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CAPÍTULO 1
O ESTADO DA QUESTÃO
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1.1 Mundialização da cultura e quebra das barreiras nacionais

Para a realização de uma pesquisa que tem como foco as mediações e como elas
viabilizam a recepção de produtos nipônicos por um público brasileiro, é fundamental
definirmos, em primeira instância, o que é cultura:

Fenômeno unicamente humano, a cultura se refere à capacidade que os seres humanos


têm de dar significado às suas ações e ao mundo que os rodeia. A cultura é
compartilhada pelos indivíduos de um determinado grupo, não se referindo pois a um
fenômeno individual 1

É dessa maneira que, através de códigos simbólicos e iconográficos, uma


determinada sociedade ou um determinado grupo se organiza com um intuito
específico. Com os admiradores da animação isso não é diferente: através de códigos
próprios, organiza-se uma estrutura social resultante da criação e manutenção de laços
de sociabilidade. A diferença é que, no caso da animação japonesa, estamos falando de
um produto que transpassa as barreiras das nações e que, portanto, passa por um
processo de desterritorialização da cultura.
Renato Ortiz, em seu livro Um Outro Território: Ensaios Sobre a
Mundialização, discorre justamente a respeito de uma nova manifestação da cultura,
fruto de um movimento econômico e político decorrente da globalização. O autor
começa o livro recapitulando o conceito de globalização utilizado pelo discurso
acadêmico: de um lado, fenômeno inédito e sem parâmetros na história da humanidade,
de outro, um resultado do entrelaçamento de forças econômicas, políticas e culturais
desde o século XIX. A globalização seria vista de diversas formas, mas todas elas
creditariam ao Estado Nação uma centralidade cultural. Ortiz nega isso e diz que, com
as mudanças profundas nas relações sociais, não há nada mais a fazer a não ser criar
novos conceitos à luz das teorias clássicas. O autor começa separando as mudanças
econômicas das culturais:
Por isso, prefiro utilizar o termo ‘globalização’ quando falo de economia e tecnologia;
são dimensões que nos reenviam a uma certa unicidade da vida social. Reservo, assim, o
termo ‘mundialização’ ao domínio específico da cultura 2

__________
1. THOMAZ, Omar Ribeiro. A antropologia e o mundo contemporâneo: cultura e divesidade. In: A
Temática indígena na escola. Brasília: Mec/Mari/Unesco, 1995. p.427
2.ORTIZ, Renato. Um Outro Território: Ensaios Sobre a Mundialização. São Paulo: Olho D’Água, 2000.
p. 24
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Teríamos, portanto, um movimento de duas dimensões complementares da
“modernidade-mundo”: um que se caracteriza pela diversidade e individualização da
cultura e das relações sociais, e outro que envolve todos esses elementos aparentemente
desconexos em uma “malha mais ampla” 3 , cuja forma de manifestação é a própria
expressão dessas partes individuais. Longe de ser um movimento que humaniza as
relações sociais, como querem os homens do marketing, ou uma fonte ideal de
diferenciação entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, como querem os
tecnólogos, a globalização seria o resultado de conflitos políticos e econômicos.

Com isso estou sugerindo que a estrutura da modernidade-mundo engloba os fatores de


ordem política, articulando os diferentes níveis da realidade social. (...) Por isso, a
política já não pode mais ser pensada em base exclusivamente nacional ou local. 3

Teria que ser reformulado tanto o conceito de espaço como o de cultura, tal qual
já havia se cristalizado pelos românticos. Nessa concepção, nota-se a demarcação das
fronteiras e do espaço físico e o enraizamento da cultura, base dos estudos
antropológicos: a cada território, uma cultura diferente e independente, completa em si
mesma. Mesma concepção que atravessa a idéia de cultura popular como um elo de
oposição à cultura urbanizada e “contaminada”. Ela estaria ligada ao local, a uma
origem demarcada, daí a sua valorização dentro do projeto da construção do Estado
Nação.
A modernidade-mundo vem alterar completamente o ideal romântico de cultura
popular. O próprio sentido da viagem se modifica: o homem não mais se deslocaria no
espaço com o intuito de desbravar o desconhecido, pois o “outro” agora faz parte de seu
imaginário. Armado de guias turísticos e conhecedor de seu destino, o viajante já não é
mais um elo de ligação entre diferentes espaços e sim uma pessoa que quer sair da
rotina e do ritmo do trabalho.

A rigor, quando nos movemos no espaço da modernidade-mundo, permanecemos no


seu interior. A sensação de estranhamento é dessa forma substituída pela de
familiaridade. 4

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3. ORTIZ, Renato. Um Outro Território: Ensaios Sobre a Mundialização. São Paulo: Olho D’Água,
2000. p. 25
4. idem, p. 41
13
Por outro lado, a quebra das fronteiras da modernidade-mundo indicaria a
desterritorialização do homem e da cultura.

Basta olharmos o meio ambiente que nos circunda. Ele é povoado por objetos
característicos de uma civilização que se desterritorializou. Luz elétrica, ônibus,
automóveis, aviões, televisores, aviões, televisores, computadores, supermercados,
cinemas, shopping centers, ruas, avenidas e aeroportos exprimem a materialização da
técnica como determinante ecológico. 5

Ao mesmo tempo, essa cultura tem que se reterritorializar para fazer parte da
vida das pessoas. É nessa operação que entra os meios de comunicação de massa, na
medida em que estão inseridos nas práticas cotidianas. Não seria um erro, portanto,
dizer que a televisão é em si uma mediação entre fã e animação, na medida em que o
meio reterritorializa um produto de origem cultural diversa.

A importância dos meios de comunicação não decorre do fato de eles serem de ‘massa’.
Devemos percebê-los como intrínsecos à modernidade que se tornou mundo. Eles
conectam as partes dispersas na sociedade global, articulando-as a um mesmo processo.
O mesmo pode ser dito em relação à cultura. Já não me parece conveniente pensá-la
como ‘massificação’. Padronização e diversificação não são universos excludentes. 6

É justamente nessa articulação que a televisão se torna uma mediação. Não


haveria a ligação intrínseca entre região e cultura do modo como antes era concebido. A
desterritorialização de signos e objetos daria raízes a uma cultura internacional-popular,
que não mais seria limitada às fronteiras dos países e nações.
Ao local, valorizado como autêntico e característico da diversidade, seria
contraposta a nação como espaço do uniforme e do inautêntico. Essa idealização do
espaço seria inapropriada, e o autor propõe a idéia de espaço como um “conjunto de
planos atravessados por processos sociais diferenciados.” 7 Três seriam as dimensões do
espaço: a primeira, manifestação das implicações das histórias particulares a cada
localidade, geralmente isoladas de outros territórios; a segunda, manifestação das
histórias nacionais, conexão entre as histórias locais através de um elo

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5. ORTIZ, Renato. Um Outro Território: Ensaios Sobre a Mundialização. São Paulo: Olho D’Água,
2000. p. 40.
6. idem. p.125
7. idem. p.61
14
transcendental; e a terceira, manifestação da mundialização, “processo que atravessa os
planos nacionais e locais, cruzando histórias diferenciadas” 8. Na nova sociedade
teríamos, desse modo, uma tendência de conjunção e de disjunção dos espaços.

Estou, portanto, sugerindo que a mundialização da cultura, e por conseqüência, do


espaço, seja definida como transversalidade.(...) Com isso, estou sustentando, não existe
uma oposição imanente entre local/nacional/mundial. Percebemos isso quando falamos
do cotidiano.(...) Tanto o nacional como o mundial só podem existir quando resultam
em vivências. 9

Ao mesmo tempo que parte do cotidiano, alguns modos de comportamento e de


organização da vida são análogos em diversas cidades. Novas categorias da cultura e
referências identitárias são formadas a partir de sua mundialização, como o consumo e a
juventude, classificações que fogem às demarcações do território nacional e indicam as
repetições de certas características comportamentais em diferentes regiões do globo. Ao
Estado Nação não caberia mais o monopólio de forças legitimadoras da cultura:
diversas seriam as instituições que veiculam e legitimam práticas culturais. No entanto,
mundialização da cultura não implica necessariamente democratização: as práticas
culturais seriam regidas por uma hierarquia, resultado do grau de poder e influência que
cada uma das instâncias legitimadoras tem individualmente.
Outra questão abordada pelo autor: a identidade. Fugindo de idéias como a
alienação e a concepção essencialista do ser (a identidade defitivamente “é”, pode ser
delimitada e demarcada) Ortiz prefere abordar o tema com a perspectiva de Lévi-
Strauss:

a identidade é uma espécie de lugar virtual, o qual nos é indispensável para nos
referirmos e explicarmos um certo número de coisas, mas que não possui, na verdade,
uma existência real. 10

Seguindo esse raciocínio, o autor afirma:

A rigor, faz pouco sentido buscar a existência de ‘uma’ identidade; seria mais correto
pensá-la na sua interação com outras identidades, construídas segundo outros pontos de
vista. 11
_______
8. ORTIZ, Renato. Um Outro Território: Ensaios Sobre a Mundialização. São Paulo: Olho D’Água,
2000. p.62
9. idem. p. 62-63
10. idem. p.79
11. idem. p.79
15
É dessa maneira que não podemos pensar na definição de uma identidade única e
completa do fã da animação, mas nos concentrarmos na busca dessas diversas
identidades entrecruzadas.

1.2 Rearticulação Teórica

Revistas as noções de cultura, espaço e identidade, resta-nos refletir a respeito de


uma nova postura metodológica que entenda a importância das mediações e dos meios
de comunicação na formação de identidades. É Jesús Martin Barbero um dos principais
teóricos que desloca a percepção dos fenômenos sociais e comunicacionais de uma
perspectiva fundamentalmente dialética e dualista. Compreendendo a cultura a partir da
prática cotidiana, o autor busca entender quais os caminhos que levam à manifestação
de submissões e resistências nas classes populares, pensando especificamente no
universo da América Latina.
Não foi apenas a limitação do modelo hegemônico o que nos obrigou a mudar de
paradigma. Foram os fatos recorrentes, os processos sociais na América Latina, os que
estão transformando o ‘objeto’ de estudo dos investigadores da comunicação.(...) A
questão transnacional designa mais do que uma mera sofisticação do antigo
imperialismo: uma nova fase do desenvolvimento do capitalismo, em que justamente o
campo da comunicação passa a desempenhar um papel decisivo. O que está em jogo
não é a imposição de um modelo econômico, e sim o ‘salto’ para a transnacionalização
de um modelo político. O que nos obriga a abandonarmos a concepção que tínhamos
dos modos de luta contra a ‘dependência’, porque ‘é bem diferente lutar para se tornar
independente de um país colonialista, em combate frontal, com um poder
geograficamente definido, de lutar por uma identidade própria dentro de um sistema
transnacional, difuso, inter-relacionado e inter-penetrado de modo complexo 12

É justamente esse sistema difuso que vai gerar a desterritorialização da cultura,


que se multiplica e se transforma a partir dos meios de comunicação e sua ligação com o
cotidiano das pessoas. Na reformulação do discurso teórico a partir das mudanças do
objeto de estudo da comunicação, concepções cristalizadas pela dialética seriam
repensadas por Barbero. Segundo a dialética

A cotidianidade, que não está inscrita imediata e diretamente na estrutura produtiva, é


despolitizada e assim considerada irrelevante, in-significante. Mesmo assim, uma outra
realidade nos é descortinada pelos relatos que começam a contar o que acontece por
dentro da vida dos bairros populares(...) o apego dos setores populares à família não está
necessariamente relacionado, ou pelo menos não apenas, à conservação do passado, e
sim, como E. Durham propõe tão lúcida e corajosamente, à ‘superação de um estado
generalizado de desorganização familiar associado a uma exploração muito mais brutal
e direta da forma de trabalho. 13
__________
12. MARTIN BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações. Rio de Janeiro, editora UFRJ, 2003. p. 294-
295
13. idem. p.301
16
Ao mesmo tempo em que a família não é um objeto de estudo sem relevância, o
consumo não é simplesmente uma manifestação cega e desenfreada da desigualdade e
da alienação. Pensar no consumo é pensar também nas diversas formas em que ele está
inserido no cotidiano, ou seja, no uso dos objetos consumidos e na resignificação que
esse uso pode gerar:

Da mesma forma, nem toda forma de consumo é interiorização dos valores de outras
classes. O consumo pode falar e fala nos setores populares de suas justas aspirações a
uma vida mais digna. Nem toda busca de ascensão social é arrivismo; ela pode ser
também uma forma de protesto e expressão de certos direitos elementares.(...)‘Não se
trata apenas de medir a distância entre as mensagens e seus efeitos, e sim de construir
uma análise integral do consumo, entendido como o conjunto dos processos sociais de
apropriação dos produtos.(...) O consumo não é apenas reprodução de forças, mas
também produção de sentidos: lugar de uma luta que não se restringe à posse dos
objetos, pois passa ainda mais decisivamente pelos usos que lhes dão forma social e nos
quais se inscrevem demandas e dispositivos de ação provenientes de diversas
competências culturais. 14

No caso da animação japonesa, temos uma oferta de diversos produtos


relacionados ao assunto, como chaveiros, bonés, pôsteres, mangás e fitas de vídeo, que
adquire dessa maneira duas dimensões significantes: a da exclusão, que impossibilita ou
dificulta a participação efetiva de pessoas de menor renda no universo do fã; e a dos
usos, que transforma os objetos consumidos em mediações das identidades dos
admiradores da animação.
É importante destacar que a barreira econômica exclui na medida em que, para a
construção da identidade de fã, não basta apenas assistir aos desenhos; deve-se ter, antes
de tudo, acesso a bens que exigem capital de investimento. De um lado, muitas pessoas
se conhecem através de sites e fóruns da internet – o que exclui aqueles que não tem
capacidade de adquirir um computador – de outro, até a entrada em eventos do tema tem
um preço monetário que muitas vezes nem todos podem pagar. Isso faz com que grande
parte dos fãs seja de classe média e alta.
Apesar de não pensar diretamente na animação, Barbero realiza uma análise que
pode, corrigidos alguns detalhes, ser transferida para o universo aqui estudado:
Essa visão, porém, começa a ser desafiada por uma antropologia urbana que, sem cair
nas armadilhas da antropologia da pobreza, isto é, sem renunciar a uma concepção
estrutural da diferença e da conflitividade social, descobre que ‘no trabalho não se é

___________

14. MARTIN BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações. Rio de Janeiro, editora UFRJ, 2003. p.301-
302
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fulano ou sicrano, jovem ou adulto, casado ou solteiro, homem ou mulher, e sim apenas
um trabalhador, um empregado. E embora essas identidades – sobre as quais se
estrutura em larga medida a vida social – possam repercutir na hora de vender a força de
trabalho, não é no mercado nem no lugar de trabalho que elas se constituem, e sim na
família e no bairro, onde se mora junto com vizinhos e amigos’. O bairro surge, então,
como o grande mediador entre o universo privado da casa e o mundo público da cidade,
um espaço que se estrutura com base em certos tipos específicos de sociabilidade e, em
última análise, de comunicação: entre parentes e entre vizinhos. O bairro proporciona às
pessoas algumas referências básicas para a construção de um a gente, ou seja, de uma
‘sociabilidade mais ampla do que aquela que se baseia nos laços familiares, e ao mesmo
tempo mais densa e estável do que as relações formais e individualizadas impostas pela
sociedade’. 15

Assim como o bairro, os espaços de encontro e socialização dos fãs da animação


também constroem as identidades, entre a indiferença da população das grandes cidades
e as ligações emotivas restritas da família. Ao invés dos vizinhos, são os amigos que
auxiliam no processo identitário, justamente em contraponto a uma concepção
preconceituosa de que o fã é aquele que, em seu fanatismo delirante, lidando apenas
consigo mesmo e excluindo-se do mundo, fica o dia inteiro assistindo às animações sem
ter nenhum tipo de contato que extrapole os limites das relações seguras e
individualizadas da família. Nota-se que, em termos físicos, esse espaço de encontro
pode variar consideravelmente: desde grupos de discussão na internet até pontos de
encontro. A diferença aí está justamente na desterritorialização dos laços de
sociabilidade, que mantém em si o mesmo intuito de construir as identidades dos
espectadores.
Como já é possível perceber, a própria análise acima realizada exemplifica o
deslocamento teórico dos meios para as mediações, como mais uma vez é reafirmada
pelo autor:

‘É preciso abandonar o mediacentrismo, uma vez que o sistema da mídia está perdendo
parte de sua especificidade para converter-se em elemento integrante de outros sistemas
de maior envergadura, como o econômico, o cultural e político’.(...) Por isso, em vez de
fazer a pesquisa a partir da análise das lógicas de produção e recepção, para depois
procurar suas relações de imbricação ou enfrentamento, propomos partir das mediações,
isto é, dos lugares dos quais provém as construções que delimitam e configuram a
materialidade social e a expressividade cultural da televisão. 16

E é para compreender essas mediações que temos que partir para a análise de
uma literatura específica do assunto.
__________
15. MARTIN BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações. Rio de Janeiro, editora UFRJ, 2003. p. 285-
286
16. MARTIN BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações. Rio de Janeiro, editora UFRJ, 2003. p. 304

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1.3 Aspectos históricos e industriais


As pesquisas sobre a animação japonesa são escassas e dizem respeito, na maior
parte das vezes, a uma perspectiva estrutural da linguagem ou a uma análise histórica
dos principais animadores e artistas que se envolveram com o meio. Mais raras ainda
são as pesquisas focadas na realidade brasileira e nos modos como a animação se
introduziu, por meio das redes de televisão abertas. Uma das pioneiras nos estudos dos
quadrinhos orientais, Sonia M. Bibe Luyten pesquisa e leciona histórias em quadrinhos
japonesas, e organizou o livro Cultura pop japonesa: Mangá e Animê, que reúne artigos
de diversos pesquisadores e realizadores sobre o universo das animações japonesas e
das histórias em quadrinhos, abordando desde a história da animação até os primeiros
eventos temáticos do Brasil. Observa-se que muito do que é escrito em relação ao
mangá ganha validez quando abordamos especificamente a animação japonesa, visto
que a animação surgiu depois da história em quadrinho, mas ambas têm características
semelhantes em termos de linguagem e público.
Uma das autoras de destaque da coletânea, Cristiane A. Sato, em seu artigo A
cultura popular japonesa: animê, disserta a respeito da história da animação e de seu
surgimento pré-industrial e pós-industrial. Se, de um lado, Hollywood e as histórias em
quadrinhos americanas são representantes de uma ideologia e de um modo de vida (o
chamado american way of life), a animação japonesa também apresenta uma visão de
mundo e uma ideologia típica do Japão. Ao contrário de uma imagem tradicional do
país oriental, povoada de samurais, catanas, gueixas, bonsais e templos, a animação
apresentaria personagens magros, caricatos e de cabelos espetados, uma produção
representativa de novas condições culturais, sociais e econômicas após a bomba de
Hiroshima.

Entretanto, é inegável que por meio da animação difundiram-se internacionalmente


aspectos de valores e referências culturais japoneses, assim como o cinema
hollywoodiano serviu de difusor dos valores, do estilo de vida e da estética norte-
americanos. Isso se verifica não apenas na constatação pacífica de aspectos curiosos ou
exóticos que aparecem nessas produções, como também em situações que geram
interpretações às vezes equivocadas e conflitantes com a cultura local onde os desenhos
japoneses são exibidos. 17

Sato analisa a produção independente e comercial do Japão dos primeiros


cinqüenta anos do século XX, representada principalmente pela grande quantidade de
____________
17. SATO, Cristiane A. A cultura popular japonesa: animê. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura
Pop Japonesa. São Paulo: Hedra, 2005. p.29
19
curtas metragens do período, e é curioso notar como desde o princípio houve uma
influência ocidental na produção japonesa:

Por volta de 1910, as platéias japonesas passaram a conhecer desenhos animados graças
aos cinemas. Eram curtas-metragens mudos produzidos no que hoje se chama núcleo
pioneiro de animação de Nova York, onde ilustradores e desenhistas como o
empreendedor John Randolph Bray e o artista Winsor McCay produziram suas
primeiras obras. A novidade logo levou desenhistas japoneses a se aventurar nessa área,
mesmo por iniciativa individual. 18

Mais uma vez, a redução da influência cultural a um território específico e


delimitado aparece desmistificada. E essa influência continua, presente até nos
expoentes da futura indústria que iria se consolidar.
A produção revela-se intrinsecamente com as precárias condições materiais e
financeiras do Japão da época. Grande parte dos experimentos na época foram
realizados com o intuito de baratear a produção, como Imokawa Muzuko Genkanban no
Maki (“A montanha das idosas abandonadas”), realizada pelo desenhista Oten
Shimokawa com fotografias de desenhos feitos a giz numa lousa.
Até a década de 30, grande parte da produção é baseada em lendas e fábulas do
folclore japonês. A partir do crescimento do militarismo no país, que acabou
culminando com a ditadura militar e a participação na Segunda Guerra Mundial, a
animação foi censurada e serviu de propaganda para o regime. De forma análoga, com a
ocupação norte-americana no país após o final da Guerra, foram profundas as mudanças
efetuadas no cotidiano das pessoas, tanto na cultura como no modo de vida e valores do
país. Com essas alterações, mais uma vez a censura era aplicada à produção de
animação, dessa vez impedindo de ser veiculada a manifestação e a propagação de
idéias ultranacionalistas e bélicas. Curiosamente, a própria palavra que designa a
animação foi criada por influência ocidental, no caso norte americana:

Não havia na língua japonesa uma palavra distinta que significasse ‘animação’. A
influência estrangeira trouxe ao idioma japonês novas expressões, derivadas do inglês,
como eeakon para ‘ar condicionado’ e aisu kuriimu para ‘sorvete’. A partir da década de
1950, o termo anime, derivado do inglês animation, passou a ser usado como sinônimo
de animação com a estética e a técnica desenvolvidas pelos japoneses, embora no Japão
ela signifique todo e qualquer desenho animado, japonês ou não. 19

_________
18. SATO, Cristiane A. A cultura popular japonesa: animê. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura
Pop Japonesa. São Paulo: Hedra, 2005. p.30
19. idem. p. 32

20
A produção continuou e, em 1958, foi produzido o primeiro longa metragem em
cores do pós-guerra, Hakujaden (“A lenda da serpente branca”), uma parceria entre o
diretor Taiji Yabushita e a produtora Toei Dõga, que deu início ao desenvolvimento
industrial da animação no Japão.
Para comprovar mais uma vez a constante influência estrangeira na produção
japonesa, foi sob inspiração dos filmes de Chaplin e dos desenhos animados da Disney
que um dos mais importantes artistas que o Japão já conheceu começou a sua produção:
trata-se de Osamu Tezuka, um dos primeiros homens a conseguir conciliar o
compromisso comercial com a produção artística, elogiado tanto pela crítica como pelo
público.
Foi querendo trabalhar com animação que Tezuka introduziu uma linguagem
cinematográfica às histórias em quadrinhos. Em 1959, já consagrado como desenhista
de mangá, ele consegue entrar na prematura indústria de animação e, em 1961, funda o
seu primeiro estúdio, a Mushi Production. Pioneiro na televisão, lançou a primeira série
de animê regular da TV japonesa, Tetsuwan Atomu (Astro Boy), baseado na história
homônima desenhada pelo mesmo autor. Foi também o primeiro a exportar séries de
animê, através do canal norte americano NBC, e o primeiro a lançar uma série de animê
em cores, Jungle Taitei (Kimba, o Leão Branco).
Osamu colaborou intensamente para a consolidação da indústria da animação,
não só em termos comerciais mas também em termos de linguagem. Como diz a própria
Cristiane A. Sato

Ainda hoje é difícil mensurar o impacto que Tezuka e sua obra causaram na
cultura japonesa do pós-guerra. A animação no Japão evoluiu tanto em técnica
quanto em forma desde então, mas na essência nada de novo foi criado que não
tivesse sido feito antes por ele. Questões éticas entre robótica e humanidade,
terror para crianças e desenhos eróticos para adultos, a androgenia, dramas de
vida e morte em histórias aparentemente ingênuas e cômicas – tudo o que hoje
caracteriza o anime na aparência e no conteúdo foi antes testado pelo visionário
Tezuka. 20

A indústria da animação japonesa cresceu de tal maneira que a produção abarca


diversos tipos de gêneros de histórias, cada um focado em algum público. Na
classificação redigida pela autora, os principais gêneros são:
___________
20. SATO, Cristiane A. A cultura popular japonesa: animê. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura
Pop Japonesa. São Paulo: Hedra, 2005. p.36

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- Kyoodai Robotto (‘robôs gigantes’)


-SF akushion (‘ação e ficção científica’)
-Meruken (‘fábulas’)
-Meisaku shiriizu (‘séries de obras literárias’)
-Supaa Kaa (‘super-carros’)
-Shõjo monogatari (‘histórias para meninas’)
-Bõken akushion (‘ação e aventura’)
-Gyaku anime (‘animê humorístico’)
-Supootsu (‘esporte’)
-Yokai (‘mundo do sobrenatural’)
-Jidai geki (‘coisa de época’)
-Kodomo anime (‘animê para crianças’)
- Adaruto e yaoi (os que tratam de sexo)

Nota-se que, de toda essa imensa produção, apenas uma pequena quantidade é
exportada para o Brasil, predominantemente dos gêneros shõjo, bõken, supootsu e
yokai.
Se foi a partir da década de 60 que a animação japonesa começou a ser
exportada, é em meados da década de 80 que a produção para a TV alcançou seu
apogeu. Nessa mesma época, surgem os otakus, estereotipo de fã que também superou
as barreiras territoriais e alcançou o público brasileiro.

A década de 1980 também marca o surgimento do ‘otakismo’. Um dos muitos tipos de


zoku (em gíria, em português, ‘tribos’) que surgiram no Japão do pós-guerra, os fãs de
animês foram denominados genericamente de otaku, expressão que vem do hábito em
japonês de se referir a terceiros de maneira educada e impessoal e, em alguns contextos,
de procurar afastar uma pessoa do círculo de convívio, referindo-se a ela de uma
maneira exageradamente formal. Além disso, é uma gíria em japonês que designa fãs de
anime pelo hábito que estes possuem de ficar muito tempo em casa, isolados diante da
TV e de equipamentos, assistindo a desenhos ou jogando videogames, absortos a ponto
de se comportarem de forma doentia. No ocidente, muitas vezes traduz-se otaku como
sinônimo de ‘nerd’, mas apesar de ambos serem vistos com humor como pessoas
socialmente inaptas, os otakus são conhecedores fanáticos de um determinado assunto
incomum, obtuso ou complexo. 21

É interessante perceber como o termo otaku foi adaptado pelo público brasileiro
das animações: não mais uma palavra pejorativa, seria uma designação dos
freqüentadores dos eventos temáticos e dos consumidores das animações e dos mangás,
praticamente um sinônimo de fã. Apesar de não encontrar total aceitação entre todos os
que assistem aos animês, são unidos através desse estereotipo que muitos dos fãs se
reúnem e criam laços de sociabilidade.
____________
21. SATO, Cristiane A. A cultura popular japonesa: animê. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura
Pop Japonesa. São Paulo: Hedra, 2005. p.38

22
Não devemos esquecer que, apesar de ser um produto oriental e de ter
características narrativas e estéticas específicas, a animação japonesa não está restrita ao
território nipônico e não é resultado de um enraizamento cultural, como pretenderiam
dizer os românticos e populistas. Ela não só foi e é influenciada por outras
manifestações culturais, por vezes ocidentais, como também influencia o hábito e o
cotidiano de outras pessoas ao redor do mundo.

Personagens como Mitsuo, Saori, Tetsuo, Kaoru e Yukito passaram a ser tão comuns
aos ouvidos dos ocidentais como nomes em inglês. A imagem dos olhos grandes e
cabelos espetados se tornou familiar e passou a ser sinônimo de estética japonesa,
embora esse visual não corresponda à realidade física dos orientais. Hábitos como
comer bolinhos de arroz com hashis, usar uniformes escolares semelhantes a roupas de
marinheiro, ver placas e letreiros escritos em japonês e degustar pratos como
‘okonomiyaki à moda sulista’ aparecem todos os dias na televisão, diante de crianças e
adultos que desconhecem esses hábitos e que a partir desse inusitado meio passam a
conhecer um povo com tradições e hábitos diferentes. 22

Trata-se de um dos expoentes de uma cultura mundializada, que desterritorializa


as manifestações culturais e as reterritorializa através de mediações, dentre as quais se
destacam os meios de comunicação. Os brasileiros não seriam mais aqueles que ouvem
unicamente samba e pagode, dançam no carnaval e jogam futebol: essa seria apenas
uma das possibilidades, entre tantas outras, em que o homem pode se basear para
construir sua identidade.
_________
22. SATO, Cristiane A. A cultura popular japonesa: animê. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura
Pop Japonesa. São Paulo: Hedra, 2005. p.29

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