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CAPÍTULO 1
O ESTADO DA QUESTÃO
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Para a realização de uma pesquisa que tem como foco as mediações e como elas
viabilizam a recepção de produtos nipônicos por um público brasileiro, é fundamental
definirmos, em primeira instância, o que é cultura:
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1. THOMAZ, Omar Ribeiro. A antropologia e o mundo contemporâneo: cultura e divesidade. In: A
Temática indígena na escola. Brasília: Mec/Mari/Unesco, 1995. p.427
2.ORTIZ, Renato. Um Outro Território: Ensaios Sobre a Mundialização. São Paulo: Olho D’Água, 2000.
p. 24
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Teríamos, portanto, um movimento de duas dimensões complementares da
“modernidade-mundo”: um que se caracteriza pela diversidade e individualização da
cultura e das relações sociais, e outro que envolve todos esses elementos aparentemente
desconexos em uma “malha mais ampla” 3 , cuja forma de manifestação é a própria
expressão dessas partes individuais. Longe de ser um movimento que humaniza as
relações sociais, como querem os homens do marketing, ou uma fonte ideal de
diferenciação entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, como querem os
tecnólogos, a globalização seria o resultado de conflitos políticos e econômicos.
Teria que ser reformulado tanto o conceito de espaço como o de cultura, tal qual
já havia se cristalizado pelos românticos. Nessa concepção, nota-se a demarcação das
fronteiras e do espaço físico e o enraizamento da cultura, base dos estudos
antropológicos: a cada território, uma cultura diferente e independente, completa em si
mesma. Mesma concepção que atravessa a idéia de cultura popular como um elo de
oposição à cultura urbanizada e “contaminada”. Ela estaria ligada ao local, a uma
origem demarcada, daí a sua valorização dentro do projeto da construção do Estado
Nação.
A modernidade-mundo vem alterar completamente o ideal romântico de cultura
popular. O próprio sentido da viagem se modifica: o homem não mais se deslocaria no
espaço com o intuito de desbravar o desconhecido, pois o “outro” agora faz parte de seu
imaginário. Armado de guias turísticos e conhecedor de seu destino, o viajante já não é
mais um elo de ligação entre diferentes espaços e sim uma pessoa que quer sair da
rotina e do ritmo do trabalho.
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3. ORTIZ, Renato. Um Outro Território: Ensaios Sobre a Mundialização. São Paulo: Olho D’Água,
2000. p. 25
4. idem, p. 41
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Por outro lado, a quebra das fronteiras da modernidade-mundo indicaria a
desterritorialização do homem e da cultura.
Basta olharmos o meio ambiente que nos circunda. Ele é povoado por objetos
característicos de uma civilização que se desterritorializou. Luz elétrica, ônibus,
automóveis, aviões, televisores, aviões, televisores, computadores, supermercados,
cinemas, shopping centers, ruas, avenidas e aeroportos exprimem a materialização da
técnica como determinante ecológico. 5
Ao mesmo tempo, essa cultura tem que se reterritorializar para fazer parte da
vida das pessoas. É nessa operação que entra os meios de comunicação de massa, na
medida em que estão inseridos nas práticas cotidianas. Não seria um erro, portanto,
dizer que a televisão é em si uma mediação entre fã e animação, na medida em que o
meio reterritorializa um produto de origem cultural diversa.
A importância dos meios de comunicação não decorre do fato de eles serem de ‘massa’.
Devemos percebê-los como intrínsecos à modernidade que se tornou mundo. Eles
conectam as partes dispersas na sociedade global, articulando-as a um mesmo processo.
O mesmo pode ser dito em relação à cultura. Já não me parece conveniente pensá-la
como ‘massificação’. Padronização e diversificação não são universos excludentes. 6
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5. ORTIZ, Renato. Um Outro Território: Ensaios Sobre a Mundialização. São Paulo: Olho D’Água,
2000. p. 40.
6. idem. p.125
7. idem. p.61
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transcendental; e a terceira, manifestação da mundialização, “processo que atravessa os
planos nacionais e locais, cruzando histórias diferenciadas” 8. Na nova sociedade
teríamos, desse modo, uma tendência de conjunção e de disjunção dos espaços.
a identidade é uma espécie de lugar virtual, o qual nos é indispensável para nos
referirmos e explicarmos um certo número de coisas, mas que não possui, na verdade,
uma existência real. 10
A rigor, faz pouco sentido buscar a existência de ‘uma’ identidade; seria mais correto
pensá-la na sua interação com outras identidades, construídas segundo outros pontos de
vista. 11
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8. ORTIZ, Renato. Um Outro Território: Ensaios Sobre a Mundialização. São Paulo: Olho D’Água,
2000. p.62
9. idem. p. 62-63
10. idem. p.79
11. idem. p.79
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É dessa maneira que não podemos pensar na definição de uma identidade única e
completa do fã da animação, mas nos concentrarmos na busca dessas diversas
identidades entrecruzadas.
Da mesma forma, nem toda forma de consumo é interiorização dos valores de outras
classes. O consumo pode falar e fala nos setores populares de suas justas aspirações a
uma vida mais digna. Nem toda busca de ascensão social é arrivismo; ela pode ser
também uma forma de protesto e expressão de certos direitos elementares.(...)‘Não se
trata apenas de medir a distância entre as mensagens e seus efeitos, e sim de construir
uma análise integral do consumo, entendido como o conjunto dos processos sociais de
apropriação dos produtos.(...) O consumo não é apenas reprodução de forças, mas
também produção de sentidos: lugar de uma luta que não se restringe à posse dos
objetos, pois passa ainda mais decisivamente pelos usos que lhes dão forma social e nos
quais se inscrevem demandas e dispositivos de ação provenientes de diversas
competências culturais. 14
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14. MARTIN BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações. Rio de Janeiro, editora UFRJ, 2003. p.301-
302
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fulano ou sicrano, jovem ou adulto, casado ou solteiro, homem ou mulher, e sim apenas
um trabalhador, um empregado. E embora essas identidades – sobre as quais se
estrutura em larga medida a vida social – possam repercutir na hora de vender a força de
trabalho, não é no mercado nem no lugar de trabalho que elas se constituem, e sim na
família e no bairro, onde se mora junto com vizinhos e amigos’. O bairro surge, então,
como o grande mediador entre o universo privado da casa e o mundo público da cidade,
um espaço que se estrutura com base em certos tipos específicos de sociabilidade e, em
última análise, de comunicação: entre parentes e entre vizinhos. O bairro proporciona às
pessoas algumas referências básicas para a construção de um a gente, ou seja, de uma
‘sociabilidade mais ampla do que aquela que se baseia nos laços familiares, e ao mesmo
tempo mais densa e estável do que as relações formais e individualizadas impostas pela
sociedade’. 15
‘É preciso abandonar o mediacentrismo, uma vez que o sistema da mídia está perdendo
parte de sua especificidade para converter-se em elemento integrante de outros sistemas
de maior envergadura, como o econômico, o cultural e político’.(...) Por isso, em vez de
fazer a pesquisa a partir da análise das lógicas de produção e recepção, para depois
procurar suas relações de imbricação ou enfrentamento, propomos partir das mediações,
isto é, dos lugares dos quais provém as construções que delimitam e configuram a
materialidade social e a expressividade cultural da televisão. 16
E é para compreender essas mediações que temos que partir para a análise de
uma literatura específica do assunto.
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15. MARTIN BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações. Rio de Janeiro, editora UFRJ, 2003. p. 285-
286
16. MARTIN BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações. Rio de Janeiro, editora UFRJ, 2003. p. 304
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Por volta de 1910, as platéias japonesas passaram a conhecer desenhos animados graças
aos cinemas. Eram curtas-metragens mudos produzidos no que hoje se chama núcleo
pioneiro de animação de Nova York, onde ilustradores e desenhistas como o
empreendedor John Randolph Bray e o artista Winsor McCay produziram suas
primeiras obras. A novidade logo levou desenhistas japoneses a se aventurar nessa área,
mesmo por iniciativa individual. 18
Não havia na língua japonesa uma palavra distinta que significasse ‘animação’. A
influência estrangeira trouxe ao idioma japonês novas expressões, derivadas do inglês,
como eeakon para ‘ar condicionado’ e aisu kuriimu para ‘sorvete’. A partir da década de
1950, o termo anime, derivado do inglês animation, passou a ser usado como sinônimo
de animação com a estética e a técnica desenvolvidas pelos japoneses, embora no Japão
ela signifique todo e qualquer desenho animado, japonês ou não. 19
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18. SATO, Cristiane A. A cultura popular japonesa: animê. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura
Pop Japonesa. São Paulo: Hedra, 2005. p.30
19. idem. p. 32
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A produção continuou e, em 1958, foi produzido o primeiro longa metragem em
cores do pós-guerra, Hakujaden (“A lenda da serpente branca”), uma parceria entre o
diretor Taiji Yabushita e a produtora Toei Dõga, que deu início ao desenvolvimento
industrial da animação no Japão.
Para comprovar mais uma vez a constante influência estrangeira na produção
japonesa, foi sob inspiração dos filmes de Chaplin e dos desenhos animados da Disney
que um dos mais importantes artistas que o Japão já conheceu começou a sua produção:
trata-se de Osamu Tezuka, um dos primeiros homens a conseguir conciliar o
compromisso comercial com a produção artística, elogiado tanto pela crítica como pelo
público.
Foi querendo trabalhar com animação que Tezuka introduziu uma linguagem
cinematográfica às histórias em quadrinhos. Em 1959, já consagrado como desenhista
de mangá, ele consegue entrar na prematura indústria de animação e, em 1961, funda o
seu primeiro estúdio, a Mushi Production. Pioneiro na televisão, lançou a primeira série
de animê regular da TV japonesa, Tetsuwan Atomu (Astro Boy), baseado na história
homônima desenhada pelo mesmo autor. Foi também o primeiro a exportar séries de
animê, através do canal norte americano NBC, e o primeiro a lançar uma série de animê
em cores, Jungle Taitei (Kimba, o Leão Branco).
Osamu colaborou intensamente para a consolidação da indústria da animação,
não só em termos comerciais mas também em termos de linguagem. Como diz a própria
Cristiane A. Sato
Ainda hoje é difícil mensurar o impacto que Tezuka e sua obra causaram na
cultura japonesa do pós-guerra. A animação no Japão evoluiu tanto em técnica
quanto em forma desde então, mas na essência nada de novo foi criado que não
tivesse sido feito antes por ele. Questões éticas entre robótica e humanidade,
terror para crianças e desenhos eróticos para adultos, a androgenia, dramas de
vida e morte em histórias aparentemente ingênuas e cômicas – tudo o que hoje
caracteriza o anime na aparência e no conteúdo foi antes testado pelo visionário
Tezuka. 20
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Nota-se que, de toda essa imensa produção, apenas uma pequena quantidade é
exportada para o Brasil, predominantemente dos gêneros shõjo, bõken, supootsu e
yokai.
Se foi a partir da década de 60 que a animação japonesa começou a ser
exportada, é em meados da década de 80 que a produção para a TV alcançou seu
apogeu. Nessa mesma época, surgem os otakus, estereotipo de fã que também superou
as barreiras territoriais e alcançou o público brasileiro.
É interessante perceber como o termo otaku foi adaptado pelo público brasileiro
das animações: não mais uma palavra pejorativa, seria uma designação dos
freqüentadores dos eventos temáticos e dos consumidores das animações e dos mangás,
praticamente um sinônimo de fã. Apesar de não encontrar total aceitação entre todos os
que assistem aos animês, são unidos através desse estereotipo que muitos dos fãs se
reúnem e criam laços de sociabilidade.
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21. SATO, Cristiane A. A cultura popular japonesa: animê. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura
Pop Japonesa. São Paulo: Hedra, 2005. p.38
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Não devemos esquecer que, apesar de ser um produto oriental e de ter
características narrativas e estéticas específicas, a animação japonesa não está restrita ao
território nipônico e não é resultado de um enraizamento cultural, como pretenderiam
dizer os românticos e populistas. Ela não só foi e é influenciada por outras
manifestações culturais, por vezes ocidentais, como também influencia o hábito e o
cotidiano de outras pessoas ao redor do mundo.
Personagens como Mitsuo, Saori, Tetsuo, Kaoru e Yukito passaram a ser tão comuns
aos ouvidos dos ocidentais como nomes em inglês. A imagem dos olhos grandes e
cabelos espetados se tornou familiar e passou a ser sinônimo de estética japonesa,
embora esse visual não corresponda à realidade física dos orientais. Hábitos como
comer bolinhos de arroz com hashis, usar uniformes escolares semelhantes a roupas de
marinheiro, ver placas e letreiros escritos em japonês e degustar pratos como
‘okonomiyaki à moda sulista’ aparecem todos os dias na televisão, diante de crianças e
adultos que desconhecem esses hábitos e que a partir desse inusitado meio passam a
conhecer um povo com tradições e hábitos diferentes. 22