÃO DA RENDA ta a parcela de capital constante na
e Globalização e, por fim, apresen- composição orgânica do capital, o
tando o contexto atual do setor saú- que diminui a capacidade de extra-
de no Brasil e seus desafios. ca de crescimento econômico, deter- ir mais-valia, traduzindo-se em cri-
minando elevados índices de urba- ses de subconsumo e crises de des-

nização e industrialização, mas proporção entre consumo e produ-


SAÚDE E também criando enormes desigual-
ção. (SOUZA, 2005; HUNT,1981).
DESENVOLVIMENTO Keynes centra a sua análise na
dades entre as regiões e em relação
abordagem macroeconômica do ple-
à distribuição da renda.
Existem alguns argumentos que no emprego, nos fatores de cresci-
O impacto na saúde se refletiu
defendem a importância do setor mento dos investimentos e seus
saúde para o desenvolvimento: o em investimentos maciços em infra- impactos sobre a renda e emprego.
primeiro salienta sua importância estrutura assistencial (obras e equi- Focaliza na demanda efetiva, reali-
para o desenvolvimento humano pamentos), marcadamente desigual zando uma análise estática e de
com eqüidade e justiça social, e o entre e inter-regiões. curto prazo. As pessoas não gastam

316 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005
Saúde, Desenvolvimento e Globalização

toda sua renda em consumo e, ne- da da periferia (BIELSCHOWSKY, 2000, produção e emprego. É importante
cessariamente, não investem o que p. 22). o papel do empresário inovador e
não é consumido, parte da renda do crédito. Distingue crescimento de
“vaza”, sai da esfera da economia Portanto, os processos de cres- desenvolvimento. O crescimento
(poupança, impostos, importação), cimento, emprego e distribuição de decorre de combinações antigas dos
impedindo o pleno emprego. Com a renda na periferia são distintos da- meios de produção, trabalho e re-
crise de 1930, ganha força esta abor- queles dos países centrais, exigin- cursos naturais, é um processo de
dagem, que coloca ênfase no inves- do a industrialização para superar adaptação. O desenvolvimento é
timento como motor do crescimen- o subdesenvolvimento e a pobreza. produzido pelas variáveis inova-
to. Mediante seu efeito multiplica- Mas as economias periféricas têm ções e instituições; é um fenômeno
dor, o governo influencia o nível de estruturas pouco diversificadas e novo, desloca o ponto de equilíbrio
emprego pelo uso de política fiscal tecnologicamente heterogêneas, le- para um novo patamar, baseia-se
(gastos públicos, tributação, em- vando à tese da tendência à deterio- na função empresarial, inovações
préstimos), política monetária tecnológicas e crédito. Mas existem
(emissão ou controle de moeda, fi- falhas de mercado, como retornos
xação da taxa de juros) e política crescentes à escala e às externali-
cambial. Assim, o governo age so- dades, que levam a falhas de de-
bre as expectativas dos empresári- OS PROCESSOS DE CRESCIMENTO, EMPREGO E manda efetiva. Onde há concorrên-
os influenciando o nível de investi- DISTRIBUIÇÃO DE RENDA NA PERIFERIA SÃO cia imperfeita, o governo procura
mento. (SOUZA, 2005; HUNT,1981). intervir através de impostos, ofer-
DISTINTOS DAQUELES DOS PAÍSES CENTRAIS,
Há também o paradigma desen- tando bens públicos, regulando
volvimentista latino-americano, da EXIGINDO A INDUSTRIALIZAÇÃO PARA SUPERAR monopólios, nacionalizando indús-
CEPAL – Comissão Econômica para O SUBDESENVOLVIMENTO E A POBREZA trias, criando leis antitruste. Mas as
Americana Latina e Caribe, cujo falhas de mercado são substituídas
principal idealizador foi Raul Pre- por falhas de governo, o bem-estar
bish. Para os cepalinos existe um reduz-se em vez de aumentar, os
padrão específico de inserção inter- recursos públicos são mal gastos,
nacional, de oposição entre centro ração dos termos de trocas entre há desperdício e redução de eficiên-
e periferia, sendo a última, produ- centro e periferia. cia global. O empresário, por sua
tora de Schumpeter, como os clássicos, vez, está sempre tentando romper o
enfatiza o lado da oferta na expli- equilíbrio, ao introduzir inovação
(...) bens e serviços com demanda cação do crescimento econômico. geradora de lucro puro e, portanto,
internacional pouco dinâmica, e impor- Identifica, nos novos produtos e pro- de imperfeições de mercado. Chama-
tadora de bens e serviços com deman- cessos, o motor do crescimento, pois se a este processo de destruição cri-
da doméstica em rápida expansão, e sempre haverá demanda para estes adora (SOUZA, 2005; HUNT,1981,
absorvedora de padrões de consumo e bens. Assim, investimentos em má- CASTRO,2002).
tecnologias adequadas ao centro, mas quinas e capacitação tecnológica Sen (2000), por sua vez, intro-
freqüentemente inadequadas à dispo- dinamizam a economia ao gerar duz a idéia de desenvolvimento
nibilidade de recursos e ao nível de ren- efeitos de encadeamento sobre a como liberdade, acredita que o cres-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 317
GALLO, Edmundo et al

cimento do Produto Nacional Bruto rantia das necessidades sociais bá- produção, segundo Offe (1984),
(PNB) ou da renda per capita, pode sicas, mais vinculadas à garantia pressupõe a existência de indivídu-
ser um meio importante de expan- do bem-estar social, articulado ao os “livres”, despojados dos meios
dir as liberdades dos cidadãos, mas crescimento econômico sustentável de produção e dispostos a vender a
depende também de condições soci- com eqüidade e justiça social. sua força de trabalho no mercado.
ais e econômicas, como serviços de Porém este processo não é espontâ-
saúde e educação, e dos direitos neo. É importante a ação do Esta-
civis, como a liberdade de partici- DESENVOLVIMENTO do, no sentido de organizar o con-
par. Afirma que a industrialização, E SAÚDE NO BRASIL texto social, para o desenvolvimen-
a modernização ou o progresso tec- to e reprodução da acumulação ca-
nológico podem contribuir para o A formação de um sistema de pitalista (O’DONNEL, 1980).
desenvolvimento, mas que este atenção à saúde foi concomitante à É neste contexto que o Estado
transformação da forma de organi- brasileiro implementou as primei-
(...) requer que se removam as prin- ras políticas sociais (GALLO, 1993).
cipais fontes de privação de liberdade: As principais políticas de saúde fo-
ram o saneamento básico dos por-
pobreza, tirania, carência de oportu-
tos e dos núcleos urbanos e as cam-
nidades econômicas e destituição soci-
panhas de vacinação de cunho im-
al sistemática, negligência dos servi- A FORMAÇÃO DE UM SISTEMA
positivo. As políticas previdenciá-
ços públicos e intolerância ou interfe- DE ATENÇÃO À SAÚDE FOI CONCOMITANTE À rias pioneiras foram a garantia de
rência excessiva dos Estados repressi- benefícios e auxílios viabilizados
TRANSFORMAÇÃO DA FORMA
vos. (SEN, 2000, p.18). pelo Estado e por algumas empre-
DE ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO
sas privadas. O desenvolvimento
A partir destas abordagens, pode- destas políticas possibilitou a imi-
se assumir que o conceito de desen- gração, a consolidação dos núcle-
volvimento, aplicado à saúde, deve os urbanos e a criação do mercado
necessariamente levar em conside- de trabalho, favorecendo a integra-
ração a dimensão da justiça social, zação da produção, a qual corres- ção da economia brasileira no mer-
do acesso à educação, à saúde, à pondeu à primeira etapa de desen- cado mundial e viabilizando a acu-
água, ao saneamento e à terra, mas volvimento capitalista. Ou seja, mulação e reprodução do capital
também deve considerar o seu po- quando a economia, escravocrata (OFFE,1984).
tencial econômico, a inovação e a produtora de algodão e açúcar para Com o golpe militar de 1964,
intervenção do governo conduzindo exportação, deu lugar à lavoura modificou-se a relação entre o Es-
o processo de desenvolvimento, que cafeeira exportadora com base na tado e as classes sociais, constitu-
terá como conseqüência a geração mão-de-obra assalariada, tornou-se indo-se novas alianças entre a bu-
de consumo, emprego, lucro e dis- necessário organizar o mercado de rocracia civil e militar, o capital
tribuição de renda.. Assim, emerge trabalho e criar condições para via- nacional e o capital estrangeiro. O
uma nova concepção de desenvol- bilizar a acumulação cafeeira. A Estado brasileiro deste período ti-
vimento que deve considerar a ga- forma capitalista de organizar a nha como característica a autono-

318 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005
Saúde, Desenvolvimento e Globalização

mia da sua dimensão política em so aos serviços de saúde deve ser ga os setores envolvidos com a pres-
relação à dimensão econômica e igualitário, universal e integral. tação de serviços de saúde. Segun-
social (MARTINS, 1985), em função O Estado brasileiro, portanto, do o autor, é este último grupo que
da inexistência de mecanismos de atuou e continua atuando como confere organicidade ao complexo,
representação democrática que limi- principal financiador das políticas sendo seu motriz; ou seja, a sua
tasse sua ação, tornando-se cada de saúde no país desde a sua for- contração ou expansão impacta di-
vez mais autônomo, criando inte- mação. Apesar disso, não logrou retamente nos outros setores. Gallo
resses burocráticos próprios e esta- induzir o desenvolvimento susten- et al (2005) ampliam este conceito
belecendo um novo padrão neo-cor- tável e continuado, dinamizando a para complexo produtivo, acrescen-
porativo onde eram privilegiados os economia, a partir dos investimen- tando as cadeias produtivas de ci-
grupos dominantes, e a maioria da tos realizados nesta área. Isso ocor- ência e tecnologia e de formação de
sociedade era excluída da partici- re, principalmente, porque não se força de trabalho como outras di-
pação. considerou a dinâmica do comple- mensões do CPS.
Nesse contexto, foi novamente Estas abordagens acreditam no
reformulado o sistema de saúde: a potencial de dinamismo e inovação
gerência financeira foi centralizada da área social para o desenvolvi-
no Estado; foram excluídos da par- O ESTADO BRASILEIRO (...) ATUOU E mento. É necessário, no entanto, que
ticipação os trabalhadores e patrões; o Estado articule os diversos seto-
aumentou-se e unificou-se a contri-
CONTINUA ATUANDO COMO PRINCIPAL res do complexo produtivo com as
buição, crescendo a disponibilida- FINANCIADOR DAS POLÍTICAS DE SAÚDE NO políticas sociais, situação que não
de de recursos. A política do Esta- ocorre no Brasil (BRASIL, 2004).
PAÍS DESDE A SUA FORMAÇÃO. APESAR DISSO,
do de exclusão da participação dos Aqui assistimos a “...desarticulação
trabalhadores e patrões e de defesa NÃO LOGROU INDUZIR O DESENVOLVIMENTO entre a política de saúde e uma po-
de interesses burocráticos próprios SUSTENTÁVEL... lítica para o desenvolvimento das
(MARTINS, 1984) permitiu o desen- indústrias do setor” (GADELHA,
volvimento de um modelo de assis- 2003;), ou seja, o SUS é uma políti-
tência em que se privilegiavam os ca social bem- sucedida e que de-
interesses das classes dominantes, xo produtivo da saúde (CPS) na for- termina, contraditoriamente, mai-
ao mesmo tempo em que se ampli- mulação das políticas de investi- or dependência das importações,
ava o poder da burocracia estatal. mento setorial. pois não foram criadas as condições
Novas transformações importan- Conforme Gadelha (2003), o com- para a produção interna dos insu-
tes ocorreram a partir de 1988 com plexo industrial da saúde é compos- mos necessários para o seu funcio-
a aprovação da Constituição Fede- to por três grandes grupos de ativi- namento, refletindo a incapacidade
ral e da Lei Orgânica da Saúde em dades: do primeiro, fazem parte as das políticas de saúde de induzirem
1990 (Lei 8.080 de 19 de setembro indústrias de base química e bio- o desenvolvimento (GALLO & COE-
1990). A nova Constituição estabe- tecnológica; do segundo grupo, as LHO, 2005).
lece em seu art.196 que “A saúde é atividades de base física, mecâni- É nesta conjuntura que se colo-
direito de todos e dever do Esta- ca, eletrônica e de materiais; e, por ca uma grande questão, também
do...” (BRASIL, 1988) e que o aces- fim, há um terceiro grupo que agre- apontada na agenda política mun-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 319
GALLO, Edmundo et al

dial: como alcançar o desenvolvi- hegemônica internacional, como, tanto política (saúde e seguridade),
mento soberano e sustentável com por exemplo, na discussão sobre a quanto técnico-operacional (Sistema
crescimento e justiça social? Este é função do Estado no desenvolvimen- Único de Saúde).
um dos principais desafios coloca- to econômico e social e sobre a ga- Há, portanto, um background
dos para as sociedades na atuali- rantia dos direitos sociais. que habilita a saúde a ser uma das
dade, e para responder a ele, torna- A área da saúde no Brasil – mes- áreas de ponta para fortalecer a pro-
se necessário articular as políticas mo em uma conjuntura política e posta da política externa, qual seja,
de saúde e desenvolvimento, consi- econômica adversa, interna e exter- a de colocar o Brasil como um in-
derando o contexto da globalização. namente, nos anos 80 e 90 – conse- terlocutor importante no cenário
guiu realizar uma reforma no se- internacional, tendo como perspec-
tor, incluindo, na Constituição Fe- tiva a solidariedade, a diversidade
SAÚDE E GLOBALIZAÇÃO: deral de 1988, a criação da Seguri- e a justiça social, promovendo uma
A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA dade Social, em uma perspectiva nova relação entre Estado e Socie-
dade.
A política externa do Brasil pas-
sou, paulatinamente, a tratar a saú-
de como uma questão relevante CONTEXTO ATUAL DO SETOR
(GALLO et. al., 2005; GOVERNO FE- A ÁREA DA SAÚDE NO BRASIL – MESMO EM SAÚDE NO BRASIL
DERAL, 2005; MERCOSUL, SGT-11,
UMA CONJUNTURA POLÍTICA E ECONÔMICA
2003, 2004;19 e 2005; MERCOSUL, O setor saúde é dotado de espe-
GMC, 2005), demandando que a for- ADVERSA, INTERNA E EXTERNAMENTE, NOS cificidades decorrentes de sua apro-
mulação e implementação da polí- ANOS 80 E 90 – CONSEGUIU REALIZAR ximação com os problemas reais ou
tica de saúde se alinhem às suas potenciais da população, que con-
UMA REFORMA NO SETOR ...
diretrizes, de modo a possibilitar a dicionam a identificação de temas
construção da segunda mão dessa prioritários para pesquisa científi-
via entre política externa e política ca, desenvolvimento tecnológico e
de saúde no Brasil (TREVAS, 2005; institucional ,e a conseqüente neces-
GALLO & COSTA, op. cit.). contrária à lógica da maioria dos sidade de sistematização e incorpo-
Atualmente as prioridades da países. Além de avançar sob o pon- ração dos novos conhecimentos e
política externa são duas: (a) a in- to de vista ideológico e doutriná- tecnologias ao Sistema Único de
tegração da América do Sul, tendo rio, também foi possível transfor- Saúde (SUS).
como base o Mercosul; (b) o aumen- mar esta perspectiva em um siste- Este setor vem se deparando
to das exportações e da inserção ma operacional com um conjunto com uma série de desafios, impos-
política e econômica do Brasil no de experiências positivas importan- tos principalmente pelas modifica-
cenário internacional, tendo por tes: o Sistema Único de Saúde - SUS. ções nas condições de vida da po-
base a integração. Algumas ques- Esta característica reforça o argu- pulação. A despeito das importan-
tões colocadas pela política exter- mento de que a saúde seja um dos tes conquistas na área da saúde re-
na brasileira muitas vezes não es- vetores importantes da política ex- gistradas nas últimas décadas, ain-
tão em consonância com a agenda terna, portadora de uma Agenda da persistem iniqüidades e novas

320 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005
Saúde, Desenvolvimento e Globalização

dificuldades surgem no esforço de se amplia em virtude da distribui- protocolos clínicos e gerenciais e


prover o acesso universal, equâni- ção diferenciada dos riscos e agra- ferramentas de tecnologia da infor-
me e integral às ações e aos servi- vos nos diversos grupos da popu- mação, entre outras. Destaca-se,
ços de promoção, proteção e recu- laçãoe e desigualdade que se expres- também, a integralidade como um
peração da saúde, princípios que sa nas diferenças observadas nas dos principais aspectos da política
norteiam o funcionamento do SUS taxas e coeficientes das regiões do de humanização da atenção à saú-
(BLOOM, 2005; DRACHLER, 2003; país, ou entre regiões do mesmo de, entendida tanto do ponto de vis-
PELEGRINI, 2005). estado. Por outro lado, a ampliação ta da articulação das ações de pro-
O quadro sanitário prevalente do do acesso às medidas de controle e moção, prevenção e recuperação,
país é diversificado e reflete a pre- aos serviços de saúde, associada ao quanto do ponto de vista da conti-
sença de diferentes perfis epidemi- desenvolvimento de novas tecnolo- nuidade do cuidado.
ológicos: coexistem enfermidades gias, promoveu o aumento na ex- Este contexto tem demandado
infecciosas e parasitárias, caracte- pectativa de vida e, por conseguin- insumos estratégicos para o siste-
rísticas de países em desenvolvimen- ma, que são oriundos dos distintos
to, e as doenças crônicas, como as segmentos do complexo produtivo
cardiovasculares e neoplasias, típi- da saúde. Essa demanda, entretan-
cas dos países desenvolvidos. Ain- to, não tem sido utilizada como
da nesse contexto, interagem aspec- ...O APROFUNDAMENTO DA DESCENTRALIZAÇÃO política de indução ao desenvolvi-
tos associados à migração para os DO SUS GEROU DEMANDAS POR mento e à integração regional. In-
grandes centros urbanos, cujo con- vestimentos crescentes em unidades
COMPETÊNCIAS DE GESTÃO NOVAS E
tingente populacional passa a viver de saúde e equipamentos, por exem-
nas periferias, sem infra-estrutura DIFERENCIADAS DAS DISTINTAS plo, têm sido realizados sem que
necessária de saneamento e habita- ESFERAS DE GOVERNO haja uma mobilização articulada do
ção. CPS, redundando em ineficiência e
Observa-se a importância cres- desperdício de recursos financeiros
cente das chamadas causas exter- e, principalmente, em ineficácia so-
nas, expressão da violência social cial e em baixo impacto no desen-
em suas mais diversas formas, e te, o envelhecimento da população, volvimento e integração (BRASIL,
das doenças crônicas não-transmis- demandando ações e serviços espe- 2004, GALLO & COELHO, 2005).
síveis, ao lado da re-emergência e cíficos (COHEN, 2005; PRESTON et. O enfrentamento desses proble-
permanência de doenças infecciosas al, 2001; FERLA, 2004). mas, visando à qualificação da
e parasitárias – se não como causa Além disso, o aprofundamento atenção e da gestão, exige estreita
de óbito, como morbidade detecta- da descentralização do SUS gerou sintonia entre as políticas externa,
da pelo sistema de vigilância epi- demandas por competências de ges- de saúde, de ciência e tecnologia,
demiológica e pelos registros de tão novas e diferenciadas das dis- de desenvolvimento e de integração
consulta ambulatorial e hospitalar tintas esferas de governo, tais como: nacional, ampliando o foco que atu-
– configurando, assim, um “mosai- regulação de serviços, gestão estra- almente está centralizado na assis-
co epidemiológico” de grande com- tégica, monitoramento e avaliação, tência, a fim de abranger o CPS
plexidade. Complexidade esta que sistema de custos, implantação de como um todo.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 321
GALLO, Edmundo et al

As recentes políticas de investi- A globalização traz para a agen- potencial contribuição do setor para
mento setorial têm procurado ado- da dois grandes desafios: o desen- o desenvolvimento. Um segundo
tar o conceito de desenvolvimento volvimento soberano e sustentável, argumento é que a saúde, pensada
aqui discutido, buscando, na defi- que pressupõe crescimento com jus- no contexto do Complexo Produti-
nição de suas prioridades, articu- tiça social e manejo adequado do vo, pode vir a ser um dos instru-
lar as distintas dimensões do CPS, ambiente; e a construção do poder mentos fundamentais de desenvol-
assim como atender às necessida- global multipolar, em contraposição vimento, assim como um dos prin-
des de enfrentamento de agravos à hegemonia unipolar hoje preva- cipais motores da integração regio-
prioritários e das desigualdades in- lente.
nal em função de sua importância
tra e inter-regionais (BRASIL 2003, Quanto ao primeiro desafio, o do
econômica e tecnológica.
2004 e 2005; GALLO & COELHO, desenvolvimento soberano e susten-
Em outras palavras, independen-
2005, DRACHLER ,2003, PELEGRI- tável, vale rever dois argumentos
temente de ser positivo ter uma po-
NI, 2005). Entretanto, ainda não há relativos à importância do setor
lítica de saúde adequada, seu im-
uma agenda estratégica claramen-
pacto também é estruturante tanto
te definida que sirva de suporte à
na perspectiva econômica, quanto
tomada de decisões.
na tecnológica. É pouco provável

... INDEPENDENTEMENTE DE SER POSITIVO que um país alcance o desenvolvi-


mento científico-tecnológico e, tam-
DESAFIOS PARA UMA AGENDA TER UMA POLÍTICA DE SAÚDE ADEQUADA, SEU
DE SAÚDE E DESENVOLVIMENTO NO bém, que o processo de integração

CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO IMPACTO TAMBÉM É ESTRUTURANT regional e o desenvolvimento do

E TANTO NA PERSPECTIVA ECONÔMICA, Mercosul ou da América do Sul se-


A definição de variáveis relevan- jam alcançadosa, sem que se con-
QUANTO NA TECNOLÓGICA
tes e seu comportamento provável, sidere a importância que o segmen-
em longo prazo, é condição sine qua to tem, econômica e produtivamen-
non para a elaboração dos cenári- te, e o seu impacto no desenvolvi-
os que contextualizarão as diferen- mento.
tes alternativas de desenvolvimen- O segundo desafio - um projeto
saúde já apontados: em primeiro
to nacional e de integração regio- de integração regional (Mercosul,
lugar, o argumento tradicional que
nal, e também para a adoção de destaca a saúde como um elemento América do Sul e Eixo Sul-Sul) –
medidas governamentais, sociais e central do desenvolvimento huma- articula-se ao primeiro através das
empreendedoras em Saúde. Nesse no, da eqüidade e da justiça social. categorias desenvolvimento e mul-
sentido, busca-se situar esta discus- Este sempre foi um dos pilares do tipolaridade. Com efeito, o gap en-
são no contexto da globalização, discurso do movimento sanitário tre quaisquer indicadores de quali-
tendo como referencial dois eixos: para justificar a importância da dade de vida de países desenvolvi-
(a) o projeto de desenvolvimento política de saúde: é um direito hu- dos, em desenvolvimento e pouco
nacional e (b) o projeto de integra- mano e é justo. Embora esse argu- desenvolvidos, vis-à-vis a eficácia
ção regional (Mercosul, América do mento seja correto, deve-se lembrar da tecnologia disponível (combate
Sul e Eixo Sul-Sul). que é insuficiente para mostrar a a doenças, fome, escassez de água,

322 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005
Saúde, Desenvolvimento e Globalização

entre outras) tem demonstrado a ne- CONCLUSÕES dutivos”, portanto sujeitos ao ajus-
cessidade de atitudes globais mais te fiscal e às restrições orçamentá-
efetivas para redução de iniqüida- Saúde e Economia têm estabe- rio-financeiras daí decorrentes. Nes-
des (SACHS, 2005; United Nations lecido um diálogo inacabado no te contexto, a saúde é tratada numa
Millennium Project, 2000 e 2005). que refere à questão do desenvol- dimensão estrita.
Pode-se afirmar que o Brasil está vimento, incluindo-se o papel do Es- No entanto, é possível tratar esta
inserido em um contexto de oportu- tado e também sua articulação ao questão de forma mais abrangente
processo de integração regional da e em toda sua complexidade, con-
nidades devido a sua posição geo-
América do Sul. A tradição sanita- siderando os diversos setores da
política, sua base tecnológica e pro-
rista sempre abordou a questão do economia e políticas institucionais
dutiva, sua biodiversidade, geodi-
desenvolvimento a partir do olhar envolvidos. Assim poderão ser ela-
versidade e, no que se refere à saú-
dos determinantes sociais da saú- boradas políticas intersetoriais ar-
de, sua estrutura jurídico-organiza-
de e sua relação com o capitalismo ticuladas e direcionadas às várias
cional, sua experiência operacional
dimensões da produção da saúde
e sua articulação tecnopolítica.
que constituem o Complexo Produ-
Desta forma, considerando que
tivo da Saúde. Nessa perspectiva, a
a saúde se caracteriza enquanto CONSIDERANDO QUE A SAÚDE SE CARACTERIZA tomada de decisões deverá conside-
produção histórica – seja como con-
ENQUANTO PRODUÇÃO HISTÓRICA (...) O rar a dinâmica da estrutura técni-
ceituação (discurso teórico), seja co-produtiva, pensando conjunta-
como possibilidade concreta de
PRIMEIRO GRANDE DESAFIO EM RELAÇÃO À
mente nas reformas institucionais
apropriação e de transformação em INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA DO SUL É do setor; em mecanismos de finan-
uma política (discurso prático) ciamento público e privado da aten-
ENTENDER QUAL O SIGNIFICADO DA SAÚDE
(GALLO, 1995) – o primeiro grande ção à saúde; no mercado de traba-
PARA SEUS POVOS ... lho da área; na pesquisa e desen-
desafio em relação à integração da
América do Sul é entender qual o volvimento tecnológico; no desen-

significado da saúde para seus po- volvimento industrial farmacêutico,


farmoquímico, biotecnológico, imu-
vos - o que é mais complexo que o
enquanto forma de dominação; já a nobiológico e de equipamentos mé-
olhar particular de cada país - e qual
teoria econômica liberal encarou o dico-hospitalares, em um contexto
a sua importância no âmbito da glo-
setor saúde como espaço de merca- que avalie as conjunturas nacional
balização. Ou seja, faz-se necessá-
do de baixa regulação e elevados e internacional.
rio entender como os estados naci-
gastos, considerando a área sem Geopoliticamente, a perspectiva
onais tematizam a saúde, e que
possibilidades de inovação e de ge- de utilização da saúde como um
ações tencionam adotar dentro des- dos instrumentos de integração sul-
rar desenvolvimento. O reflexo para
te contexto, levando em considera- a política de saúde é o impacto ne- americana foi adotada pelo gover-
ção uma determinada conjuntura gativo na sustentabilidade dos in- no brasileiro. Ações intersetoriais do
global. Esse seria o primeiro passo vestimentos e a inclusão dos recur- Ministério da Saúde, Ministério das
para a consolidação de uma agen- sos da área no conjunto dos inves- Relações Exteriores, Subchefia de
da estratégica comum. timentos considerados “não- pro- Assuntos Federativos e Ministério da

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 323
GALLO, Edmundo et al

Integração foram desenvolvidas, CPS da América do Sul são possibi- CASTRO, J. D; FERLA, A.; PELEGRI-
destacando-se a implantação do Sis- lidades de caminhar para uma in- NI, M. L. M. Os sistemas de saúde
tema Integrado de Saúde das Fron- tegração efetiva dos países da re- da Argentina, do Brasil, do Para-
teiras (SIS-Fronteiras) e a inflexão gião, construindo as bases para um guai e do Uruguai: organização de
na Agenda do Sub-Grupo de Traba- Complexo Produtivo Regional vol- estratégias de integração. Assem-
lho da Saúde do Mercosul (SGT-11), tado para o desenvolvimento na bléia Legislativa do Estado do Rio
que passou a investir em uma pers- perspectiva aqui apresentada. Grande do Sul, Comissão do Mer-
pectiva de integração dos Comple- cosul e Assuntos Internacionais.
xos Produtivos de Saúde dos paí- 2004. Disponível em: <http://
ses. Estas ações procuraram rom- REFERÊNCIAS w w w. a l . r s . g o v. b r / D o w n l o a d /
per com limitações burocráticas ao Comissao_Mercosul/arquivos/
acesso aos cuidados de saúde, as- BÊRNI, D.A. (org) Técnicas de pes- UNISINOS.pdf. >
sim como utilizar o setor como ele- quisa em economia. São Paulo: Acesso em: 12.06.2006
mento motor de desenvolvimento. Saraiva, 2002.
O principal desafio é o de coor- CASTRO, J. D. Regulação em saúde:
denar e integrar a ação nacional e BIELSCHOWSKY, R. (Org). Cinqüen- análise de conceitos fundamentais.
internacional dos diversos países e ta Anos de Pensamento na CEPAL. Sociologias, Porto Alegre, v.4, n. 7,
áreas governamentais, da socieda- Rio de Janeiro; São Paulo: Record, p. 122-135, jan./jun. 2002
de civil e empreendedores em torno 2000.
de uma política que aprofunde a COHEN, J. E. – A Maturidade da
integração sul-americana e a rela- BLOOM, B. R.. Saúde Pública em População. Scientific American Bra-
ção sul-sul, na perspectiva de for- Transição. Scientific American Bra- sil, São Paulo, v.4, n.41, out. 2005.
mento soberano e sustentável. sil, São Paulo, v.4, n. 41, out. 2005.
Ações como a implantação do BRASIL. Governo Federal. Câmara DRACHLER M. L. et al. Proposta de
SIS-Fronteiras em uma perspectiva Interministerial de Integração Naci- metodologia para selecionar indica-
de integração real entre países; o onal e Planejamento Regional. Pla- dores de desigualdade em saúde
SGT-11 do Mercosul voltado para no de Ação do GT de Programas visando definir prioridades de polí-
uma agenda de integração concre- Regionais. Brasília. 2005. ticas públicas no Brasil. Ciênc. saú-
ta, especialmente na área de servi- de coletiva, Rio de Janeiro, v.8 n.2
ços; a coordenação das ações junto BRASIL. Ministério da Saúde. Dire- p.461-469. 2003.
a organismos internacionais; polí- toria de investimentos e projetos
ticas de investimento integradas às estratégicos - Diretrizes de Investi- FERLA, A.; CASTRO, J. D.; PELEGRI-
políticas industrial e externa; a in- mentos em Saúde. Brasília: Minis- NI, M. L. M. Racionalização dos
tensificação de parcerias com ór- tério da Saúde. 2004. recursos e organização de estraté-
gãos, que não somente os da saú- gias de integração nos fluxos inter-
de, em torno de projetos de desen- ______. Política Nacional de Ciên- fronteiras entre os sistemas de saú-
volvimento regional voltados para cia, tecnologia e Investimentos em de da Argentina, do Brasil, do Para-
a integração; e a definição de uma Saúde. Brasília: Ministério da Saú- guai e do Uruguai: uma análise pre-
Agenda estratégica para integrar os de. 2003. liminar a partir da economia da saú-

324 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005
Saúde, Desenvolvimento e Globalização

de. In: GALLO, Edmundo; COSTA, estratégia e liberdade. São Paulo: MERCOSUL. SUB-GRUPO DE TRA-
Laís (orgs.) Sistema Integrado de Hucitec, 1995a. BALHO SAÚDE-11 – SGT11. Ata de
Saúde do Mercosul – SIS – Merco- Reunião de Coordenadores Nacio-
sul: uma Agenda para a Integração. nais, Argentina, 2004.
GALLO, E.; COSTA, L.; B., N. Saúde
Brasília: OPAS, 2004.
sem Fronteiras – o SIS-FRONTEI-
MERCOSUL. SUB-GRUPO DE TRA-
RAS. In: A Política Brasileira de In-
GADELHA, C. A. G. O complexo in- BALHO SAÚDE-11 – SGT11. Ata de
tegração de Fronteiras de Saúde e
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Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia1


Development and Health: in search of a new Utopia

Carlos Augusto Grabois Gadelha1 RESUMO


Procura-se contribuir para uma reflexão teórica e política que subsidie
a construção de uma nova agenda que permita atualizar os grandes obje-
tivos da Reforma Sanitária brasileira no contexto contemporâneo de uma
Recebido: Jun./2006 globalização fortemente assimétrica, de revolução tecnológica e de
Aprovado: Jul./2007 (re)colocação da situação de dependência e de atraso no campo da saúde.
Discute-se as bases de um novo pacto político, social e econômico, pen-
sando-se a retomada da perspectiva de se construir um Estado de Bem-
Estar contemporâneo, que recupere as antigas promessas jamais imple-
mentadas e que enfrente os novos desafios para articular a saúde com um
novo padrão de desenvolvimento do Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Reforma Sanitária; Complexo Produtivo e Industrial da Saúde;


Globalização e Saúde.

ABSTRACT
This article intends to contribute to a theoretical and political reflecti-
on to help form a new agenda enabling the main objectives of the Brazili-
an Health Care Reform to be revised in the contemporary context of a
strongly asymmetrical globalization, a technological revolution and the
(re)establishment of a state of dependence and retrogression in the field of
health. The bases of a new political, social and economic pact are discus-
sed with a view to readopting the stance to build a modern Welfare State,
which would recover former promises that were never fulfilled and con-
front new challenges in order to organize health care with a new pattern
of development in the country.

KEYWORDS: Sanitary Reform; Productive and industrial organization of health


care; Globalization and Health

1
Carlos Augusto Grabois Gadelha 1
Este artigo constitui uma edição modificada da palestra proferida no dia 01/06/2007 no
Vice-presidente de Produção e Inovação da Encontro de Conjuntura e Saúde, promovido pelo Observatório de Conjuntura em Saúde da
ENSP e pelo CEBES, com a finalidade de subsidiar o debate sobre o tema “Saúde e Desenvol-
Fiocruz e pesquisador da Escola Nacional vimento”. Apesar das idéias apresentadas serem de responsabilidade exclusiva do autor,
de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). é importante destacar a contribuição importante proveniente das atividades de pesquisa
desenvolvidas com Cristiane Quental, Cristiani Vieira Machado, José Maldonado, Luciana
Email: gadelha@ensp.fiocruz.br Dias de Lima e Tatiana Wargas de Faria Baptista.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 327
GADELHA, Carlos Augusto Grabois

A despeito de minha trajetória encontrar barreiras intransponíveis mia e das relações de poder vigen-
acadêmica recente estar ligada ao ligadas ao nosso próprio padrão de tes.
desenvolvimento teórico do tema do desenvolvimento. Esta perspectiva, a um só tem-
complexo industrial e da inovação Em síntese, estamos numa fase po teórica e política, parte (e procu-
em saúde, vou inserir este enfoque em que, seguindo a perspectiva do ra avançar) na concepção de que a
onde, de fato, ele se situa: na recu- CEBES nesta sua nova etapa, se bus- saúde constitui uma condição de
peração contemporânea de uma ca motivar o debate e contribuir cidadania, sendo parte inerente do
abordagem estruturalista e de eco- para a revitalização do movimento próprio conceito do desenvolvimen-
nomia política para pensar a inser- sanitário e de uma visão crítica de to. Não há país que possa ser con-
ção da saúde no padrão nacional nosso país, sob o prisma da econo- siderado como desenvolvido com a
de desenvolvimento. O objetivo cen- mia política, não sendo pertinente saúde precária. Nesta direção, não
tral é o de contribuir para a cons- dar uma ‘receita’ simples e fechada se torna necessário nenhum víncu-
trução de uma nova agenda que para uma questão complexa do pon- lo entre saúde e crescimento econô-
permita atualizar os grandes obje- mico para justificar as ações uni-
tivos da reforma sanitária brasilei- versalizantes e o gasto em saúde.
ra no contexto contemporâneo de Isto permite ‘limpar um pouco o
uma globalização fortemente assi- terreno’ para quem está discutindo
métrica, de revolução tecnológica e a relação entre saúde, desenvolvi-
de (re)colocação da situação de de- NÃO HÁ PAÍS QUE POSSA mento e estrutura econômica, pro-
pendência e de atraso no campo da SER CONSIDERADO COMO curando superar falsos e pernicio-
saúde. sos dilemas entre uma dimensão
DESENVOLVIDO COM A SAÚDE PRECÁRIA
Esta perspectiva abrangente tor- econômica restrita e uma visão
na necessário avançar no debate ampla da saúde como um direito,
mesmo que de modo ainda explo- que constitui uma premissa, inclu-
ratório, pouco estruturado e com sive ética, para pensar o desenvol-
idéias em construção e, portanto, in- vimento.
conclusas. Todavia, entendo que ou Para ilustrar o debate contempo-
a saúde enfrenta de frente o tema to de vista teórico, político e insti- râneo, dominado pela literatura eco-
nacional ou os limites do avanço tucional. nômica neoclássica, e apresentar a
da reforma sanitária continuarão a As implicações desta perspecti- forma limitada com a qual o tema
ser recolocados a cada momento de va são enormes e impõem a neces- saúde e desenvolvimento vem sen-
nossa história. É como se tivésse- sidade de avançarmos na visão in- do trabalhado pelas escolas hege-
mos chegado a um limite em que o tersetorial da saúde, o que remete mônicas, proponho uma visita a
país enfrenta os novos e velhos fa- para a ampliação do escopo de nos- alguns textos muito recentes que
tores que reproduzem um círculo so pensamento, superando o âmbi- tratam do tema de modo convenci-
vicioso entre dependência, atraso, to específico, se bem que estratégi- onal. Este trabalho incorpora, ex-
iniqüidade e uma estrutura econô- co, da seguridade social, para tam- plicita ou implicitamente, a saúde
mica pouco dinâmica. Os objetivos bém incorporar a dinâmica e padrão numa função de produção econômi-
‘setoriais’ para a saúde parecem de transformação de nossa econo- ca, relacionando-a como um fator

328 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005
Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia

explicativo, de maior ou menor in- te, favorece o capital humano. Por fosse tão funcional assim para o
tensidade, para a evolução da ren- fim, seríamos aceitos não mais crescimento econômico. E se os pa-
da per capita e, portanto, para o cres- como ‘dinossauros’ da intervenção íses pudessem crescer – como os
cimento econômico. do Estado, mas como propulsores casos da China ou da Índia ilustram
Este olhar panorâmico da litera- do próprio desenvolvimento, desde – com condições sanitárias perver-
tura recente, a meu juízo, fortalece que nos ativéssemos a práticas efi- sas? Ficaríamos desanimados e
o desconforto com a tradição mais cientes e voltadas para esforços fo- mais uma vez ‘de pires na mão’,
recente do tratamento do tema saú- calizados nos mais necessitados e solicitando uma lei (tupiniquim)
de e desenvolvimento pelos econo- que não podem exercer sua liber- dos pobres para a uma ajuda hu-
mistas. Esta tradição foi muito re- dade em situações de vida tão pre- manitária, ao menos para a aten-
forçada com os trabalhos de Amar- cárias. ção básica focalizada? O segundo
tya Sen, premiado com o Nobel de Todavia, os termos desta percep- risco, também grave, era de que
Economia, de que havia uma rela- ção embutiam dois riscos que pas- passássemos a ver o processo de de-
ção indissociável entre saúde e de- senvolvimento como suave, sem
senvolvimento, a partir de sua re- conflitos, sem mudanças estrutu-
lação com a própria liberdade hu- rais, bastando que aos esforços do
mana sempre associada, na tradi- investimento em capital físico se
ção liberal, à liberdade do exercí- .. OLHAR PANORÂMICO DA LITERATURA acrescentasse um esforço no inves-
cio da escolha pelos indivíduos. timento social, e na saúde, em par-
RECENTE (...) FORTALECE O DESCONFORTO
No âmbito da saúde, a empol- ticular. Bastava um ‘empurrãozi-
gação foi grande e começam a sur- COM A TRADIÇÃO MAIS RECENTE DO nho’ e os países se desenvolveriam
gir numerosos trabalhos teóricos e TRATAMENTO DO TEMA SAÚDE E e haveria uma grande convergência
com forte base estatística e econo- global, não fazendo mais qualquer
DESENVOLVIMENTO PELOS ECONOMISTAS
métrica que incorporam a saúde da sentido se falar em periferia, em
função de crescimento, seja como assimetrias estruturais e em depen-
expectativa de vida, capital huma- dência. Na boa tradição liberal, o
no, mortalidade infantil, entre ou- mercado livre e o gasto compensa-
tras possibilidades. Parecia, enfim, savam despercebidos por diversos tório eficiente do Estado seriam su-
que os economistas tinham desper- autores da área da saúde preocu- ficientes para um padrão de inter-
tado e fizeram um ‘eureca’ para a pados com a transformação social, venção e de desenvolvimento sua-
área da saúde, evidenciando sua em geral compartilhando uma vi- ve denominado por Amartya Sen
relação com o desenvolvimento. são política de esquerda, que em- (2004), citando Adam Smith (o gran-
Como desdobramento, a saúde pas- barcavam, inadvertidamente, numa de economista liberal), como GALA
sa a ser vista como algo positivo visão liberal da economia de mer- (getting by with little assistance –
porque aumenta produtividade e cado. ‘ir levando com uma pequena aju-
gera desenvolvimento econômico, O primeiro risco refere-se à pos- da’). Despolitizavam-se o desenvol-
não como um segmento da estrutu- sibilidade de que começassem a vimento e os bloqueios estruturais
ra econômica, mas apenas como aparecer estudos com fortes ‘evidên- que, infelizmente, não deixam de
uma área social que, indiretamen- cias’ estatísticas de que a saúde não afligir a periferia capitalista.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 329
GADELHA, Carlos Augusto Grabois

A literatura recente parece evi- acentua. Provavelmente, muitos Todavia, a despeito destes estu-
denciar estes riscos associados a destes países estão vacinando, tem dos recentes, o relatório produzido
esta visão liberal mais avançada (de ajuda multilateral, conseguem im- pela Organização Mundial da Saú-
corte ‘iluminista’) sobre a saúde e plementar alguns programas de de (WHO, 2001), cujo próprio título
desenvolvimento, que tanto animou atenção básica, mas continuam po- já indica a perspectiva adotada –
aqueles comprometidos com as re- bres e subdesenvolvidos. “Macroeconomia e saúde: investin-
formas sociais. Visitando alguns Ainda nesta vertente ‘pouco oti- do na saúde para o desenvolvimen-
artigos muito recentes de institui- mista’, Weil (2006), num artigo em to econômico” – continua a ser uma
ções acadêmicas ou internacionais que agradece a colaboração de pes- referência para o tema que, de cer-
muito respeitadas, o risco começa- quisadores e instituições também ta forma, poderia fornecer um alí-
va a aparecer. Deaton (2006), da internacionalmente renomadas – Ha- vio. Enfatiza que a saúde é um fim
Universidade de Princeton, questio- vard, MIT, Banco Mundial, entre em si e que, além disto, é um fator
na a relação entre a taxa de cresci- muitas outras – efetua estimativas favorável ao desenvolvimento eco-
mento econômico e as condições de nômico. Neste aspecto, ressalta,
saúde, utilizando a mortalidade in- sobretudo, regiões com condições
fantil como indicador. Conclui que, de saúde explosivas, como a epide-
na realidade, é a educação e o con- mia da AIDS na África Subsaariana,
A LITERATURA RECENTE PARECE EVIDENCIAR
texto institucional geral que deter- indicando que a carga de doenças
minam tanto a taxa de crescimento (...) RISCOS ASSOCIADOS A (...) VISÃO relacionadas a esta doença é de tal
quanto as condições de saúde, não LIBERAL MAIS AVANÇADA (...) SOBRE A SAÚDE envergadura que limita qualquer
havendo uma relação direta entre possibilidade de crescimento econô-
E DESENVOLVIMENTO, QUE TANTO ANIMOU
ambas. mico e de desenvolvimento.
Um segundo artigo de autores AQUELES COMPROMETIDOS Esta percepção é seguida em um
do renomado MIT – instituto ameri- COM AS REFORMAS SOCIAIS trabalho muito recente, deste ano,
cano de excelência na área de Eco- elaborado para o FMI. Os autores
nomia (Acemoglu & Johnson, 2006) (HSIAO & HELLER, 2007) são da
– não encontrou nenhuma evidên- Escola de Saúde Pública de Harvard
cia de que um aumento da expecta- e do próprio FMI, e voltam a enfati-
econômicas que indicam que se fo-
tiva de vida gera crescimento da zar a questão do impacto da AIDS
rem eliminadas as diferenças nas
renda per capita. Além disso, o que na África na economia, como se a
condições de saúde entre os países,
é importante, os autores observa- região fosse desenvolvida antes des-
a variação (variância) da renda per
ram que a convergência na expec- ta doença ou tivesse alguma traje-
capita se reduz em apenas 10%. E
tativa de vida entre os países é tória de desenvolvimento abortada.
mais, com esta eliminação da dife-
muito maior do que a convergência Este texto possui aspectos curiosos,
na renda per capita. Ou seja, os rença das condições de saúde, a re- constituindo um manual para que
países atrasados estão com a saú- lação entre o PIB per capita entre os macroeconomistas entendam o
de um pouquinho melhor em ter- os 10% mais ricos e os 10% mais que é a saúde. No receituário, colo-
mos relativos, mas a distância eco- pobres cai de 20,5 para 17,9, o que ca-se claramente a questão do en-
nômica se mantém ou mesmo se é muito pouco. frentamento das falhas de mercado,

330 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005
Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia

que, por sua abrangência na área, o combate a doenças de alto impac- que transborda para nosso contex-
a tornam muito peculiar. Além dis- to epidemiológico como a malária to, a relação entre saúde e desen-
so, ao contrário de outros bens es- e a AIDS. volvimento acaba se reduzindo à
senciais, como educação, habitação O que surpreende nestes textos é visão de que a saúde deve ser apoi-
e alimentação, as pessoas possuem como a agenda liberal dominante, ada por ser um elemento constitu-
riscos e elevadas incertezas sobre o se estudada com cuidado, tem inú- tivo dos direitos sociais ou indivi-
futuro, decorrentes das doenças e meros pontos de convergência com duais básicos, ou se também gera
do envelhecimento, justificando o a forma como o tema saúde e de- um efeito indireto sobre o cresci-
estabelecimento de sistemas de pro- senvolvimento – ou a relação entre mento econômico, decorrente ape-
teção social. Por fim, neste manual saúde e economia – vem sendo tra- nas de sua dimensão social, impli-
aponta-se que a saúde constitui um balhado no Brasil. Falhas de mer- cando na melhoria das condições de
valor intrínseco para as pessoas e cado, tecnologias de baixo custo e vida dos trabalhadores e do ambi-
para os países. complexidade (justificando inclusi- ente geral para os investimentos.
Ou seja, até organismos consi- Nesta segunda vertente, decerto, a
derados como conservadores, como justificativa do gasto se torna mais
o FMI e representantes da hegemo- robusta ou generosa ao incorporar
nia liberal, concordam em associar ... ENTRAMOS NA ARMADILHA DE RESTRINGIR a saúde como fator indireto de cres-
e justificar a saúde como uma área cimento, em analogia ao que ocor-
O DEBATE SOBRE SAÚDE E DESENVOLVIMENTO
peculiar, cuja intervenção, focaliza- re na educação.
da, se justifica em função das fa- À DIMENSÃO DOS GASTOS REQUERIDOS E AO Com este referencial, entramos
lhas de mercado, do risco e da pró- TAMANHO DO ESTADO E DO MERCADO NO na armadilha de restringir o debate
pria cidadania, além de seu impac- sobre saúde e desenvolvimento à
PROVIMENTO DE BENS E SERVIÇOS E NO
to nas condições mais elementares dimensão dos gastos requeridos e
de trabalho de certas populações e FINANCIAMENTO ... ao tamanho do Estado e do Merca-
regiões. Nesta direção, também con- do no provimento de bens e servi-
cordam com o papel distributivo do ços e no financiamento. A agenda
Estado com foco nos mais pobres estrutural que envolve o padrão
ou nas populações mais vulnerá- ve o foco na atenção primária), o nacional de desenvolvimento, a con-
veis, adicionalmente a um esforço foco prioritário no contexto local ou centração regional e pessoal da ren-
para tornar os gastos mais eficien- no município e mesmo saúde um da e a fragilidade de nossa base
tes, considerando o problema geral direito individual são, pelo menos, produtiva em saúde fica subsumi-
do financiamento na saúde fruto das questões compatíveis com o ideá- da nesta agenda ‘macro’ extrema-
mudanças demográficas e nos pa- rio liberal dos países, instituições mente empobrecedora, se bem que
drões epidemiológicos, entre outros acadêmicas e organismos interna- todos nós estejamos na luta por um
fatores. Com relação à questão tec- cionais que fazem parte do núcleo financiamento e um papel do Esta-
nológica, fator também central para central da hegemonia capitalista do compatíveis com as necessida-
o aumento dos gastos, os autores mundial. des de saúde como elementos essen-
propõe a utilização de tecnologias Retomando o tema em debate, no ciais à consolidação de um sistema
de baixo custo e complexidade para escopo dos paradigmas dominantes, de proteção social no Brasil.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 331
GADELHA, Carlos Augusto Grabois

Belluzo (2006), ironizando a nos termos atuais, do conhecimen- Esta visão remete para a neces-
questão do tratamento do Estado e to e do aprendizado, dissociados sidade de reconstrução de nossa
do Mercado como simples alterna- das necessidades locais. visão sobre saúde e sobre a agenda
tivas descoladas de suas conexões É neste campo que se dá o corte de reforma. Pensar saúde não ape-
políticas e econômicas e sociais, faz entre uma visão liberal e o pensa- nas como ausência de doença e sim
o seguinte comentário que eviden- mento desenvolvimentista em seus como qualidade de vida – uma per-
cia o empobrecimento do debate diversos matizes políticos e ideoló- cepção arraigada no campo da saú-
advindo dos paradigmas dominan- gicos. Para esta perspectiva, o tema de coletiva –, remete para seguinte

tes em economia e, no nosso caso, ‘saúde e desenvolvimento’ deve ser pergunta: pode-se dizer que um país

na economia da saúde: trabalhado a partir das necessida- e um povo pobre, dependente, desi-
des de mudanças estruturais pro- gual, sem acesso a conhecimento,
fundas em nossa sociedade, econo- com condições precárias de traba-
[...] como o senhor prefere, mais Es-
mia e política. É desta visão que se lho e sem capacidade de aprendiza-
tado ou mais mercado? Desconfio que
do, mas que venha elevando sua ex-
algumas teorias serviriam melhor como
pectativa de vida, é saudável? Eu
um guia de instrução para garçons de
acho que não. A agenda de saúde
restaurantes baratos (BELLUZZO 2006,
tem que sair de uma discussão in-
apud VIANA et al., 2007, p.11)
A AGENDA DE SAÚDE TEM QUE SAIR DE UMA trínseca, insulada e intra-setorial e
entrar na discussão do padrão do
Assim sendo, sugiro que a gente DISCUSSÃO INTRÍNSECA, INSULADA E INTRA-
desenvolvimento brasileiro. Ou seja,
não embarque nestas vertentes que SETORIAL E ENTRAR NA DISCUSSÃO DO PADRÃO a saúde como qualidade de vida
incorporam a saúde como um fator
DO DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO implica pensar em sua conexão es-
genérico nas funções econômicas de
trutural com o desenvolvimento eco-
produção, se distinguindo apenas nômico, a equidade, a sustentabili-
na forma, mais ou menos favorá- dade ambiental e a mobilização
vel, em que a relacionam com o política da sociedade. A saúde, nes-
crescimento econômico. ta perspectiva, se torna parte endó-
A idéia central apresentada nes- gena de discussão de um modelo
torna relevante e diferenciador a
te trabalho é que necessitamos re- econômico de desenvolvimento.
necessidade de uma economia polí-
pensar a saúde, retomando e atua- Aceitando esta perspectiva, pro-
tica da saúde. A grande referência
lizando uma agenda estruturalista ponho que, em vez de se trabalhar
neste contexto estruturalista é Cel-
que privilegia os fatores histórico- o tema saúde de modo analitica-
so Furtado, numa (re)leitura atua-
estruturais que caracterizam nossa lizada, uma vez que seus trabalhos mente insulado e ver os nexos que
sociedade – nosso passado escra- apontam tanto para as dimensões tem com o crescimento econômico,
vista e colonial e a conformação de relacionadas aos limites da estru- procuremos associá-lo com a pró-
uma sociedade desigual – e nossa tura produtiva quanto para a desi- pria estratégia de desenvolvimento
inserção internacional e sua relação gualdade pessoal e regional como econômico-social brasileiro, à luz
com uma difusão extremamente marca estrutural da sociedade bra- de nossa história recente. A trajetó-
assimétrica do progresso técnico e, sileira. ria do desenvolvimento brasileiro no

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Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia

período 1930/1980 foi uma trajetó- zar o pensamento desenvolvimentis- nização política e da própria socie-
ria de forte substituição de impor- ta, a partir de Celso Furtado (2007), dade.
tação que engendrou uma das mai- mas que são importantes para a 2. A magnitude e a orientação
ores taxas de crescimento do mun- nova perspectiva proposta para pen- das inovações e da difusão do pro-
do, sendo a maior em alguns sub- sar saúde e desenvolvimento. gresso técnico estão na raiz dos
períodos. Duas grandes críticas ao 1. A evolução do sistema capi- modelos nacionais de desenvolvi-
modelo de desenvolvimento adota- talista brasileiro se associa a uma mento. De um lado, as relações de
do se colocaram (ambas presentes contradição entre a modernização dependência e a hierarquização eco-
nos trabalhos de Furtado). Primei- do sistema produtivo e a margina- nômica e de poder entre os países
ro, a desigualdade social e regio- lização social, caracterizando um estão associadas, no presente, a
nal se manteve ou mesmo se acir- padrão de desenvolvimento dual quem detém (ou não) os conheci-
rou. Segundo, não houve uma ca- (ALBUQUERQUE, 2007). O padrão tec- mentos produtivos essenciais aos
pacitação tecnológica endógena ao nológico é descolado da demanda paradigmas tecnológicos dominan-
longo desse período. Como diriam tes no mundo contemporâneo (tec-
os estruturalistas clássicos, o capi- nologias de informação em bens e
talismo brasileiro não conseguia se serviços, biotecnologia, química
sustentar sobre seus próprios pés, fina, novos materiais, equipamen-
sendo excludente do ponto de vista NO ÂMBITO DA ECONOMIA POLÍTICA ESTÁ tos, etc.). De outro lado, a transpo-
social e dependente do ponto de vista HAVENDO TODO UM PROCESSO, PELO MENOS sição direta deste padrão tecnológi-
do conhecimento e de sua capaci- co-produtivo, para os países da pe-
NA ACADEMIA, DE RECUPERAÇÃO DO
dade de inovação. riferia, desdobra a dualidade veri-
No âmbito da economia política PENSAMENTO DESENVOLVIMENTISTA EM ficada na arena internacional para
está havendo todo um processo, NOVAS BASES.... dentro das sociedades locais, refor-
pelo menos na academia, de recu- çando a situação da desigualdade
peração do pensamento desenvolvi- no acesso e no descompasso entre
mentista em novas bases, conside- a estrutura da oferta e da demanda
rando as especificidades do mundo da sociedade. Em países como o
contemporâneo. Esta preocupação geral da sociedade, havendo uma Brasil, esta dinâmica das inovações
se mostra totalmente compatível estrutura produtiva funcional e ade- e do conhecimento se acentuam e
com a tradição estruturalista que quada para a péssima distribuição se mostram funcionais para um ní-
refuta ou qualifica a adoção de de renda do país. Isto causa o que vel de desigualdade da renda mui-
modelos gerais que desconsideram Furtado (2007) denominava como to perverso.
o momento e a experiência históri- um processo de causação circular É nesta perspectiva analítica que
ca de cada processo nacional de em que a base produtiva reforça a se coloca a capacidade de aprendi-
desenvolvimento.2 má distribuição de renda, tendo ain- zado e de inovação em âmbito pro-
Indicarei algumas idéias, que da, segundo minha percepção, um dutivo como fatores críticos para o
obviamente estão longe de sinteti- impacto negativo no nível de orga- desenvolvimento. Apesar do modis-

2
Tomou-se como base os artigos que constam da coletânea recente organizada por Saboia e Carvalho (2007), intitulada “Celso Furtado
e o século XXI” (vide bibliografia).

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GADELHA, Carlos Augusto Grabois

mo que o tema envolve, não se está farmacêutica competitiva, exporta- ciação no sistema produtivo, gerado
discutindo inovação porque é boni- dora, tendo, como detalhe, um povo pela introdução de inovações tecnoló-
to, porque é moderno ou mesmo pobre e uma sociedade estratifica- gicas (FURTADO, 1964, apud GUI-
porque as empresas que lideram o da e excludente e um sistema de LLÉN, 2007, p. 143)
mercado mundial são intensivas em saúde muito inferior ao brasileiro.
conhecimento e inovação. O que se Definitivamente, ou a inovação está Isto posto, o desenvolvimento
está discutindo é a dinâmica e os incorporada na mudança do padrão econômico constitui um processo de
rumos de um novo padrão de de- de desenvolvimento ou perde o sen- mudança social e envolve uma di-
senvolvimento brasileiro, remeten- tido na perspectiva adotada. ferenciação brutal da estrutura pro-
do, necessariamente, para pensar- A seguinte citação de Celso Fur- dutiva. É nesta dimensão que se
mos qual o padrão tecnológico e tado (2007) evidencia esta percep- coloca o tema do complexo produ-
quais os rumos e necessidades de ção da inovação como um proces- tivo ou industrial da saúde.3 Em
transformação na base produtiva substância, o que se está apontan-
que uma sociedade dinâmica e me- do é a necessidade de uma mudan-
nos desigual requer. Era esta a ça profunda na estrutura econômi-
questão central de corte estrutura- ca brasileira que permita, median-
lista!
O AVANÇO DO BRASIL NO DESENVOLVIMENTO te intenso processo de inovação,
O avanço do Brasil no desenvol- COM EQUIDADE ENVOLVE UMA GRANDE adensar o tecido produtivo e direci-
vimento com equidade envolve uma DIFERENCIAÇÃO DO SISTEMA PRODUTIVO (...) oná-lo para compatibilizar a estru-
grande diferenciação do sistema tura de oferta com a demanda soci-
E UMA FORTE EXPANSÃO DO MERCADO
produtivo (o que caracteriza a ino- al de saúde.
vação) e uma forte expansão do mer- INTERNO DE MASSA (...) INCORPORANDO Aqui chegamos a uma visão al-
cado interno de massa (tema ‘dinos- ternativa do vínculo entre saúde e
SEGMENTOS ENORMES DA POPULAÇÃO QUE
sáurico’ para o pensamento liberal), desenvolvimento. A saúde possui
incorporando segmentos enormes ESTÃO EXCLUÍDOS uma dupla dimensão na sua rela-
da população que estão excluídos. ção com o desenvolvimento. Numa
É óbvio que esta base nacional pode primeira vertente, e concordando
ser uma alavanca para as exporta- so de transformação econômica e com o ‘consenso’ já mencionado, é
ções, o que é crítico para a autono- social: parte do sistema de proteção soci-
mia das políticas nacionais, inclu- al, constituindo um direito de cida-
sive na saúde. Todavia, é necessá- o desenvolvimento econômico pode dania inerente ao próprio conceito
rio colocar estas dimensões em seu ser definido como processo de mudan- de desenvolvimento. Numa segun-
devido lugar, caso contrário conti- ça social pelo qual o crescente número da vertente, a base produtiva em
nuaremos repetindo ‘como papagai- de necessidades humanas, pré-existen- saúde – de bens e serviços – consti-
os’ que a Índia é um exemplo a ser tes ou criadas pela própria mudança, tui um conjunto de setores de ativi-
seguido, possuindo uma indústria são satisfeitas através de uma diferen- dade econômica que geram cresci-

3
O conceito de Complexo Industrial da Saúde (GADELHA, 2003), de fato, envolvia também a área de serviços, uma vez que esta passa a seguir
o padrão industrial. Todavia, para evitar as confusões recorrentes, adotou-se o conceito de Complexo Produtivo para indicar a base de
produção de bens e serviços e o de Complexo Industrial para os segmentos industriais que fazem parte do primeiro. Observe-se que são
as atividades de serviços que estruturam todo o Complexo.

334 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005
Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia

mento e possuem uma participação vamos no país parece estar, em gran- o de pensar, articular e implemen-
expressiva no PIB e no emprego de parte, descolado das necessida- tar, a um só tempo, os princípios
(respectivamente, em torno de 8% e des do Sistema de Saúde ou repro- constitucionais de universalização,
de 10% nos empregos formais qua- duzindo a desigualdade em seu in- de equidade e de integralidade do
lificados) que podem representar terior. sistema de saúde com uma trans-
uma diferenciação profunda da es- Assim sendo, as idéias que per- formação profunda da base produ-
trutura produtiva brasileira. Esta meiam a noção de Complexo Pro- tiva, tendo o Complexo da Saúde
diferenciação, que representa um dutivo da Saúde constituem um es- como um elo forte e estratégico da
enorme esforço de inovação, é fun- forço para costurar o elo saúde-de- economia brasileira. Esta transfor-
damental para viabilizar o consu- senvolvimento, retomando uma mação implica elevar o peso dos
mo social de massa de bens e ser- perspectiva estruturalista contempo- segmentos produtivos de bens e
viços, contribuindo para dotar o rânea que incorpora os dois gran- serviços de saúde que atendem às
país de uma base produtiva ade- des pontos frágeis de nosso modelo demandas sociais e que incorporam
quada para uma sociedade mais grande potencial de inovação e de
equânime. transformação nos novos paradig-
Nesta direção, os anos 1990 fo- O DESAFIO QUE SE COLOCA PARA UM mas tecnológicos.
ram uma tragédia para nossa base APROFUNDAMENTO DA REFORMA SANITÁRIA Com isto, supera-se o tratamen-
produtiva e de inovação em saúde to ‘insulado’ e setorial da saúde e
em um duplo sentido. Por um lado,
(...) É O DE PENSAR, ARTICULAR E o debate (restrito) em torno de sua
nos tornamos mais dependentes nos IMPLEMENTAR (...) OS PRINCÍPIOS funcionalidade para o crescimento,
segmentos de maior densidade de
CONSTITUCIONAIS DE UNIVERSALIZAÇÃO, DE inserindo a área de modo endóge-
conhecimento, com o déficit comer- no no debate político sobre o pa-
cial saltando de US$ 700 milhões EQUIDADE E DE INTEGRALIDADE DO SISTEMA DE drão de desenvolvimento desejado
no final dos anos 80 para mais de SAÚDE COM UMA TRANSFORMAÇÃO PROFUNDA para nosso país. Esta perspectiva
US$ 4 bilhões no presente (GADELHA, pode implicar tanto na simplifica-
DA BASE PRODUTIVA
2006). Se incorporarmos outros seg- ção de diversas tecnologias utiliza-
mentos ainda não trabalhados no das no sistema quanto em sua com-
complexo (intermediários da cadeia de desenvolvimento: uma estrutu- plexificação, chamando a atenção
produtiva farmacêutica, por exem- ra produtiva pouco densa em co- para não cairmos nas ‘armadilhas’
plo) e os pagamentos pela transfe- nhecimento – agora a assimetria da tecnologia apropriada, da con-
rência de tecnologia em saúde, che- não é mais entre indústria e agri- centração dos esforços apenas na
ga-se a um grau de dependência em cultura, mas sim entre atividades atenção básica e nos produtos tro-
torno de US$ 6 bilhões. Isto é uma densas em conhecimento e ativida- picais ou negligenciados (reconhe-
questão de saúde ao tornar nossa des sem grande valor agregado – e cendo-se, obviamente, a importân-
política social estruturalmente vul- um sistema econômico e social de- cia de todas estas áreas). Para ser-
nerável, uma vez que as assimetri- sigual e excludente. mos coerentes com os princípios do
as no conhecimento e na inovação O desafio que se coloca para um Sistema Único de Saúde (SUS) e com
não se revertem de modo fácil! Por aprofundamento da Reforma Sani- os requerimentos dos novos para-
outro lado, o que produzimos e ino- tária em bases contemporâneas é digmas tecnológicos, a definição

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 335
GADELHA, Carlos Augusto Grabois

das tecnologias estratégicas para o zando a agenda, a escala macror- que a divisão digital) entre os paí-
Brasil não pode permitir a segmen- regional se mostra totalmente insu- ses e as regiões. A saúde também
tação entre práticas sofisticadas e ficiente para uma política nacional tem a ver com esta questão. Todos
adequadas para alguns e práticas de regionalização da saúde associ- os novos paradigmas tecnológicos
‘simples’ para a maioria de nossa ada ao desenvolvimento. A desi- que marcam a nova assimetria glo-
população. gualdade é, de fato, observada nas bal se expressam de modo impor-
Esta dimensão que associa o eco- macrorregiões – nas quais a situa- tante na área, com destaque para a
nômico, o social e o político – ou ção crítica são o Norte e o Nordes- biotecnologia, a química fina, os
seja, a dimensão de economia polí- te, mas também é gritante no inte- novos materiais, a eletrônica e todo
tica – se aplica tanto para pensar- rior dos estados e das regiões de- conjunto, pouco ressaltado, de prá-
mos a desigualdade de renda entre senvolvidas e esta situação não ticas médicas nos serviços, altamen-
as pessoas quanto para o desenvol- muda sem uma visão e indução te intensivas em conhecimento, e
vimento regional (mais uma vez, nacional. Ou será que o noroeste com vínculos precários com uma
esta questão estava na agenda prio- fluminense, o Vale do Ribeira, o oes- nova estratégia de desenvolvimen-
ritária de Celso Furtado). Se pensar- te do Paraná, o Vale do Jequitinho- to centrada na equidade.
mos a regionalização da saúde a par- nha e a metade sul do Rio Grande Para dar uma idéia da dimensão
tir configuração da rede do serviço do Sul ficam no Norte e no Nordes- desta questão, a saúde é a área
de saúde no território brasileiro, te? Se saúde está relacionada ao de- mundial que concentra os maiores
cuja estrutura de oferta ‘congela’ o senvolvimento da forma estrutural esforços em pesquisa e desenvolvi-
padrão desigual da atenção à saú- proposta, a dimensão territorial se mento do mundo, em conjunto com
de, coloca-se a necessidade de se pen- mostra crítica e endógena ao padrão o Complexo Industrial Militar. O le-
sar uma estruturação da base pro- nacional, sendo ponto de partida e vantamento efetuado pelo Fórum de
dutiva de serviços que não seja re- um dos elementos-chave de sua Pesquisa Global em Saúde indica
produtora de desigualdades. Mais transformação. 4
que ela responde isoladamente por
uma vez, ‘por dentro’ da questão Voltando à dimensão mais ge- 20% de toda despesa mundial com
geral do desenvolvimento (em sua ral das questões colocadas na agen- pesquisa e desenvolvimento tecno-
dimensão territorial) a saúde ‘mos- da nacional de desenvolvimento, lógico (US$ 135 bilhões em valores
tra sua face’ como parte do modelo avançar em saúde é também enfren- atualizados), sendo que apenas en-
histórico adotado. tar o hiato da sociedade do conhe- tre 3% e 4% são realizadas nos paí-
Não somos apenas atrasados cimento. Há autores brasileiros, ses de média e baixa renda per ca-
frente aos países desenvolvidos, so- como José Cassiolato e Helena Las- pita. Ou seja, a questão geral que
mos um país com desigualdades tres Instituto de Economia da UFRJ, divide hoje as nações entre o mun-
regionais internas das mais expres- que indagam se estamos na socie- do desenvolvido e os ‘outros mun-
sivas do mundo. Isto implica em dade do conhecimento ou na socie- dos’ se expressa de forma ultra re-
alterar, via política de investimen- dade da ignorância, porque há uma levante na área da saúde, eviden-
tos, a estruturação espacial de nos- grande divisão nos potenciais de ciando que somos parte não autô-
sa base produtiva. E mais, atuali- aprendizado (muito mais forte do noma de um determinado modelo.

4
O tema da regionalização da saúde está sendo trabalhado com mais detalhe num artigo em conjunto com Cristiani Vieira Machado,
Luciana Dias de Lima e Tatiana Wargas de Faria Baptista, fruto de um trabalho efetuado para o CGEE e para o Ministério do Planejamento
sobre

336 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005
Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia

Do ponto de vista da organiza- existem e se refletem na saúde, tan- das por novas utopias e projetos de
ção política da sociedade para um to em sua dimensão política e soci- país. Na realidade, após a crise do
novo modelo, que necessariamente al quanto em sua dimensão econô- padrão de desenvolvimento do pós-
envolve interesses e lutas por po- mica. Mais ainda, no âmbito de um guerra e das experiências neolibe-
der na relação entre as pessoas e novo modelo de desenvolvimento, riais na política nacional, o momen-
grupos sociais e no território, a saú- a saúde constitui uma das ativida- to se mostra adequado para se re-
de também possui um vínculo in- des em que é possível – se bem que colocar as bases de um novo pacto
trínseco. A organização política da não necessariamente – articular a político, social e econômico, pensan-
saúde tanto reflete e reforça as de- busca de equidade social e regio- do-se a retomada da perspectiva de
sigualdades existentes quanto cons- nal com o dinamismo econômico no se construir um Estado de Bem-Es-
titui um espaço estratégico de for- longo prazo, que caracterizam o tar contemporâneo no Brasil, que re-
talecimento da organização da so- cupere as antigas promessas jamais
ciedade, sendo notório seu potenci- implementadas e que enfrente os
al para gerar participação democrá- novos desafios.
tica e arranjos sociais com potenci- Este texto de Celso Furtado
al transformador. (2004, apud SABOIA, 2007) permite
Concluindo, articular saúde e ... ARTICULAR SAÚDE E DESENVOLVIMENTO expressar, com seu brilhantismo, a
desenvolvimento ‘pra valer’ remete perspectiva adotada:
‘PRA VALER’ REMETE PARA A NECESSIDADE DE
para a necessidade de pensar o pa-
drão geral de desenvolvimento bra- PENSAR O PADRÃO GERAL DE Forçar um país que ainda não aten-
sileiro e como ele se expressa e se DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO E COMO ELE SE deu às necessidades mínimas de gran-
reproduz no âmbito da saúde. Isto de parte da população a paralisar seto-
EXPRESSA E SE REPRODUZ
não constitui uma perda de foco res mais modernos em economia, a con-
sobre o tema saúde, mas sim reco- NO ÂMBITO DA SAÚDE gelar investimentos em áreas básicas
nhecer que somos parte de um de- como saúde, educação, para que se cum-
terminado sistema capitalista, de pram metas de ajustamentos de balan-
um país periférico e dependente e ça de pagamento impostas por benefi-
com uma estrutura social e econô- processo de desenvolvimento de um ciários das altas taxas de juros, é algo
mica desigual e com fragilidades ponto de vista substantivo. que escapa a qualquer racionalidade
estruturais marcantes. Talvez a gente esteja numa fase Compreende-se que esses beneficiários
Com esta perspectiva, podemos de construção de uma nova utopia defendam seus interesses. O que não se
entrar no debate nacional sobre o sobre um novo modelo de desenvol- compreende é como nós mesmos não de-
desenvolvimento não como pedin- vimento. As novas propostas sobre fendamos com idêntico empenho o di-
tes, que, em troca, dizem, ‘saúde é o desenvolvimento estão muito ca- reito de desenvolver o País... A experi-
bom para o crescimento e no final ladas ou tímidas. Sabemos que tudo ência nos ensinou amplamente que, se
vai dar retorno’. Ao contrário, pro- isto aqui é muito difícil, distante, não se atacam de frente os problemas
põe-se assumir que somos parte mas é preciso. Torna-se necessário fundamentais, o esforço de acumula-
deste processo e as perspectivas de que as energias mobilizadoras da ção tende a reproduzir, agravado, o
transformação nacional também sociedade brasileira sejam motiva- mau-desenvolvimento. Em contrapar-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 337
GADELHA, Carlos Augusto Grabois

tida, se conseguirmos satisfazer essa ______. O complexo industrial da Disponível em: <www.iadb.org/eti-
condição básica que é a reconquista de saúde e a necessidade de um enfo- ca>. Acesso em:2004.
ter uma política de desenvolvimento, que dinâmico na economia da saú-
terá chegado a hora da verdade para de. Ciênc. e Saúde Coletiva, Rio de VIANA, A. L. A; SILVA, H.P.; ELIAS,
todos nós (FURTADO 2004, apud SA- Janeiro, v. 2, n.8, p. 521-535. 2003 P.E. Economia política da saúde:
BOIA, 2007, p. 24). introduzindo o debate. Divulgação
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338 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005
Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar


a universalidade com integralidade, equidade e participação
To regulate the EC nº 29, to improve the management model and realize the
universality with integrality, equity and participation.

Nelson Rodrigues dos Santos1 RESUMO

Este artigo aborda o significado do PLP 01/2003, substitutivo “Guilher-


me Menezes” de regulamentação da EC-29 de propor o atrelamento indivi-
Recebido: Jun./2006
sível entre a imprescindível elevação do financiamento federal e cumpri-
Aprovado: Jul./2007
mento do estadual e municipal, ao imprescindível salto de qualidade nos
modelos de gestão, gerência e estrutura dos gastos. Por fim, formula-se
uma proposta viabilizadora, com atenuação na prática, do impacto finan-
ceiro nos gastos federais.

PALAVRAS-CHAVE: Financiamento Público em saúde, Gestão Pública em Saúde e


Política Pública em Saúde.

ABSTRACT

This paper discusses the significance of Bill n.º 1/2003, known as the
“Guilherme Menezes” replacement of the EC-29 regulation, which proposes
an indivisible binding between the essential rise in federal government
funding and the compliance of state and city governments, and the indis-
pensable improvement in the quality of the management systems, admi-
nistration and structure for spending. In conclusion, a proposal is formu-
lated which would attenuate the practical financial impact this would
1
Professor colaborador do Departamento

de Medicina Preventiva e Social da UNI-


have on federal spending.

CAMP e Ex-assessor do Gabinete do Mi-

nistro da Saúde. KEYWORDS: Public Funding in Health Care, Public Administration of Health

Email: nelsonrs@fcm.unicamp.br Care; Public Policy in Health Care

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 339
SANTOS, Nelson Rodrigues dos

APRESENTAÇÃO seqüenciar medidas desvinculatóri- mento mínimo de 30% do OSS, sufi-


as e restritivas no âmbito do SUS, ciente para avançar na sua efetiva-
Este texto é uma exposição de do Orçamento da Seguridade Social ção, tendo como base de cálculo o
motivos com a pretensão de subsi- (OSS) e da própria Seguridade Soci- crescimento populacional, a incor-
diar, com consistência e didática, as al. poração tecnológica, a correção in-
discussões para fundamentação da O PRIMEIRO LADO DO CONFLI- flacionária da saúde, e as mudan-
votação da regulamentação da TO – é a conquista da sociedade bra- ças dos modelos de gestão.
Emenda Constitucional n.29 (EC-29), sileira que se mobilizou na Assem- O SEGUNDO LADO DO CONFLITO
que trata do financiamento do Sis- bléia Nacional Constituinte (1987/ – é o grave subfinanciamento que
tema Único de Saúde (SUS). Pouco 1988), garantindo no Capítulo da vem levando os Gestores dos SUS à
inova e mais consolida as aborda- Seguridade Social os direitos soci- exaustão, principalmente os estadu-
gens amplamente debatidas desde ais à saúde, previdência e assistên- ais e municipais. A retração do in-
a aprovação da EC-29 no ano de cia social, e aprovou orçamento vestimento em saúde por parte do
2000, em parte referida nos docu- governo federal implica em maior
mentos de apoio apresentados a se- aporte de recursos por parte dos
guir, em ordem cronológica, que por estados e municípios para o setor
si inferem o exaustivo e perseveran- saúde. O dilema do financiamento
te esforço da sociedade em busca se agrava com a atenção universal:
do direito social à saúde. A inova- A FRAGILIDADE DO BRASIL SE REVELA AO mais de 75% da população brasilei-
ção, exposta na última parte, cons- ra usuária exclusiva do SUS, e me-
COMPARARMOS OS GASTOS PÚBLICOS COM
ta de proposta de atenuação do im- nos de 25%, usuários não exclusi-
pacto financeiro na atual situação SAÚDE COM OUTROS PAÍSES vos, consumidores de planos priva-
macroeconômica da União, sem re- dos de saúde, que utilizam os ser-
dução dos montantes previstos na viços do SUS em imunizações, ações
proposta de regulamentação, dos de vigilância epidemiológica e sa-
quais depende a própria construção nitária, exames e tratamentos mais
do SUS. sofisticados e de alto custo, como
suficiente para assegurar a realiza- transplantes, terapia renal substitu-
ção dos mesmos, aos moldes das tiva, controle e tratamento de HIV/
O CONFLITO sociedades mais desenvolvidas e AIDS, medicamentos de alto custo,
civilizadas, reconhecendo a neces- entre outros.
Foi estabelecido no momento em sidade de sua implementação gra- A fragilidade do Brasil se revela
que a área econômica do Governo dativa, com prioridades e etapas a ao compararmos os gastos públi-
Federal definiu, a partir de 1990, não serem pactuadas. Assim, ficaram cos com saúde com outros países.
destinar ao Sistema Único de Saú- consagrados para o SUS, os princí- Nossos U$ 150 a 200 por habitante-
de, o mínimo de 30% dos recursos pios da Universalidade, Eqüidade e ano correspondem por volta da me-
do Orçamento da Seguridade Soci- Integralidade, Descentralização, tade do que gasta a Argentina, Uru-
al, conforme indicado no ADCT da Regionalização e Participação, e guai, Costa Rica e Panamá, e pouco
Constituição Federal, e, a seguir, também, a indicação do financia- mais de 10% em relação ao Canadá,

340 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005
Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação

países europeus, Japão, Austrália e e) a desobrigação da esfera fe- tre 1995 e 2005, caiu de US$ 85,7
outros, cuja média é de US$ 1.400 deral do cálculo da contrapartida para US$ 77,4 per capita, a soma
públicos por habitante-ano. Nestes baseada em % sobre a base orça- das contrapartidas estaduais e mu-
países, os recursos públicos signi- mentária, critério imposto aos es- nicipais, entre 2000 e 2005, cresceu
ficam no mínimo 70% dos gastos tados (mínimo de 12%) e municípi- de US$ 44,1 para US$ 75,5 per ca-
totais com saúde, enquanto aqui os (mínimo de 15%) por ocasião da pita;
não ultrapassam 45%, correspon- negociação para a aprovação da EC- c) enquanto a contrapartida fe-
dendo a somente 3,2% do PIB. Da- 29 em 2000; deral no financiamento do SUS caiu
dos da Organização Mundial de Saú- f) a tenaz resistência da área eco- de 63,8% para 49,6% entre 1995 e
de mostram que os serviços públi- nômica, desde 2003, à discussão e 2004, a soma das contrapartidas

cos de saúde representam um gas- aprovação pelo Congresso Nacional estaduais e municipais cresceu de
39,3% para 50,4%, neste mesmo pe-
to entre 6 e 8% do PIB nos países da regulamentação da EC-29.
ríodo; somente entre 2000 e 2004,
com melhores sistemas de saúde,
os gastos relativos federais com
revelando o tênue compromisso do
saúde reduziram-se em cerca de
Estado no Brasil com o Direito So-
10%;
cial à Saúde.
d) aconteceu a desastrosa pre-
O baixo compromisso do Gover- ... ACONTECEU A DESASTROSA PRECARIZAÇÃO carização da gestão do pessoal de
no Federal com o setor saúde, de
DA GESTÃO DO PESSOAL DE SAÚDE (...), saúde no ingresso e carreira públi-
1990 até o momento, se revela nos
ca, na remuneração, na capacitação
seguintes pontos: SENDO QUASE TUDO SUBSTITUÍDO POR
e distribuição com base nas neces-
a) a não-implementação da Se- TERCEIRIZAÇÕES ALEATÓRIAS E AO SABOR DAS sidades e direitos de saúde da po-
guridade Social preconizada na
POSSIBILIDADES E INTERESSES DE CADA pulação, sendo quase tudo substi-
Constituição, com a efetivação de
tuído por terceirizações aleatórias
30% do OSS para a saúde; MOMENTO ... e ao sabor das possibilidades e in-
b) a retirada arbitrária da maior teresses de cada momento, e do
fonte do OSS (recolhimento em fo- mercado, redundando altíssima e
lha) em 1993, quebrando o SUS e incontrolável rotatividade de pesso-
obrigando o MS contrair emprésti- Do baixo compromisso acima al técnico e especialmente de nível
mo ao FAT/MT; pontuado vem decorrendo: superior, concentrada na medicina
c) retirada de outras fontes do a) enquanto a relação das recei- especializada assistencial, no su-
MS, em 1996, quando a CPMF foi tas correntes da União com o PIB, porte técnico da gestão e até nos
aprovada para o SUS, mas utiliza- entre 1995 e 2004, cresceu de 19,7% poucos médicos generalistas ade-
da para outros fins; para 26,7%, nesse mesmo prazo, a quadamente preparados. No Minis-
d) a prática da área econômica relação do gasto do MS com as des- tério da Saúde restam pouco mais
de impor o tríplice contingenciamen- pesas correntes caiu de 8,12 para de 25% de servidores no quadro do
to na execução orçamentária do MS: 7,2%, tendência que prossegue; pessoal, concentrados nas ativida-
no empenho, na liberação e na li- b) enquanto a contrapartida fe- des burocráticas e administrativas,
quidação/restos a pagar; deral no financiamento do SUS, en- sendo o restante, o festival da mas-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 341
SANTOS, Nelson Rodrigues dos

sa de cargos de comissão e confi- - 150 milhões de vacinas, res de AIDS, no Programa Nacional
ança, e técnicos terceirizados, fra- - 12 mil transplantes, de Imunização (PNI), nos transplan-
gilizando o desenvolvimento da - 1,3 milhão de tomografias, tes de tecidos e órgãos, na redução
missão institucional e influencian- da mortalidade infantil, no forne-
- 23 milhões de ações de vigilância
do negativamente a composição do cimento de medicamentos de alto
sanitária, etc.
quadro do pessoal das secretarias custo, na desospitalização de vári-
estaduais e municipais. Gestores, prestadores de serviços as patologias, etc.
e trabalhadores de saúde “tiram
b) os valores remuneratórios
água das pedras” e fazem aconte-
pelos serviços de saúde estão bem
CONSEQÜÊNCIAS NA cer a política pública de maior in-
aquém do necessário para efetiva-
IMPLEMENTAÇÃO DO SUS clusão social existente no Brasil.
ção de serviços de qualidade, isto
Muitas experiências e projetos exi-
é, bem abaixo do custo do serviço,
a) Os gestores do SUS e traba- tosos são mostrados nacionalmen-
o mesmo acontecendo com mais de
lhadores de saúde tentam efetivar a 90% dos procedimentos da tabela de
qualquer custo o princípio da uni-
pagamento por produção (forma
versalidade, elevando como nunca
predominante de pagamento); os
a produtividade, a produção e a
repasses federais aos estados e
cobertura das ações e serviços, com
GESTORES, PRESTADORES DE SERVIÇOS E municípios permanecem limitados
base no pleno cumprimento do prin-
por tetos financeiros muito baixos,
cípio da descentralização com ên- TRABALHADORES DE SAÚDE “ TIRAM ÁGUA DE
e historicamente dispersos em qua-
fase na municipalização, e mesmo PEDRA” E FAZEM ACONTECER A POLÍTICA se 130 fragmentos negociados um
premidos pela incontornável pres-
PÚBLICA DE MAIOR INCLUSÃO SOCIAL ... a um, cuja revisão aconteceu só
são de demanda, apresentam sur-
agora com a implantação dos Blo-
preendente eficiência, como atesta
cos de Financiamento, após a cria-
a produção de 2006:
ção do Pacto pela Vida 2006;
- 1,3 bilhão de atendimentos bási-
c) os trabalhadores de saúde e
cos,
te, sendo a maioria de caráter local os prestadores de serviços, freqüen-
- 1,2 bilhão de procedimentos espe-
ou municipal, não conseguindo temente valem-se de ‘táticas de so-
cializados,
aplicação/sustentabilidade regio- brevivência’, que vão desde baixa
- 600 milhões de consultas,
nal, estadual e na maioria dos mu- assiduidade, descumprimento de
- 212 milhões de ações odontológi-
nicípios. Em situações especiais, jornadas, alta rotatividade empre-
cas,
quando são alocados recursos mi- gatícia, até a multiplicação de dis-
- 360 milhões de exames,
nimamente suficientes e contínuos, torções da oferta de serviços, gera-
- 11 milhões de ultra-sonografias, o SUS revela de pronto sua compe- da por interesses de mercado, como
- 11,8 milhões de internações, tência e qualidade e mostra resul- pagamentos ‘por fora’ e ‘segunda
- 3,1 milhões de cirurgias, sendo 141 tados surpreendentes como na aten- porta’ em hospitais públicos terciá-
mil cirurgias cardíacas, ção integral à saúde dos portado- rios para particulares e planos

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Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação

privados; a situação real explica es- do subfinanciamento, da precariza- O SIGNIFICADO DO SUBSTITUTIVO


sas táticas mas não as justifica en- ção do trabalho e da exaustão dos “GUILHERME MENEZES”
quanto mais uma subversão do di- gestores; NA REGULAMENTAÇÃO DE EC-29
reito do usuário à saúde; f) a produção de serviços apre-
d) os próprios gestores são mui- sentada carrega inaceitáveis percen- a) Incorpora os PLP n.01/2003 do
tas vezes compelidos a ‘táticas de tuais de ações evitáveis e desneces- Dep. Roberto Gouveia, n.159/2004
sobrevivência’, nada financiando sárias, conseqüência de modelo ina- do Dep. Geraldo Rezende e n.181/
além do mínimo (União e estados), 2004, do Dep. Rafael Guerra, os dois
dequado, centrado nas urgências do
ou mesmo descumprindo o mínimo últimos apensados ao primeiro;
atendimento em detrimento da pro-
(a maior parte dos estados), deso- b) Aprimorado e aprovado nas
teção contra riscos e danos à saúde
nerando-se ao desviar demandas Comissões da Câmara dos Deputa-
(municípios vizinhos, município- e diagnóstico precoce das doenças,
dos: Seguridade Social e Família em
estado e estado-município). Outro porcentuais estes agravados pela
11.08.04, Finanças e Tributação em
importante fator de oneração do SUS 10.11.04, e Constituição, Justiça e
é a inclusão nos Fundos de Saúde, Cidadania em 29.09.05;
despesas como Bolsa-Família na
c) Contempla o igualamento dos
União, saneamento básico, alimen- ... A ESTRUTURAÇÃO DOS MODELOS DE critérios de cálculo das contrapar-
tação, planos privados de servido-
ATENÇÃO E DE GESTÃO NA SAÚDE, COM BASE tidas das três esferas de Governo no
res, pagamento de inativos e outros.
financiamento do SUS, conforme
A última e crescente oneração so- NAS NECESSIDADES E DIREITOS DA POPULAÇÃO,
estampado no art.6, § 2º e 3º da EC-
bre o SUS é a demanda de consumi-
ESTÁ SENDO SUBSTITUÍDA PELO 29, incorporados no Art. 198 da
dores dos planos privados de saú-
INCREMENTALISMO DA PRODUTIVIDADE EM Constituição, que explicita inequi-
de por serviços do SUS, principal-
vocadamente a prescrição para as
mente de alta complexidade, não ASSISTÊNCIA A DEMANDA ESPONTÂNEA
três esferas, de porcentuais para
restituídos pelas operadoras e sem
cálculo, no caso da esfera federal,
qualquer regramento à luz dos prin-
a ser definido em Lei Complemen-
cípios da integralidade e equidade;
tar (ver art. 5º ao 10º do PLP);
também aqui se explica, mas não baixa resolutividade, estrutura de
se justifica, essas subversões do d) Dispõe criteriosamente sobre
trabalho deficiente, baixa capacita-
direito do usuário à saúde; o rateio dos recursos repassados,
ção profissional e conduta ética
e) o desafio de construir o mo- com base nas necessidades da po-
duvidosa;
delo assistencial centrado na regio- pulação e nos princípios da integra-
g) em regra, a estruturação dos
nalização, indutora da integralida- lidade, eqüidade e regionalização,
modelos de atenção e de gestão na
de regulada com equidade, econo- e sobre o planejamento ascendente,
saúde, com base nas necessidades metas e custos (ver art. 17º a 27º);
mia de escala, melhoria do acesso
e da eficiência, tem sua implanta- e direitos da população, está sendo e) Amplia e aprofunda os meca-
ção ainda incipiente frente às gra- substituída pelo incrementalismo nismos de avaliação, controle e fis-
ves barreiras do papel indutor do da produtividade em assistência a calização, aclarando os papéis dos
Estado e as crises não superadas demanda espontânea. conselhos de saúde, do Legislativo,

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 343
SANTOS, Nelson Rodrigues dos

dos Tribunais de Contas e do Minis- confiabilidades e pactuações de oti- Saneamento, Trabalho, Meio Ambi-
tério Público (ver art. 28º a 37º); mização dos gastos entre as três ente, Infra-estrutura do Desenvolvi-
f) Regulamenta e aclara a apli- esferas de Governo e delas com a mento e outras.
cação dos art. 2º ao 7º da Lei sociedade, incluindo resgate dos
n.8080/90, tornando inequívoco o recursos crescentes, ao contrário da
que são serviços públicos de saúde atual imposição de ‘Teto’ aos recur- A ATUAL SITUAÇÃO MACROECONÔMICA DA
financiados pelos orçamentos públi- sos mínimos legais. É a proposta NAÇÃO E O MEMORIAL DAS SECRETARIAS
cos, e o que são serviços referentes que mais garante a reversão da re- ESTADUAIS DE FAZENDA (CONFAZ)
a fatores determinantes e condicio- tração dos gastos federais, referida
nantes da saúde (saneamento, ali- na Parte II – O Conflito. Os secretários estaduais de Fa-
mentação, serviço social, planos i) Apesar de ainda insuficiente, zenda, organizados no CONFAZ, divul-
privados de servidores, pagamento este acréscimo pode causar uma garam em fevereiro de 2007 memo-
de inativos, etc.) de responsabilida- primeira impressão de ‘além do es- rial propondo alterações no Substi-
de orçamentária de outros setores, tutivo “Guilherme Menezes”, basi-
mas que vêm onerando crescente- camente na:
mente o SUS e tergiversando a in- • redução da contrapartida es-
terpretação da Lei n.8080/1990 (ver OS SECRETÁRIOS ESTADUAIS DE FAZENDA, tadual no financiamento do SUS de
art. 2º ao 4º); 12 para 10% de produto da arreca-
g) Reconhece e define as comis-
ORGANIZADOS NO CONFAZ, DIVULGARAM EM dação dos impostos, conforme dis-
sões Intergestores Tripartite e Bipar- FEVEREIRO DE 2007 MEMORIAL PROPONDO posto na EC-29,
tites, e o Sistema de Informações dos • e a inclusão de nove serviços
ALTERAÇÕES NO SUBSTITUTIVO “GUILHERME
Orçamentos Públicos de Saúde (ver vinculados a outros setores, para
art. 25º a 37º e 40º); MENEZES”... serem remunerados pelo SUS (ex.:
h) Estimativas da aplicação em saneamento, inativos, planos priva-
2007, dos 10% da receita federal dos de servidores, entidades priva-
bruta, sem aplicar a DRU, e sem das de pesquisa, serviço social,
contingenciamentos, estão por vol- hospitais universitários, edificações
ta de R$ 65,24 bilhões, que repre- perado ou cabível’, devido à insidi- de unidades de saúde privadas, saú-
sentam R$ 19,5 bilhões a mais que osa e paulatina redução das expec- de penitenciária, etc.), todos eles
os R$ 45,80 bilhões aprovados no tativas, desde 1990, imposta e in- orçamentados nos respectivos seto-
orçamento de 2007. Este acréscimo, trojetada nos formadores de opinião, res por determinação constitucional,
vertido para US$ per capita, signi- pela área econômica e o ‘marketing’ da Lei n.8080/90 e legislação espe-
ficará a evolução da atual faixa de mercadológico, ao descolar cresci- cífica.
US$ 150/200 per capita, para a de mento dos orçamentos públicos de Antes de me posicionar sobre esta
US$ 250/300, ainda insuficiente saúde, do crescimento das receitas proposta e encaminhar uma saída,
para a viabilização do SUS, mas públicas correntes brutas. O que, é importante contextualizá-la:
apontando, junto aos demais avan- desastrosamente aconteceu com a) a partir de 1990 foi organiza-
ços constantes na regulamentação, outras políticas públicas: Educa- da a ‘financeirização dos orçamen-
para novo patamar de esperanças, ção, Habitação, Segurança Pública, tos públicos’, constando de:

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Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação

• pronunciada elevação da ar- o crescimento geométrico da dívida to produtivo, o rendimento médio


recadação e receita federal, inclu- pública, e justificado pela corrente real dos trabalhadores cai continu-
indo a recentralização federal da monetarista da área econômica do amente, assim como cai a porcen-
arrecadação nas três esferas, hoje Governo, como de curtíssimo pra- tagem da massa salarial na forma-
próxima ao nível pré-constitucional; zo, para golpear a inflação. O cres- ção da renda nacional; tudo presi-
• desvinculação de 20% das re- cimento e fortalecimento de uma dido pela permanência pouco justi-
ceitas da União (DRU); ‘nova classe’ de credores/rentistas ficada e debatida, aberta e demo-
• tríplice contingenciamento na da crescente dívida pública, cujos craticamente, de taxa de juros por
execução orçamentária dos setores juros anuais estão por volta de R$ volta do dobro da praticada nos
sociais e de infra-estrutura; 170 bilhões, vêm perpetuando esse países desenvolvidos e em desenvol-
• retração da contrapartida fe- modelo e já concentram o seu usu- vimento, e taxa de crescimento anu-
deral no financiamento de políticas fruto: 75% desses juros vão para 20 al do PIB por volta da metade da
públicas; mil famílias de credores/rentistas. verificada nesses países.
• redução dos gastos com a fo- d) Se for observado somente o
lha de servidores; comportamento dos governos, des-
• terceirizações aleatórias;
SE FOR OBSERVADO SOMENTE O de 1990, sem olhar para a Socieda-
• estagnação ou retração dos de, o Estado e a Nação, eles vêm
orçamentos na área social e de in- COMPORTAMENTO DOS GOVERNOS, DESDE operando com poder discricionário
fra-estrutura; 1990 (...)ELES VÊM OPERANDO COM PODER auto-investido, ao largo da partici-
• retração do campo das respon- pação social consciente, da socie-
DISCRICIONÁRIO AUTO-INVESTIDO, AO LARGO
sabilidades de Estado; dade e do próprio Legislativo.
• ‘Cláusula pétrea’, vínculo sem DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL CONSCIENTE, DA e) A ‘financeirização dos orça-
discussão, no pagamento dos juros, SOCIEDADE E DO PRÓPRIO LEGISLATIVO mentos públicos’ no bojo deste mo-
taxas de risco e do refinanciamento delo vem levando os governadores
da dívida pública; e prefeitos, ano a ano, a crescente
• aplicação inflexível da Lei de instabilidade e tensão imposta pela
Responsabilidade Fiscal no tocante limitação orçamentária ao exercício
à folha de servidores dos setores c) A corrente monetarista da área das responsabilidades de governo
sociais em expansão com a descen- econômica assume a hegemonia, para com o processo produtivo e
tralização, e transferência de res- tornando os governos reféns do cres- direitos sociais das respectivas po-
ponsabilidades federais e estaduais, cimento, também hegemônico, do pulações. É a crise na governança
sem regulamentação nem revisão. capital financeiro. A Nação, envol- e na governabilidade no conceito
b) A ‘financeirização dos orça- vida nesse modelo, vive o desloca- das Ciências Políticas. É o sufoco
mentos públicos’ ocorreu no bojo da mento ininterrupto de recursos bili- sem saídas legais ou com pseudo-
adoção pela União, a partir de 1990, onários do processo produtivo e dos saídas informais, irregulares ou
do modelo de ajuste da pressão in- direitos sociais, para a acumulação mesmo ilegais, como as ‘táticas de
flacionária, concentrado na intensa financeira e bancária: no setor em- sobrevivência’ e as desonerações
e contínua elevação da taxa de ju- presarial, as aplicações financeiras exemplificadas na Parte III (itens c
ros, sem qualquer proteção contra vêm ganhando longe do investimen- e d). A proposta do memorial dos

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 345
SANTOS, Nelson Rodrigues dos

secretários de Fazenda insere-se nes- os Exmos. Governadores, a inicia- Ambiente e outros, e dos setores
se contexto, exacerbando além do tiva de convocação de uma oficina sociais entre si.
que até agora vem sendo feito, a tí- analítica e propositiva entre o CON-
tulo de sobrevivência e desonera- FAZ, o CONASS (Conselho Nacional de
ção. É a autofagia entre as unida- Secretários Estaduais de Saúde) e o UMA PROPOSTA X ESTRATÉGICA NA
des institucionais e orçamentárias CONASEMS (Conselho Nacional de Se- APLICAÇÃO DOS RECURSOS FEDERAIS
de um ‘varejo’ duramente sucatea- cretárias Municipais de Saúde), com CORRESPONDENTES À DIFERENÇA
do por um ‘atacado’ até agora frio, participação dos presidentes das ENTRE OS CÁLCULOS PRÉ E
inclemente e todo poderoso. O me- comissões de saúde das Assembléi- PÓS-REGULAMENTAÇÃO
morial é estruturalmente equivoca- as Legislativas, dos presidentes dos
do: não soluciona, por si, as travas Conselhos dos Secretários Munici- Seguem os passos dados na for-
na governança e governabilidade, e pais de Saúde (COSEMS), dos presi- mulação, e a proposta, apenas es-
avança no aniquilamento do SUS. dentes dos Conselhos Estaduais de quematizada, deixa o necessário
A proposta de encaminhamento aclaramento e detalhamento para a
de uma saída ao memorial do CON- riqueza da participação dos deba-
FAZ deve estar na lógica de um en- tes, por ex., o conceito e prática de
caminhamento maior de saídas para ‘Integralidade Regulada’ e de ‘Re-
a governança e governabilidade dos O MEMORIAL É ESTRUTURALMENTE gionalização Cooperativa e Solidá-
estados, DF e municípios, e para a EQUIVOCADO: NÃO SOLUCIONA, POR SI, AS ria’:
própria União, calcadas em profun- a) se o subfinanciamento e pre-
da, ampla e democrática revisão,
TRAVAS NA GOVERNANÇA E GOVERNABILIDADE, carização da gestão do pessoal de
pela Sociedade e Nação, da sua re- E AVANÇA NO ANIQUILAMENTO DO SUS saúde vêm levando às conseqüên-
lação com o Estado, reapropriando- cias negativas exemplificadas na
o para si, como começava a acon- Parte III, a reversão dessas duas
tecer nos anos 1980. Apenas come- causas, ainda que gradativa, deve-
çava! rá incidir estrategicamente no res-
Elementos estruturais constari- gate da equidade, integralidade e
am na base dessa revisão, como o Saúde, de representantes da Asso- regionalização para o centro da
sistema Tributário e Fiscal, a pro- ciação dos Membros dos Tribunais construção dos novos modelos, isto
teção da dívida pública contra ju- de Contas (ATRICON) e da Associação é, para a estrutura básica da cons-
ros altos, a queda dos juros, as Leis Brasileira de Economia de Saúde trução do SUS. Sendo que a descen-
da Responsabilidade Fiscal e Soci- (ABRES) tralização /municipalização avan-
al, a desprecarização da gestão dos Esta oficina (ou seminário) de- çaram bastante, está mais que na
servidores públicos, a precedência veria ser adequadamente prepara- hora de serem orientadas pela regi-
das políticas públicas e dos valo- da, com documentos prévios enco- onalização. Sendo que a universa-
res e direitos sociais sobre os indi- mendados. Na seqüência, eventos lização avançou bastante, está mais
viduais e outros. similares deveriam ser organizados que na hora de ser qualificada pela
Voltando ao memorial do CONFAZ, com os setores Educação, Assistên- equidade, integralidade regulada e
propomos que seja instada perante cia Social, Cultura e Lazer, Meio resolutividade. Com pena de ser se-

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Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação

guido e consolidado um outro rumo atenção integral à saúde e respecti- gresso, capacitação, carreira, fixa-
para um outro modelo, que não o vos custos, conforme dispõe o subs- ção dos profissionais e remunera-
do SUS; titutivo Guilherme Menezes; ção mista (fixa e por desempenho/
b) assunção pelos gestores, tra- • valor de remuneração XXX de resultados das equipes);
balhadores de saúde, usuários e todos os serviços preventivos e cu- • investimento estratégico obe-
prestadores de serviços, da constru- rativos não inferior aos respectivos decendo o Plano Diretor de Regiona-
ção da regionalização (sistemas de custos; lização, universalizando o acesso à
redes regionalizadas), enquanto eixo • autonomia gerencial para as capacidade instalada e de profissio-
aglutinador da construção da equi- unidades hospitalares mais comple- nais subordinando-se à diferencia-
dade e integralidade. A equidade xas e para distritos sanitários; ções entre as regiões em função da
intermunicipal na Região, articula- • contratos de gestão para cum- diretriz da equidade;
da nas pactuações intermunicipais primento de metas, desempenho e • adoção dos preceitos da pro-
e dos municípios com o estado; a resultados, definidos, realizados e dução em escala, otimizando a re-
equidade inter-regional, sob respon- lação custo/qualidade/efetividade,
sabilidade maior da Bipartite e do balizada pela construção da equi-
estado e a equidade interestadual, dade;
sob a responsabilidade maior da • propiciamento de condições
Tripartite e da União. Sob a mesma
... CONSTRUÇÃO DA REGIONALIZAÇÃO (SISTEMA para a qualificação da Atenção Pri-
lógica deverão ser equacionadas as mária, objetivando resolutividade de
situações limítrofes interestaduais; DE REDES REGIONALIZADAS), ENQUANTO EIXO no mínimo 80% das necessidades,
c) este processo deve viabilizar- AGLUTINADOR DA CONSTRUÇÃO DA EQUIDADE E com base nas necessidades da po-
se de acordo com o tamanho e perfil pulação, agregando o pronto-aten-
INTEGRIDADE
populacional, distribuição de capa- dimento contínuo, tornando-a refe-
cidade instalada e dos profissionais rência para acesso garantido aos
de saúde, as vias de acesso e os atu- serviços de média e alta complexi-
ais fluxos de demandas, e em arti- dade e centro de organização da rede
culação com os processos de terri- de serviços;
torialização das cadeias produtivas avaliados sob lógica publicista, fi- • participação efetiva da socie-
de bens e serviços, e não de forma cando a remuneração por produção, dade através dos Conselhos de Saú-
setorial isolada. Não deve, por isso, forma excepcional e residual; de na definição e aprovação das pri-
depender dos limites administrativos • Gestão Colegiada da Região oridades e etapas perante os li-
das Diretorias Regionais das Secre- Sanitária: deve ser pública gover- mites do financiamento;
tarias Estaduais de Saúde; namental (estadual/municipal) com- • resgate dos valores e práticas
d) o modelo de gestão almejado partilhada, composta pelos di- da solidariedade e humanização das
em cada região sanitária deve con- retores das Diretorias Regionais e relações com os usuários;
templar basicamente: os Secretários Municipais de Saúde • definição e assunção da res-
• planejamento ascendente do da Região Sanitária; ponsabilidade sanitária em todos os
local ao regional, com metas quali- • desprecarização da gestão do níveis da prestação de serviços,
quantitativas e de resultados da pessoal de Saúde, incluindo o in- além dos entes federados.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 347
SANTOS, Nelson Rodrigues dos

e) No processo de novo patamar CNS, resultando o “Pacto pela Vida dutiva do complexo econômico-in-
de financiamento, da desprecariza- em Defesa do SUS e de Gestão”; dustrial da Saúde, com potência de
ção da gestão do pessoal e da cons- h) a proposta de aplicação dos induzir os investimentos privados
trução dos novos modelos, será ina- recursos referentes à diferença en- e reverter o grande déficit acumu-
bdicável a construção de nova rela- tre os cálculos pré e pós-regulamen- lado desde os anos 1990.
ção do SUS, em todos os níveis, com tação é a de: i) os cronogramas de implanta-
a saúde suplementar (mercado de • maior parte destinada à apli- ção e/ou implementação das Regi-
planos privados de saúde), com ên- cação parcelada em gastos orienta- ões Sanitárias, com as respectivas
fase no regramento da demanda dos dos por metas estratégicas, com etapas, prioridades, requisitos com-
respectivos consumidores aos ser- direcionalidade e aceleração do pro- prováveis, tanto das atividades –
viços do SUS, de média e principal- cesso da Regionalização Cooperati- meio como finalísticas, articuladas
mente alta complexidade e custos, va e Solidária; entre si –, assim como as alterna-

com vistas ao efetivo cumprimento tivas da intervenção no processo

dos princípios e diretrizes da equi- ocorrerá simultaneamente em todas


as regiões, ou seqüencial por re-
dade, integralidade e regionaliza-
gião, serão objetos, entre outros,
ção, em substituição à hoje predo- ...AOS CRONOGRAMAS DE IMPLEMENTAÇÃO E/ das formulações e pactuações na
minante desoneração das operado-
OU IMPLEMENTAÇÃO DAS REGIÕES Tripartite, nas Bipartites e Biparti-
ras dos planos privados;
f) o processo da regionalização SANITÁRIAS, DEVERÃO CORRESPONDER tes regionais, e discutidas nos res-
pectivos conselhos e plenárias re-
dos serviços de saúde variará ine- CRONOGRAMAS DE LIBERAÇÃO DOS gionais de saúde.
xoravelmente na forma e velocida-
RESPECTIVOS RECURSOS PARA O FUNDO j) aos cronogramas de implan-
de, de acordo com as realidades his-
tação e/ou implementação das Re-
tóricas populacionais, socioeconô- NACIONAL DE SAÚDE ...
giões Sanitárias, deverão corres-
micas, culturais, epidemiológicas e
ponder cronogramas de liberação
de capacidade instalada, em cada
dos respectivos recursos para o
região, estado e macrorregião do
Fundo Nacional de Saúde, justifi-
território nacional; • outra parte destinada à apli- cados pela Tripartite e executados
g) já se encontram estabelecidas cação imediata conforme disposto pelo MS-MPOG. O montante dos re-
as responsabilidades da Tripartite, nos planos e orçamentos de cada cursos ainda não liberados (saldo),
nas pactuações genéricas no âmbi- ente federado, com prioridades e não deverá ser objeto de contingen-
to nacional sobre a regionalização, etapas pactuadas na Tripartite e ciamentos e estornos, inclusive ao
e das Bipartites em cada estado, Bipartites, incluindo as situações final do ano fiscal. Possível acumu-
com autonomia de pactuações de mais graves de desassistência, epi- lação (saldo) findo o processo da
diretrizes nos respectivos territóri- demias, retorno de endemias e de- regionalização, deverá ser destina-
os, tudo discutido e legitimado nos sarticulação do sistema, e a do à continuidade da elevação dos
respectivos conselhos de saúde. O • outra parte destinada aos in- recursos públicos per capita anu-
eixo básico desse processo foi cons- vestimentos públicos estratégicos ais para o SUS, objetivando alcan-
truído em 2006 pela Tripartite e na ciência/tecnologia e cadeia pro- çar patamar correspondente à pelo

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Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação

menos a metade da média dos per eles garantindo equitativamente as de e direito de cada cidadão e da
capita públicos vigentes nos países condições mínimas imprescindíveis coletividade, mas com regulação
mais desenvolvidos, como Canadá ao usufruto da dignidade do ser pactuada com a sociedade das ten-
e países europeus (por volta de U$ humano e dos direitos sociais espe- dências e pressões de utilização ili-
700 por habitante-ano); lhados em nossa Constituição: Edu- mitada de ações e serviços evitá-
k) esta proposta, assim como o cação Saúde, Trabalho, Moradia, veis, supérfluos e desnecessários.
debate sobre os gastos do SUS, in- Lazer, Segurança, Previdência Soci-
cluindo os adicionais com a apro- al, Proteção à Maternidade e Infân- IV – A elevada competência al-
vação da regulamentação da EC-29, cia e Assistência aos Desamparados. cançada na gestão de sistemas nos
deve se dar com a participação dos Como nas sociedades mais desen- 17 anos do SUS, com estabelecimen-
Conselhos de Saúde e da sociedade volvidas, são garantias constituci- to da direção única em cada esfera
organizada, em especial, com as onais do exercício da cidadania: o de governo, da gestão pactuada en-
representações dos usuários, sendo Sistema de Proteção Social que ofe- tre as três esferas (Tripartite e Bi-
que na questão da regionalização rece patamar básico digno de aten- partites), da descentralização radi-
não deverão deixar de ser valoriza- ção aos direitos sociais, e a Renda cal de competências, da criação dos
dos, fóruns ou plenárias regionais que o complementa de acordo com Fundos de Saúde e repasses Fundo
de saúde. A consciência coletiva das o estrato social. a Fundo, dos Conselhos de Saúde e
necessidades e direitos à saúde am- de respeitável vanguarda na gestão
pliará em um valor a mais: “a mi- II – O Sistema Único de Saúde estadual e municipal, pouco se es-
nha região, que está social e legal- está legalmente compelido a buscar tendeu à gestão e gerência cotidia-
mente obrigada a proteger minha integração e sinergismo permanen- nas das unidades prestadoras de
saúde e a da coletividade regional, tes com os setores governamentais serviços, das simples às complexas.
com atenção integral, equitativa e responsáveis pelos fatores determi- Apesar da grande elevação da pro-
universal”. nantes e condicionantes da saúde no dutividade e produção, permanecem
âmbito das políticas públicas, espe- inaceitáveis proporções de desper-
lhados em nossa Lei Orgânica da dícios com ações e serviços evitá-
ANEXO Saúde: Alimentação, Moradia, Sane- veis, supérfluos e desnecessários,
amento Básico, Meio Ambiente, Tra- conseqüentes à impossibilidade de
ENCAMINHAMENTOS DE APOIO balho, Renda, Educação, Transpor- reverter a atual lógica da oferta de
ÀS ARTICULAÇÕES te, Lazer e Acesso aos Bens e Servi- serviços onde pesam os interesses
E NEGOCIAÇÕES SOBRE ços Essenciais. Da mesma maneira, de ‘sobrevivência’ de profissionais
A REGULAMENTAÇÃO DA EC-29 a Seguridade Social consagrada na de saúde, prestadores de serviços e
Constituição. industria de medicamentos e outros
I – O projeto da Reforma Sanitá- insumos, secundarizando as neces-
ria Brasileira insere-se no projeto III – A oferta e utilização de ser- sidades e direitos da população. Por
social maior civilizatório que defi- viços públicos integrais de saúde, sua vez, este peso depende direta-
ne e configura o Estado democráti- preventivos e curativos, deve-se re- mente do grave subfinanciamento
co subordinado por igual ao conjun- alizar em patamar mínimo impres- público (per capita público menor
to dos segmentos da sociedade, a cindível correspondente à dignida- do que em vários países da Améri-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 349
SANTOS, Nelson Rodrigues dos

ca Latina e pouco mais de 10% da VI – O principal elo de extensão ços, em cada município, em cada
média dos países desenvolvidos), e da competência alcançada na ges- região, em cada estado e ao nível
do baixíssimo nível da remuneração tão de sistemas, para a construção nacional, por meio dos Conselhos de
e gestão do trabalho do pessoal de de novos modelos de gestão e ge- Saúde e da relação direta Governo-
saúde, o que tem colocado, em re- rência das unidades prestadoras de Sociedade.
gra, os gestores estaduais, e princi- serviços, será o último espaço da Um outro desafio inadiável para
palmente os municipais de saúde, gestão sistêmica ainda não priori- a gestão do SUS, a ser tratado no

em verdadeiro estrangulamento. zado e assumido na prática, que é primeiro plano das negociações da
o da diretriz Constitucional da Re- regulamentação da EC-29, é a deci-
gionalização, mas já reconhecido no siva questão da cadeia produtiva do
V – É de constatação inequívo-
recente Pacto de Gestão como seu complexo econômico-industrial da
ca, o esgotamento da viabilidade de
maior eixo estruturante. Por meio Saúde, portadora de grande déficit
solução única: somente com a im-
deste e outros elos, os gestores do acumulado desde os anos 1990, de
prescindível elevação do financia-
SUS e os Conselhos de Saúde nas investimentos estratégicos gerado-
mento público, ou só com a impres-
res de riqueza, emprego e sustenta-
três esferas de Governo estão frente
cindível reversão dos desperdícios
ção da política pública de saúde.
a frente com desafios inadiáveis, tais
gerados pela lógica predominante
como: implantação e implementa-
da oferta de serviços. Tornam-se VII – As questões e proposições
ção das Regiões Sanitárias, plane-
imprescindíveis e inadiáveis posici- constantes nos encaminhamentos
jamento ascendente de metas quali-
onamentos enfáticos e terminantes anteriores vêm sendo profunda e
quantitativas da oferta de ações e
por uma regulamentação da EC-29 coerentemente debatidas e formula-
serviços de saúde integrais e equi-
estruturalmente voltada para o atre- das pelo Congresso Nacional, na ela-
tativos, em cada realidade regional
lamento da retomada do rumo para boração do PL substitutivo do Dep.
e microrregional, os custos de cada
o financiamento suficiente, à reto- Guilherme Menezes, nos anteproje-
meta com base nos recursos mate-
mada do rumo para as inadiáveis tos do Sen. Tião Viana e Marconi
riais e humanos minimamente ne-
transformações e impactos nos mo- Perilo, e pelo Governo, na elabora-
cessários, remuneração do cumpri-
delos de gestão e gerência das uni- ção do Pacto pela Vida, em Defesa
mento das metas com valores não do SUS e de Gestão, aprovado na
dades prestadoras de serviços, vol-
inferiores aos custos, autonomia Tripartite e no Conselho Nacional de
tando definitivamente sua lógica
gerencial das unidades governamen- Saúde, assim como o anteprojeto de
para a centralidade dos direitos do
tais, indicadores objetivos para Lei da criação de Fundações Esta-
usuário cidadão, para os resultados acompanhamento da eficiência, de- tais, com elaboração conduzida pelo
na saúde da população, para o de- sempenho das equipes e resultados Ministério do Planejamento e enri-
sempenho das equipes de saúde e para a população, contratos de ges- quecida por respeitáveis especialis-
para a efetiva participação da soci- tão e participação efetiva da socie- tas em gestão, gerência e Direito
edade na definição das prioridades dade organizada na definição de Sanitário. A proposição mais com-
e etapas da oferta de serviços, pe- prioridades e etapas, perante a fini- pleta debatida e legitimada no mo-
rante a finitude dos recursos aloca- tude dos recursos alocados, em mento é o substitutivo “Guilherme
dos. cada unidade prestadora de servi- Menezes” do PLP n.01/03, aprimo-

350 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005
Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação

rado e aprovado nas três comissões vinculados ao cumprimento, pelas ação em Saúde Coletiva, Centro Bra-
obrigatórias da Câmara dos Depu- três esferas de Governo, do que são sileiro de Estudos de Saúde, 2005.
tados: além de garantir a reversão e não são os serviços de saúde fi-
da retração dos gastos federais, nanciados pelo SUS, a constar na ______. Reflexões atualizadas so-
iguala os critérios de cálculo entre regulamentação, além da disponibi- bre a urgência da tramitação do
as três esferas de Governo e respal- lização pela União, dos restos a pa- Projeto de Lei Complementar da EC-
da a construção do SUS, mantendo, gar acumulados em anos anteriores 29. Rio de Janeiro: Associação Bra-
na sua formulação, todas as pon- e dos recursos contingenciados em sileira de Pós-Graduação em Saú-
tes com as outras propostas com 2007. A aplicação dos recursos re- de Coletiva, Centro Brasileiro de Es-
vistas a negociações e consolidação feridos neste item permanece tam- tudos de Saúde, 2004.
no Congresso Nacional. bém atrelada ao disposto nos enca-
minhamentos V, VI e VII deste Ane- BRASIL. Constituição, 1988. Emen-
VIII – Caso as atuais caracterís- xo. da Constitucional 29, de 13 Setem-
ticas macroeconômicas e relações bro de 2000. Altera os arts. 34, 35,
de forças políticas e sociais forem X – Deve constar também na re- 156, 160, 167 e 198 da Constitui-
desfavoráveis na negociação da re- gulamentação, a avaliação sistemá- ção Federal e acrescenta artigo ao
gulamentação e imponham a conti- tica a cada cinco anos, com as revi- Ato das Disposições Constitucionais
nuidade do cálculo segundo a vari- sões que se fizerem necessárias, e Transitórias, para assegurar os re-
ação nominal do PIB, deverão ser com interação (mútua adequação) cursos mínimos para o financia-
construídas outras alternativas de com o PPA. mento das ações e serviços públi-
negociação, entre as quais a de pac- cos de saúde. Disponível em: < ht-
tuar um acréscimo anual além da XI – Devem ser identificadas, tps://www.planalto.gov.br/cci-
variação nominal do PIB, correspon- desde já, junto aos conselhos de saú- vil_03/constituicao/emendas/emc/
dente a um porcentual do PIB, ten- de, as repercussões concretas na emc29.htm> .Acesso em: 14.05.06
do já havido a proposta de 0,25% atenção às necessidades e direitos
no mínimo. Este acréscimo poderá da população, no curto e médio pra- ______. Conselho Nacional de Saú-
ser prorrogado ou revisto após pe- zo, assim como imediata ampliação de. Parâmetros Consensuais sobre
ríodos não inferiores a quatro anos, da informação e participação para a Implementação e Regulamenta-
ou ainda substituído pela alternati- a opinião pública em geral. ção da EC-29 – CNS, SIOPS, CAS/SE-
va original conforme dispõe o subs- NADO, CSSF/CD, MP, ATRICON, CONASS,
titutivo “Guilherme Menezes”. De CONASEMS. Brasília, DF: [s. n.], 2001.
qualquer modo, deve ser observa- REFERÊNCIAS
do o atrelamento disposto nos en- ______. Ministério da Fazenda. Me-
caminhamentos V, VI e VII deste ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚ- morial das Secretarias Estaduais
Anexo. DE COLETIVA Reafirmando compro- da Fazenda. Brasília, DF: CONFAZ,
missos pela saúde dos brasileiros: 2007.
IX – Há que se considerar tam- lançamento do fórum da reforma
bém a disponibilização de aproxi- sanitária brasileira. Rio de Janeiro: ______. Ministério da Saúde. Car-
madamente R$ 5 bilhões anuais, Associação Brasileira de Pós-Gradu- ta de Brasília: manifesto aprovado

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 351
SANTOS, Nelson Rodrigues dos

pelos 800 participantes da 8º Sim- regulamentação da EC-29, PLP n.


pósio sobre Política Nacional de Saú- 01/2003, mar/2007.
de, 2005.
FLEURY, S. O PAC e a Saúde. Bole-
______. Portaria MS n. 399, de 02 tim CEBES, n.3, fev. 2007.
de fevereiro de 2006. Pacto pela FÓRUM Saúde e democracia: uma
Vida, em Defesa do SUS e de Ges- visão de futuro para o Brasil. Bra-
tão. Brasília, DF: MS, CONASS, CONA- sília, DF: CONASS, 2006.
SEMS, 2006.

MENDES, A. Financiamento da saú-


CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa. de: quando as tensões
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______. Saúde: o tudo para todos


que sonhamos e o tudo que nos im-
pingem os que lucram com ela. São
Paulo: [s. n.], 2004. Disponbível em:
<http://www.canalsaude.fiocruz.br/
arquivos/jornada1.pdf> . Acesso em
: 02.02.2007.

______. Aumento de recursos pos-


sível para a saúde se for aprovada a

352 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005
Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde 1

Notes on the decentralization process of health care

Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato2

Recebido: Jun./2006
Aprovado: Jul./2007
RESUMO

O artigo discute aspectos que estariam indicando o esgotamento do


modelo de descentralização até aqui adotado na área de saúde. Argumenta-
se que o modelo indutor de adesão dos entes subnacionais, através do
privilégio ao financiamento, esgotou suas possibilidades de estimular a
responsabilidade desses entes na construção de sistemas baseados nos
princípios do SUS, de estimular a democratização e de alterar as formas
tradicionais de intermediação de interesses na provisão de serviços, o que
1
Este trabalho contou com o apoio dos
tem comprometido a construção de um sistema de saúde baseado nas
alunos e pesquisadores Anne Carolina de
Melo Santos, Assis Mafort Olverney,Maria necessidades sociais da população.
Gabriela Monteiro e Thais Soares, partici-
PALAVRAS-CHAVE: Descentralização, Política de Saúde, Sistema Único de Saúde
pantes da pesquisa Municipalização da saú-
de: inovação na gestão e democracia local
no Brasil, realizada pelo Programa de Es-
tudos da Esfera Pública – PEEP da Escola
de Administração Pública da Fundação Ge-
túlio Vargas, Rio de Janeiro, sob coordena-
ção da Profa. Sonia Fleury. ABSTRACT

This article discusses aspects that would suggest the exhaustion of the
decentralization model adopted up to now in the area of health. It is argued
that the model to encourage adherence by subnational entities, by means
of offering privileges regarding funding, has exhausted the possibilities of
stimulating responsibility amongst such entities to construct systems based
2
Socióloga, Mestre em Administração Pú- on the principles of the Unified Health System, of stimulating
blica e Doutora em Saúde Pública. Profes-
democratization and of altering the traditional forms of intermediating
sora do Programa de Estudos Pós- Gradua-
dos da Escola de Serviço Social da Univer- interests in service provision. As a result this has compromised the
sidade Federal Fluminense. Coordenadora construction of a health care system based on the population’s social needs.
do Núcleo de Avaliação de Políticas – NAP/
UFF. KEY-WORDS: Decentralization, Health Policy, Unified Health System

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 353

353
LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa

INTRODUÇÃO cia setorial, e que novas estratégias Operacional Básica 01 de 1996 (NOB
deveriam ser pensadas. 96), é majoritariamente tratado como
A descentralização do setor saú- o ponto positivo de impulso à des-
de no Brasil encontra-se hoje em um centralização, embora haja autores
ponto que pode ser considerado di- AUTONOMIA DOS que considerem que a NOB 96 feriu
lemático, já que aparentemente os NÍVEIS DE GOVERNO a autonomia de gestão dos municí-
esforços da estrutura político-admi- pios ao privilegiar o financiamento
nistrativa do setor não estão sendo O primeiro ponto diz respeito à dos programas de saúde da família
suficientes para completar a descen- responsabilidade partilhada entre e de agentes comunitários da saúde
tralização como prevista na Consti- níveis de governo com alto grau de (SILVA, EGYIDIO e SOUZA, 1999). De
Processo democrático
tuição e, em especial, na Lei 8080. autonomia. O caráter solidário da fato, os incentivos dados à adesão
E, nesse sentido, pode ser questio- descentralização como proposta na dos municípios têm como premissa
nado o potencial da descentraliza- legislação do SUS vai de encontro a solidariedade aos princípios do
ção intrasetorial como estimulado- SUS, mas sempre estiveram forte-
ra de inovações que permitam aden- mente pautados nas escolhas dos
sar a esfera pública, consolidar o órgãos centrais de gestão por meio
poder democrático local e garantir de incentivos financeiros. Assim,
os objetivos da universalização da A DESCENTRALIZAÇÃO DO houve uma potente adesão onde esta
assistência à saúde, princípios pre- SETOR SAÚDE NO BRASIL implicava baixos custos e, ao con-
sentes na reforma sanitária brasilei- trário, onde havia necessidade de
ENCONTRA-SE HOJE EM UM PONTO
ra. uma ação própria do ente de gover-
Levantamos alguns pontos que QUE PODE SER CONSIDERADO no, em especial com aporte signifi-
ao nosso ver expressam esse dile-
DILEMÁTICO ... cativo de recursos, a adesão não
ma, com o objetivo de contribuir aconteceu.
para o debate sobre os rumos da O resultado foi que a NOB 96 tor-
descentralização. nou-se fundamental para a estraté-
O que chamamos aqui de dile- ao cálculo que municípios e esta- gia de saúde da família, tanto pela
ma se expressa pelo cruzamento de dos fazem para aderir ou não aos expansão da cobertura em si, como
um conjunto de variáveis que se re- preceitos da descentralização. O pro- pelo desenvolvimento e difusão de
ferem tanto ao processo de condu- cesso de adesão voluntária, base da uma tecnologia de gestão da aten-
ção da descentralização desenvolvi- descentralização democrática nos ção básica. Contudo, avançou-se
da no setor, quanto por característi- preceitos do SUS, não significa, con- pouco na autogestão dos sistemas
cas institucionais que compõem o tudo, benefícios certos a estados e de saúde, segundo os princípios do
cenário da descentralização. Nossa municípios. Em verdade, como já SUS. Assim, gerir o SUS, ‘segundo
hipótese é que o conjunto dessas demonstrou Arretche (2000), há um os princípios do SUS’, com os in-
variáveis demonstra um esgotamen- cálculo razoável na adesão, sempre centivos financeiros repassados pelo
to do modelo até aqui adotado de pesado entre custos e benefícios. O governo federal, não tem compen-
descentralização, tanto no que toca processo de descentralização pelas sado. Em março de 2006, apenas
aos objetivos do SUS quanto à bus- Normas Operacionais, em especial 7,7% dos municípios estavam habi-
ca do aprofundamento da democra- aquele deslanchado pela Norma litados em gestão plena do sistema

354 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005
Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde

pela NOB 96 (implantada em 1998), regional foi outro fator apontado sistema de saúde. Este impulso con-
e apenas 4,6% habilitados pela Nor- como importante para a não adesão solidou um formato de descentrali-
ma Operacional da Assistência à às NOBs. De fato, também em mar- zação que não oferecia estímulos à
Saúde - NOAS. ço de 2006, havia estados onde a integração entre as estruturas de
Outro fator que chama a atenção habilitação na condição de gestão municípios, dificultando o aprovei-
é que aparentemente a adesão tem plena do sistema alcançava 45% dos tamento racional de recursos e o
dependido de estímulos para além municípios, enquanto que, em ou- ordenamento hierárquico das bases
dos incentivos regulares, o que pode tro extremo, há um estado onde ape- de serviços de uma região e/ou es-
ser plenamente legítimo, mas de- nas 0,45% dos municípios estavam tado. O processo de implementação
monstra uma fragilidade tanto des- habilitados. da NOAS, que tinha como objetivo a
ses incentivos como da disposição A regionalização, um dos nós da regionalização, e possuía desenho
dos entes subnacionais em assumir reforma sanitária e do SUS, também bastante apropriado, demonstra a
de vez o SUS. A distribuição das encontra na autonomia um fator preponderância da autonomia dos
habilitações por estado mostra que municípios e estados na adesão ao
, em alguns deles, nenhum municí- processo de descentralização, já que
pio tinha se habilitado à NOB 96 e ela não se concretizou nem parcial-
todos se habilitaram à NOAS. Há mente.
outros onde todos os municípios se A REGIONALIZAÇÃO, UM DOS NÓS DA O papel limitador das NOBs so-
habilitaram à NOB 96, mas nenhum bre outros fatores institucionais in-
REFORMA SANITÁRIA E DO SUS, TAMBÉM
à NOAS. Este último caso é até acei- tra e extra sistema de saúde, como
tável, já que a NOAS supõe intera- ENCONTRA NA AUTONOMIA UM FATOR aqui a autonomia dos entes federa-
ção com outros municípios e a par- COMPLICADOR QUE NÃO FOI RESOLVIDO PELA dos na condução do SUS, limita as
ticipação dos estados, o que extra- possibilidades de atuação através de
DESCENTRALIZAÇÃO
pola a iniciativa municipal. Mesmo mecanismos como esse. Esse apren-
assim, municípios ,em gestão ple- dizado contribuiu para que na nova
na do sistema na NOB 96, já teriam estratégia de impulso ao SUS, cha-
a experiência de gestão, contratação mada Pacto pela Saúde, as NOBs
e regulação de serviços que lhes complicador que não foi resolvido tenham sido eliminadas. Curiosa-
daria arcabouço para estimular as pela descentralização, já que esta mente, na leitura da Portaria 399 até
parcerias pela regionalização, até teria favorecido de forma desequili- agora editada para normatização
porque são poucos os municípios do brada a dinâmica intramunicipal, dessa nova estratégia (que chama a
país que possuem auto-suficiência em prejuízo da relação entre muni- atenção por ser mais orientadora do
de rede, sendo que maioria requer cípios com a participação dos esta- que normatizadora), fica evidente
serviços para além dos seus limites dos. O formato da estratégia de des- que a realização dos objetivos do
municipais. Já no primeiro caso fica centralização, adotado até o final da SUS e da Reforma Sanitária reque-
claro que houve um estímulo espe- década de noventa, privilegiou a rem a solidariedade dos entes naci-
cífico, provavelmente dos estados, formação de bases isoladas e a ges- onais aos princípios e objetivos do
o que reforça a preponderância da tão da dinâmica intramunicipal SUS e que, além disso, supõe uma
autonomia, seja na direção de ade- como expressão do caráter munici- profunda interdepen-dência entre
rir ao SUS, ou não. A diversidade palista que orientou a reforma do esses entes, o que pode encontrar

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 355

355
LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa

limites na autonomia de estados e dos entraves ao crescimento do pa- como passíveis de fazer parte desse
municípios. pel prescrito dos Conselhos. De fato, jogo.
A autonomia foi um dos precei- a baixa interferência desses na con- Estudo recente de Santos Junior
tos fundamentais da Constituição de dução do SUS aparece sempre nas et al (2004) sobre conselhos de di-
88, como mecanismo de aprofundar reivindicações dos movimentos, e versas áreas sociais, em diferentes
a democracia e gerar eficácia, em mesmo como “a” solução para a regiões metropolitanas, demonstra
especial das políticas sociais. Mas, resolução dos graves problemas da que os conselheiros têm em geral
muitos dos avanços do SUS só pu- saúde e do SUS. O contraditório aqui escolaridade, acesso à informação
deram ser alcançados por impedi- é que, apesar da valorização do pa- e participação política bem superi-
mentos a essa autonomia, caso das pel dos Conselhos nas bases sociais ores à média do país. Suas recla-
NOBs e, em especial, da indução de e atores institucionais do SUS, a mações versam sobre o que pode ser
ações de assistência através de re- descentralização priorizou mecanis- atribuído à baixa disposição dos
cursos carimbados. Ao revés, o mos de gestão do sistema que, ao governos em prover os elementos
avanço que é requerido ao SUS hoje, necessários ao exercício do contro-
no sentido da concretização da uni- le social - como acesso à informa-
versalização com qualidade da aten- ção para fisca-lização e decisão, di-
ção, depende da adesão autônoma ... APESAR DA VALORIZAÇÃO DO PAPEL DOS vulgação, infra-estrutura, etc. -, e
dos entes, que têm ampla autono- CONSELHOS NAS BASES SOCIAIS E ATORES que poderiam estimular a capacida-
mia para não aderirem. de decisória dos conselhos. Apesar
INSTITUCIONAIS DO SUS, A
do estímulo aos Conselhos, a políti-
DESCENTRALIZAÇÃO PRIORIZOU MECANISMOS ca setorial ao máximo desenvolveu
PROCESSO DE GESTÃO DO SISTEMA QUE (.....) estratégia de capacitação para con-
DEMOCRÁTICO selheiros, que se bem é funda-men-
FAVORECERAM INSTÂNCIAS ONDE ELES
tal, não toca no problema central,
A democracia foi um fator impulsi- ESTIVERAM FORA. que é a baixa disposição, mesmo no
onador das demandas pelo direito à setor mais organizado da área soci-
saúde, calcada na bem-sucedida al, de contagiar práticas associati-
articulação entre democracia e saú- invés de fortaleceram o controle so- vas. Nesse sentido, faltaria à des-
de. De novo a descentralização apre- cial, favoreceram instâncias onde centralização - e aí pensando ape-
sentou mecanismos importantes, eles estiveram fora. A CIT e CIBs fo- nas na saúde, embora esta devesse
entre eles as instâncias de pactua- ram fundamentais na condução da ser uma estratégia geral para a área
ção, o estímulo induzido à forma- descentralização, e boa parte do de- social -, gerar uma política de “in-
ção dos conselhos e à participação senvolvimento do sistema esteve centivo à associação cívica” (SAN-
e controle social através dos Conse- dirigida pelo Ministério em conso- TOS JUNIOR ET AL, 2004).
lhos. Desnecessário apontar os nância com elas. Apesar de serem Sem dúvida, a área de saúde é a
avanços nesses aspectos, mas sim instâncias de pactuação, onde a ne- mais propensa a esse tipo de estra-
apontar possíveis entraves. gociação é a pauta, em oposição à tégia e isso poderia gerar o adensa-
Principalmente os estudos sobre tradição centralizadora e autoritá- mento da reforma para as próximas
Conselhos têm apontado o baixo ria da política de saúde, o fato é que gerações, com impactos positivos
associativismo no Brasil como um os conselhos jamais foram vistos em outras áreas, como já tem sido

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Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde

demonstrado pela replicação do tralizada do SUS, pelo empenho na tos levantados, e a portaria 399 in-
modelo único e descentralizado do condução mais transparente e asso- dica a implementação de “projeto
SUS. ciada aos Conselhos na defesa e permanente de mobilização social”.
Os Conselhos de Saúde são críti- aprovação de legislações que impo- Ainda não há indicação sobre a es-
cos também ao papel das Comissões nham mais compromissos dos en- tratégia para isso, mas curiosamente
Intergestores, pela possibilidade de tes responsáveis pelo SUS. Tanto no um dos principais elementos do
assumirem competências que são nível federal como nos demais, essa novo pacto, a criação dos Colegia-
deles, enfraquecendo o controle so- arena é tratada de forma utilitarista dos de Gestão Regional, não conta
cial. Salientam que as Comissões pelos executivos, tanto em condições com a participação de setores soci-
acabam decidindo políticas públi- de maioria quanto de minoria. A ais, mas somente representantes
cas, gerando confusão e comprome- visão recorrente de que o processo governamentais, assim como nas
tendo o caráter deliberativo dos Con- legislativo é comandado pelo exe- comissões intergestores regionais. A
selhos. Destacam que as Comissões cu-tivo é contradita pelo estudo de questão aqui é em que essas ins-
não são formas de democracia par- tâncias se diferenciariam das comis-
ticipativa e que, portanto, o papel- sões bipartites que pactuaram a re-
delas não pode ser confundido com gionalização pela NOAS, com os li-
o dos Conselhos de Saúde, já que mites conhecidos de efetividade. Os
elas foram criadas apenas para fa- colegiados de gestão e as comissões
cilitar a execução e a relação entre
COMISSÕES NÃO SÃO FORMAS
intergestores regionais poderiam
os gestores, tendo seus representan- DE DEMOCRACIA PARTICIPATIVA (......) DELAS seruma boa experiência de associa-
tes indicados pelo Poder Executivo. NÃO PODE SER CONFUNDIDO COM O DOS ção com conselhos.
Há hoje um esgotamento das instân-
cias de pactuação para o aprofun-
CONSELHOS DE SAÚDE ...
damento do SUS, embora sigam sen- POLÍTICA ECONÔMICA
do fundamentais na definição da RESTRITIVA
distribuição de recursos entre esta-
dos e no processo de condução das São já bem conhecidas as restri-
habilitações. Seu papel se restringe Rodrigues e Zauli (2002), que apon- ções financeiras à ampliação dos
ao patamar a partir do qual prova- tam que, exatamente na área de saú- investimentos nas áreas de saúde e
velmente se encontram as soluções, de, há um potencial bastante signi- social, decorrentes da política eco-
que estariam além de mecanismos ficativo do legislativo nacional na nômica que vem sendo adotada nos
técnicos que exigem negociação, aprovação de leis. Segundo os au- últimos governos. Embora sempre
mas sim em decisões políticas de tores, a predominância do executi- retorne ao debate a velha discussão
adesão ao SUS como política de es- vo na saúde se dá principalmente sobre se o problema é de falta de
tado, não só do nível federal, mas pelo recurso às medidas provisóri- recursos ou de má gestão, em espe-
também de todos os estados e mu- as, que no período estudado por eles cial quando a demanda por recur-
nicípios. não foram, em sua maioria, trans- sos ganha força momentânea, ne-
O âmbito legislativo é outra are- formadas em leis. nhum setor social, nem o próprio
na que poderia ser mais utilizada Na edição do novo Pacto pela governo, negam hoje a necessidade
pelo processo de construção descen- Saúde, a participação é um dos pon- de mais investimentos, embora para

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 357

357
LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa

o governo federal isto nunca seja não é de otimização de recursos e evitar o desvio dos recursos agre-
obviamente associado às suas op- sim de utilização intensiva de pro- gados pela EC 29 com ações que não
ções de política econômica. Do pon- cedimentos. Afora isso, a baixíssi- as de saúde. A contenção de recur-
to de vista da descentralização, e em ma interferência da maior parte dos sos e a falta de prioridade à imple-
especial agora com o requerido re- municípios no controle dos serviços mentação do SUS como previsto leva
forço para a regionalização, a ques- de 2º e 3º níveis, com a conseqüen- a situações curiosas. A vinculação
tão dos recursos volta à tona. Um te baixa relação com a atenção bá- de recursos e agora a especificação
dos principais problemas para a sica, gera a reprodução não só da do que são ações de saúde restrin-
implementação da NOAS foi a pac- carência de recursos, pela tendên- gem a realização de planejamentos
tuação dos recursos necessários cia ‘natural’ de utilização pelos pro- integrados para a solução de pro-
para a compensação entre municí- vedores de todos os recursos dispo- blemas sociais e limitam um dos
pios para a prestação de serviços. níveis, como a não realização dos preceitos centrais da reforma, que é
Municípios pequenos com tetos fi- objetivos de um sistema que mini- a vinculação das medidas de aten-
nanceiros muito baixos não podem ção à saúde aos problemas sociais.
arcar com o pagamento de certos E há o risco de que seja fortalecida
procedimentos para outros municí- a produção de serviços, pela pres-
pios que prestam serviços a muní- são dos provedores e da própria de-
cipes seus, principalmente os de UM DOS PRINCIPAIS PROBLEMAS PARA A manda. Além disso, é bastante pro-
maior complexidade. Isso gera pro- IMPLEMENTAÇÃO DA NOAS FOI A PACTUAÇÃO vável que os governos se empenhem
blemas para os dois e, portanto, em cumprir a lei e se restrinjam aos
DOS RECURSOS NECESSÁRIOS PARA A
para a regionalização, já que muni- patamares exigidos. Os municípios
cípios com melhor capacidade sa- COMPENSAÇÃO ENTRE MUNICÍPIOS PARA A do norte do estado do Rio de Janei-
bem que vão ter que arcar com aten- PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. ro, por exemplo, que arrecadam
dimentos de outros municípios, e vultosos recursos com os royalties
podem preferir optar pela não ade- do petróleo - recursos que não são
são, já que contam também com re- considerados no cálculo da EC 29 -,
cursos escassos. limitam-se aos patamares da emen-
Se a realidade da maioria dos mamente evite ser um mero prove- da, embora apresentem situações de
municípios é de baixa arrecadação, dor de procedimentos de cura. saúde bastante precárias (CALIL,
a restrição de recursos pode limitar Atualmente, a mobilização ocor- 2006).
a descentralização à atenção bási- re pela aprovação do projeto de lei
ca, já que o repasse aí é fundo a complementar nº 01/2003 que regu-
fundo e conta com recursos agrega- lamenta a Emenda Constitucio-nal FORMAS TRADICIONAIS DE NTERMEDIAÇÃO
dos por ação complementar, quase nº 29. O projeto já foi aprovado em DE INTERESSES E A APROPRIAÇÃO
totalmente financiados por recursos todas as comissões da Câmara dos PERSONALISTA DOS RECURSOS
federais. A integralidade da atenção Deputados, faltando apenas a vota-
fica prejudicada sem a injeção de ção no Plenário da Casa para que Os problemas da adesão dos en-
novos recursos, já que a rede ainda seja encaminhado ao Senado Fede- tes federados aos objetivos do SUS,
não é suficiente, sendo ainda depen- ral. O projeto de lei regulamenta as através da descentralização, encon-
dente do setor privado, cuja lógica ações e serviços de saúde e permite tra limites em formas tradicionais

358 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005
Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde

de intermediação de interesses, em controle sobre elas. Essas práticas nifica um claro avanço no processo
especial o clientelismo, assim como podem conduzir o processo de con- de descentralização e implementa-
no personalismo que marca as rela- solidação do SUS a postergar inves- ção do SUS, através de iniciativas
ções sociais no Brasil. A interseção timentos em serviços públicos, be- da própria gestão municipal, indo
dessas formas de intermediação com neficiar a produção de serviços ofe- além das diretrizes federais/estadu-
a apropriação patrimonial do esta- recidos por prestadores da rede de ais. Já em outros, observa-se a im-
do facilita a corrupção, na medida relações dos gestores ou dificultar plantação de progra-mas e experi-
em que obscurece as ações dos go- a interação com outros governos. ências formuladas exclusivamente
vernos. Embora os mecanismos de O SUS gerou inúmeras inovações no nível federal/estadual, que são
gestão e a legislação criem restri- favoráveis a processos mais trans- incorporadas pela gestão municipal
ções a esses fatores, são pouco efi- parentes de gestão, mas deve-se in- como uma maneira de injetar recur-
cientes em alterá-las como prepon- vestigar até onde isso tem dependi- sos externos – principalmente do
derantes nas relações entre os dife- do da disposição dos próprios ges- nível federal – no município (GERS-
rentes interesses existentes na are- CHMAN, 2001). Ou seja, dada a per-
na decisória, em especial no nível manência de inúmeros sistemas lo-
local. cais onde as mudanças se resumem
Os estudos na área de saúde têm quase à incorporação da atenção
OS PROBLEMAS DA ADESÃO DOS ENTES
dado pouca atenção a esses aspec- básica através do Programa Saúde
tos, embora muitas das conclusões FEDERADOS AOS OBJETIVOS DO SUS, da Família, há que se conhecer o
sobre a ineficiência e inefetividade ATRAVÉS DA DESCENTRALIZAÇÃO, ENCONTRA quanto essas mudanças são resul-
das políticas sejam ao fim e ao cabo tado da descentralização por si, ou
LIMITES EM FORMAS TRADICIONAIS DE
atribuídas a eles. Em especial no se ocorreram onde ela foi assumida
nível local, as relações entre forne- INTERMEDIAÇÃO DE INTERESSES, EM ESPECIAL como proposta específica de gover-
cedores, governos, profissionais e O CLIENTELISMO ... nos. Em outras palavras, deve-se
prestadores de serviços são em gran- procurar investigar mais como es-
de medida decididas por relações sas relações tradicionais conseguem
pessoais, envolvendo ou não corrup- prevalecer às inovações e às inicia-
ção. No plano da prestação de ser- tores e seu compromis-so com os tivas de adensamento do SUS, para
viços, permanecem práticas antigas princípios do sistema. A descentra- que se possa tentar reduzi-las.
de favorecimento de prestadores pri- lização através das NOBs foi respon-
vados através da relação pessoal sável pela criação de espaços de
que, em geral, os gestores de saúde negociação e de pactuação de inte- NÍVEL FEDERAL COMO
guardam com os profissionais da resse na área de saúde e contribuiu INDUTOR DE POLÍTICAS
área, ou pela própria posição que para a emergência e fortalecimento
esses gestores têm como prestado- de novos atores, por meio da incor- No primeiro item já abordamos
res. poração de inúmeros centros de po- as questões relativas à autonomia
Os Conselhos deveriam ser as der na arena decisória da política dos entes federados. Aqui cabe des-
instâncias de controle desses proce- (VIANNA et al, 2002). tacar os problemas decorrentes de
dimentos, mas muitas vezes parti- Em alguns municípios, o tipo de uma descentralização com forte in-
lham dessas relações ou não têm inovação gerencial incorporada sig- dução do nível federal. Se esta in-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 359

359
LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa

dução foi favorável à iniciativa da tes’ e garantidos pelos incentivos’ às ações de transferência fundo a
atenção básica através do Pro-gra- (2002, p.171). Na verdade, não há fundo ou privilegiar ações não pri-
ma Saúde da Família, ela gerou in- indícios de que a indução por incen- oritárias para sua população ape-
centivos que nem sempre corres-pon- tivos financeiros impeça a definição nas para favorecer interesses de
diam às necessidades dos sistemas livre dos sistemas pelos municípi- determinados prestadores.
municipais. Já que o sucesso da es- os. Ou seja, o problema é menos da
tratégia do Programa Saúde da Fa- tutela na adoção de programas atra-
mília depende da integração com os vés do financiamento e mais da fal- ESTRUTURA DE
outros níveis de atenção, e na medi- ta de mecanismos que estimulem, PROVISÃO DO SETOR
da em que os incentivos são dirigi- auxiliem e induzam os municípios
dos desde o nível federal, o risco à responsabilidade de construir seus A descentralização trouxe uma am-
seria compro-meter a integralidade sistemas. Segundo Vianna et al pliação considerável da rede de ser-

do sistema. (2002), o esforço permanente do go- viços e a expansão da rede de aten-


O fato de os incentivos terem se ção primária, com ampliação da
tornado uma prática constante do oferta pública. Entretanto, a mesma

Ministério da Saúde, a partir de expansão não é verificada nas ba-


1998, e dos municípios serem es-ti- ses especializadas de serviços devi-
mulados a incorporar os progra-mas A VINCULAÇÃO DOS RECURSOS AOS do à ausência de investimentos pú-

que lhes acrescentam receita finan- blicos para a ampliação do número


PROGRAMAS INCENTIVADOS PELO MINISTÉRIO
ceira é, na opinião de Marques e de leitos hospitalares, terapia inten-
Mendes (2002), um fato preocupan- DA SAÚDE NÃO PERMITE O siva, de serviços de apoio diagnós-
te. A vinculação dos recursos aos tico, cirurgia, etc. A demanda por
REDIRECIONAMENTO PARA OUTROS FINS NA
programas incentiva-dos pelo Minis- estes serviços especia-lizados é di-
ÁREA DA SAÚDE ... recionada, então, ao setor privado e
tério da Saúde não permite o redire-
cionamento para outros fins na área para municípios de maior capacida-
da saúde, em um contexto no qual de de oferta de serviços especializa-

os municípios enfrentam situações dos. Para Monnerat et all (2002), o


em que falta o necessário até mes- verno central pela indução e regu- predomínio da oferta privada de ser-
mo para manter sua rede de unida- lação do processo de descentraliza- viços reduz a capacidade do gestor

de básica, quanto mais para os de- ção pode ter pouco impacto nos in- público de regulação de mercado, o
mais serviços de atenção à saúde. dicadores de oferta e acesso aos ser- que somado à ausência de uma es-
Isso seria, segundo Marques e Men- viços, tendo em vista os agudos con- tratégia de hierarquização em rede

des, ‘o reflexo da política tutelada flitos de ordem federativa num con- das bases de serviços resulta em
da descen-tralização, que ao incen- texto de restrição fiscal e de infortu- baixa capacidade resolutiva e inefi-
tivar a despesa em determinados nada herança de desigualdades eco- ciência na alocação de recursos.

progra-mas, impede que os municí- nô-micas e sociais. Vianna et al (2002), numa avali-
pios definam livremente sua políti- Essa indução dirigida também ação comparativa das capacidades
ca de saúde, introduzindo o para- pode facilitar os mecanismos levan- dos municípios em Gestão Plena do

doxo da existência da ‘pobreza’ em tados no item anterior, já que os Sistema Municipal de Saúde, de-
um quadro de recursos ‘abundan- gestores podem se limitar à adesão monstram que houve significativa

360 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005
Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde

evolução, entre os anos de 1998 e Mesmo no caso da regulação de pro- regulação. Como lembram Matos e
2000, tanto no que se refere à apren- vedores realizada pela União, os Pompeu, um mesmo prestador pode
dizagem institucional, quanto na poucos estudos existentes apontam relacionar-se com os três níveis de
melhoria do padrão de provisão de uma insuficiência estatal e uma la- gestão do SUS sem ter contrato com
serviços com a diversificação da cuna a ser necessariamente exerci- nenhum deles (2003:639).
oferta. No entanto, os autores con- da. Para Matos e Pompeu, ‘não se A Portaria 399 do Pacto em
cluem que esse fortalecimento ins- desenvolveu a capacidade de forma- Defesa do SUS indica mudança ao
titucional das bases locais de orga- lização contratual de serviços pri- menos parcial nessa relação, ao es-
nização do SUS na Gestão Plena não vados de saúde por parte do setor tabelecer que cada provedor deverá
garante a equidade, em virtude de público. ... Compra-se o que o pres- responder a somente um gestor. Con-
ausência de relações intermunicipais tador oferece, em detrimento de ser- tudo, isso não garante mudança na
institucionalizadas. viços que se coadunam com as re- regulação desses prestadores.
É relevante o fato de que mesmo A descentralização alcançou,
os municípios com mais autonomia portanto, alterar a estrutura insti-
e maior conjunto de serviços espe- tucional de muitos sistemas locais,
cializados apresentem significativas em especial os de gestão plena, mas
dificuldades de articulação dos ser- não alcançou alterar a forma de or-
viços de forma a ampliar a integra- A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTRATÉGIA ganização da rede e sua otimização,
lidade e racionalizar recursos eco- CONSISTENTE DE REGULAÇÃO DO SETOR pela falência dos mecanismos de
nômicos e financeiros. Um aspecto regionalização, pelas restrições or-
PRIVADO ADQUIRE UM CONTORNO DE MAIOR
central aí é a relação com o merca- çamentárias, que impediram uma
do de provedores de bens e servi- COMPLEXIDADE À MEDIDA QUE O PROCESSO DE maior ampliação das redes própri-
ços. Embora tenha se ampliado nos DESCENTRALIZAÇÃO SE APROFUNDA. as, e permanece dependente da lógi-
últimos anos a oferta de unidades ca de oferta do setor privado. Essa
públicas, a rede especializada per- dependência reduz a capacidade de
manece sendo majoritariamente pri- regulação do gestor público, o que,
vada. somado à ausência de hierarquiza-
Na ausência de uma estratégia ais necessidades da população’ ção, resulta em baixa capacidade
consistente de regulação que possi- (2003: 637). resolutiva e baixa eficiência na alo-
bilite aos entes estatais ordenar a A construção de uma estratégia cação de recursos.
oferta e integrá-la às políticas locais consistente de regulação do setor As relações entre o setor público
e regionais de saúde, a fragmenta- privado adquire um contorno de e o privado ao nível local precisam
ção induz à irracionalidade de gas- maior complexidade à medida que ser melhor investigadas e sistema-
tos, multiplicação de procedimentos, o processo de descentralização se tizadas. Embora sejam em linhas
aquisição indevida de bens, incor- aprofunda. Isto porque se ampliam gerais conhecidas, o próprio proces-
poração tecnológica inade-quada, a divisão de competências e as res- so de descentralização gerou novas
entre outros. A literatura sobre des- ponsabilidades sobre os provedores, regulamentações que demanda-
centralização da política de saúde podendo levar a indefinições ou mtambém dos prestadores novas
tem negligenciado este aspecto, uma ações superpostas, em virtude da formas de intermediação com o se-
vez que os estudos são escassos. atual ausência de uma estratégia de tor público. Do mesmo modo, são

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 361

361
LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa

pouco conhecidas as formas de pres- nância, pelas razões já exploradas, sustentada de inovações nos siste-
tação de serviços, compra e venda de um modelo assistencial curati- mas locais de saúde.
de produtos pelo setor de insumos, vo. A estratégia do Programa Saúde Bodstein (2002) qualifica a ado-
equipamentos e fármacos, também da Família é apontada como o prin- ção do Programa Saúde da Família
totalmente controladas pelo setor cipal mecanismo de alteração desse como um poderoso mecanismo de
privado. modelo. De fato, a expansão da es- indução utilizado pelo governo fe-
Um último ponto aqui diz res- tratégia através do Piso da Atenção deral para priorizar a atenção bási-
peito ao problema dos recursos hu- Básica – PAB transformou significa- ca. Marques e Mendes (2002) acre-
manos, até hoje sem uma política tivamente o formato de transferên- ditam que um de seus aspectos po-
nacional implementada, e ponto des- cia de recursos aos sistemas locais sitivos é sua potência como meca-
considerado pelo processo de des- e regionais, trouxe uma série de ino- nismo de promoção da saúde e pre-
centralização. A carência, a falta de vações importantes, não só por es- venção de doenças. Porém, questio-
incentivo, os baixos salários e a fle- tabelecer um simples fator de incen- nam se o Programa está de fato al-
xibilização das formas de contrata- terando o modelo assistencial e se
ção têm gerado baixa adesão dos tem garantido, de forma sistemáti-
profissionais aos objetivos do SUS, ca, o acesso de sua clientela aos
contribuindo para a baixa qualida- níveis de maior complexidade da
de e desumanização dos serviços. saúde, ou mesmo a desejada uni-
Poucos sistemas locais e estaduais ... O PRÓPRIO PROCESSO DE versalização da cobertura. Na ver-
empreenderam planos de carreiras dade, o fato de o Programa Saúde
DESCENTRALIZAÇÃO GEROU NOVAS
e salários para a saúde e a maioria da Família estar direcionado a po-
tem privilegiado a contratação de REGULAMENTAÇÕES QUE DEMANDAM ... pulações pobres pode ser um fator
serviços sem concurso ou através limitador para seu sucesso como
de cooperativas. A existência de es- estratégia de mudança do modelo
trutura funcional sólida é pré-requi- assistencial prevalecente, e não há
sito para a efetividade dos sistemas ainda diretriz clara no sentido de que
sociais. Contudo, as restrições or- ele alcance os setores médios da
çamentárias e os impedimentos da tivo à prevenção, mas principalmen- população, apesar de seu inequívo-
lei de responsa-bilidade fiscal têm te por instituir um impulso para a co potencial de expansão de cober-
impedido a formação dessa estru- redefinição do modelo de atenção do tura. A falta de relação com os ní-
tura. SUS e para o desenvolvimento de veis mais complexos de atenção,
programas inovadores (COSTA E PIN- realidade da maioria dos municípi-
TO, 2002). Para estes mesmos auto- os pela forma de gestão em que se
FORMAS DE ENFRENTAMENTO res, a nova estratégia dissociou a inserem, pode contribuir para essa
DAS NECESSIDADES DE SAÚDE produção do faturamento, rompen- limitação.
do com a lógica de pagamento por A entrada do Programa Saúde da
Alguns aspectos cruciais da re- volume de produção, que perpetua- Família nos grandes centros vem
forma sanitária foram timidamente va a estrutura de serviços distorci- apontar para a necessidade de que
enfrentados pelo processo de descen- da transmitida pelo modelo anteri- seja revista a relação da área de
tralização. Um deles é a predomi- or e dificultava a implementação saúde com outras áreas sociais.

362 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005
Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde

Esse é outro aspecto da reforma sa- - a pactuação, via instâncias in- ações e sua resolutividade. Em ou-
nitária que tem merecido pouca tergestoras, alcançou seu limite tras palavras, a descentralização
atenção, e que pode comprometer com as limitações decorrentes da privilegia níveis de governo, quan-
seu objetivo de pensar e tratar a saú- indução através do financiamento, do os problemas de saúde e sua so-
de como questão social. A descen- e elas tendem a se transformar em lução são territoriais - locais e re-
tralização, apesar de estimular prá- burocracias técnicas com baixo im- gionais;
ticas inovadoras em sistemas mu- pacto na alteração do sistema, além - as necessidades de saúde e sua
nicipais, onde há espaço efetivo de disputarem espaço com o controle articulação com as necessidades
para ações intersetoriais, pode , na social; sociais permanecem fora da agenda
verdade, haver dificultado a integra- - os Conselhos de Saúde encon- da descentralização. Embora no Bra-
ção entre políticas, ao induzir práti- tram-se estagnados em sua função sil tenhamos uma visão bastante
cas determinadas vinculadas a in- ao interior do SUS, após o período avançada da questão social, os sis-
centivos financeiros e não alcançar de sua institucionalização, em es- temas de políticas sociais, e o de
alterar o modelo centrado na pro- saúde entre eles, têm cada vez mais
dutividade de serviços curativos. As se voltado para políticas setoriais,
inovações nesse sentido devem ser o que faz com que prevaleça na saú-
investigadas, já que a premência de de um modelo assistencial curativo
um sistema integrado de proteção de baixa resolutividade, com o ris-
social só é de fato visível no enfren- ... SUPÕE-SE QUE O MODELO DE co de termos, em breve, estaciona-
tamento da questão social ao nível dos os indicadores básicos de saú-
DESCENTRALIZAÇÃO ADOTADO ATÉ ENTÃO
local. de, quando o impacto da estratégia
ESTEJA ESGOTADO ... de extensão de cobertura via Progra-
ma Saúde da Família tiver se esgo-
CONSIDERAÇÕES FINAIS tado;
- as possibilidades de expansão
Procurou-se aqui, mais do que
do sistema esbarram nas restrições
apontar de novo os avanços conhe- financeiras do modelo econômico
cidos do processo de descentraliza- pecial por terem sido tratados como vigente, não havendo mais espaço
ção, indicar alguns possíveis pon- mecanismos acessórios, e não como para o modelo, até aqui bem suce-
tos de estrangulamento. Como dito, centrais no processo de consolida- dido, de definição de critérios de dis-
supõe-se que o modelo de descen- ção do SUS; tribuição de recursos escassos.
tralização adotado até então esteja - a interdependência entre níveis Todos os aspectos levantados
esgotado, em especial pelos seguin- de governo, base na constituição de merecem ser aprofundados também
tes aspectos: um sistema nacional e único, esbar- sob a perspectiva do federalismo
- a indução, via incentivos finan- ra nos limites municipais e estadu- brasileiro. Estudo de Stepan (1999)
ceiros, ao mesmo tempo em que fere ais, que são preservados pelo finan- demonstra que o Brasil estaria no
a autonomia local, limita a respon- ciamento induzido, impedindo prá- limite do continuum entre federalis-
sabilização sobre a condução pró- ticas de gestão regional fundamen- mos que estimulam ou restringem
pria dos sistemas de saúde e a possi- tais para a expansão da universali- a participação do conjunto dos ci-
bilidade de inovações significativas; zação, para a integralidade das dadãos da pólis, situando-se no pólo

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 363

363
LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa

de maior restrição (most demos- cial. Um balanço da década de 1990. democracia: federações que restrin-
constraining) e, no seu entender, as Ciência e saúde coletiva, Rio de Ja- gem ou ampliam o poder do Demos.
instituições federativas são funda- neiro, v. 6, n. 2, .p. 417. 2001. Dados, vol. 42, no 2, Rio de Janeiro,
mentais para a conformação das 1999.
políticas públicas. A descentraliza- MARQUES, R. M.; MENDES, A. A
ção encontra limites nessa estrutu- política de incentivos do Ministério VIANNA et al. Mudanças Significa-
ra federativa; contudo, esse aspecto da Saúde para a atenção básica: uma tivas no Processo de Descentraliza-
tem sido tratado como secundário ameaça à autonomia dos gestores ção do Sistema de Saúde no Brasil.
pelas políticas setoriais. municipais e ao princípio da inte- Cadernos de Saúde Pública, v. 18,
gralidade? Cad. Saúde Pública, Rio supl, p. 139-151. 2002
de Janeiro, v. 18, supl, p. 163-171.
REFERÊNCIAS 2002

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políticas Sociais: determinantes da estão os contratos? Análise da rela-
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BODSTEIN, R. Atenção básica na saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 8,
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G E R S C H M A N , S . STEPAN, A. Para uma nova análise


Municipalização e inovação geren- comparativa do federalismo e da

364 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005
A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúde
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúde1


The current situation and prospects of universal health systems

Hans-Ulrich Deppe2

Recebido: Dez./2006 RESUMO


Aprovado: Mar./2007

Há alguns anos, os diferentes sistemas universais de saúde estão sob


grande pressão do modelo econômico neoliberal. A competição global,
desregulamentação, privatização e comercialização têm fortes impactos na
maioria dos sistemas de saúde públicos sem fins de lucro. A questão é se os
sistemas universais podem resistir e/ou se adaptar a esta pressão, ou se
têm que mudar estruturalmente.

PALAVRAS-CHAVE: Sistemas Universais de Saúde; Globalização e Saúde; Saúde


Pública e Mercado.

ABSTRACT

For some years the various universal health care systems have suffered
great pressure from the neoliberal economic model. Global competition,
deregulation, privatization and commercialization have had a strong impact
on most the public health systems without profitable ends. The question is
whether the universal systems can bear and/or adapt to such pressure, or
whether they need to undergo structural changes.

KEYWORDS: Universal Health Systems; Globalization and Health; Public Health


2
Professor de Sociologia Médica e
Medicina Social, com doutorado no Care and the Market.
exterior; J.W. Goethe-Universidade de
Frankfurt /Alemanha. 1
Conferência proferida no 11º Congresso Mundial de Saúde Pública, 21-25 de agosto, 2006,
Email:Ulrich.Deppe@em.uni-frankfurt.de Rio de Janeiro. Tradução de Heliete Vaitsman.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005 365
DEPPE, Hans-Ulrich

1. Ao falarmos sobre a situação Essas condições associam-se com forma irresponsável. A pobreza au-
atual dos sistemas universais de saú- freqüência à privatização da propri- mentou em muitas partes do mundo.
de, devemos falar sobre a situação edade pública. (Em fevereiro, Isso também se aplica à presta-

atual das sociedades em que se inse- estive na Turquia, onde soube ção de serviços de saúde, um setor
que o governo turco recebeu do social que é, em geral, controlado e
rem os sistemas de saúde. Hoje, pra-
Banco Mundial e do FMI um cré- subsidiado pelo Estado. A dissemina-
ticamente todos os países enfrentam
dito de 10 bilhões de dólares, ção e a aplicação irrefletida e descon-
processos de globalização, desregu-
com a obrigação de privatizar as trolada de leis e instrumentos econô-
lamentação e privatização – de dife-
1.600 policlínicas públicas do micos a circunstâncias e problemas
rentes intensidades e em níveis dis-
país e sua previdência social não econômicos é descrita como “eco-
tintos. Isso é o que chamamos de
pública.) O mercado e a compe- nomização”. Sob as condições espe-
‘onda neoliberal’! O setor público – tição regulamentarão cada vez cíficas do modelo econômico neolibe-
em especial o da universalização da mais as relações sociais, com ral ora dominante, trata-se de uma
saúde – se vê muito confrontado, em comercialização. Neste contexto, acre-
cada país, com essas novas circuns- dito ser útil acentuar que o neolibera-
tâncias. lismo é apenas um modelo – uma
Globalização – a expansão inter- construção – e não uma condição fí-
nacional da acumulação de capital – sica. A pessoa ideal que participa des-
é um conceito amorfo. Alguns auto- se processo neoliberal é reduzida a
A QUESTÃO SOCIAL É
res falam de um novo imperialismo. um homo economicus, um indivíduo
Nas duas últimas décadas, o proces- MARGINALIZADA NA AGENDA POLÍTICA naturalmente egoísta que maximiza
so de acumulação de capital ganhou E NEGLIGENCIADA DE FORMA seus próprios benefícios. Isso não
um impulso importante no mundo constitui uma crítica geral à econo-
IRRESPONSÁVEL
inteiro devido ao colapso dos Esta- mia, mas a negação de sua onipotên-

dos socialistas e ao desenvolvimento cia. Não se trata apenas de apontar


uma influência excessiva dos princí-
das forças produtivas, impulsionado
pios econômicos, porém de verificar
pela tecnologia microeletrônica. A
uma visão baseada em c a t e g o - se as ferramentas implementadas são
área mais agressiva no processo de
r i a s d a gestão empresarial pe- apropriadas às circunstâncias. Sob as
globalização é o capital financeiro –
netrando e ordenando todos os exigências hegemônicas do capital,
apoiado por instituições financeiras
nichos sociais. Como o principal dos mercados e da competição, a so-
globais como o Banco Mundial, o
objetivo da gestão empresarial é ob- ciedade é reduzida a uma mera soci-
Fundo Monetário Internacional (FMI)
ter lucros, uma de suas conseqüênci- edade de mercado. Portanto, é uma
e a Organização Mundial do Comér- as é o crescimento da instabilidade e questão importante saber que mode-
cio. Este setor determina, entretanto, da polarização social em escala mun- lo econômico específico forma a base
como serão estruturados e como de- dial – não apenas entre os países ri- da estrutura de poder criada pelo de-
vem agir os outros setores da socie- cos e os em desenvolvimento, mas senvolvimento histórico. A atual cir-
dade, para que utilizem como instru- também no interior dos países ricos. cunstância levantou questões funda-
mentos essenciais créditos financeiros A questão social é marginalizada na mentais a respeito das estruturas bá-
com condições especiais. agenda política e negligenciada de sicas dos sistemas de saúde e, tam-

366 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005
A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúde

bém, a respeito das adaptações tec- dinheiro, mais do que jamais houve, de política de saúde está mudando.
nocráticas de tais estruturas às situ- sobretudo nos países ricos, por outro Ele muda da compensação tradicio-
ações nacionais. Preocupam-nos, fun- lado não há dinheiro suficiente para nal de um risco social, que tem raí-
damentalmente, o desenvolvimento e as necessidades básicas da atenção à zes nacionais e recebe financiamento
a renovação da relação entre saúde, saúde. Trata-se, sobretudo, de uma coletivo, para um fator de respaldo à
medicina e sociedade. questão de distribuição e devemos acumulação de capital privado glo-
Os sistemas de atenção à saúde reconhecer – mesmo na ciência – que bal. A solidariedade na atenção à saú-
não são construções sociais isoladas. esta é uma questão de decisão social de é solapada por interesses indivi-
Têm raízes profundas na estrutura, na e poder político. Quase todos os siste- duais. É um processo de reindividua-
cultura e na história de suas socieda- mas de saúde são considerados ‘ca- lização e comercialização.
des. São uma precondição para a paz ros demais’. Foi disseminado o mito Sabemos, todavia, que os países
social no interior de sociedades con- da ‘explosão de custos’. Os custos que mais avançaram na transforma-
traditórias. Em oposição à globaliza- para a saúde são vistos unicamente ção neoliberal de seus sistemas de
ção crescente do capital, os sistemas saúde não são necessariamente os
de saúde têm vínculos sólidos com ‘melhores’. Os Estados Unidos – onde
os Estados nacionais. A transforma- se desenvolveu o modelo neoliberal –
ção desses sistemas envolve mais do são o exemplo preferencial, mas não
que meras transformações tecnológi- único, desta regra. Os EUA têm os
cas. A transformação estrutural dos O SISTEMA DE SAÚDE É O gastos mais elevados em saúde, em
sistemas de saúde sempre é o resul-
ESPELHO DA SOCIEDADE, REFLETINDO comparação com o Produto Interno
tado de lutas sociais e políticas – es- Bruto e a renda per capita, e seus
pecialmente nas crises sociais e polí- SUA HISTÓRIA E SEU CARÁTER custos de administração são extrema-
ticas. Isso significa que é preciso en- mente elevados. A tecnologia médica
trar numa disputa por um sistema de é bastante avançada, porém isso não
atenção à saúde especial. Em muitas se reflete nos indicadores de saúde.
partes do mundo, os sistemas de saú- Além disso, a disseminação da pobre-
de passaram por mudanças estrutu- za social nos EUA aumenta a iniqüi-
rais após revoluções e guerras, a der- como uma carga para o desenvolvi- dade social da prestação de serviços
rota de ditaduras fascistas e milita- mento econômico – à medida que são de saúde. Lá, cerca de 43 milhões de
res ou o colapso dos países socialis- uma questão relevante para a posi- pessoas não têm cobertura do siste-
tas. A disputa pelo sistema de saúde ção do capital na competição econô- ma de saúde; um número ainda mai-
não é uma ação isolada, mas uma mica global. Atualmente, a política de or tem cobertura insuficiente pelos
luta permanente. O sistema de saúde saúde é bastante pressionada a obter seguros de saúde; e, enquanto isso,
é o espelho da sociedade, refletindo recursos financeiros adicionais. A si- continua a crescer o total de pessoas
sua história e seu caráter. tuação mais comum é que os custos sem qualquer seguro e com cobertu-
Há, na atualidade, uma preocu- da atenção à saúde sejam cortados. A ra insuficiente.
pação com os custos ascendentes de economização dos temas sociais e
todos os sistemas de saúde. É incrí- médicos chegou nesse meio tempo ao 2. Neste cenário, são necessários
vel: se por um lado há na Terra tanto limite da autodestruição. O conceito alguns esclarecimentos e comentári-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005 367
DEPPE, Hans-Ulrich

os acerca dos sistemas de atenção existe sistema de saúde no mundo que doença, ou o tipo de tratamento ade-
universal à saúde. seja organizado exclusivamente com quado a ela. À doença não correspon-
A atenção universal à saúde ca- base em princípios mercadológicos. de a regulamentação individual iso-
racteriza um sistema de saúde em que Isso se deve, entre outras, às seguin- lada, já que ela é um risco de vida
todos os residentes de determinado tes peculiaridades: coletivo.
país têm acesso a cuidados de saúde, • A saúde é um bem existencial. • A soberania do consumidor do
independentemente da condição mé- É um valor de uso, que em nossas sistema de saúde é muito limitada.
dica que apresentem. Neste caso, a sociedades é coletivo e público (simi- • O paciente que procura trata-
medicina é orientada para a necessi- lar ao ar, à água potável, à educa- mento é confrontado com o monopó-
dade – aquilo que é necessário do ção, à segurança no trânsito e à se- lio do saber médico, o que gera o do-
ponto de vista médico. A maioria dos gurança jurídica). A atenção à saúde mínio da oferta.
sistemas universais de saúde é finan- é uma necessidade social. E a orga- • A procura do paciente por as-
ciada principalmente pelas arrecada- nização social da atenção à saúde sistência médica é, fundamentalmen-
ções tributárias, a exemplo da Dina- te, não específica. É a competência de
marca, Suécia e Canadá. Se os siste- um especialista que primeiro define e
mas universais de saúde são financi- especifica a procura. Há uma diferen-
ados sobretudo por impostos, deve- A ATENÇÃO À SAÚDE É UMA NECESSIDADE ça essencial entre a competência e a
mos observar qual é a estrutura da informação do médico e do paciente.
política fiscal nacional e a quem ela
SOCIAL. E A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DA ATENÇÃO Os profissionais médicos têm um
favorece ou discrimina. Devemos ob- À SAÚDE DEVE SER ORIENTADA PARA ESSA grande poder discricional na determi-
servar se essa política baseia-se em nação de indicações, bem como de
NECESSIDADE - NÃO PARA OUTROS OBJETIVOS
princípios de solidariedade ou se res- medidas diagnósticas e terapêuticas.
palda privilégios. Outros países, como E INTERESSES DETERMINADOS PELO MERCADO Podemos imaginar o que significa
a Alemanha, a França e o Japão têm E POR LUCROS médicos serem empresários ou traba-
um sistema de saúde universal em lharem cumprindo esse papel.
que a atenção à saúde é financiada • E, por último, mas não menos
por contribuições privadas e públicas. importante: o paciente se encontra
Os sistemas universais variam no to- deve ser orientada para essa necessi- numa posição vulnerável de incerte-
cante à cobertura dos serviços, que dade – não para outros objetivos e in- za, fraqueza, dependência e necessi-
pode ser completa, parcial ou inexis- teresses determinados pelo mercado dade, não raro associada ao medo e
tente. e por lucros. à vergonha.
• O indivíduo não pode decidir Essa breve descrição da relação
3. Com base em tais considerações renunciar à doença – como pode fa- entre mercado e paciente demonstra
e fatos, é importante repensar alguns zer em relação aos bens de consumo. que a proteção pública é necessária.
princípios básicos de como a socie- • O paciente não sabe quando e Tudo indica que os mecanismos da
dade lida com a doença e a saúde. por que ficará doente, nem sabe que oferta e procura não se aplicam à pres-
Saúde ou doença não podem ado- doença o acometerá no futuro. O pa- tação dos serviços de saúde. O siste-
tar totalmente o caráter de produto. ciente não tem a capacidade de deter- ma de atenção à saúde é, por conse-
Nossas pesquisas mostram que não minar a duração e o momento de sua guinte, um exemplo da teoria do fra-

368 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005
A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúde

casso do mercado em economia. As de maneira sarcástica, porém argu- Qual é, com base em pesquisas
competências distributivas do merca- ta, de acordo com a perspectiva mi- teóricas e empíricas, minha mensa-
do são, neste caso, insuficientes. O croeconômica e de racionalidade da gem?
mercado é uma força cega sem orien- gestão empresarial, serviços de saú- Esse conjunto de problemas leva
tação e é preciso dar-lhe direções e de ineficazes ou até mesmo causado- à conclusão de que uma sociedade
objetivos. O Estado, representação res de riscos podem produzir os mes- deve ter setores protegidos, orienta-
democrática da sociedade, tem, des- mos lucros que serviços eficazes e dos para o bem-estar comum, que não
se modo, responsabilidades importan- úteis. podem ser confiados à força cega do
tes, devendo ser políticas as decisões mercado nem ao poder desregulamen-
sobre os rumos a tomar. 5. Na atualidade, os Sistemas Uni- tador da competição. Acredito profun-
versais de Atenção à Saúde sofrem damente que há em nossas socieda-
4. No âmbito dos modelos econô- enorme pressão. Em quase todas as des setores relevantes que não devem
micos atuais, há diferenças entre a áreas do sistema de saúde, busca-se ser privatizados nem comercializados,
racionalidade microeconômica e a pois isso irá contrariar e destruir os
racionalidade macroeconômica. O que valores humanos e sociais dessas
mais interessa aos negócios não é mesmas sociedades. Devemos respei-
necessariamente o que melhor atende tar e manter áreas em que a comuni-
à economia como um todo. Com efei- cação e a cooperação não sejam co-
to, os interesses das duas dimensões
O LUCRO ECONÔMICO mercializadas e os serviços não te-
costumam ser contraditórios, o que TENDE A SUPRIMIR A NECESSIDADE MÉDICA, nham caráter de produto.
se mostra especialmente em casos Tais setores protegidos relacionam-
QUE DEVERIA SER O PRINCIPAL CRITÉRIO PARA
como a proteção ambiental ou a in- se à maneira de tratar os grupos vul-
dústria atômica. A atual expansão da O TRABALHO DOS MÉDICOS neráveis (crianças, idosos, pacientes
racionalidade microeconômica traz psiquiátricos, etc.), e a objetivos so-
consigo, com freqüência, um enorme ciais vulneráveis, tais como solidari-
desperdício de recursos da socieda- edade e eqüidade, ou a estruturas de
de. A empresa singular evita os cus- comunicação vulneráveis – em espe-
tos sociais associados, até que a so- com grande afã a possibilidade de cial aquelas com base em confiança,
ciedade intervém nos aspectos macro- aplicação de esquemas mercadológi- como a relação médico-paciente. Es-
econômicos, sociais ou ecológicos. cos auto-reguladores, competição eco- ses setores sociais protegidos consti-
Pode-se observar esse fenômeno até nômica e marcos microeconômicos. tuem, sem dúvida, o alicerce de um
mesmo no sistema de atenção à saú- Assim, o lucro econômico tende a modelo social humano. Tal qualida-
de. Por exemplo, a transferência de suprimir a necessidade médica, que de deve ser aceita e conquistar de novo
custos do setor ambulatorial para o deveria ser o principal critério para o a hegemonia na sociedade civil. A
hospitalar pode ser vantajosa para trabalho dos médicos. Trata-se de uma quantidade, a magnitude e a exten-
determinada instituição, embora seja mudança do tradicional paradigma são de tal rede de segurança voltada
mais dispendiosa se analisada de médico, que passa da atenção a uma para o bem-estar dependem das for-
uma perspectiva mais ampla. Como necessidade para atenção como cam- ças vivas das organizações políticas
observam os economistas da saúde, po de acumulação de capital. e movimentos sociais de massa que

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005 369
DEPPE, Hans-Ulrich

articulam a disposição e a consciên-


cia da população.
De maneira nenhuma os campos
da doença e da saúde são fenômenos
periféricos ou marginais à sociedade.
Com efeito, o direito à saúde é um
direito humano. Às vezes, a instru-
mentalização cínica de valores soci-
ais básicos por interesses privados
disfarçados conduz à errônea suposi-
ção de que o desrespeito aos direitos
humanos é o que lhes dá significado.
Acredito, contudo, que não se de-
vem comercializar os direitos huma-
nos; eles não se prestam a ser objeto
de marketing, sob pena de ter seu sig-
nificado destruído. E isso vale para a
saúde em geral – o que se formula
como palavra de ordem política e ci-
entífica: Saúde não é mercadoria! Saú-
de não está à venda!

370 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas


considerações
From state reform to the reform of federal hospital administration: some
considerations

Lenir Santos1 RESUMO

O presente trabalho tece considerações a respeito da Reforma Adminis-


trativa do Estado inconclusa a partir da EC19/98. Estuda dois institutos
Recebido: Dez./2006 ali previstos que são: a possibilidade de o Estado criar fundações públicas
Aprovado: Mar./2007 de direito privado a partir de uma autorização legislativa – art. 37, XIX, e
o contrato de autonomia previsto no art. 37, § 8º da CF. Propõe-se, ainda,
criar um regime administrativo para essas fundações que permita maior
agilidade e resultados qualitativos, além de estabelecer um liame com os
hospitais públicos que poderiam, de maneira mais consentânea com o
bem protegido que é a vida humana, serem mais efetivos e eficientes ao
adotarem esse modelo jurídico fundacional.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde pública; administração pública; fundação estatal.

ABSTRACT

This paper offers some considerations regarding the unfinished State


Administration Reform based on EC19/98. It studies two institutes set
forth therein, which are: the possibility of the State creating public
foundations under civil law based on legislative authorization - art. 37,
XIX, and the contract of autonomy set forth in art. 37, § 8º of the Federal
Constitution. A proposal is also made for the creation of an administrati-
ve regime for these foundations that allow greater agility and qualitative
1
Advogada, especialista em direito sani- results, besides establishing a connection with the public hospitals that
tário Membro do Instituto de Direito Sani- could, in a manner that is more coherent with protecting human life, be
tário Aplicado – IDISA more effective and efficient by adopting this legal model as a basis.
www.idisa.org.br

E-mail: santoslenir@terra.com.br KEYWORDS: Public health; public administration; state foundations.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 371
SANTOS, Lenir

INTRODUÇÃO do pela inovação tecnológica e prá- A CRISE DO ESTADO


ticas empreendedoras. E A SUA REFORMA
A consagração do direito à saú- A administração pública tem
de na Carta Constitucional de 1988 baixa capacidade operacional, fra- É importante lembrar que a cri-
foi uma conquista da sociedade bra- co poder decisório, controles essen- se do Estado e a necessidade de sua
sileira no campo dos direitos soci- reforma surgiram, na realidade, nos
cialmente formais e sem qualidade
ais, tendo sido o resultado da luta anos 80, nos países centrais. Foi a
e influências políticas externas. As-
empreendida pelos ideólogos da crise do Estado-Providência ou do
sim, a finalidade da administração Estado de Bem-Estar Social. Era ne-
Reforma Sanitária durante muitos
passou a ser os meios e seus pro- cessário diminuir custos sociais
anos antes.
cessos e não os fins. Tal contexto se (porque nesses países o Estado sem-
O direito à saúde, como direito
reflete na gestão hospitalar públi- pre investiu muito em serviços pú-
público subjetivo, implica na garan-
ca dificultando uma política de in- blicos de saúde, educação, habita-
tia pelo Estado da adoção de políti-
corporação tecnológica, informati- ção etc.), combater a ineficiência pú-
cas públicas que evitem o risco de blica e os excessos e rever o tama-
agravo à saúde, devendo ser consi- nho do Estado.
deradas, nesse contexto, todas as No Brasil, a crise do Estado sur-
condicionantes da saúde, como giu nos anos 90 e não foi a do Esta-
meio ambiente saudável, renda, tra- NA MAIORIA DOS HOSPITAIS PÚBLICOS FALTA do-Providência, porque ele nunca
balho, saneamento, alimentação, GESTÃO CAPAZ, EFICIENTE, MODERNA E chegou a existir. O próprio direito à
educação bem como a garantia de saúde, bem como a garantia de ou-
HUMANA; ESSES SERVIÇOS, MUITAS VEZES, tros direitos sociais, são conquis-
ações e serviços de saúde que pro-
movam, protejam e recuperem a TEM ALTO CUSTO E BAIXO RESULTADO tas mais recentes, datada de 1988,
saúde individual e coletiva. Para a com a Constituição-cidadã.
A crise do Estado no nosso país
garantia dessas ações e serviços
foi muito mais uma crise de gestão
temos o Sistema Único de Saúde.
e de qualidade, sem se esquecer que
Dentre os serviços que incumbem
o Estado nunca deixou de tentar mi-
aos órgãos e entidades que com-
nimizar os custos da Constituição
põem o Sistema Único de Saúde es- zação, modernização administrati- de 88 com os direitos sociais, mui-
tão os serviços hospitalares, hoje, va e gestão de recursos humanos tos deles de caráter universal e gra-
um dos problemas do sistema pú- tuito, oneroso, pois, para os cofres
comprometidos com o serviço pú-
blico de saúde, principalmente no públicos. A intenção de enxugar o
blico. Na maioria dos hospitais pú-
que se refere a sua gestão que não tamanho do Estado sempre esteve
blicos falta gestão capaz, eficiente,
se modernizou nem conseguiu ca- presente, e se iniciaria com a trans-
pacitar profissionais para gerir a moderna e humana; esses serviços, ferência dos serviços não exclusi-
complexidade de um sistema hos- muitas vezes, tem alto custo e bai- vos, como saúde, educação, cultu-
pitalar que está fortemente marca- xo resultado. ra, para entidades privadas1.

1
Pregava-se nos anos 90, a transferência para o setor público não estatal dos serviços não exclusivos do Estado, transformando entes
públicos em organizações sociais, ou seja, em entidades de direito privado, sem fins lucrativos, com autorização para celebrar contrato
de gestão com o Poder Executivo. Propunha-se uma diminuição do tamanho do Estado, com o fim de provê-lo de maior eficiência e como
as organizações sociais seriam diversas geraria entre elas saudável competição (Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado).

372 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações

Contudo, a Reforma Bresseriana de servidor no serviço público.Na aprimoramento da eficiência, eficá-


dos anos 902 visou muito mais le- maioria das vezes, infelizmente, cia e efetividade, em consonância
var para o Terceiro Setor, sob regu- somente as entidades e órgãos pú- com o previsto no Plano Diretor da
lação estatal, a realização de servi- blicos que atuaram com entidades Reforma do Estado”(BRASIL,
ços públicos, ao invés de introdu- paralelas conseguiram manter qua- 2005b). Essas medidas tinham por
zir modernos processos de gestão lidade nesses serviços3. Foi a era das objetivo adequar o Poder Público ao
no interior da administração públi- fundações de apoio, das cooperati- acordo que seria firmado com o
ca, eivada de problemas já identifi- vas de trabalhadores, das terceiri- Fundo Monetário Internacional –
cáveis, como excesso de controles, zações ilegais etc.; o próprio TCU, FMI (ajuste fiscal 5.7.99). A medida
ineficiência, limitados resultados e, no recente Relatório - Acórdão 1193/ mais importante, no que diz respei-
ainda, inadequada gestão de recur- 2006-Plenário reconheceu que o to à saúde pública, foi a redução
sos humanos, baixos salários, imobilismo e as amarras da admi- do gasto com a folha salarial de
amarras burocráticas desqualifica- nistração pública empurrou o ges- todo o funcionalismo, fator que con-
das, não capacitação de servidores tribuiu para a baixa expressiva no
e fraco engajamento com a quali- quantitativo de profissionais da
dade dos serviços executados. área da saúde nos hospitais públi-
...A REFORMA BRESSERIANA DOS ANOS 90
Não se pensou em reestruturar cos federais, situados no Município
o Estado, com bem assevera Adria- VISOU MUITO MAIS LEVAR PARA O TERCEIRO do Rio de Janeiro”. (BRASIL, 2005b).
na da Costa Ricardo Shier, com a SETOR, SOB REGULAÇÃO ESTATAL, A O Governo FHC arrochou os sa-
intenção de adequá-lo, tornando-o lários dos servidores públicos fede-
REALIZAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS, AO INVÉS
uma “instituição que efetivamente rais, no que foi acompanhado pe-
assegurasse os mínimos direitos DE INTRODUZIR MODERNOS PROCESSOS DE los Estados; o descalabro de con-
capazes de garantir a sobrevivên- GESTÃO NO INTERIOR DA ADMINISTRAÇÃO tratações de consultores por orga-
cia digna dos cidadãos; ao invés, nismos internacionais para atuar na
preferiu-se, mais uma vez na histo-
PÚBLICA... administração pública federal, em
ria, conceder tal tarefa ao merca- funções, desde as mais singelas às
do, à iniciativa privada. Optou-se de maior complexidade, com pro-
pela diminuição do Estado em re- tor público para aliar-se a mecanis- fissionais com mais de 10 anos atu-
lação ao atendimento de demandas mos externos ao Estado para viabi- ando mediante contrato de consul-
sociais.”(SHIER, 2002 , p. 136) lizar-se: “13. Exposto este quadro, toria (que levou o Ministério Públi-
Isso tudo levou a administração percebe-se que há exaustão do mo- co a realizar Termo de Ajuste de
pública a buscar mecanismos pa- delo jurídico adotado para essas Conduta com o governo federal para
ralelos ao Estado para se safar da unidades, situadas na órbita da a realização de concurso público),
imobilidade burocrática, dos baixos Administração Direta, que impossi- tudo isso reforçou os desvios já exis-
salários e da retração de ingresso bilita a adoção de mecanismos de tentes na administração pública e

2
Em 1995, foi lançado pelo Ministro Bresser Pereira, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, o qual, buscou, na realidade, criar
figuras novas no Terceiro Setor, as quais deveriam se transformar em espaço público não estatal. Foram criadas pelas Leis ns. 9637/98
e 9790/99 as Organizações Sociais e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, ao lado das Agencias Executivas.
3
A que preço essas entidades paralelas ajudaram a gerir o serviço público de maneira mais eficaz? Estamos em plena crise da Fundação
Zerbini, tida como modelo de eficiência, modelo de gestão ao custo de uma dívida de mais de R$250 milhões de reais, conforme veiculado
pela imprensa nesses últimos meses (VERBA, 2006).

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 373
SANTOS, Lenir

ocasionou uma paralisia na moder- ções essencialmente não exclusivas implementadas e que serão objeto
nização do serviço público, com (SANTOS, 1998). deste trabalho. Visava a EC 19
graves conseqüências para a popu- amortecer o endurecimento da ad-
lação usuária. Concluindo, a Reforma do Esta- ministração pública.
Não podemos negar que a Re- do do final dos anos 90 somente
forma do Estado nos dias de hoje cuidou de retirar do Estado ativi-
não poderá deixar de considerar o dades consideradas não exclusivas A REFORMA
Terceiro Setor como um espaço de e transpassá-las para o Terceiro Se- ADMINISTRATIVA DA EC 19/98
interesse público fora do Estado, tor, principalmente as da área da
complementar ao Estado, mas não saúde, sem, contudo, trazer para si A Reforma Administrativa – EC
substitutivo dele. Mas não podemos a discussão de uma reforma admi- 19/98 – trouxe, dentre outras, al-
nos esquecer que também o Tercei- nistrativa que desse conta de me- gumas inovações, como: a) térmi-
ro Setor, na saúde, tem suas maze- no do regime jurídico único, possi-
las, falta de eficiência, qualidade, bilitando à administração a escolha
modernização, precisando, também, do regime da CLT e não apenas o
se qualificar. ...A REFORMA DO ESTADO DO FINAL DOS estatutário; b) garantia de estabili-
ANOS 90 SOMENTE CUIDOU DE RETIRAR DO
Boaventura Souza Santos repor- 4
dade apenas aos servidores deten-
ta a esse tema ao afirmar que a
substituição e a complementarida-
ESTADO ATIVIDADES CONSIDERADAS NÃO tores de cargo público efetivo pro-
vido por meio de concurso; c) ga-
de entre o Terceiro Setor e o Estado, EXCLUSIVAS E TRANSPASSÁ-LAS PARA O
rantia de os órgãos e entes da ad-
quando se funda na discussão en- TERCEIRO SETOR, PRINCIPALMENTE AS DA ministração pública, direta e indi-
tre as funções do Estado exclusivas
ÁREA DA SAÚDE... reta, gozarem de maior autonomia
e as não exclusivas, devendo o Es-
gerencial, orçamentária e financei-
tado ser substituído em tudo aqui-
ra mediante contrato firmado entre
lo que não for de sua exclusividade
os administradores e o poder públi-
é altamente problemática, principal- lhorar o emperramento da máqui-
co; d) criação de fundação gover-
mente pelo fato de que na pública, com alargamento dos
horizontes de sua gestão. namental de direito privado, medi-

(...)nenhuma das funções do Esta- Não obstante a pouca atenção ante autorização legislativa.

do foi originalmente exclusiva dele; a aos melhoramentos internos da ad- Vamos nos deter apenas ‘no con-

exclusividade do exercício de funções ministração pública, a EC 19/98 – trato de autonomia’, mencionado no


foi sempre o resultado da luta política. Reforma Administrativa - introdu- § 8º do art. 37 e na ‘fundação go-
Não havendo funções essencialmente ziu algumas inovações no Texto vernamental de direito privado’, pre-
exclusivas não há, por implicação, fun- Constitucional, as quais não foram vista no inciso XIX do art. 37 da CF,

4
A Reinvenção Solidária e Participativa do Estado – Boaventura Souza Santos – artigo publicado pelo Seminário Internacional Sociedade
e a Reforma do Estado. (SANTOS, 1998).

374 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações

denominada doravante de ‘fundação Entretanto, o contrato de gestão da Fundação das Pioneiras Sociais,
estatal’5, instrumentos que podem tem sido um instrumento muito mais o do Grupo Hospitalar Conceição,
modernizar a gestão da saúde. de controle das organizações soci- cuidam tão somente da fixação de
ais ou de fixação de responsabili- metas, avaliação de desempenho e
dades e metas públicas do que de outros compromissos, sem flexibi-
expansão da autonomia dos entes e lização da gestão.
DO CONTRATO
órgãos públicos. O contrato de gestão não amplia
DE AUTONOMIA
O contrato do § 8º do art. 37 tem a autonomia, mas sim, especifica
por objeto o ‘alargamento da auto- metas e responsabilidades, critéri-
Nos últimos anos a administra-
nomia’ como meio para se alcan- os de avaliação do ente público ou
ção pública vem abrindo espaço çar a melhoria da gestão de órgão privado, sem, contudo, conferir
para “atuações administrativas ins- ou ente público e fixação clara de maior autonomia gerencial, finan-
trumentalizadas por técnicas contra- responsabilidades do administrador ceira ou patrimonial, muitas vezes,
tuais, decorrentes de consenso, acor- essenciais para a obtenção de resul-
do, cooperação, parcerias firmados tados qualitativos na prestação de
serviços públicos.
entre a Administração e particula- O CONTRATO DE GESTÃO NÃO AMPLIA A
res ou entre órgãos públicos e enti- O § 8º do art. 37 da CF que reza
AUTONOMIA, MAS SIM, ESPECIFICA METAS E que mediante contrato a ser firma-
dades estatais” (MEDAUAR, 2005).
Tanto que o contrato de gestão – que RESPONSABILIDADES, CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO do entre o Poder Público e seus ad-
ministradores poderão ser amplia-
surgiu nos anos 90, no Governo DO ENTE PÚBLICO OU PRIVADO, SEM,
das as autonomias gerencial, orça-
Collor, pelo Decreto 137/916 – tem
CONTUDO, CONFERIR MAIOR AUTONOMIA mentária e financeira de entidades
sido amplamente utilizado no âm-
GERENCIAL, FINANCEIRA OU PATRIMONIAL... e órgãos da administração direta e
bito da administração pública nas
indireta, devendo a lei definir o pra-
relações que mantém com as Orga- zo de duração do contrato; os con-
nizações Sociais, com o Serviço troles e critérios de avaliação de
Social Autônomo, com as agências desempenho, direitos, obrigações e
reguladoras, agências executivas e 7
público; já o contrato de gestão uti- responsabilidades de seus dirigen-
com empresas estatais. lizado pela administração, como o tes e remuneração de pessoal.

5
Em abril de 2005, a pedido de dirigentes do Grupo Hospitalar Conceição, de Porto Alegre, ente federal, realizei estudos para transformar
aquelas entidades em fundação governamental de direito privado. Em outubro do mesmo ano, apresentei o resultado dos estudos numa
oficina de trabalho organizada pelo Ministério do Planejamento, Projeto EuroBrasil 2006, Secretaria de Gestão, para discutir novas
formas de gestão hospitalar. A partir daí, tanto o Ministério do Planejamento quanto o Ministério da Saúde decidiram aprofundar os
estudos sobre o modelo de Fundação Governamental de direito privado (Fundação Estatal) proposta por mim para o Grupo Hospitalar
Conceição, criando grupos de trabalho. Também venho participando, informalmente, como colaboradora, do grupo de trabalho do
Ministério do Planejamento, Secretaria de Gestão, composto por Sábado Girard e Valéria Alpino Bigonha Salgado.
6
O Decreto 137/91 definia o contrato de gestão como “instrumento do Programa de Gestão das Empresas Estatais – PGE, no qual se
estipulam compromissos reciprocamente assumidos entre a União e a Empresa”. Esse contrato objetivava o aumento da eficiência e
competitividade das empresas estatais.
7
Abrindo um parêntese, as Agências executivas, criadas pelo art. 51 e 52 da Lei 9.649/98 são autarquias e fundações públicas que podem,
por decreto do Presidente da República, ser qualificadas como agência executiva desde que tenham plano estratégico de reestruturação
e desenvolvimento institucional e celebre contrato de gestão com o Ministério supervisor, gozando, assim, de maior autonomia. Entretan-
to, nenhum decreto pode ultrapassar os limites da lei que criou o ente qualificado como agencia executiva, garantindo-lhe autonomia
maior que a lei que a o criou. Decreto presidencial não pode expandir limites legais. As flexibilidades devem estar previstas em lei, como
acontece com a Lei 8.666 que ampliou o valor percentual de dispensa de licitação para as agências executivas.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 375
SANTOS, Lenir

Vê-se, desde logo, a diferença ras de responsabilização pelo con- nho para o órgão ou entidade, a sua
entre o contrato de gestão e o con- trato de autonomia. Reza o citado duração, controles, critérios de ava-
trato mencionado no § 8º do art. 37 Decreto-lei que liação de desempenho, direitos,
‘o qual claramente refere-se à am- obrigações e responsabilidade dos
pliação de autonomia gerencial, fi- (...) se por um lado, a administra- dirigentes e remuneração de pesso-
nanceira e orçamentária de uma das ção e gestão obedecem a regras funda- al.
partes contratante’. mentais que são comuns a todas as es- A lei que dispuser sobre o con-
Não há, ainda, no nosso país, colas, o certo é que, por outro lado, a trato de autonomia, há que disci-
lei definindo o ‘contrato de autono- configuração da autonomia determi- plinar todos esses elementos e con-
mia’. No direito Português, o Decre- na que se parta de situações concretas ferir aos administradores públicos

to-Lei nº 115-/988, de 4 de maio, distinguindo os projectos educativos e de órgãos (por não serem dotados

aprova o regime de autonomia, ad- as escolas que estejam mais aptas a as- de personalidade jurídica própria)
sumir, em grau mais elevado, essa au- poderes para firmar o contrato com
ministrativa e de gestão dos esta-
o Poder Público ou ‘uma competên-
belecimentos públicos de educação
cia especial’, no dizer de Silva
pré-escolar, ensinos básico e secun-
O CONTRATO DE AUTONOMIA – UM (2007)
dário. O contrato de autonomia por-
tuguês é definido como CONTRATO INUSUAL NA ADMINISTRAÇÃO –
(...) que lhes permita celebrar o con-
DEVERÁ FIXAR METAS DE DESEMPENHO PARA O
trato, que talvez não passe de uma es-
o acordo celebrado entre a escola, o
ÓRGÃO OU ENTIDADE, A SUA DURAÇÃO, pécie de acordo-programa. Ainda, con-
Ministério da Educação, a administra-
CONTROLES, CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO DE
forme o ilustre professor, a Constitui-
ção municipal e, eventualmente, outros
ção criou uma forma de contrato ad-
parceiros interessados, através do qual DESEMPENHO, DIREITOS, OBRIGAÇÕES E ministrativo inusitado entre adminis-
se definem objectivos e se fixam as con-
RESPONSABILIDADE DOS DIRIGENTES E tradores de orgãos do poder público com
dições que viabilizam o desenvolvimen-
o próprio poder público, cabendo ao le-
to do projecto educativo apresentado pe- REMUNERAÇÃO DE PESSOAL
gislador ordinário disciplinar a maté-
los órgãos de administração e gestão ria.
de uma escola ou de um agrupamento tonomia, cabendo ao Estado a respon-
de escolas (BRASIL, 1998). sabilidade de garantir a compensação Tal lei poderá inovar garantindo
exigida pela desigualdade de situações ao administrador que firmar o con-
Sua finalidade é melhorar o de- (BRASIL, 1998)9. trato de autonomia, dentre direitos
sempenho do serviço público de e responsabilidades mencionados no
educação mediante uma série de O contrato de autonomia – um texto constitucional, a sua perma-
autonomias e permitir que a admi- contrato inusual na administração nência frente ao órgão (mandato),
nistração pública adote regras cla- – deverá fixar metas de desempe- por um determinado prazo, que pode

8
Alterado pela Lei Portuguesa 24/99.
9
O contrato de autonomia português prevê duas fases do processo de desenvolvimento da autonomia, conforme negociação prévia entre
a escola e a administração pública. Na primeira fase, concede-se gestão flexível do currículo, adoção de normas próprias sobre horários,
tempos letivos, intervenção no processo de seleção de pessoal, gestão e execução orçamentária, possibilidade de autofinanciamento e
gestão de outras receitas.

376 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações

ser o do contrato; poderá, ainda, no Sem adentrar nesse campo com privado como pelo direito público,
tocante às responsabilidades, impe- maior profundidade, como diversos conforme a lei dispuser, passaremos
dir a ocupação daquele administra- autores já o fizeram exaustivamen- a demonstrar que hoje, as funda-
dor de outros cargos de direção, por te, podemos dizer de maneira sinté- ções estatais regidas pelo direito
determinado período, no caso de des- tica que a doutrina se divide entre privado podem ser um modelo de
cumprimento injustificado do con- os que entendem que as fundações entidade governamental com maior
trato, com prejuizo publico. instituídas pelo Poder Público po- autonomia e de grande utilidade
Poderá, ainda, vincular as ques- dem ser de direito privado ou pú- para a prestação de serviços públi-
tões relativas a remuneração de blico, conforme dispuser a lei auto- cos não exclusivos do Estado, ou
pessoal à economia de recursos or- rizativa10 e aqueles que advogam seja, serviços públicos da área so-
çamentários, os quais poderão ser que todas as fundações quando ins-
cial, ‘em especial, os serviços de
destinados ao pagamento de prêmio tituídas pelo Poder Público sempre
saúde’.
de produtividade ao seu pessoal, serão de direito público. Há, ainda,
O inciso XIX do art. 37 da Cons-
conforme disposto no art. 39, § 7º
tituição reza que “somente por lei
da CF. O legislador haverá de ino-
específica poderá ser criada autar-
var ao disciplinar esse dispositivo
quia e autorizada a instituição de
constitucional, criando um novo
empresa pública, sociedade de eco-
modelo de contrato administrativo NÃO É DE HOJE A DISCUSSÃO nomia mista e de fundação, caben-
que garanta melhor desempenho aos
QUE SE TRAVA NO MUNDO JURÍDICO SOB A do à lei complementar, neste últi-
órgãos e entes públicos.
mo caso, definir as áreas de sua
PERSONALIDADE JURÍDICA DAS FUNDAÇÕES
atuação”. (BRASIL, 1988). Antes da
INSTITUÍDAS PELO ESTADO EC 19/98 a redação desse dispositi-
DA FUNDAÇÃO ESTATAL
COM PERSONALIDADE vo constitucional mencionava que
JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO “somente por lei específica poderá
ser ‘criada autarquia e fundações
Não é de hoje a discussão que públicas’ (grifo nosso)”. A EC 19 fez
se trava no mundo jurídico sob a duas alterações no texto anterior,
personalidade jurídica das funda- administrativistas, como Meirelles incluindo ao lado da empresa pú-
ções instituídas pelo Estado. A Cons- (1998), que sempre defendeu a fun- blica e da sociedade de economia
tituição mencionou as fundações dação estatal como de direito pri- mista as fundações, as quais, do-
públicas em vários dispositivos, vado. ravante, dependem apenas de lei
tendo causado mais confusão do Entendendo que a melhor dou- autorizativa e não de lei instituido-
que solução para os díspares enten- trina está com aqueles que admi- ra, tendo ainda, retirado da expres-
dimentos sobre a personalidade ju- tem fundações governamentais ou são fundação a qualificação “publi-
rídica das fundações. estatais regidas tanto pelo direito ca”. (BRASIL, 1998).

10
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Odete Medauar, Jose dos Santos Carvalho Filho, Carlos Ari Sundfeld entendem que as fundações
instituídas pelo Poder Público podem ser de direito publico ou de direito privado, conforme dispuser a lei autorizativa; Celso Antonio
Bandeira de Mello defende posição antagônica entendendo que as fundações instituídas pelo Poder Público sempre serão de direito
publico. O entendimento do STF é de que tanto pode haver fundação governamental de direito público como de direito privado, dependen-
do de como a lei autorizativa ordenou a sua criação. (RE nº 101.126-RJ, Relator o Min Moreira Alves - RTJ 113/314; Ellen Gracie – Agravo
em RE 219.900-1 RS 2002; e Eros Roberto Grau – MS 24.427-5 - 2006).

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 377
SANTOS, Lenir

Três são as novidades dessa re- ada em virtude de autorização legisla- da fundação para o desenvolvimento
gra constitucional – em relação ao tiva, para o desenvolvimento de ativi- de atividades que não exijam execução
texto original – (a) criação de fun- dades que não exijam execução por ór- por órgão ou entidade de direito
dação por lei autorizativa; (b) su- gão ou entidade de direito público, com publico”(BRASIL, 1967).
pressão da expressão “pública” que autonomia administrativa, patrimô-
acompanhava a fundação; e (c) ne- nio próprio gerido pelos respectivos ór- Desse modo, somente atividades
cessidade de lei complementar dis- gãos de direção e funcionamento cus- que não exijam poder de autorida-
pondo sobre o campo de atuação teado por recursos da União e de ou- de, ou seja, pessoa jurídica de di-
das fundações. tras fontes” (BRASIL, 1967). reito público, podem ser objeto da
A Constituição ao afirmar que as Como tal dispositivo refere-se às fun- fundação estatal de direito privado.
fundações somente necessitam de lei dações estatais de direito privado, en- Na área da saúde, excluída a vigi-
autorizativa, cabendo ao Executivo quanto nova lei complementar não for lância sanitária e outras atividades
a sua instituição, reconheceu a pos- editada, vigora a lei ordinária anteri- que exijam função de autoridade,
sibilidade de essas entidades, ao poderão ser criadas fundações es-
serem criadas pelo Estado, gozarem tatais. Na área hospitalar seria de
de personalidade jurídica de direito todo conveniente a adoção do mo-
privado, ou seja, ser instituída de delo diante do esgotamento dos
acordo com o regime do Código Ci-
A CONSTITUIÇÃO AO AFIRMAR QUE AS modelos utilizados atualmente.
vil (mediante escritura pública re- FUNDAÇÕES SOMENTE NECESSITAM DE LEI Resolvidas as questões mais

AUTORIZATIVA (...)RECONHECEU A
gistrada no Cartório competente e polêmicas sobre as fundações (ou-
regida pelos seus estatutos aprova- tras podem existir, mas todas paci-
dos por decreto). POSSIBILIDADE DE ESSAS ENTIDADES (...), ficadas12), gostaríamos de destacar
Quanto à necessidade de lei com- GOZAREM DE PERSONALIDADE JURÍDICA DE de modo prático as vantagens des-
plementar dispondo sobre o campo se modelo estatal para a prestação
DIREITO PRIVADO ...
de atuação das fundações estatais, de serviços de saúde, em especial,
enquanto tal lei não for editada, re- os hospitalares.
cepcionado está o art. 5º, IV, do De- ‘As fundações estatais13 na área
creto-lei 200/67: da saúde federal’ podem ter as se-
or, recepcionada pela Constituição , 11 guintes características14 (algumas
“Art. 5º. com força de lei complementar; assim, específicas e outras comuns a ou-
IV – Fundação Pública – a entidade no tocante ao seu campo de atuação tras áreas que não a da saúde, lem-
dotada de personalidade jurídica de prevalece a regra do Decreto-lei acima brando, ainda que outras esferas de
direito privado, sem fins lucrativos, cri- citado: “somente poderá ser instituí- governo também podem instituir

11
Nem seria necessário demonstrar que diversas leis ordinárias foram recepcionadas pela Constituição com força de lei complementar,
sendo os exemplos mais clássicos, o Código Tributário Nacional (lei ordinária enquanto a Constituição exige lei complementar para
matérias tributárias) e a Lei 4.320/64 que dispõe sobre finanças públicas, também lei ordinária enquanto a Constituição preconiza lei
complementar.
12
Como o disposto no parág. único do art. 62 do Código Civil que menciona “assistência” dentre os campos de atividades das fundações,
devendo ser entendido que a assistência ali mencionada é lato sensu e não strictu sensu.
13
Participei das discussões sobre a elaboração de um projeto de lei complementar, no Ministério do Planejamento, Secretaria de Moderni-
zação da Gestão dispondo sobre o campo de atuação das fundações estatais.
14
Características fundadas no modelo instituído para a transformação dos hospitais do Grupo Hospitalar Conceição e dos hospitais e
institutos federais situados no Rio de Janeiro, em estudo, pelo Grupo de Trabalho aqui mencionado, nota de rodapé 9.

378 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações

fundações estatais, com as adapta- ços, podendo a ‘lei federal’ que a 11. sujeitar-se ao controle dos
ções necessárias quanto à compe- criar, instituir outras modalidades conselhos de saúde, conforme situ-
tência federal para legislar sobre de disputa pública, conforme ocor- ação geográfica e vinculação gover-
certos temas nem sempre ao alcan- reu com o pregão público que nas- namental.
ce do Estado e Município, como é o ceu no âmbito de uma lei especifi- Ressalte-se, ainda, que:
caso das normas gerais sobre lici- ca, a que criou a Anatel. Advoga-se a) a imunidade tributária previs-
tação): que a fundação estatal federal da ta na Constituição para as fundações
1. gozar de autonomia adminis- saúde realize licitação sob a moda- instituídas pelo poder público alcan-
trativa, financeira, patrimonial e lidade do pregão e da consulta pu- ça a fundação estatal (art. 150, § 2º
orçamentária não devendo ter orça- blica, está ultima conforme vier a da CF) (Lembramos que o art. 150,
mento público, mas sim ser uma ser explicitada em lei especifica, po- VI,c, da CF, alcança, ainda, as enti-
prestadora de serviços para o Mi- dendo, ainda, contar com regula- dades privadas sem finalidades lu-
nistério da Saúde com o qual firma- mento próprio, em razão do dispos- crativas das aréas de educação e
rá contrato de gestão; to no art. 119 da Lei 8666/93 (BRA- assistência social, latu sensu);

2. ter em sua estrutura organi- SIL, 1993). b) a Lei de Responsabilidade Fis-

zacional (sistema de governança) 7. submeter-se ao regime finan- cal (Lei Complementar 101/2000) só
ceiro (contabilidade) das empresas terá incidência sobre a fundação
um conselho curador e uma direto-
estatais (Lei 6.404, 15.12.76) e não estatal se a mesma receber recur-
ria executiva, com mandato, o qual
o da Lei 4.230/64 (BRASIL, 1964) sos públicos para pagamento de des-
poderá ser encerrado antes do seu
pesas com pessoal ou de custeio em
término, no caso de descumprimen- 8. submeter-se, quanto ao regi-
geral ou de capital (entidade depen-
to do contrato de gestão; me de pessoal, à CLT, com ingresso
dente). Quando suas rendas advie-
3. ter receitas advindas do con- mediante concurso público; plano de
rem de serviços prestados a órgãos
trato de gestão e outros contratos carreira e salários, dissídios, gestão
ou entidades do SUS, em especial,
firmados com o poder público, ve- de pessoal e reajustes próprios; ter
do Ministério da Saúde, conforme
dados contratos que cerceiem ou limites de contratação de pessoal contrato de gestão, a LRF não inci-
inibam a universalidade do acesso previsto em lei ou nos seus estatu- dirá sobre a fundação, como regra
dos serviços de saúde (gratuidade e tos; geral (lembramos que a LRF adotou
igualdade); 9. submeter-se ao regime especi- como principio para a sua aplicabi-
4. reger-se pelo disposto na lei al de penhora previsto no Código de lidade às entidades públicas de di-
que autorizar a sua instituição e Processo Civil para as entidades es- reito privado, a sua dependência fi-
pelos seus estatutos baixados por nanceira). O Professor Carlos Ari
tatais (art. 678) quanto aos seus bens
ato do Executivo; Sundfeld, no Parecer mencionado
e rendas.
5. sujeitar-se aos controles dos anteriormente, destaca que “As fun-
10. inserir-se no sistema loco-re-
Tribunal de Contas da União e do dações governamentais privadas
gional, sendo entidade integrante do
Ministério da Saúde; ‘que recebam do ente controlador re-
SUS, com observações de todos os
6. submeter-se a regime à lei de cursos financeiros para pagamento
licitação e contratos quanto ao seu seus princípios, diretrizes e regra- de despesas com pessoal ou de cus-
regime de compras de bens e servi- mentos. teio ou de capital’ devem, contudo,

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 379
SANTOS, Lenir

ser entendidas como fundações de- controle social exercido pelos con- ço prestado; adequação dos recur-
pendentes, à semelhança do que selhos de saúde, prestadora de ser- sos aos resultados que se preten-
ocorre com as empresas estatais na viços universalizados e responsa- dem – ‘será um instrumento ino-
mesma situação (lei complementar bilidade explícita de seus dirigen- vador de gestão pública, em espe-
n. 101, de 2000 – Lei de Responsa- tes no contrato de gestão; recursos cial para a área da saúde’.
bilidade Fiscal, art. 1º, § 3º,I, b c/c humanos comprometidos, os quais Finalizando, podemos afirmar
art. 2º, II)” – (FIOCRUZ, 200?). deverão (é o que se advoga) ter par- que existe hoje possibilidade, ain-
c) poderão ser firmados contra- te de seus vencimentos atrelados ao da não explorada, no âmbito da ad-
tos com o Estado e Município (as desempenho identificado com a qua- ministração pública direta e indi-
fundações estatais federais), no âm- lidade dos serviços prestados, tudo reta, de promoção de uma reforma
bito da regionalização, além de po- em nome do interesse público. da gestão, com sua modernização,
der ter outras rendas advindas de sem que se tenha o olhar apenas
serviços voltados para a pesquisa voltado para o Terceiro Setor, des-
científica e formação de pessoal, qualificando-se a administração
para os hospitais que tiverem essa pública como ineficiente e incapaz
finalidade, também. sem, contudo, introduzir no seu in-

A FUNDAÇÃ O ESTATAL E O CONTRATO DE terior instrumentos inovadores da


gestão pública. A fundação estatal
GESTÃO SÃO MODELOS QUE POSSIBILITAM
CONCLUSÃO e o contrato de gestão são modelos
MODERNIZAR O ESTADO ACABANDO COM A que possibilitam modernizar o Es-
A Fundação Estatal é hoje sem
VISÃO DOS ANOS 90 DE QUE ISSO SOMENTE tado acabando com a visão dos
dúvida, o melhor instrumento de anos 90 de que isso somente seria
SERIA POSSÍVEL ‘FORA’ DO ESTADO ...
gestão hospitalar (‘e para outras possível ‘fora’ do Estado, como se
áreas da saúde pública, como tam- o Estado pudesse ser ‘substituído’
bém para a educação, cultura, meio pelo setor privado ao invés de ‘com-
ambiente, turismo, assistência so- plementado’ em algumas ações e
cial da União, dos Estados e dos Por outro lado, se o ‘contrato de serviços, quando e se necessário.
Municípios’) dada a sua caracterís- autonomia’ observar princípios Sem que se resolva ‘internamen-
tica de ser uma entidade integrante como: subordinação da autonomia te’ os problemas do Estado, o sim-
da administração pública indireta, aos objetivos do serviço público e ples transpasse de serviços públi-
com autonomia administrativa, fi- à qualidade de sua prestação; com- cos para o Terceiro Setor levará con-
nanceira, orçamentária e patrimo- promisso dos órgãos e entes públi- sigo as mazelas não eliminadas da
nial. cos na gestão de um serviço de qua- área pública e, num espaço curto
A Fundação estatal, como enti- lidade; consagração do controle so- de tempo, perderemos a ilusão de
dade hospitalar da administração cial; reforço da responsabilização que o setor privado poderá ‘substi-
pública federal, será uma entidade dos dirigentes públicos mediante o tuir’ o setor público, com qualida-
integrante do SUS, com inserção desenvolvimento de instrumentos de de, eficiência e economicidade, tão
loco-regional, hierarquizada, com avaliação do desempenho do servi- apregoadas nos últimos anos.

380 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 381
DOCUMENTOS / DOCUMENTS

O lugar estratégico da gestão na conquista do SUS pra valer


The strategic place of management in the attainment of a genuine Unified Health System

Embora o financiamento seja o tema predominante na atual discussão acerca dos dilemas do sistema público de
saúde no país, ele não representa o único problema a impedir que tenhamos um SUS pra valer: humanizado,
integral e de qualidade.
Outro obstáculo importante consiste na falta de um projeto político claro para o setor. Afinal, o que o SUS
persegue hoje? Quais são as estratégias adotadas para esse fim? O que é tomado como prioritário nessa política?
Estas são questões que precisam ser levadas a público, aprofundadas e debatidas junto à sociedade. Somente assim
tal política poderá ganhar maior legitimidade. Somente assim ela poderá contar com ampla base de sustentação,
envolvendo cidadãos, usuários, profissionais da saúde e gestores do sistema. Somente assim esse projeto tornar-se-
á politicamente viável.
Dentre a lista de questões estratégicas a enfrentar, é preciso dar destaque também ao problema da gestão da
saúde. Não obstante, o debate que a questão tem suscitado, sua importância em relação ao SUS segue ainda mal
reconhecida.
De modo geral, a falta de capacidade gerencial acaba sendo remetida à esfera da prestação de serviços, ao âmbito
dos serviços de saúde, quando o problema em verdade perpassa todos os níveis do nosso sistema de saúde. Basta
lembrar o quanto estamos longe do Ministério Único da Saúde (MUS) e as conseqüências negativas dessa desarticu-
lação interna do Ministério da Saúde ou, ainda, se reportar às dificuldades gerenciais comumente observadas em
nossas secretarias estaduais e municipais. Vale assinalar, também, que os problemas gerenciais se manifestam nos
mais diversos domínios das organizações públicas de saúde: no planejamento, na gestão das pessoas, na gestão de
materiais, na gestão financeira, na gestão da clínica etc.
Outro aspecto a indicar a falta de entendimento sobre tal questão é que, ao contrário do que acontece com a
temática do financiamento, raras vezes se estabelece uma clara relação de causa-e-efeito entre o mau gerenciamento
do sistema e os resultados alcançados pelo SUS. Os problemas da ineficiência, da má qualidade do atendimento, da
insuficiente transparência ou da falta de democracia, todos eles dizem respeito e encontram raiz na forma como o
SUS é gerido. Caso não logremos estabelecer outro modo de geri-lo, caso não sejam adotados outro modelo e novas
práticas de gestão, esses problemas não encontrarão efetiva solução.
Neste sentido, o CEBES tem procurado se apropriar e debater a proposta de criação de fundações estatais para
hospitais públicos. Diante da complexidade do tema e necessidade de aprofundamento de várias de suas dimensões,
o CEBES não definiu uma posição favorável ou contrária a este projeto. Antes de tudo, queremos discutir mais! Não
se trata apenas de encampar ou descartar a alternativa proposta e sim viabilizar a realização de debates francos e
abertos com a sociedade brasileira. Quase 20 anos após a aprovação da Constituição de 1988, é preciso encarar de
vez a tarefa de traduzir os princípios do SUS, em efetivos direitos à saúde.

382 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 382-384, set./dez. 2005
DOCUMENTOS / DOCUMENTS

Para tanto, consideramos que:

1. Há um amplo consenso sobre a necessidade de melhorar a gestão dos serviços de saúde e que a atenção
hospitalar é ponto crítico do SUS. São numerosas as evidências de que o modelo atual de gestão de nossos serviços
de saúde encontra-se em crise. Contudo, os desafios para transformar as disposições favoráveis a mudanças em
ações efetivas requerem medidas adicionais: a definição do perfil assistencial destas unidades e a ampliação de seus
compromissos com as diretrizes do SUS, por meio de ações programadas. O que implica o alargamento e o aumento
de resolutividade das portas de entrada do sistema (o nível básico de atenção) e a reinserção qualificada dos hospi-
tais em redes de serviços efetivamente universais, regionalizadas, hierarquizadas e de qualidade.

2. É essencial impedir que os hospitais tenham sua gestão comprometida por barganhas políticas, o que requer
exigir a profissionalização da gestão e a criação de carreira de gestor para os dirigentes.

3. A política de gestão deve ser articulada a um projeto de fortalecimento do SUS, de profunda revisão dos
modelos de atenção, formas e valores de remuneração de todos os seus níveis de atenção.

4. Os problemas de gestão das unidades públicas de saúde, relativos à baixa qualificação técnica dos dirigentes,
não são nenhum segredo. O uso de tecnologias e ferramentas de gestão em saúde disponíveis é limitado e/ou mal
empregado pelos gestores. O mais grave da situação presente é que o poder decisório/discricionário que esses
dirigentes têm em mãos é muito reduzido – em certos casos, a gestão fica a depender, basicamente, de sua capacida-
de de liderança e de negociação política, seja perante suas autoridades superiores, seja junto ao corpo de funcioná-
rios da organização. Talvez, portanto, não seja mera coincidência que pouco hoje lhes seja cobrado.

5. É preciso aumentar o montante de recursos necessários ao investimento, à manutenção de redes físicas,


aquisição e reparo de equipamentos e qualificação de pessoal. Além disso, uma proposta voltada para ampliar a
autonomia da gestão deve vir acompanhada de maior grau de responsabilização dos dirigentes. O que implica a
observância de um duplo compromisso: dotar o gestor de poder para, dentro das regras definidas pelo Estado,
contratar e demitir pessoal e realizar compras e investimentos em obras e equipamentos e, avaliar, de maneira
sistemática, a execução das metas definidas pelas instâncias de controle social, pactuação e gestão do SUS.

6. O desafio é estabelecer, no âmbito da administração pública, um modelo que a um só tempo outorgue autono-
mia de gestão das unidades hospitalares e fortaleça a coordenação das redes de serviços de saúde, nas quais se
inscrevem essas unidades, e que, ao mesmo tempo, contemple a instauração de um sistema de responsabilização de
seus dirigentes por resultados alcançados, coerentes com os princípios do SUS.

7. A complexidade e as tensões envolvidas com o tema requerem a convocação de amplo debate com a sociedade
civil, organizada em todos os níveis. Para articular esforços em torno das reais mudanças, é imprescindível contar
com todos os setores e segmentos que, ao longo de quase duas décadas, defenderam com tenacidade o SUS. A fratura

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 382-384, set./dez. 2005 383
DOCUMENTOS / DOCUMENTS

entre os propositores das mudanças e as entidades de representação dos servidores públicos é indesejável e deve ser
evitada. Trata-se de atualizar, para o enfrentamento dos novos desafios, entre os quais a mudança do modelo de
gestão, a ampla coalizão que logrou resistir ao desmonte do SUS por mais de duas décadas.

8. As dimensões do Projeto de Fundações Estatais, tais como: 1) a adequação jurídico-legal de seu formato aos
objetivos propostos; 2) os custos atuais dos estabelecimentos públicos, os custos de transição, os custos previstos
para a operação das unidades pelas fundações e as repercussões orçamentárias da alteração do modelo; 3) a
definição dos papéis do controle social e instâncias de gestão do SUS, dada a responsabilização dessas unidades
pela cobertura de populações-território definidas; 4) a permeabilidade do modelo à necessidade de incentivar a
capacitação, a dedicação exclusiva, a remuneração adequada e o compromisso dos servidores públicos com o SUS,
requerem o debate com as mais diversas entidades da sociedade civil e com representante do Legislativo, do Judici-
ário e do Ministério Público.

CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES)


13 de junho de 2007

384 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 382-384, set./dez. 2005
DOCUMENTOS / DOCUMENTS

O SUS pra valer: universal, humanizado e de qualidade1


An Effective Unified Health System: universal, humanized and of high quality

Neste ano, mais uma vez a população brasileira vai ser chamada escolher seus dirigentes, reafirmando novamen-
te a democracia eleitoral. No entanto, este é o momento de transitarmos desde uma democracia eleitoral a um
verdadeiro sistema democrático, o que só existirá quando forem apresentadas opções concretas de radicalização do
processo de desenvolvimento nacional. Isso significa um padrão de desenvolvimento que coloque como objetivos
centrais o investimento em um crescimento autônomo e soberano, voltado para a geração de emprego, a distribuição
de renda e a garantia dos direitos de cidadania.
A estabilidade da economia nacional tem sido a principal preocupação dos últimos governos, com resultados
positivos em relação ao controle inflacionário e ao manejo da dívida. Estes foram fruto tanto de políticas públicas
que abriram novos mercados para exportações, reduziram a dívida externa atrelada à variação cambial e alongaram
os prazos de seu pagamento, quanto do dinamismo do setor produtivo nacional, que conseguiu se reciclar e tornar-
se competitivo no mercado internacional.
No entanto, os governos tornaram-se prisioneiros dos instrumentos de sua política monetária, o que acarretou a
consolidação de um padrão de capitalismo financeiro que, apesar de dinâmico e inserido na economia globalizada e
no comércio internacional, produz e reproduz a concentração da renda. Isso se dá, principalmente, pela manutenção
de taxas elevadíssimas de juros, drenando as riquezas produzidas pela população para o Estado, por meio da
elevação incessante da carga tributária, e pelo Estado para o setor financeiro nacional e internacional, com o
pagamento de juros.
Esse padrão é o resultado da política neoliberal implantada desde a década de 90, com conseqüências irreversí-
veis e/ou altamente deletérias para a sociedade, face à efetuada transferência de responsabilidades governamentais
e do patrimônio público para mãos privadas, ao desmantelamento da inteligência e das carreiras do Estado, às
restrições orçamentárias para as políticas sociais universais e à ameaça permanente de desvinculação das receitas
constitucionais a elas destinadas.
A população brasileira está cada vez mais consciente da distância entre as propostas eleitorais e as realizações
dos governantes, e exige que a democracia seja mais do que um jogo político: é preciso que a democracia se traduza
em medidas concretas, voltadas para o pleno emprego, a redução das desigualdades salariais e regionais, além de
exigir a garantia dos direitos sociais por meio da cobertura universal, humanizada e de qualidade. Mais do que
nunca, a sociedade sabe que isso só ocorrerá se aprofundarmos os mecanismos de participação, controle e transpa-
rência na gestão pública, fortalecendo os instrumentos de democracia direta, como a iniciativa popular legislativa,
os orçamentos participativos, os conselhos gestores e os fóruns deliberativos. No entanto, é preciso que esses
mecanismos deixem de ser restritos às áreas sociais e avancem para aumentar a transparência e a participação

Documento-base em discussão com a Frente Parlamentar da Saúde.


1

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 385-396, set./dez. 2005 385
DOCUMENTOS / DOCUMENTS

social na definição e implementação das políticas macroeconômicas, pois sabemos que estes são fatores condicio-
nantes do êxito na democratização da política de saúde. Setorialmente, também temos que radicalizar para fazer
valer o texto constitucional. Mais do que isso, sabe-se que é possível, com as condições técnicas, políticas e econô-
micas que temos hoje no país, dar o salto que falta para termos um SUS pra valer: UNIVERSAL, HUMANIZADO, DE
QUALIDADE.

A REFORMA SANITÁRIA E O SUS

O Sistema Único de Saúde (SUS) é fruto de um longo processo deconstrução política e institucional nomeado
Reforma Sanitária, voltado para a transformação das condições de saúde e de atenção à saúde da população brasi-
leira, gestado a partir da década de 70, quando vivíamos sob a ditadura militar.
Mais do que um arranjo institucional, o processo da Reforma Sanitária brasileira é um projeto civilizatório, ou
seja, pretende produzir mudanças dos valores prevalentes na sociedade brasileira, tendo a saúde como eixo de
transformação e a solidariedade como valor estruturante. Da mesma forma, o projeto do SUS é uma política de
construção da democracia que visa à ampliação da esfera pública, à inclusão social e à redução das desigualdade.
Se a Reforma Sanitária é a expressão do nosso desejo de transformação social, sua materialização institucional no
SUS é a resultante do enfrentamento desta proposta com as contingências que se apresentaram nessa trajetória. Em
outras palavras, expressa a correlação de forças existente em uma conjuntura particular.
Originalmente uma idéia e um ideário de um grupo de intelectuais, a proposta se desenvolveu na transição
democrática, congregando entidades representativas dos gestores, profissionais da saúde e movimentos sociais que,
articulados na Plenária Nacional de Entidades de Saúde, conseguiu influenciar o processo constituinte e plasmar na
Constituição Brasileira de 1988 (CF/88) o texto aprovado
na 8a Conferência Nacional de Saúde que garante que “Saúde é um Direito de Todos e um Dever do Estado”. Em
outras palavras, a saúde passou a fazer parte dos direitos sociais da cidadania.
A partir de então, iniciou-se uma nova fase do processo da Reforma Sanitária em que, ao mesmo tempo, era
necessário prosseguir elaborando o referencial teórico e estratégico e começar a construir os métodos e instrumentos
de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS). CEBES, ABRASCO, CONASS, o CONASEMS, a Rede UNIDA, ABRES,
AMPASA, parlamentares, entidades representadas nos Conselhos de Saúde, a Frente Parlamentar da Saúde e outros
têm liderado o debate e concentrado esforços para a concretização do projeto da Reforma Sanitária.
Ao incluir a saúde como um direito constitucional da cidadania no capítulo da Seguridade Social, avançamos na
concretização da democracia, fortalecendo a responsabilidade do Parlamento e da Justiça, cada dia mais presentes
na garantia dos direitos sociais. Mesmo coincidindo com o governo Collor e o início da implantação das propostas
neoliberais de ajuste do Estado, a construção do SUS foi realizada na contramão das políticas econômicas, configu-
rando, juntamente com a atuação do Ministério Público, alguns dos mais expressivos resultados dos preceitos
democráticos inscritos na CF/88.
No âmbito da reforma do Estado, o SUS desenvolveu um projeto de reforma democrática que se caracterizou pela
introdução de um modelo de pacto federativo baseado na descentralização do poder para os níveis subnacionais e
para a participação e controle social. Como conseqüência, ocorreu uma ousada municipalização do setor Saúde.
Foram criados Conselhos de Saúde, com caráter deliberativo, em todos os municípios e estados nos quais os re-

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DOCUMENTOS / DOCUMENTS

presentantes dos usuários ocupam 50% dos assentos. Foram instituídos os Fundos de Saúde, substituindo os convê-
nios que regiam as relações entre as três esferas governamentais. A criação das Comissões Bipartites (CIB), nos
estados, e a Tripartite (CIT), no nível nacional, estabeleceu o espaço para o desenvolvimento de relações cooperativas
entre os entes governamentais.
O modelo de pacto federativo do SUS mostrou-se altamente adequado à realidade de uma sociedade marcada
pelas desigualdades sociais e regionais. Em um país com tais características só será democrático o poder exercido
de forma pactuada e socialmente controlada que considere as desigualdades entre grupos populacionais e regiões
como o principal problema a ser superado. Por isso, esse modelo do SUS está sendo expandido e reinterpretado para
a área de Assistência Social (SUAS) e também para a área de Segurança (SUSP).
O êxito da descentralização pode ser medido pelo seu impacto no aumento da base técnica da gestão pública em
saúde nos níveis local, regional e central. Também, a rede de atenção básica teve grande expansão, a partir de 1998,
ampliando enormemente o acesso das populações antes excluídas. O sistema universal e descentralizado permite
que o país realize um dos maiores programas públicos de imunizações do planeta e um programa de controle da
AIDS mundialmente reconhecido. Esses resultados constituem os esforços de milhares de trabalhadores da saúde, de
todos os níveis e especialidades de formação, para concretizar o direito à saúde no cotidiano da população brasilei-
ra.
Entretanto, tendo sido implementado em condições adversas, da década de 90 até hoje o SUS enfrentou obstáculos
que marcaram sua configuração como Sistema Nacional de Saúde, entre os quais os mais graves seriam: a não
implementação do preceito constitucional do Sistema de Seguridade Social com seus respectivos mecanismos de
financiamento e gestão; o drástico subfinanciamento desde a sua criação; a profunda precarização das relações,
remunerações e condições de trabalho dos trabalhadores da saúde; a insignificância de mudanças estruturantes nos
modelos de atenção à saúde e de gestão do sistema; o desenvolvimento intensivo do marketing de valores de merca-
do em detrimento das soluções que ataquem os determinantes estruturais das necessidades de saúde.
Por isso, apesar dos referidos e reconhecidos avanços na produção, produtividade e inclusão, muito pouco se
avançou na efetivação da integralidade, da igualdade, e só recentemente retomamos a questão da regionalização.
Sabemos que não será possível seguir expandindo a cobertura sem alterar os modelos de atenção e de gestão em
saúde. Tampouco a sociedade civil e os Conselhos de Saúde têm conseguido participar com efetividade e assim
influir na formulação de políticas e estratégias do SUS.
Estão inalteradas, ou crescentes, as doenças do perfil epidemiológico contemporâneo, previsíveis mas não preve-
nidas, as doenças agravadas pela ausência de intervenções oportunas e precoces, as mortes evitáveis e os altíssimos
percentuais de exames diagnósticos, tratamentos medicamentosos e encaminhamentos desnecessários e de baixa
qualidade, apesar dos conhecimentos e técnicas já disponíveis.
Por outro lado, entre os problemas enfrentados encontram-se aspectos relacionados com o funcionamento do
mercado em saúde no qual o Estado tem um papel a exercer considerando que a saúde é um bem público. Ressaltem-
se as importantes dificuldades vigentes na relação com o setor privado suplementar, seja na regulação das condições
de trabalho profissional, seja na produção de serviços e na garantia das coberturas contratadas. É também notória
a luta por democratizar o acesso a medicamentos produzidos por empresas multinacionais. Ambos os problemas
deverão ser enfrentados de forma mais vigorosa, transparente e contínua.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 385-396, set./dez. 2005 387
DOCUMENTOS / DOCUMENTS

Ainda está por ser reconhecido o impacto do setor Saúde – que movimenta parcela considerável do PIB na geração
de empregos, produção científica e tecnológica, aumento da produtividade do trabalho, redução do absenteísmo – na
economia brasileira. Os governos terão que deixar de falar da saúde como gasto e passar a encarar o investimento
que estão fazendo, além da melhoria da qualidade de vida da população.
No entanto, não se pode esperar que o setor Saúde seja capaz de responder à demanda crescente de atenção
provocada por uma sociedade desigual, injusta e cada dia mais violenta, cuja sociabilidade se encontra rompida e
na qual o outro é visto como uma ameaça. As conseqüências são a perda da coesão social, expressa não apenas em
milhares de mortes e internações, mas também no sofrimento mental, na insegurança e no desalento, que seriam
evitáveis onde predominassem uma cultura de paz e a justiça social.
O SUS universal, cujo melhor exemplo é o programa de AIDS –cartão de visitas de diversos governos –, convive
com avaliações negativas sobre o acesso e as condições indignas do atendimento efetuado pela rede de serviços de
saúde. A desfiguração da Seguridade Social, o adiamento sine die de direitos básicos de cidadania e o deslocamento
das políticas sociais em direção a programas de transferência de rendas, cujos efeitos redistributivos não incidem
especificamente sobre as condições que produzem os principais problemas de saúde dos brasileiros, retardam a
melhoria dos padrões de saúde e qualidade de vida. A organização do SUS deve pautar-se pela aproximação dos
indicadores de saúde, pelo menos, àqueles verificados na economia. É imprescindível ao desenvolvimento alcançar
padrões de saúde compatíveis com o progresso científico-tecnológico, cultural e político.
Os impasses antepostos ao SUS universal, humanizado e de qualidade exigem a reposição do usuário-cidadão
como o centro das formulações e operacionalização das políticas e ações de saúde. É essa a premissa que orienta a
reinvenção de modelos e alternativas de gestão para superar a crise dos sistemas públicos. A subordinação dos
problemas e necessidades de saúde da população a interesses econômicos das indústrias de equipamentos e insu-
mos, de prestadores de serviços, de burocracias governamentais ou corporativos, por vezes opostos aos da garantia
da atenção oportuna respeitosa, reflete-se no cotidiano da assistência à saúde. Os brasileiros em busca de assistên-
cia e cuidados à saúde na rede do SUS são submetidos a filas que se formam desde a madrugada para pegar senhas,
passam por triagens, aguardam horas em locais de espera, freqüentemente desconfortáveis, e necessitam, quase
sempre, percorrer mais de um estabelecimento nos casos exigentes de realização de exames e obtenção de medica-
mentos. A lógica que deve orientar a organização dos serviços de atenção e atuação dos profissionais da saúde é a
de tornar mais fácil a vida do cidadão usuário, no usufruto de seus direitos. Trata-se de organizar o SUS em torno
dos preceitos da promoção da saúde, do acolhimento, dos direitos à decisão sobre alternativas terapêuticas, dos
compromissos de amenizar o desconforto e o sofrimento dos que necessitam assistência e cuidados.

ESTRATÉGIAS PROGRAMÁTICAS
Romper o insulamento do setor Saúde

É sabido que melhores níveis de saúde não serão alcançados se as transformações não ultrapassarem o setor
Saúde, envolvendo outras áreas igualmente comprometidas com as necessidades sociais e com os direitos de cida-
dania (Previdência Social, Assistência Social, Educação, Segurança Alimentar, Habitação, Urbanização, Saneamento
e Meio Ambiente, Segurança Pública, Emprego e Renda).

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DOCUMENTOS / DOCUMENTS

Para tanto, é necessário que os três níveis de governo deixem de operar em termos exclusivamente setoriais e
passem a priorizar o desenvolvimento social de forma integrada e integral. O governo nacional, o Congresso e a
Justiça têm que se responsabilizar por implementar os mecanismos que garantam a existência real da Seguridade
Social, com a implantação do orçamento deste setor, a convocação da Conferência Nacional da Seguridade e a
criação de fóruns de deliberação conjunta da Previdência, Saúde e Assistência Social.
Os governos locais e regionais precisam romper modelos ultrapassados de gestão e passar a atuar de forma
transversal, criando instâncias intersetoriais de políticas, implantando a gestão em redes e garantindo maior eficácia
e efetividade na redistribuição da renda e no acesso aos benefícios sociais.
É preciso construir canais de interação com a mídia que nos permitam divulgar nossa concepção ampliada de
saúde. Um esforço nesse sentido deve ser realizado pelos gestores, parlamentares, acadêmicos e militantes da
Reforma Sanitária para retomar espaços de debate, divulgação e difusão de concepções sobre saúde e criar novas
possibilidades de comunicação.
No âmbito internacional devem ser intensificados os esforços para ampliar o intercâmbio de experiências e o
debate em torno da defesa dos sistemas universais. A divulgação e o debate sobre o SUS, considerado um modelo
avançado de sistema de saúde na América Latina, nos fóruns internacionais contribui para sua consolidação e para
o protagonismo da luta por reformas do Estado democráticas e inclusivas.

Estabelecer responsabilidades sanitárias e direitos dos cidadãos usuários

As necessidades que a população apresenta de ações e serviços de saúde, preventivos e curativos, de acordo com
a realidade de cada região e microrregião, com base nas características demográficas, socioeconômicas e epidemi-
ológicas da população, devem presidir o planejamento estratégico de cada município e a programação local das
atividades. Sua divulgação deverá ser feita para a população usuária e suas entidades representativas de maneira a
contribuir para a formação da consciência das necessidades e dos direitos, e a permitir o controle popular e represen-
tativo.
A responsabilidade sanitária de cada ente governamental, de cada serviço e dos trabalhadores da saúde deve ser
normalizada e regulamentada, assim como os direitos e deveres do cidadão usuário do SUS. A qualidade dos
serviços prestados deve ser cobrada de cada um dos profissionais e dirigentes do setor. Mesmo sabendo que temos
condições muito limitadas em termos financeiros e operacionais, os gestores e profissionais deverão ser responsabi-
lizados por prestar o melhor cuidado possível dentro dessas condições. Isso só se tornará realidade quando metas
forem estabelecidas, parâmetros definidos e se a população conhecer e compartilhar estas metas, assim como puder
dispor de mecanismos efetivos de cobrança.
A responsabilidade sanitária deve ser exercida plenamente nos locais de trabalho, garantindo condições de produ-
ção que preservem a saúde do trabalhador e evitem os acidentes de trabalho.

Intensificar a participação e controle social

Os Conselhos e as Conferências municipais, estaduais e nacional de Saúde são as modalidades de participação


fortemente disseminadas no país, fazendo parte da dinâmica política da área da saúde. Entretanto, é necessário

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 385-396, set./dez. 2005 389
DOCUMENTOS / DOCUMENTS

revitalizar tais fóruns no sentido de viabilizar relações sociais mais igualitárias entre os atores sociais que deles
participam. É sabido que principalmente gestores, mas, em menor medida, também prestadores de serviços e profis-
sionais da saúde dispõem de maiores recursos de poder do que usuários e controlam a agenda de debates desses
fóruns. É necessário ampliar a capacitação de conselheiros e democratizar a formulação da agenda da saúde.
Esforços devem ser realizados no sentido de aumentar a representatividade dos integrantes dos Conselhos, incenti-
vando uma relação mais constante e transparente com seus representados. Também, deverá ser avaliada a efetivida-
de do papel deliberativo dos Conselhos na formulação e acompanhamento das políticas de saúdepara superar os
obstáculos antepostos de diferentes naturezas.
Por outro lado, um conjunto de mecanismos inovadores de participação e de controle social não se generalizou no
sistema. É o caso dos Conselhos locais de unidades ambulatoriais e de unidades hospitalares. Apenas as unidades
próprias do SUS, nas três esferas de governo, têm apresentado experiências nesse sentido, sendo que na área hospi-
talar elas são dramaticamente escassas. Outros mecanismos de participação individual, tais como ouvidorias,
disque saúde, pesquisas sistemáticas de satisfação de usuários, carecem também de generalização no contexto do
sistema.
Unidades de serviços privadas que são financiadas com recursos públicos não dispõem de mecanismos de parti-
cipação ou de controle social, além dos exercidos pelo Ministério da Saúde ou Ministério Público. É necessário
definir quais seriam os mecanismos básicos indispensáveis para a democratização da gestão do sistema e constituir
instrumentos legais e administrativos que generalizem o funcionamento desses mecanismos em unidades de saúde
próprias e financiadas pelo SUS, levando em conta que a prestação de serviços de saúde, especialmente quando
financiados por recursos públicos, é uma concessão que o Poder Executivo faz para o exercício de um dever de
Estado.
Gestores do SUS, Ministério Público e Poder Legislativo precisam criar espaços para viabilizar ações cooperativas
e coordenadas. Compete ao Ministério da Saúde induzir a coordenação horizontal dessas instâncias estatais.
Aumentar a cobertura e a resolutividade e mudar radicalmente o modelo de atenção à saúde

A sustentabilidade político-econômica do SUS e sua legitimidade dependem da promoção de mudança radical do


modelo de atenção, pois a qualidade e a resolutividade das ações e serviços de saúde possibilitarão ao SUS tornar-
se patrimônio nacional e ser o local preferencial de atendimento para todos os segmentos sociais.
Uma mudança radical do modelo de atenção à saúde envolve não apenas priorizar a atenção primária e retirar do
centro do modelo o papel do hospital e das especialidades, mas, principalmente, concentrar-se no usuário-cidadão
como um ser humano integral, abandonando a fragmentação do cuidado que transforma as pessoas em órgãos,
sistemas ou pedaços de gente doentes. As práticas interativas, mais holísticas, devem estar disponíveis como alter-
nativas de cuidado à saúde. A humanização do cuidado, que envolve desde o respeito na recepção e no atendimento
até a limpeza e conforto dos ambientes dos serviços de saúde, deve orientar todas as intervenções.
A Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde deve ser amplamente divulgada e sua implantação acompanhada
pelos órgãos gestores e de controle social, visando à sua avaliação e a eventuais aprimoramentos. E os servidores
públicos devem estar comprometidos com o resultado de suas ações no cuidado das pessoas.
Para ampliar o acesso e garantir a cobertura de ações e cuidados à saúde, é necessário expandir e organizar redes
de serviços de saúde articuladas. As unidades básicas, acolhedoras, de qualidade e resolutivas nas suas ações
integrais, preventivas e curativas, baseadas nas necessidades e demandas da população, devem articular-se aos

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DOCUMENTOS / DOCUMENTS

demais níveis do sistema local de saúde com garantias de referência e contra-referência. Nesse sentido, é imprescin-
dível articular atividades de saúde coletiva com ações de assistência clínica nos serviços de atenção básica, estabe-
lecer esses serviços como porta de entrada dos sistemas locais de saúde, equipar e expandir os serviços de urgência
e emergência e de referência, implantar centrais de marcação de consultas, exames e internação e o Cartão SUS como
instrumentos de garantia de acesso e atendimento.
A formação de microrregiões ou consórcios sob responsabilidade dos municípios e dos estados deve pautar-se
pela coordenação, programação e oferta de recursos para promover, prevenir e tratar problemas de saúde. A ampli-
ação e a garantia de investimentos na estruturação de redes articuladas e territorializadas são essenciais para
conferir mais qualidade e resolutividade aos serviços prestados.
A execução de ações de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica, deve se traduzir na garantia do
acesso universal da como no controle da segurança, eficácia e qualidade dos produtos e na promoção do seu uso
racional. A política nacional de medicamentos não se restringe à aquisição e à distribuição; envolve todas as
atividades relacionadas à garantia do acesso da população àqueles essenciais, incluindo investimentos e incentivos
em desenvolvimento científico e tecnológico e produção.

Formar e valorizar os trabalhadores da saúde

Deve-se enfrentar o desafio de superar as barreiras legais que dificultam a combinação das imprescindíveis
agilidade e eficiência da gestão com a vinculação regular dos trabalhadores ao SUS, de modo a evitar não apenas a
burocratização mas também a precarização, privatização e terceirização das relações de trabalho do SUS. Trata-se
de enfrentar esses problemas inadiáveis com a formulação e implementação de políticas articuladas entre os setores
da saúde e educação, para assegurar que a oferta (distribuição e abertura de cursos e programas e o respectivo
número de vagas) de formação técnica, de graduação e de especialização na área da saúde corresponda às necessi-
dades do SUS e da população, superando os desequilíbrios regionais e intra-regionais e as determinações do merca-
do. A par das políticas de corte nacional, é preciso responsabilizar as três esferas, de acordo com suas competências
e possibilidades, pela efetivação de políticas que favoreçam a interiorização do trabalho em saúde com qualidade,
bem como assegurar a autonomia dos municípios, DF e estados para criar mecanismos de atração e fixação de
equipes de saúde em todos os níveis do sistema.
Medidas voltadas para a formação, a educação permanente e a fixação das equipes de profissionais da saúde
com base nas necessidades e direitos da população têm papel crucial na implementação do conjunto dos princípios
e diretrizes do SUS e do novo modelo de atenção à saúde e de gestão.
A redução dos cargos de confiança para a gestão em saúde, nas três esferas de governo, e sua substituição por
quadros técnicos e administrativos de carreira são necessárias à estabilização e qualificação da gestão do SUS. Por
outro lado, trata-se de um meio de evitar que a gestão da saúde seja usada como moeda para garantia de governa-
bilidade. O provimento de cargos de direção deve obedecer a critérios objetivos e compatíveis com os requerimentos
de capacitação e habilitação específicos.
Esse conjunto de proposições concentra-se em torno da adoção de políticas públicas de gestão do trabalho (mu-
nicipais, estaduais e federais) que considerem as diversidades regionais, assegurem o caráter público do ingresso e
estabeleçam carreiras no SUS, que possibilitem a progressão associada não somente ao tempo de trabalho e quali-

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ficação, mas também aos resultados do trabalho e ao compromisso dos profissionais e das equipes com a melhoria
da saúde da população.

Aprofundar o modelo de gestão

No início deste ano os gestores dos três níveis de governo pactuaram em defesa da vida, do SUS e da gestão. Por
meio desse instrumento, comprometem-se a fazer avançar a Reforma Sanitária desenvolvendo ações articuladas,
repolitizando a saúde e promovendo a cidadania. Retomou-se a ênfase na diretriz constitucional da regionalização.
Trata-se de reconhecer a autonomia das Comissões Bipartites para pactuar as estratégias da regionalização nos
estados, com base nas diretrizes nacionais acordadas na Comissão Tripartite; promover a criação de Comissões
Intergestores regionais e microrregionais; resgatar o importante papel coordenador do ente estadual e estabelecer
formas de co-gestão entre os entes federados para promover a descentralização solidária e cooperativa do sistema de
saúde. É necessário cumprir cabalmente esse acordo em prol da população brasileira.
A definição de prioridades e metas é um componente imprescindível para o planejamento efetivo e a responsabi-
lização por seu cumprimento. Para aprofundar o modelo de gestão do SUS, tanto para os serviços de administração
direta quanto para os contratados, é necessário estabelecer a coresponsabilização por meio de contratos de gestão e
de financiamento misto que estabeleçam as metas sanitárias a serem cumpridas. Isso envolve, necessariamente,
realizar uma reforma administrativa que atenda às especificidades dos princípios e das organizações do SUS e lhes
permita agilidade e eficiência de suas decisões, sob a égide da ética e da responsabilidade pública.
Todas as unidades públicas de saúde, das mais simples às mais complexas, deverão usufruir de autonomia
gerencial, desenvolver modalidades de gestão participativa, colegiada ou co-gestão, com trabalhadores da saúde e
outras representações da comunidade, e definir metas quali-quantitativas em interação com os objetivos municipais
e regionais, por meio de contratos de metas ou de gestão.

Aumentar a transparência e controle dos gastos

As decisões da política de alocação de recursos e os critérios dos gastos devem ser transparentes e passíveis de
controle pela população, e visar ao acesso igualitário aos serviços de qualidade em todos os níveis do sistema.
As compras realizadas pelo setor público deverão ser feitas de forma a impedir a corrupção em todos as esferas
e níveis governamentais, utilizando os instrumentos tecnológicos disponíveis para realizar pregões que possam ser
acompanhados pelo público. A definição de parâmetros técnicos e financeiros deve permitir que a sociedade e
autoridades públicas possam acompanhar e monitorar os gastos governamentais.
Um trabalho mais afinado com a Procuradoria Geral da União e com os Tribunais de Contas será necessário para
criar mecanismos que impeçam os tipos de corrupção já detectados na área da saúde.
Torna-se necessário criar uma instância que congregue gestores públicos, Procuradoria, Tribunais, Ministério
Público, Legislativo e organizações da sociedade civil para desenvolver políticas e instrumentos efetivos de combate
a toda forma de corrupção, prevaricação ou malversação dos recursos públicos em saúde.

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Ampliar a capacidade de regulação do Estado

As diversas áreas do setor Saúde – e suas derivações para setores desde a Educação até a mídia – integram o
complexo produtivo da saúde. Sob ta acepção resgata-se o significado econômico e produtivo das ações e produtos
ligados ao atendimento em saúde, considerando a estreita relação entre dois pólos: (1) um setor produtivo industrial
de bens como vacinas e soros, medicamentos e fármacos, sangue e hemoderivados, reagentes e kits diagnósticos,
equipamentos médicos e cirúrgicos; (2) um outro, da produção de ações de saúde pelos agentes públicos e privados
(filantrópicos e lucrativos).
É inescapável admitir que o não reconhecimento da influência dos fatores de mercado na saúde elimina um
importante elemento de análise e de formulação das políticas, especialmente na definição de prioridades de incorpo-
ração de inovações (produtos e processos) e na importância da influência dos agentes econômicos sobre a oferta de
serviços de saúde. Dado que a saúde é um bem de relevância pública, as relações público-privado devem ser objeto
permanente de regulação estatal, no sentido da preservação dos direitos dos usuários do SUS e dos consumidores de
planos e seguros de saúde. Além disso, o poder público deve atuar na regulação da reorientação das demandas dos
planos e seguros para os serviços especializados do SUS e na eliminação das interferências das empresas privadas
no sistema público.
A fragmentação e a segmentação vigentes no sistema nacional de saúde exigem a explicitação do montante de
recursos públicos envolvidos com o financiamento de planos e seguros de saúde, bem como dos interesses conflitan-
tes derivados da acumulação de postos gerenciais e administrativos por profissionais da saúde com “dupla militân-
cia”.
Aprofundar a construção de convivência das instituições públicas e privadas, em função das necessidades e
direitos da população usuária e sob a égide do princípio constitucional que estabelece o caráter complementar dos
serviços privados de saúde, é uma tarefa inadiável. Os serviços privados que integram o SUS devem pautar suas
atividades como se públicos fossem. Adicionalmente, é preciso induzir as empresas privadas prestadoras de servi-
ços, as que comercializam planos de saúde, bem como as empresas empregadoras que ofertam planos de saúde para
seus empregados, a participaremdecisivamente dos esforços para a construção de sistemas regionalizados, voltados
para o atendimento das necessidades e direitos da população.
A instituição de regras claras sobre o “trânsito privado-público de pacientes” deve fortalecer a rede de serviços do
SUS como a “única porta de entrada” para a admissão nos serviços públicos, quer para o atendimento de pacientes
de empresas de planos e seguros de saúde, quer para o acesso a medicamentos.
Para enfrentar a tendência à segmentação é preciso convocar a entidades sindicais, empresariais e de profissio-
nais da saúde para empreender novos compromissos em torno da saúde. O estabelecimento de tabelas de remunera-
ção de procedimentos que sejam compatíveis com os gastos dos profissionais e dos serviços e assegurem a qualida-
de da assistência prestada é essencial. A institucionalização do plano de saúde universal para os servidores civis da
esfera federal representaria a cristalização da descrença do próprio governo na universalização da saúde. Os recur-
sos envolvidos e programados para financiar os planos de saúde de funcionários públicos devem ser canalizados
para melhorar a qualidade de atenção à saúde nos serviços do SUS.
A adoção de critérios de ingresso nos serviços de saúde vinculados ao SUS baseados nas condições clínicas e
necessidades de saúde, e não na capacidade de pagamento, e a exigência da observância dos mesmos padrões

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 385-396, set./dez. 2005 393
DOCUMENTOS / DOCUMENTS

assistenciais de casos com diagnóstico similar para todos os brasileiros são essenciais ao reordenamento das rela-
ções entre o público e o privado e à garantia do acesso e da qualidade da assistência.

Superar a insegurança e o subfinanciamento

As políticas sociais encontram-se permanentemente ameaçadas de terem seus recursos ainda mais reduzidos,
gerando uma situação de insegurança que impede a efetividade e eficácia de seu planejamento e execução.
A forma mais corriqueira, embora muito prejudicial à gestão social, é o permanente contingenciamento dos
orçamentos públicos para atender aos ditames do superávit primário estabelecido pela área econômica, ou até
mesmo superá-lo. Além de prejudicial, essa prática corrói a própria democracia, ao transformar o orçamento público
em uma peça de ficção.
Outra maneira de subverter os ditames constitucionais sobre os recursos a serem alocados na área social é a
introdução constante de outras despesas de programas governamentais considerados prioritários dentro dos orça-
mentos para os quais há recursos constitucionais definidos, como o da Saúde. Isso ocorre em função da não regula-
mentação da E.C. nº 29.
Uma outra maneira de retirar recursos da área social que tem sido reiteradamente usada e prorrogada é a DRU –
Desvinculação das Receitas da União, que, a pretexto de dar maior flexibilidade ao governo central, retira 20% dos
recursos constitucionalmente destinados à área social. A DRU está em vigor até 2007 e temos que exigir que o
governo, desde agora, crie mecanismos substitutivos dessa fonte espúria. O momento das eleições é importante para
pactuarmos com os candidatos a eliminação e substituição da DRU.
Em diferentes momentos, setores governamentais ou elites econômicas da sociedade civil têm se posicionado em
relação à necessidade de dar ainda maior flexibilidade orçamentária ao governo, desvinculando totalmente as recei-
tas constitucionais para a área social. Apoiados por organismos internacionais, são, a cada momento, lançados
balões de ensaio nesse sentido. A alegação é de que esses recursos são necessários para zerar o déficit nominal,
quando, então, sobrarão recursos para a área social. A sociedade brasileira conhece essa lógica e sabe que não
existe flexibilidade para o pagamento de juros da dívida e que esses recursos desviados das suas vinculações
constitucionais jamais retornariam. Por isso não permitiremos a desvinculação, e este compromisso deverá ser
assumido publicamente pelos candidatos comprometidos com a democracia social.
Outra ameaça constante é relativa à redução ou eliminação de benefícios sociais, vistos como causadores do
alegado desequilíbrio financeiro da Previdência Social. É preciso que este debate seja feito de forma séria e não como
sempre, sob a ameaça da espada do déficit e crise. É preciso fazer um debate aberto e transparente: há dados que
questionam o déficit, apontando a apropriação das receitas sociais para outros fins e a evasão de contribuições. O
debate sobre os benefícios previdenciários não pode ser restrito à dimensão contábil, prescindindo do princípio maior
que subordina a Previdência aos objetivos da ordem social de garantia do bem-estar e da justiça social. Ao invés de
desvincular os benefícios previdenciários do salário mínimo, é preciso desvincular os benefícios sociais da capaci-
dade contributiva de cada indivíduo. Só assim, com a socialização dos custos da proteção social, estaremos permi-
tindo que se realize uma redistribuição de renda via políticas sociais que garantem direitos universais. Para tanto,
é necessário rever o enfoque desta discussão, passando a buscar fontes que financiem a inclusão previdenciária de
milhões de trabalhadoras e trabalhadores cujo trabalho ainda não tem amparo legal.

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DOCUMENTOS / DOCUMENTS

Em relação ao financiamento da saúde, observamos:

* Acentuada retração da contrapartida federal, quando cotejada com o crescimento das contrapartidas estaduais
e municipais, tanto em termos das porcentagens no total do financiamento público como em dólares per capita.
Ainda que os recursos destinados à saúde representem um percentual considerado alto no orçamento, ele é totalmen-
te insuficiente face às necessidades da população.
* O Brasil gasta muito pouco com saúde. O total do financiamento público vem oscilando entre 125 e 150 dólares
per capita ao ano, enquanto no Canadá, países europeus, Japão, Austrália e outros, a média do financiamento
público é de US$ 1.400,00 per capita, na Argentina é US$ 362,00 e no Uruguai, US$ 304,00.
* O Projeto de Lei Complementar nº 01/2003, que regulamenta a E.C. nº 29/2000, foi exaustivamente debatido e
aprimorado pelas entidades da sociedade civil, representativas dos usuários, dos membros dos Tribunais de Contas
e do Ministério Público, dos gestores nas três esferas de governo, dos profissionais da saúde, dos prestadores de
serviços. Esse debate se deu nas Conferências e Conselhos de Saúde, por mais de dois anos, e finalmente nas
Comissões da Seguridade Social e Família, de Finanças e Tributação e da Constituição, Justiça e Cidadania da
Câmara dos Deputados. É preciso, pois, que governo e oposição se comprometam a aprová-lo.
* Fruto desse consenso é a proposta de estabelecer a contrapartida federal para a Saúde em 10% da receita bruta
da União, o que corresponde a um acréscimo de aproximadamente R$ 10 bilhões, ou US$ 30,00 per capita, ao ano.
Ainda que gritantemente insuficiente e aquém das referências internacionais citadas, significa um importante passo,
porque atrela essa contrapartida a uma base orçamentária, da mesma maneira com que foi definida para os estados
e municípios, dispõe sobre o que são serviços de saúde financiados pelo SUS e o que não são serviços de saúde, e
orienta os gastos e as prestações de contas com base no referencial da Eqüidade, Integralidade e Eficiência.

A SAÚDE UNIVERSAL, HUMANIZADA E DE QUALIDADE COMO POLÍTICA DE ESTADO

Essas estratégias programáticas representam as pontes a serem construídas para fazermos a transição entre o
SUS existente, reconhecendo-se seus avanços e limites, e para o SUS pra valer: Universal, Humanizado e de Qualida-
de. Hoje, é plenamente factível e necessário ampliar a garantia do direito à saúde.
As eleições que se aproximam repõem a saúde na agenda de prioridades dos candidatos e dos partidos. Nossa
intenção é abrir este debate de forma ampla, com todos os partidos políticos, de forma a alcançar um lugar de
destaque de nossas propostas em seus programas. A luta pela democratização da saúde sempre foi suprapartidária
e permitiu a construção de uma ampla e sólida coalizão reformadora que tem dado sustentação ao processo da
Reforma Sanitária.
Uma vez mais, estas forças comprometidas com o avanço da democracia por meio da implementação da Reforma
Sanitária reafirmam a necessidade de que os postulantes aos cargos eletivos se comprometam com o programa
expresso nas linhas programáticas acima enunciadas. Elas foram fruto de uma ampla discussão entre várias entida-
des, e seu delineamento nasceu da experiência acumulada pelo movimento da Reforma Sanitária em todas as suas

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 385-396, set./dez. 2005 395
DOCUMENTOS / DOCUMENTS

frentes de trabalho: nas organizações e entidades de profissionais e usuários, nas universidades, no Executivo, no
Legislativo, no Judiciário etc.
Sabemos que é possível, hoje, atender a população em um SUS pra valer: universal, humanizado e de qualidade.
Para chegarmos a isso é necessária a firme vontade política dos nossos líderes de assumir o compromisso social com
nossas propostas. Temos certeza que, dessa forma, estaremos todos construindo uma sociedade mais justa e demo-
crática, o que transcende a mera perspectiva setorial, possibilitando o avanço em direção a uma sociedade inclusiva
na qual predomine a cultura da paz. Este é um momento crucial para transitarmos do SUS atual ao SUS pra valer:
não serão toleradas omissões.

Rio de Janeiro, julho de 2006.

Abrasco - www.abrasco.org.br
cebes - cebes@ensp.fiocruz.br
Abres - www.abres.fea.usp.br
Rede UNIDA - www.redeunida.org.br
Ampasa - www.ampasa.org.br

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A Identidade do CEBES1
The identity of CEBES

Reafirmamos os princípios expressos na Plataforma da Refundação do CEBES, e entendemos que este é um


processo que apenas iniciamos, mas que já nos reposiciona na cena política de forma a poder participar da constru-
ção coletiva de uma direção política para a saúde e para a democracia brasileira. Entendemos que a identidade
coletiva que nos agrega é a de uma instituição comprometida com o socialismo e, portanto com a radicalização da
democracia, o que requer participar da construção de uma nova correlação de forças na sociedade brasileira e
também mundial, que permita um real deslocamento do poder em direção aos setores dominados e excluídos.
Entendemos que a democracia eleitoral e a defesa do estado de direito são imprescindíveis para permitir a
aglutinação de forças e a construção de novos sujeitos políticos. No entanto, nossa perspectiva socialista vai além
da democracia formal e requer uma verdadeira transformação nas relações de poder, o que não ocorreu com a
mudança de regime político. O CEBES tem suas origens no movimento social de luta contra a ditadura e pela
democracia, e seu lugar sempre foi o de pensar esta construção social a partir da democratização da saúde. Não
sendo uma ONG nem um movimento social típicos, o CEBES se identificou sempre com um lugar da sociedade civil
de onde se possa pensar criticamente a saúde e a sociedade brasileira e, desde esta análise de conjuntura, construir
estratégias políticas transformadoras, difundi-las e buscar agrupar forças sociais capazes de impulsionar este pro-
cesso de transformação.
Para tanto, conta com pouco recursos, não sendo um partido ou um grupo acadêmico de produção de conheci-
mentos, mas considera fundamental usar os conhecimentos e saberes para demarcar este lugar de um pensamento
de esquerda, que tensione o espectro político mais tradicional e cobre mudanças institucionais e societárias. Por não
ser um grupo de origem corporativa o discurso do CEBES deve cobrar a universalidade, reivindicando um projeto
coletivo de reforma sanitária que transcenda interesses, que, embora justos são particularistas, exigindo a transfor-
mação da democracia atual em uma democracia substantiva.

AUTONOMIA E INSERÇÃO

O desafio atual é o de manter-se como uma organização autônoma, desvinculada do Estado, ao mesmo tempo em
que buscamos inserir nossas bandeiras na arena política, conquistando aliados dentro e fora do Estado.

1ª. Reunião de Planejamento Estratégico no Sítio Pedras Negras em 28 / 04 / 2007. PARTICIPANTES: Ana Costa; Ary Carvalho de Miranda; Assis
1

Mafort; Francisco Braga; Fuad Zamot (consultor); Lenaura Lobato; Ligia Bahia; Lígia Giovanella; Luciana Sucupira; Luiz Neves; Maria Gabriela
Monteiro; Mario Scheffer; Paulo Amarante; e Sonia Fleury.

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DOCUMENTOS / DOCUMENTS

A preservação da autonomia necessária é difícil, na medida em que necessitamos de apoios políticos e materiais
de órgãos estatais, para estruturarmos uma base material minimamente eficiente e que assegure a eficácia de
nossas ações. No entanto, consideramos que esta relação de apoio não pode se configurar como dependência política
e temos convicção que seremos capazes de enfrentar este desafio.
Por outro lado, é importante reconhecer que nossos companheiros alcançaram chegar aos núcleos decisórios
governamentais e que é nosso dever apoiá-los e criar condições de sustentabilidade das medidas políticas que
consolidem a reforma sanitária. Mas, por mantermos a autonomia entre sociedade civil e Estado, temos que enfren-
tar as dificuldades inerentes à permanente postura crítica que é necessária para fazer a reforma avançar.
As condições para tanto são mais favoráveis agora que em outros momentos anteriores, considerando o fato de
termos como dirigente do Ministério da Saúde um companheiro que coloca nossas posições no seio do debate
político. Em pouco tempo, sua gestão foi capaz de reinserir a saúde como tema da sociedade (aborto, bebida,
prevenção), do governo (soberania em relação a multinacionais, separação Igreja e Estado, saúde como investimen-
to) e em relação ao mercado (patentes, preços de monopólio), para mencionar alguns aspectos. Somos solidários e
apoiamos estas iniciativas, mas reconhecemos que os limites para algumas das propostas encaminhadas serão
dados pela base de sustentação e orientação ideológica e econômica deste governo.
Por isto, nossa autonomia será imprescindível para inserir nossos interesses e também para cobrar posições
governamentais em relação a pontos nevrálgicos, nos quais a universalização da saúde seja ameaçada por medidas
econômicas que sigam retirando recursos da saúde – como a preservação da DRU, seja por medidas reformadoras
que signifiquem redução de benefícios para a população mais pobre – como algumas medidas propostas na reforma
previdenciária -, seja ainda pela ausência de uma proposta coerente de reforma do Estado na qual se defina uma
política para o funcionalismo público que assegure carreiras dignas e combata clientelismo, corrupção e troca de
favores , em detrimento da saúde da população.
Nossa capacidade de inserção de nossas estratégias na arena pública não depende de nossa adesão ao governo,
mas de nossa capacidade de fortalecer alianças na sociedade civil que garantam sustentabilidade às propostas que
defendemos.
Neste sentido, vemos como imprescindível nossa articulação mais orgânica com a rede de organizações, movi-
mentos e partidos políticos que possam revitalizar a sociedade civil em torno das questões sanitárias.

ESTRATEGIAS: UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO

Consideramos que só poderemos ganhar o apoio da população para a defesa do sistema de saúde se conseguir-
mos que ele funcione pra valer, de forma humanizada e sem discriminações, com ações que sejam eficazes e efetivas
no acesso e utilização dos serviços. Portanto, temos claro que a construção, cotidiana e permanente, de um SUS de
qualidade é nosso ponto focal. Desde esta trincheira podemos lutar para que a democracia seja aprofundada. Enfren-
tar a desigualdade no acesso e atendimento, a drenagem de recursos públicos para o setor privado, a necessidade de
melhorar a qualidade do atendimento e de colocar o usuário cidadão como o centro do SUS; esta é nossa bandeira.

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DOCUMENTOS / DOCUMENTS

Para tanto, devemos manter o instrumento permanente da análise de conjuntura política, por meio do qual
podemos analisar o campo de lutas, os atores e suas arenas e estratégias. Desta forma, estaremos em melhores
condições para definir nossas alianças, escalonar prioridades em relação a manifestações e participações do CEBES,
não permitir que a organização seja usada para apoio a causas que sejam ou particulares ou confrontem com nosso
ideário, impedir o aparelhamento político e partidário dos núcleos e espaços do CEBES, atuar em conjunto com
outras forças sociais para dar a direção política da saúde na perspectiva da radicalização da reforma e da democra-
cia.
Em cada espaço que ocuparmos temos a obrigação de exercer a crítica a instituições e normas que, mesmo que
tenhamos sido favoráveis a sua criação, demonstrem sua inoperância ou desvirtuamento na conjuntura atual.
Revisitar os mecanismos decisores e participativos, repensar as relações entre instâncias governamentais, discutir a
articulação da saúde com outras políticas públicas, em especial na perspectiva de efetivação da Seguridade Social,
são nossos objetivos estratégicos.
Particularmente, neste ano devemos dar prioridade a nossa participação no Congresso da ABRASCO, ALAMES e
IHPS, marcando nossa presença política, divulgando nossa plataforma e estratégia e construindo uma rede de
alianças sólidas com outros atores sociais.Para tanto, precisamos fortalecer nossa linha de comunicação, com a
retomada da Revista Saúde em Debate, da coleção de livros, fortalecimento do boletim e desenvolvimento de uma
página eletrônica que permita nossa interação com os associados e simpatizantes.
Outra ação estratégica se concentra na discussão sobre a metodologia e o temário da XIII Conferência Nacional de
Saúde. Vamos discutir o que ocorreu até aqui com este poderoso instrumento de formação da vontade política, com
vistas a seu aprimoramento e melhoria da sua eficácia.
Este são os compromissos atuais do CEBES, aos quais se ajunta a necessidade de resgatar a história da reforma
sanitária, desde a perspectiva das lutas da sociedade civil organizada, da qual o CEBES é partícipe e detentor de um
enorme acervo que necessita resgatar e divulgar. Consideramos que estamos no caminho correto pois estamos sendo
capazes de desenvolver um trabalho de equipe, criar espaços de interlocução com outro atores, participar nas várias
frentes onde a sociedade civil se representa – como o Conselho Nacional de Saúde, aglutinar pessoas de diferentes
formações, posições e gerações em torno do debate da conjuntura, nos posicionarmos em relação a temas controver-
sos, enfim ampliar a esfera pública comunicacional no campo da saúde.
Estamos certos que este é apenas um começo e que muito mais poderá e deverá ser feito, na medida em que
formos capazes de mobilizar mais energias e recursos para ampliação do escopo da democracia atual.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 397-399, set./dez. 2005 399
TEMPORÃO,
ENTREVISTAJosé/ Gomes
INTERVIEW

CEBES entrevista José Gomes Temporão, ministro da Saúde1


CEBES interviews José Gomes Temporão, the Health Minister

N o ano passado, a atual Diretoria Nacional assu-


miu a entidade com uma proposta que ficou co-
nhecida como ‘Refundação do CEBES’. Uma proposta que
no início de sua formação médica e política, de suas
vivências como sanitarista e de suas metas e projetos,
estratégias e obstáculos à frente do Ministério da Saú-
não se restringe a nós, mas que tem como objetivo a de. Fala, ainda, da 13ª Conferência Nacional de Saúde e
retomada do movimento da Reforma Sanitária brasilei- das fundações estatais de direito privado.
ra. Afinal, em 2006, o CEBES e a revista Saúde em Deba- Mas, o melhor é ouvir tudo do próprio ministro.
te completaram 30 anos, com uma contribuição indis-
Sonia Fleury – Você pode imaginar nossa satisfa-
cutível para a construção do pensamento e das práticas
ção em recebê-lo aqui, um ministro cebiano! Com esta
críticas e transformadoras em saúde neste país. A Re-
entrevista, inauguramos o Projeto Memória do CEBES.
fundação é a reafirmação do projeto plural e não parti-
Fale sobre sua experiência no CEBES, e o que você acha
dário do CEBES, projeto este comprometido com a cons-
que a mesma agregou à sua trajetória política e pro-
trução da democracia e da saúde enquanto um proces-
fissional?
so instituinte de permanente reinvenção da sociedade.
Dentre os muitos projetos da Diretoria no contexto da José Gomes Temporão – Primeiro, queria agradecer
Refundação, julgamos importante resgatar e preservar o convite e manifestar minha alegria de estar aqui nes-
a história do próprio CEBES, o que gostaríamos de ter se debate com os companheiros cebianos. Tudo come-
feito ainda quando contávamos com a companhia de çou quando eu estudava medicina na UFRJ. No início
David Capistrano, um de seus fundadores, Eric Jenner do segundo ano, eu tinha um amigo, o Gerson, um gi-
Rosas, Sergio Arouca e mesmo com Eleutério Rodri- necologista, que me convidou para trabalhar em Nova
gues dentre muitos outros companheiros. Afinal, ape- Iguaçu, na Maternidade Nossa Senhora de Fátima. Eu
sar de todas as crises, das numerosas dificuldades, fo- dava plantão com ele nos domingos. Gerson foi o pri-
ram editados 71 números da Saúde em Debate e 40 da meiro médico que conheci que me mostrou como se dá
Divulgação, além de vários títulos de livros e docu- a relação médico-paciente. Não foi na faculdade que
mentos. aprendi isso, foi lá na Baixada. Comecei a aprender
Denominamos este projeto de ‘Memória do CEBES’ e é muita coisa com ele. Naquela época, eu não tinha mui-
com muito otimismo que damos início a ele entrevis- ta idéia do que ia fazer; achava que ia fazer clínica
tando o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, cebi- médica. Vivíamos na ditadura. Então, havia aquele cli-
ano de primeira hora, presidente nacional no período ma complicado na faculdade, também. Ali, na Baixa-
1981-83, e membro da Diretoria Nacional em várias ges- da, eu tinha um contato muito próximo com a situação
tões. O ministro Temporão fala da importância do CEBES social – que já conhecia desde a época que trabalhei no

1
A entrevista foi gravada nos estúdios do Canal Saúde, no dia 7 de julho de 2007, cujo vídeo comporá o acervo histórico do Projeto
Memória do CEBES. Excelente oportunidade para agradecer à generosidade e à competência técnica de todos os profissionais do Canal
Saúde e do Centro de Documentação da ENSP (CEDOC), que participaram da gravação. Pelo CEBES, participaram Sonia Fleury, Ligia Bahia,
Francisco Braga, Luiz Antonio Neves, Lenaura Lobato e Paulo Amarante.

400 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 400-410, set./dez. 2005
ASSOCIE-SE AO CEBES E RECEBA AS NOSSAS REVISTAS
O CEBES tem duas linhas editoriais. a revista Saúde em Debate, que o associado recebe quadrimestralmente em abril,
agosto e dezembro, e a Divulgação em Saúde para Debate, cuja edição tem caráter temático, sem periodicidade regular.

QUEM SOMOS
Desde a sua criação em 1976 o CEBES tem como centro de seu projeto a luta pela democratização da saúde e da
sociedade. Nesses 30 anos, como centro de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espaço esteve
assegurado como produtor de conhecimentos com uma prática política concreta, em movimentos sociais, nas
instituições ou no parlamento.
Durante todo esse tempo, e a cada dia mais, o CEBES continua empenhado em fortalecer seu modelo democrático
e pluralista de organização; em orientar sua ação para o plano dos movimentos sociais, sem descuidar de intervir
nas políticas e nas práticas parlamentares e institucionais; em aprofundar a crítica e a formulação teórica sobre
as questões de saúde; e, em contribuir para a consolidação das liberdades políticas e para a constituição de uma
sociedade mais justa.
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apoio e participação.
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abaixo.

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rão ser apresentadas entre parênteses em caixa alta se-
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voltada para a área de Saúde Pública e Saúde Coletiva, publi- NETTO, 1986; TESTA, 2000, p. 15).
cada quadrimestralmente em abril, agosto e dezembro, é dis- 5. Referências Bibliográficas deverão ser apresentadas no
tribuída a todos os associados em situação regular com a te- final do artigo, observando-se a norma da ABNT NBR 6023:
souraria do CEBES. 2000 (disponível em bibliotecas). Exs.:
Aceita trabalhos inéditos sob forma de artigos originais,
artigos de opinião, artigos de revisão ou de atualização, rela- CARVALHO, Antonio Ivo. Conselhos de saúde, responsabilidade
tos de casos e resenhas de livros de interesse acadêmico, po- pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do Es-
lítico e social. tado. In.: FLEURY, Sônia Maria Teixeira (Org.). Saúde e demo-
Os textos enviados para publicação são de total e exclusiva cracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos, 1997. p. 93-112.
responsabilidade dos autores. COHN, Amélia; ELIAS, Paulo Eduardo M.; JACOBI, Pedro. Participa-
É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos des- ção popular e gestão de serviços de saúde: um olhar sobre a
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toria, serão previamente acordadas com os autores. Não serão
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1. Título em português e em inglês. O título deve expres- número de laudas.
sar claramente o conteúdo do artigo.
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passando o total de 700 caracteres (aproximadamente 120 ARTIGOS DE OPINIÃO
palavras). Para os descritores utilizar os apresentados no vo-
cabulário estruturado (DECS), encontrados no endereço http:// Serão aceitos trabalhos referentes a textos publicados na
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veis para a temática do artigo, poderão ser indicados termos Serão publicados a critério do Conselho Editorial. Devem con-
ou expressões de uso conhecido. ter até sete laudas.
4. Artigo propriamente dito.
a) as marcações de notas de rodapé no corpo do texto,
ENVIO DO ARTIGO
deverão ser sobrescritas. Ex.: Reforma Sanitária1
b) para as palavras ou trechos do texto que são destaca- 1. Os trabalhos para apreciação do Conselho Editorial de-
dos a critério do autor, utilizar aspas simples. Ex.: ‘porta vem ser enviados à Secretaria Executiva do CEBES – Av. Brasil,
de entrada’. 4036 – sala 802 – CEP: 21040-361 Manguinhos – Rio de
Janeiro – RJ
c) quadros e gráficos deverão ser apresentados, também,
em folhas separadas do texto, numerados e titulados cor- Tel.: (21) 3882-9140 e 3882-9141
retamente com indicações das unidades em que se ex- Fax.: (21) 2260-3782.
pressam os valores e com as fontes correspondentes. 2. Deverão ser apresentados impressos em 03 vias e em
d) os autores citados no corpo do texto deverão estar escri- disquete. Aceitaremos textos no programa Word for Windows.
tos em caixa baixa (só a primeira letra maiúscula), obser-
3. Os gráficos e/ou tabelas deverão ser apresentadas em
vando-se a norma da ABNT NBR 10520: 2001 (dispo-
nível em bibliotecas). Ex.: Conforme Mario Testa (2000). arquivo separado, no mesmo disquete.
INSTRUCTIONS FOR AUTHORS

SAÚDE EM DEBATE 5. Bibliographic References shall be presented in the


end of the article, according to regulation ABNT NBR 6023:
Journal of the Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
2000 (available in libraries). E. g.:
(CEBES) which focuses on Public Health and Collective Health,
CARVALHO, Antonio Ivo. Conselhos de saúde, responsabilidade
publishes every four months: April, August and December,
pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do Estado.
and distributed to all associated individuals up-to-date with
In.: FLEURY, Sônia Maria Teixeira (Org.). Saúde e democracia: a
CEBES'treasury.
luta do CEBES. São Paulo: Lemos, 1997. p. 93-112.
It accepts original studies in the form of original articles,
opinion articles, review or update articles, case studies and C OHN , Amélia; E LIAS , Paulo Eduardo M.; J ACOBI , Pedro.
critical book reviews of academic, political, or social interest. Participação popular e gestão de serviços de saúde: um olhar
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DEMO, Pedro. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1991. 111p.
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1. Title in Portuguese and English. Titles must clearly


express article content. REVIEWS
2. Cover containing full author(s) name(s), address,
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institutional affiliation and titles). When the article is a Collective Health, will be accepted, at the discretion of the
result of a sponsored research, the sponsoring agency should Editorial Board. They must discuss book’s content, its
be mentioned. theoretical postulates and the audience it aims to reach, in
up to three pages.
3. Abstract in Portuguese and English, containing a
summary of purpose, used methods and main work conclu-
sions; descriptors, between three and five words, not more OPINION ARTICLES
than 700 characters (approximately 120 words). For descrip-
tors use the ones presented in the available structured Articles about previously published articles in this
vocabulary (DECS), which can be found at http://decs.bvs.br, journal or about national interest issues will be accepted.
in case available descriptors are not found for the article’s These will be subject to Editorial Board approval. Must be
theme, terms or expressions of known use can be indicated. made up of seven pages maximum.
4. Article.
a) footnote numbers inserted in the text must be ARTICLE SUBMISSION
superscripted. E.g.: Sanitary Reform1
b) for highlighting words or excerpts the author should 1. Articles should be submitted to the following address
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1986; T ESTA, 2000, p. 15).

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