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RAYOM RA
rayomra@ibest.com.br
http://arcadeouro.blogspot.com
INTRODUÇÃO
Essa obra não é mediúnica. Assim não há e nem haverá qualquer assinatura de
espíritos ou entidades invocando o ditado.
Rosinha não escapou dessa hesitação. Ficou guardada muito tempo em minhas
gavetas e estantes, sob a forma compacta de um livreto. A esqueci de fato, mesmo
porque a dramaticidade dos personagens sempre me tocou profundamente e não
gosto de abordar o sofrimento dessa maneira e nem recomendar.
Mas não houve jeito, o mesmo impulso que me leva a escrever me levou a relembrar
Rosinha e prometi mudar alguns argumentos da história, abrandando o sofrimento
dela, trazendo-lhe um final feliz. E de novo esbarrei em conceituações mentais-
emocionais: que é um final feliz? Assim, pouco mudei no desenho da obra e nem um
pouco de seu final.
Como adendo, desejo chamar a atenção aos fatos aparentemente irreais que
envolvem e circundam Rosinha, aos seus passos e situações julgadas
inverossímeis, sabendo que a inteligência sensível do leitor entenderá que tratamos
de um personagem especial, de alma avançada num corpo infantil. Sua
excepcionalidade e memória são inatas à própria alma, não importando a pouca
experiência da tenra e delicada personalidade que assim se manifesta.
Haverá mesmo mensagem importante ou pelo menos aproveitável na obra? Não sei,
sinceramente. O que eu entendo é que quando nos propomos a escrever nos
apropriando da técnica da linguagem e comunicação, temos o dever de tentar trazer
a qualquer público uma mensagem construtiva. Pelo menos assim eu tentei.
Rayom Ra.
CAPÍTULO I
ENCONTRO INSÓLITO
Não obtendo resposta ela parou, resolvendo tomar outra direção, deixando a
rua principal, ingressando por via secundária em terra firme, assinalada e margeada
por pedras pintadas em branco. Altas em ambos os lados, viçosas e em tamanhos
aproximadamente iguais, dobravam-se ali verdes folhagens de samambaias, que
vinham terminar, como a via, alguns metros depois à margem de um lago. No centro
do lago havia um chafariz, constituído de enorme cálice circundado por três estátuas
de divindades gregas, de cujos cântaros tombados sobre os ombros jorravam água.
O cálice fazia projetar contínuos e múltiplos filetes, e os esguichos mais longos
salpicavam e turvavam de leve a superfície da água. O lago, inserido entre
espécimes de árvores estéreis, ensombrado por nódoas diversas, vinha evocar a
imperfeita, mas feliz lembrança, de um oásis numa propriedade belissimamente bem
conservada.
Os persistentes latidos despertavam mais fortemente a curiosidade infantil,
sobrelevando-lhe a atenção acima da obrigação imediata. Em casos assim, a
proibição era explícita: somente Pedro, a quem os cães conheciam muito bem,
poderia investigar a origem de um alarme – ou na ausência dele a própria Luiza! E
Rosinha, esquecendo-se propositalmente da ordem, deu meia volta, contornou a
margem do lago e se enfiou por entre pendentes e largas folhas de tinhorões.
Ela então baixou o rosto mirando os cães, dando-se conta que eles eram a real
ameaça.
- Sansão, Hércules, venham, venham! – eles cessaram os latidos e olharam-na
-- Venham, me acompanhem! – e saiu a correr para o fundo do pomar, sendo
imediatamente seguida por eles. Chegando ao portão do fundo abriu-o, e os cães,
nem parecendo as mesmas feras de há pouco, cruzaram o vão correndo
mansamente ao seu lado, até amplo canil de grossas barras de ferro no meio do
bosque sob densa e agradável vegetação. Ela escancarou a porta semiaberta e os
mandou entrar. Os cães a obedeceram e ela travou a porta com o ferrolho, girando
nos calcanhares reiniciando uma correria de volta.
Mas ali estava uma menina diferente: tímida, estranha, que a olhava como se de
verdade nunca tivesse conversado com uma negrinha. Era rica, isso era fácil
entender, pelo trato que dera aos cães que só podiam pertencer-lhe, pela roupa que
vestia e onde morava! Estranha, estranha mesmo essa menina, mas simpática. De
novo fez tentativa para modificar aquele abismo entre ambas, ao mesmo tempo sutil
e tênue como um fio de aranha.
- Como é que você se chama, menina?
- Rosinha! – respondeu sem alterar a postura.
- Eu me chamo Isabel, mas eles só me conhece por Calunga. Aliás, por causa
disso, eu tive de dar um soco no olho dum guri enjoado, lá na frente da escola!
- Você surrou um menino? – Rosinha se assustara piscando os olhinhos azuis,
levantando a cabeça, balançando suavemente a trança, perdendo o ar tímido.
- Surrar eu não surrei, foi só um soco no olho dele, bem que ele merecia uma
surra. Ele ficou me enchendo por causa de meu apelido achando que era nome.
Então eu disse pra ele que me chamava Isabel e ele quis saber de quê. Ora, Isabel,
só isso, respondi pra ele. Sabe o que ele fez? Começou a gritar: Isabel só isso!
Isabel só isso! Aí eu mandei ele calar a boca, mas ele não calou. Então eu fui pra
cima dele e bum...! – fez o gesto adiante, de punho fechado.
- Ele se machucou? – perguntou Rosinha bastante interessada, levando as
pontas dos dedos de uma das mãos aos lábios.
- Machucô nada, foi só manha. Ele gritou tanto que a escola inteira ouviu. Então
eu tive de me mandar por que a diretora veio também doidinha pra me segurar. E
ninguém me pega, nem a polícia!
- Polícia também? - Rosinha ia de espanto a espanto.
- Só de vez em quando – respondeu apoiando a mão no tronco da macieira,
fazendo de novo aquele trejeito – é o guarda Félix, que toma conta da criançada. Ele
no fundo é meu amigo e vive me dando conselho.
- Eu também tenho um amigo que me dá conselhos – aventurou-se, Rosinha,
soltando-se um pouco mais.
- Ele também é guarda da escola? – perguntou atenta, descolando-se da árvore.
- Não, é o Sabe-Tudo, ele mora ali! – mostrou para o meio do pomar.
- Onde? – ela olhou acompanhando o gesto de Rosinha.
- Ali, bem no meio, depois daquela última laranjeira.
- Mas eu não to vendo nada, só árvore! – falou a negrinha se abaixando e
apertando os olhos, querendo enxergar mais longe.
- É isso mesmo, ele é um pessegueiro! – confirmou com inocência e
simplicidade.
Calunga virou a cabeça para Rosinha com espanto e interrogação, como se não
houvesse entendido.
- Pessegueiro? Você ta querendo dizer, aquele negócio que dá pêssego?
- É ele mesmo, é o Sabe-Tudo, mas chi...., ele não queria que ninguém
soubesse! – ela encolheu os ombros levando a mão à boca em reprovação.
Calunga replicou prontamente, demonstrando com suas palavras a rudeza de
quem está acostumada a arreliar e brigar:
- Que é isso, menina! Ta me achando com cara de troxa, desde quando
pessegueiro abre a boca pra falar?
Calunga fez trejeitos com o nariz e olhos, e com expressão que a tornava jocosa
e esquisita pôs a língua para fora procurando ver-lhe a extremidade. Em seguida,
cuspiu e abaixou-se para olhar.
- Ele não disse que quem mente vira sapo, disse? – perguntou preocupada,
levantando-se e a olhando.
- Não, mas se a mentira escapar por nossos lábios esteja o coração adoçado
para não azedarmos a alma alheia. A mentira e a maldade juntas produzem maiores
males do que uma doença que atira sobre o leito!
- E o sapo?
- Que tem o sapo?
- Como é que ele entrou nessa história, ele já foi gente?
- Não sei, isso ele não explicou. Mas acho que sapo é sapo, gente é gente!
- Eu também acho, confirmou aliviada, eu ouvi falar lá na porta da escola que
tem gente que vira sapo quando mente, mas são história boba, não é?
- Sabe-Tudo disse que a imaginação pode ser construtiva e destrutiva; que o
medo das coisas imaginadas para causar medo, luta contra a coragem das coisas
imaginadas para criar coragem – Rosinha agora falava sem ressentimentos.
Calunga passou as costas da mão sobre os lábios tendo nos olhos luzidio brilho.
Essa menina era muito mais estranha do que antes supusera. Falava coisas
diferentes, sabia-as na ponta da língua, mas de repente ficava toda caída e
desarmada feito uma criancinha de dois ou três anos. A história do pessegueiro
falante não a engolira, nunca vira árvore gemer quanto mais falar. Ah! Isso deve ser
a tal imaginação que se referira. Com certeza alguém lhe ensinara essas besteiras e
ela, bobinha, achava que o pessegueiro era quem falava. Será que era birutinha?
Nunca conversara com outra negrinha, um pessegueiro que fala e ensina, ora bolas!
Vai ver é mesmo, birutinha da silva! Mas apesar dessas esquisitices, era-lhe
agradável, longe de ser pedante como aquelas bestas ambulantes, filhos de papais
e mamães ricos, que cavalgavam para a escola. Ela não, e não tinha a menor
vontade de pregar-lhe uma peça!
- Escute, Rosinha, esse Sabe-Tudo aí, ele anda também, vai passear, fala com
outras pessoa? – perguntou tanto quanto possível com teatral garridice, procurando
esconder uma dose de malícia. Rosinha, sem perceber-lhe a intenção, respondeu
prontamente, com humor recuperado, achando que a negrinha realmente se
interessava pelo pessegueiro sem mais dúvidas:
- Não, ele é uma árvore já disse, e árvores não andam! De vez em quando ele
brilha, treme um pouco, mas é só isso. Você é a primeira pessoa a saber e eu vou
contar-lhe uma outra também, é sobre a Áurea!
- Áurea, quem é?
- É minha amiga. Sabe-Tudo disse-me que ele é filósofo e Áurea disse-me que
ela é prosadora. Ela fala tanta coisa bonita!
- Essa Áurea também é..., é... – gaguejou Calunga, apontando com o dedo para
os lados do pessegueiro com nova cara de espanto, sem saber direito como
perguntar.
- É uma roseira – respondeu com naturalidade – ela mora lá no bosque, num
canteiro do jardim!
Calunga olhava-a abismada! Dessa vez ela ultrapassara sua previsão. Julgara-a
birutinha, mas via agora que ela era muito mais que isso, era doidinha. Primeiro a
história dela de não conversar com outra menina, depois o pessegueiro, agora essa
da roseira. No entanto, mesmo cismada com as faculdades mentais da outra sentia-
se curiosa por saber detalhes, por escutar o que sua doidera tinha para dizer – algo
a instigava a isso!
- E o que ela conta?
- Bem, muitas coisas, depende do assunto.
- Você quer dizer que tem de levar um assunto pra ela falar?
- Mais ou menos. Às vezes eu estou passando e ela me chama, então começa a
falar sobre as coisas. Noutras, eu vou lá e puxo conversa.
A negrinha comia-a com os olhos. Como é que podia uma menina tão
engraçadinha e meiga estar falando essas besteiras? Será que ficando a escutar
essas coisas sem pé nem cabeça ia repetir também e ficar igualzinha? A esse
pensamento seus olhos se arregalaram e mostrou transtorno na fisionomia que foi
prontamente notado por Rosinha.
- Está sentindo alguma coisa? – perguntou-lhe preocupada.
- Eu? Não..., ora essa! Por que ia sentir? Eu só to ouvindo, não falei nadinha!
- Uma vez ela disse-me o seguinte – prosseguiu Rosinha ignorando os sintomas
da outra – o perfume das flores são jorros de essência que os anjos trazem do alto e
derramam nos cálices. O perfume não serve somente para aspirarmos e sentirmos
prazer, nem só para encher nossos ambientes e torná-los atrativos. Ele tem coisas
maiores e misteriosas e quando as descobrimos, os segredos passam a nos
pertencer e nós a eles. Porém, somente corações puros e sem nódoas conseguem
desvendar esses segredos e deleitar-se nos seus eflúvios!
- Rosinha! Rosinha! – gritaram-lhe ao longe. Ela reconheceu de imediato a voz
da governanta.
- É Luiza, depressa, se esconda! – falou nervosamente.
- Pra que tanto medo, Rosinha?
- Ela vai contar para o meu pai que eu estive conversando com outra menina.
Depressa, corra e se esconda!
Rosinha emudeceu. Se contasse era mais do que certo que Luiza a delataria ao
pai. Recebia raras visitas de parentes, não tinha amiguinhas e não ia à escola. Seu
pai queria zelar por sua formação, educá-la sem a influência de pessoas de outras
classes. Os únicos amigos secretos eram Sabe-Tudo e Áurea. Eles a amavam e a
ensinavam, faziam gravar em sua privilegiada memória cada palavra, cada exemplo,
e ela nunca mais esquecia. Apesar deles, de seus carinhos e sabedoria, ainda assim
não podia evitar sentir-se confinada e vigiada. E o que aconteceria se o pai viesse a
saber daquela estranha invasora do pomar e sua conversa com ela?
Uma luta jamais experimentada deflagrou-se em seu íntimo, fazendo agitar seu
infantil coração. Não dizia mentiras e repetira há pouco importante adágio de Sabe-
Tudo, porém a realidade era mais dura que as palavras! Sabe-Tudo ensinara-lhe
que era hábil e válido ocultar e dissimular, mas quanto a mentir, fora bem claro, que
fazer?
- Ande Rosinha, conte logo, o que os fazia latir tanto? – A voz de Luiza pareceu
declarar-lhe que a tudo já conhecia, querendo unicamente a confissão.
- Era um gato! – respondeu a criança, corando e desviando o rosto do
percuciente olhar.
- Um gato?
- É, um gato grande, mas ele fugiu – confirmou dolorosamente sentindo os olhos
umedecerem, lutando contra as lágrimas.
A governanta olhou em torno buscando perceber algo estranho. Rosinha
mentira e isso era surpreendente. Olhou de novo para a criança constatando sua
angústia, apiedando-se dela. Desgrudando-lhe os olhos perpassou-os novamente
pelos arredores e deu dois passos à frente, fingindo acreditar no que ouvira.
- Bem, se o gato já foi podemos soltar de novo os cães.
- Não, espere – sobressaltou-se a criança – ele pode estar ainda por ai, então
os cães o verão e farão outro escarcéu.
- Está bem, vamos então procurar o gato pelo pomar, se o encontrarmos o
afugentaremos.
- Agora, Luiza? – ela mostrara apreensivo brilho nos olhos azuis.
- Não deseja? Se estiver com medo eu vou sozinha.
- Não é isso, Luiza, é que... bem, para que se preocupar é somente um gato,
não é?
Luiza, verdadeiramente curiosa, percebia que a luta e a resistência da criança a
crucificavam e resolveu mudar de tática.
- Muito bem, então deixemos o gato para lá. Vamos entrar, depois mandamos
soltar os cães.
Duas ou três vezes ao ano, Pedro e os dois homens cuidavam do horto que
rodeava a mansão, produzindo movimentação extra-rotineira, tratando de acertar e
modelar o enorme anel vegetal. Os craques das tesouras e vai-e-vens de serrotes;
as penetrantes incursões da moto serra no arvoredo; os arremates por cordas; as
farfalhantes quedas de galhos; o varrer deles ao chão quando puxados a mãos ou
atrelados ao trazeiro do jipe; os posteriores aparos em tamanhos adequados; o
rebuliço corriqueiro; os chamados de atenção; os gritos de alerta e toda uma gama
adicional de ruidosas ações daqueles homens atentos - por vezes nervosos - eram
ouvidos com nitidez pelos cômodos da periferia da mansão, às vezes pelos
corredores. Luiza deveras apreciava a tudo aquilo, e, vigilante, permanecia como a
supervisionar às ordens do patrão, sentindo-se fazer parte do sucesso das
execuções. Rosinha ficava longo tempo apoiada no peitoril desta ou daquela janela,
atraída pelo burburinho do trabalho que se desenrolava.
ÁUREA E SABE-TUDO
Rosinha permanecia em seu quarto por pouco mais de meia hora. Sentada no
chão, apoiando as costas na travessa da cama, sentindo o contato da colcha e a
maciez do colchão, ficara a cismar. Ora encolhia as pernas encostando a testa nos
joelhos ora apoiava o queixo enlaçando às pernas num abraço quebrado e apertado.
* * *
Rosinha comeu pouco. Almeida por trás das lentes observou-a com seus olhos
azuis. Ao término, trouxe-a para a poltrona da biblioteca e tendo-a colada à perna,
fumava belo e envernizado cachimbo irlandês.
- Por que você jantou pouco, andou comendo coisas depois das quatro?
- Não comi nada, pai, é que estava mesmo sem fome
- Verdade?
- Verdade! – respondeu-lhe olhando-o num súbito relance.
Almeida silenciou começando a dar seguidas baforadas, lançando o olhar para
a estante, desligando-se de Rosinha.
- Pai, mentir é feio? – ela tirou-o da abstração.
- Hem? O que?
- Mentir é feio?
- O que você comeu antes do jantar?
- Nada, pai, já disse. O que eu queria saber é se um dia eu contasse uma
mentira o senhor ia me castigar.
- Qual foi a mentira que você me contou? – o rosto redondo do pai mostrou
maior curiosidade ao encarar o rostinho belo e pálido.
- Não menti nunca. Eu só queria saber se um dia eu mentisse o senhor ia me
castigar.
- Depende – respondeu sem qualquer interesse ou convicção, relançando o
olhar em direção da estante, se desligando novamente. Rosinha voltou à carga:
- O senhor já mentiu alguma vez?
- Hem?
- Mentir, pai! O senhor já mentiu? Almeida tirou o cachimbo da boca
emborcado-o sobre o cinzeiro de vidro, batendo-o de leve e o fazendo soltar cinza.
Depois sacou o pequeno isqueiro dourado do bolso e supostamente o reacendeu,
dando novas baforadas. Então, como se estivesse muito ocupado ordenou:
- Agora deixe-me sozinho, eu preciso pensar sobre um assunto.
Rosinha imediatamente girou nos calcanhares e andou em direção da porta. Ao
cruzar o pórtico lançou-lhe derradeiro olhar. Almeida novamente se distanciara sob
tênue e azulada nuvem de fumo.
* * *
Com a testa coberta de suor, trêmula e assustada, Rosinha verificou que tudo
não passara de um sonho ruim e se enrolou na fina colcha para tentar dormir
novamente. Partes desconexas desse mesmo pesadelo repetiram-se por duas
vezes, torturando-a.
Pela manhã, Luiza assustou-se ao entrar no quarto e ver-lhe a palidez. Ela,
acordada, nada falou da agitada noite, estando, ademais, enfraquecida. A
governanta pousou-lhe a mão na testa acusando febre. Nervosa, correu ao doutor
Almeida, que, à mesa da copa, lendo o jornal que Frederico trouxera, aguardava a
presença da filha para o café, e relatou-lhe o fato. Almeida veio vê-la imediatamente,
constatando a febre, ordenando a Luiza telefonar ao médico, e perguntou à filha o
que ela sentia. Mediante respostas pouco conclusivas, deixou-a, indo aguardar a
chegada do médico.
O almoço foi-lhe servido mais cedo, e sozinha diante daquela comprida mesa
ela comeu menos do que esperava. Achou interessante a situação, mais ainda por
não ter a companhia desagradável de Marga. Ao término, saiu em direção do
bosque sob os protestos de Luiza que a queria ainda descansando. Mas como a
criança parecesse recuperada, deixou-a livre, indo também almoçar.
Uma ardência no estômago a fez parar e levar a mão ao local, sentindo ligeira
vertigem e o corpo a esfriar. Não devia estar pensando nessas coisas, faz mal
depois da comida! Sentou-se ali mesmo sobre a grama verde e viçosa que orlava
todo o lago e decidiu não ir mais ao pomar. Algo a tomou obrigando-a a fazer
enorme esforço a fim de apagar a imagem espectral criada pelo pesadelo, levando-a
a observar as sinuosidades das serpentinas líquidas lançadas pelo belo repuxo no
centro do lago e à marolante água. Como resultado, seus lábios rosados, de pouco
em pouco, iam afrouxando da tensão, permitindo a boca pequena de cantos
suavemente voltados para baixo, se mostrar quase ao natural. O brilho dos olhos
transmutava-se do vívido e excitado para o diáfano e contemplativo. Os braços já se
soltavam, e o pensamento deixava adormecer num torpor quase completo o rumor
da tempestade que a estremecera e nela ficara.
DE NOVO CALUNGA
Luiza deixara de lado aquele assunto do pomar, não mais evocava a mentira da
criança e seu insurgimento às costumeiras ordens. Domingo, ao levá-la a passear
pelo parque e observá-la com maior interesse enquanto ajudava-a se divertir com
gangorras e balanços, voltou-lhe à lembrança a cena do pomar. Com desagrado
procurou afastá-la da mente.
Veio a segunda-feira. Rosinha suportou como pode as lições com Marga e sua
companhia ao almoço. À tarde, após os deveres de casa, saiu a correr pelo bosque,
a conversar com Áurea e a visitar o pomar. Sansão e Hércules escarafunchavam o
capinzal do fundo do terreno, enquanto ela caminhava próximo ao muro. Entretanto,
uma surpresa a aguardava. Sobre o muro, protegido pelo galho de uma pereira a
alguns metros dali, um vulto negro, sentado, chamou-a:
- Ei, Rosinha, estou aqui!
Era a mesma voz, a mesma presença. Rosinha deu um salto de alegria e
exclamou:
- Calunga!
- Eu mesma. E quede os dois vira-lata?
- Estão lá no meio do capim! – respondeu emocionada apontando para aquela
direção.
- Então não posso pular pra aí, senão eles me vê e faz de novo aquele barulho
todo!
- É, não pule não, fique aí mesmo! Espere! Por que você não dá a volta por fora
e pula lá no fundo, no bosque? Lá podemos conversar mais a vontade! – sugeriu
agitada.
- Lá o muro é alto e cheio de caco de vidro, além do mais não tem fruta!
Rosinha olhou-a com uma ponta de decepção a empanar o brilho de seus olhos.
- Você então veio aqui... , por causa das frutas?
Calunga, elevando os olhos acima de Rosinha, correu o antebraço sob o nariz e
mirou um dos parreirais mais adiante carregado de uvas brancas, respondendo com
medido desinteresse.
- É pelas fruta...
Rosinha sentiu o coração apertar. A negrinha prosseguiu após a pequena
pausa:
- ...pra lhe ver também. Afinal, quase não deu pra gente falar daquela vez!
Rosinha sorriu largamente, os olhos emitiram brilho de rara beleza!
- Por mim também?
- Ué, por que não? Pelo que sei fruta é fruta, a gente come e ela acaba, mas
gente é gente! Ainda mais como você!
- Como eu? – perguntou surpresa e curiosa.
- É, cheia de novidade, de esquisit..., digo, de história e dona de um lugar
grande como esse.
- Mas isso aqui não é meu, é do meu pai. Ele é dono também de uma fábrica de
tecidos!
- É a mesma coisa, ora – soltou aquele riso debochado – se o seu pai é dono de
alguma coisa você também é. É a mesminha coisa!
- Ele nunca me disse que eu era dona de nada – exclamou inocentemente com
ar atarantado.
- É preciso dizer, Rosinha? O que é do pai é da filha, sempre foi assim. Bem, eu
acho que sempre foi.
Rosinha pensou um pouco levando o dedo ao queixo e apontou-o para Calunga.
- Estou me lembrando que Sabe-Tudo me disse que nós de verdade não somos
donos de nada, nem do nosso corpo, por que ele vem, cresce e se acaba e nós não
conseguimos detê-lo e nem entender direito como ele funciona, quanto mais sermos
os donos dele!
- Chiii....! – fez Calunga com cara de tédio.
-Chi, o quê? – perguntou Rosinha, piscando vivamente.
- Nada..., nada! É que..., bem esse Sabe-Tudo, é um bocado complicado né?
- Ele é filósofo, já disse isso. Ele fala assim mesmo, só para deixar a gente
pensando.
Calunga refletiu. Em seguida voltou a encarar o rosto pálido de Rosinha.
- Sabe de uma coisa, Rosinha, eu tive pensando noutro dia do que você me
contou desse tal Sabe-Tudo e daquela roseira, a...,a...
- Áurea! – acudiu-a Rosinha
- É, dessa aí! É que..., eu também conheço duas pessoa que diz coisa parecida.
Um é o Príncipe, que mora com a gente. Ele vive sonhando. De vez em quando diz
umas coisa estranha; o outro é o Gregório, meu pai de criação, que fala coisa difícil,
mas só sobre a miséria. Só que eles não é árvore, é gente de carne e osso como
nós!
Rosinha, comovida, não percebeu a proposital mensagem de Calunga.
- Quer dizer que eles também falam coisas para você pensar? - excitou-se pela
provável coincidência.
- Pra dizer a verdade eu nem ligo quando eles começa a abrir a boca falando e
falando. Quem aguenta eles é a Janú!
- Janú?
- Minha mãe de criação, ela se chama mesmo é Januária, mas todo mundo
chama ela de Janú!
- Eu também não tenho mãe – falou Rosinha com naturalidade – quem me criou
foi a Luiza..., aquela que me chamou da outra vez, lembra-se?
- Eu não cheguei a ver ela. Eu pulei fora da ameixeira, corri lá pra aquele
telhado de maracujá, subi nele e me mandei por cima do muro!
- Como é que você consegue pular para fora de um muro tão alto, ninguém até
hoje conseguiu?
Ela riu e olhou para trás, apontando para baixo:
- É que um tronco de árvore despencou e encostou no muro. Eu aproveito e
subo nele até aqui, então agarro aqui em cima e pulo. Ainda bem que desse lado
não tem caco de vidro senão eu não ia conseguir!
- Ah...! – fez Rosinha entendendo.
Com habitual agilidade ela pôs-se de pé, andando dois passos sobre a estreita
borda do muro, agachando-se e se lançando para baixo. Seu corpo foi descendo, a
cabeça desapareceu, e finalmente as mãos. Respirando aliviada Rosinha gritou
mais energicamente com os cães que ainda insistiam em latir. Então tomou uma
pêra caída, e a lançou para longe, provocando-lhes correrias naquela direção.
* * *
Dia seguinte, Rosinha foi ao fundo do bosque onde existia o galpão. Abriu a
porta e adentrou. Estava escuro e nada conseguia divisar resolvendo acender a luz,
encostando a porta a fim de não ser vista. Um forte cheiro recendia – era mistura de
mofo com suores das roupas dos homens, exalação de inseticidas, de vitaminas
para a terra, de ração dos cães e de outros produtos químicos usados na
conservação da propriedade. O comprido e amplo galpão guardava, além daquelas
coisas, muitos caixotes, sacos, galões, baldes, ferramentas, carrinhos de mão,
serras e diversos outros acessórios. Rosinha lançou olhar em derredor e
caminhando entre prateleiras desviava-se de recipientes no chão. Adiante enxergou
na parede o que procurava: duas coleiras e respectivas correias. Arrastou até ali um
banco de madeira e subiu nele, esticando o braço para alcançar os objetos
dependurados em pregos. A seguir, ficou a remexer pelos cantos, terminando essa
segunda busca próximo da janela, de onde levantou sacos de estopa que encobriam
pequena pilha de cestos de fibra, escolhendo um deles, e correu para o pomar. Uma
vez lá, foi em direção ao capinzal, escondendo o cesto nos seus entremeios, indo
para os lados do muro.
Tendo realizado essas coisas, sentia-se mais leve. Seria incômodo ser
surpreendida com o cesto e precisar outra vez mentir. Felizmente nada disso
acontecera e agora caminhava junto ao muro, ao envolvimento azul de seu vestido,
ao afago da aragem amiga, sob a aclamação dos trinares de pássaros e zunidos
festejantes de besouros e outros insetos aéreos.
Caminhando mais uma vez pela trilha marginal ao muro chamou pela ausente
visita, mas desiludida veio para o interior do pomar aproximando-se de Sabe-Tudo.
Ao parar diante dele, tomou-a a vertigem que já conhecia, que logo em seguida a
deixava imersa num indizível bem estar.
- Sabe-Tudo, por que as pessoas são diferentes?
“As razões estão nas necessidades. O que lhe causa estranheza minha
menina?”
- A riqueza e a pobreza. Marga me disse que a pobreza é castigo de Deus. Por
que Deus castiga?
“Cada um pensa o que quer. Eu penso que Deus jamais castiga, são os homens
que se castigam e levam com sua ignorância a miséria a outros!”
- E por que os homens não fazem o certo para não acontecer essas coisas?
“As trevas do pensamento endurecem corações e cegam a visão clara. Se
assim muitos querem assim serão. Quem sofre pelos erros alheios mais adiante
será recompensado.”
- Como, Sabe-Tudo?
“Vidas após vidas são necessárias para ajustes e acertos. Faz parte da
evolução humana sofrer e aprender. Ao final de tudo, o sofrimento aproxima das
realizações verdadeiras”
- O que são realizações verdadeiras?
“Primeiro de tudo é o saber. É existir com a visão clara, bem ao contrário de
conviver com as trevas. É fazer pelo bem dos demais sem esperar recompensas. É
amar para apagar os erros. É perdoar para avançar. É construir com inteligência. É
ser livre de todos os preconceitos. É jogar as âncoras dos pensamentos imperfeitos
e obscuros para o fundo do mar da ignorância e lá deixá-las”
- Não entendi nada Sabe-Tudo!
“Vai entender, Rosinha, cada dia aprenderá mais um pouco onde quer que
esteja, porque não são meras palavras!”
Pouco depois ela voltava junto ao muro. Como nada visse sentou-se por ali,
sobre um diminuto colchão de folhas por ela mesmo arranjado, encostando-se e
esticando as pernas. Ao longe, entre dois limoeiros, Sansão e Hércules brincavam
pulando um sobre o outro, mordendo-se e rosnando. Seu olhar um tanto distendido
oscilava dos cães para os brilhosos sapatos. Movia os olhos maquinalmente, às
vezes acompanhando os sulcos de suas brancas meias. Não pensava em nada
somente deslizava o olhar. Pouco durou aquilo por que súbito estremecimento
sacudiu-a:
- Rosinha!
Ela pôs-se de pé sorridente, embelezando mais ainda o rostinho angelical.
- Eu demorei um pouco, não foi? É que passei na escola pra ver como ia as
coisa e me distraí – Calunga falava e caminhava sobre o muro com relativo cuidado,
vindo sentar-se diante da outra, jogando as pernas para o lado de dentro, ajeitando
o vestido vermelho berrante, procurando inutilmente compor-se.
- Não faz mal, Calunga, o importante é que você veio. Olhe, aguarde aí só um
pouco que eu vou prender o Hércules e o Sansão lá no fundo do pomar para eles
não lhe ver.
* * *
A TENTAÇÃO DE ROSINHA
Os dias que se seguiram foram de certa forma rotineiros para Rosinha. A coisa
mais importante em sua vida passou a ser a amizade com Calunga que começava a
criar raízes. A cada encontro uma descobria na outra uma nova face. Rosinha
chocava-se com algumas narrativas de Calunga; suas resoluções e peripécias.
Achava-a, em ocasiões, excessivamente violenta e vingativa, e, como já antes
acontecido, temia-a. Mas como ela lhe dedicasse atenção e a apreciasse,
interessando-se por seus problemas, mesmo encontrando neles uma natureza irreal
e fantástica, Rosinha tranquilizava-se, vendo confirmarem-se os verdadeiros
sentimentos de estima e atração que Calunga lhe endereçava. Não saberia analisar
as profundezas dos conflitos dela, mas conseguia senti-los e isso representava-lhe
uma soma de contrastes e indefinições, coisas ao mesmo tempo sinceras e
sagazes, espontâneas e tempestuosas. Essa massa informe ao seu entendimento, a
inteligência inata dela, a esperteza, a vibração de vida e o permanente desejo de
desafiar o mundo, criavam torvelinhos e trepidações em sua imaginação, atiçando
mais ainda sua igual fome de experiências além muros!
Não era sem razão que às noites sonhava com Calunga, vendo-se a correr
pelas ruas da cidade, a conhecer lugares, a visitar escolas! Era extraordinária aquela
sensação de liberdade, de traquinar e decidir. Como se fora na vida real, via-se nas
cenas a observar-lhe as reações, a condená-la intimamente quando brigava, mas de
novo satisfeita e feliz quando tomavam novos caminhos.
Calunga, por seu turno, ao voltar regularmente, vinha atraída pela amizade
sincera e leal que, em troca, Rosinha igualmente depositava-lhe. Os incríveis amigos
dela, as histórias que lhe eram contadas, a docilidade, o jeito de ser, a generosa
distribuição das frutas, e sua surpreendente ingenuidade, todas essas coisas
tocavam-na de maneira a provocar-lhe crescente curiosidade pelas coisas de seu
mundo misterioso e profundo. A prisão domiciliar, cruel e desumana, revoltava-a ela
própria, inadaptável por natureza. Além disto, vivia a inquirir-se: como é que podia
uma menina assim sem nenhuma distração fora desse lugar, sem conhecer
praticamente nada lá do mundo, saber falar tantas coisas complicadas? Se ela fosse
igual àquelas que usavam óculos grossos, desajeitadas no andar, que não falavam
com ninguém a não ser com seus livros, vá lá! Mas não, Rosinha era diferente, era
delicada, atenciosa, bonita, cheia de vontades como tantas de sua idade e até mais,
para dizer a verdade. Hummm..., será que aprendia mesmo daquele tal pessegueiro
e da roseira?
* * *
Três meses se passaram. Nesses últimos dias chovera muito. Depois veio uma
garoa intermitente e com ela um vento frio que costumava assobiar pelos cantos da
mansão. Montes de folhas acumulavam pelo bosque e pomar esvaziando as
árvores. Os homens se lançavam sobre elas a fim de retirá-las da propriedade. Mas
as manobras eram ingratas por que o vento as espalhava com rapidez e isso lhes
demandava desembaraço em amontoá-las organizadamente, e por diversas vezes
eles perdiam nesse jogo. A garoa também atrapalhava, mais o frio, e tinham de
parar em certos momentos porque a garoa se transformava em breve chuva.
Uma tosse seca e nervosa viera acossá-la; ela gemia e lacrimejava, sentindo
faltar-lhe o ar, emitindo chiados no peito, necessitando ingestões nebulizadoras que
Luiza aplicava-lhe ou à bombinha broncodilatadora. O termômetro subia e descia.
Almeida já a levara à clínica indicada pelo médico a fim de tirar radiografias e fazer
novos exames, mas felizmente nada de mais grave se constatara. No entanto, seu
estado não se estabilizava e devido a essa incômoda situação o médico
estabelecera o limite de mais vinte e quatro horas para que o quadro começasse a
mudar. Não havendo indícios de melhoras, aconselharia a internação.
Nesse comenos o céu limpou. O sol veio bater à vidraça do seu quarto,
chamando-a para a saúde! O calor brando já aquecia o frio prematuro e o tempo
mudava. Concomitante ao aparecimento do sol, à fuga do vento e ao aquecimento
atmosférico, a febre de Rosinha descera em definitivo voltando sua temperatura à
normalidade. A tosse diminuíra consideravelmente e ela não mais teve falta de ar!
Todos respiraram aliviados, e passadas as vinte e quatro horas ela mergulhara em
calmaria. Manhã seguinte, sentava-se apoiada na cabeceira da cama e comia, ainda
que relutantemente, sendo à tarde visitada e consultada pelo médico. Com
satisfação, dois dias depois ele declarava que as crises tinham sido vencidas, ela
reagira e se recuperava, mas todos os cuidados dali para diante seriam necessários.
Aconselhou alimentação especial, prescrevendo-lhe vitaminas e complementos
alimentares e oportunamente requisitaria exames gerais e completos.
Rosinha já caminhava pela mansão, mas como o tempo outra vez bruscasse ela
teve o pedido de sair negado, sendo obrigada a obedecer. Amuada, ensimesmou-
se. À noite, perto das oito horas, tendo permanecido por pouco tempo a assistir
televisão com Luiza, enjoada daquilo, veio para o quarto e deitou-se encostando a
cabeça no travesseiro, abraçada a uma boneca. Luiza, pouco depois, surgiria à
porta e ao vê-la deitada com aspecto desalentador, aproximou-se levando a mão à
sua testa. Nada sentindo de febre tranquilizou-se, beijando-a e a deixando.
Antes mesmo de Rosinha protestar, ela rodopiava nos calcanhares e saía lépida
por entre as árvores, desaparecendo dentro da escuridão naquele vestido vermelho.
Rosinha, atônita, mirava ainda as brumas e ao acusar uma aragem mais fria, cerrou
a vidraça, recolhendo-se à cama. Fora tudo tão súbito que nem parecia ter
acontecido.
Dia seguinte foi a repetição do dia anterior e Rosinha nada pode fazer a não ser
descansar. Ainda sentia-se fraca, apesar de desejar demonstrar o contrário, e teve
novamente negada sua intenção de sair. A temperatura não mudara, nem o
panorama do céu. Não chovera, mas um vento começou a soprar com maior
constância. Rosinha, ociosa, tinha todo o tempo para pensar e lembrava a todo
instante do inusitado encontro a noite, admirando-se mais uma vez da audácia de
Calunga.
* * *
Ela jogou a chave sobre as moedas refazendo o laço, mas amarrando a trouxa
num dos ombros, no que foi ajudada por Rosinha e escalou a coluna, ganhando o
muro e desaparecendo. Rosinha correu à amoreira e soltou os cães, voltando às
proximidades do muro.
O céu ficara mais carregado. Era quase certo logo chover. E acontecendo era
também quase certo a temperatura desabar, tendo ela de permanecer dentro da
mansão por algum tempo. Se Calunga não se apressasse, a chuva chegaria antes
dela e não estaria mais aqui para recebê-la. Um sopro quase frio do inconstante
vento provocou-lhe arrepio e lembrou-se de que prometera a amiga o agasalho.
Sem delongas, correu para o interior do pomar, avançando em direção do portão,
cruzando-o rapidamente. Seguindo em correria, ganhou o pátio e estancou diante da
casa, entrando nela cautelosamente. No corredor, cuidou de não fazer ruídos. Era-
lhe desagradável andar quando precisava correr. Entretanto, ao passar diante do
pórtico da sala ouviu Luiza recomendar:
- Rosinha, não sai mais, vai chover!
Irritada, não respondeu, pretendendo não tê-la ouvido. A voz de Luiza, contudo,
ressoou novamente, desta feita mais imperativa:
- Ouviu, Rosinha, não saia agora! Eu ia mesmo procurá-la!
* * *
Naquela tarde, não podendo sair, e nem no dia seguinte, por que ainda chovia e
fazia muito frio, Rosinha andara toda agasalhada para não adoecer. No terceiro dia,
o céu se abriu já de manhã e o sol se apresentou, começando a secar a terra,
trazendo alegria. Aquela manhã foi terrível para Rosinha a olhar a cara gorda de
Marga, enquanto lá fora a beleza voltava. Depois do almoço nova angústia. Marga
deixara-lhe muitas tarefas, como vinha fazendo nesses dois últimos dias,
provavelmente por vingança às provocações; assim era preciso primeiro se
despachar em definitivo com as lições para depois traquinar livremente.
Uma onda, qual nuvem, desceu a cobri-la e no mesmo instante seus conflitos
começaram a perder força. Uma crescente sensação de coragem e um desejo
ardente de conhecer vieram tomá-la. Desobedecer! Desobedecer! Já não lhe soava
como um pecado, uma desobediência incomum, porém, como um mero desafio, um
direito a conquistar! Movida por aquele estranho e novo alento, ela correu e entrou
no quarto tomando a chave.
- Agora eu vou lá no portão lhe esperar. Não se esqueça de soltar os vira-lata
senão os outro pode desconfiar! – alertou-a Calunga enquanto já descia, pulando
fora da propriedade.
Rosinha fez que sim automaticamente, fora providencial a lembrança. Na
verdade, nem lhe ocorrera esse detalhe, carregava somente uma agitação
extraordinária e tudo mais parecia-lhe de menor importância.
Mudaram de direção tomando outra rua. Pularam uma valeta em cujo interior
corria esgoto, penetrando por um terreno baldio e andaram sobre fino e sinuoso
caminho que rasgava capins rasteiros, saindo numa área ampla e descampada onde
poucas casas eram vistas à distância. Seguiram por trecho de terra preta e macia
onde suas pegadas se calcavam, atingindo uma ponte sobre águas barrentas de um
rio de relativo volume. Rosinha julgou que a cruzariam, mas Calunga apontou para
baixo deixando a estrada. Rosinha parou a observá-la enquanto ela dava os
primeiros passos no declive, num estreito caminho margeado de touceiras. Calunga
fez-lhe sinal com a mão aberta e ela, hesitante, temendo escorregar, a seguiu com
excessivo cuidado. Forte cheiro de carne a ser cozida e tênue faixa de fumaça
deslizando em sua direção fizeram-na olhar atentamente para sob a ponte, e ela viu
mais adiante uma panela de barro apoiada sobre tijolos empilhados. O fogo ardia
entre os tijolos consumindo pequena tora e lascas de madeira que estalavam,
enquanto da panela escapavam filetes de espuma ante um ou outro requebro da fina
e amassada tampa de alumínio.
Saindo daquela área surge repentinamente uma mulher alta e esbelta, também
maltrapilha, de trinta e cinco anos mais ou menos, que ao vê-las arregala os olhos
não conseguindo disfarçar a surpresa. Rosinha identificava-os a todos pelas
descrições feitas por Calunga, porém, qual a anfitriã, permanece imóvel. Foi
Gregório, com o mesmo sorriso simpático e voz pausada e sonora, quem veio trazer
outra vida aquele quadro e as boas vindas à inesperada visitante:
- Seja bem-vinda minha filha a casa é pobre, porém acolhedora. Venha,
aproxime-se!
Rosinha, timidamente, com acentuada palidez, novamente hesitou, embora a
voz cordial de Gregório houvesse-lhe agradado. Calunga permanecia sem iniciativa
em atitude completamente estranha à sua natureza dinâmica, e não esboçou
qualquer movimento. Gregório, percebendo a hesitação da criança, continuou:
-Você deve ser a Rosinha. Não se impressione com nossa miséria, nem com
nada daqui e não tenha medo. Faz tempo que desejávamos conhecê-la. Calunga
fala todos os dias em você. Venha, não fique aí parada!
Os olhares dos três nesse instante se fixaram no vestido azul de Rosinha. Eles
estranhamente olhavam seu vestido e contemplavam seu rostinho. Príncipe logo a
imaginou uma miragem, um anjo descido dos céus feito criança, porém guardou
para si essas figuras poéticas. Calunga, emergindo da estática, reassumiu em parte
a vivacidade, apressando-se em apontar para Gregório:
- Esse aqui é...
- Gregório, seu criado – adiantou-se tomando as rédeas das apresentações,
apontando para os outros – aquela é Janú, minha mulher, e esse aqui é o Príncipe!
Rosinha ainda presa às reações iniciais conseguiu dizer com graça e timidez:
- Muito prazer!
- Eu trouxe ela por que ela queria conhecer vocês – explicou Calunga
apelativamente.
- Você queria conhecer-nos? – retomou Gregório e sem esperar pela resposta
prosseguiu – Nós também desejávamos conhecê-la. Aliás, já a conhecíamos um
pouco por Calunga, como lhe disse. Esteja à vontade, quero dizer, se lhe for
possível, pois não deve estar acostumada a ver misérias!
- Eu também já conheço vocês um pouco – falou Rosinha mais solta, ignorando
a observação do outro – Calunga já me falou de vocês.
- E não sentiu repugnância pela miséria? – perguntou Gregório.
- O quê? – ela franziu o cenho.
- Nojo pela miséria! – explicou-lhe melhor.
- Não senhor. Além do mais Sabe-Tudo me disse que o homem não vale pelo
que veste, porque ricos e pobres vestem-se, afinal, de trapos. A veste verdadeira do
homem é tecida pelos seus atos. Assim, ele se tornará verdadeiramente rico entre
ricos ou pobre entre pobres!
Nesse instante a madeira que ardia estalou. Rosinha assustou-se olhando para
trás.
- É do fogo, não tenha medo! – falou Janú, com voz meio rouca, sorrindo e
mostrando a falta de dentes em ambas as dentaduras.
- Eu bem que achei no sonho que hoje íamos ter novidades – falou Príncipe
olhando para adiante.
- Que novidade qual o quê, você vive pra sonhar! – retrucou Janú, em seguida
convidando Rosinha – Venha, minha filha, procure um canto e sente-se, não fique aí
em pé!
Rosinha olhou em derredor e não viu nenhum assento.
- Aguenta aí, Rosinha, vou arranjar alguma coisa pra você sentar – disse
Calunga, trazendo três tijolos largos, forrando-os com uma folha de papel verde.
Ante o sinal convidativo ela foi e sentou-se, ficando de costas para o rio, de frente
para a panela e de lado para Príncipe e Gregório, entre Janú e Calunga.
- O cesto de fruta que você mandou chegou na horinha naquela vez. Nós não
tinha arranjado nadinha pra comer naquele dia – reiniciou Janú indo para o lado de
Gregório e sentando-se. Calunga aproveitou e sentou-se também. Rosinha
esforçou-se para se lembrar da ocasião, mas admitiu que se tratasse da primeira
vez que isso acontecera.
- E o vestido e mais o agasalho que você deu pra ela, serviu tudo direitinho! –
prosseguiu, encostando a cabeça na sapata de concreto.
- Foi um sonho maravilhoso! – suspirou Príncipe com olhos enlevados, alheio a
tudo o que dissera Janú. Rosinha virou-se olhando-o no rosto, notando agora sua
delicadeza de traços e formas.
- Não repare, Rosinha, ele é assim mesmo que eu contei pra você! – cochichou
Calunga, alertando-a. Rosinha, no entanto, interessada no sonho, nem precisou
esperar por que Príncipe foi logo narrando com olhos ainda perdidos no vazio.
Nesse instante, porém, Rosinha percebia-lhe uma luz branca a tomar-lhe o rosto e
algo de azul a envolver-lhe o corpo magro.
- Saíamos todos do castelo. A ponte elevadiça lentamente retornava e o povo
acenava. A caçada seria um sucesso sem dúvida. Meu fogoso cavalo branco luzia e
os arreios dourados rebrilhavam aos raios do sol. Minhas vestes eram as mais
belas, com adereços em ouro e prata, e do meu chapéu pendia magnífica pluma que
eu mandara meu lacaio retirar de rara ave oriental em cativeiro, presenteada ao rei
por um mandarim chinês. Dois escudeiros seguiam rijos pelos flancos brandindo as
longas lanças cujas extremidades pareciam querer riscar o céu. E lá ia minha
comitiva, com damas e servos, convidados e cavaleiros. Os cães, adiante, latiam e
se excitavam presos por fortes correias, seguros pelas mãos dos experientes
batedores. Eram mais ou menos uma dúzia.
Um cantor começou a entoar uma canção em meu louvor, tocando a viola,
realçando minha beleza, meu gosto pela opulência, pelas belas mulheres e
excelentes festas. Era grande a graça daqueles que tinham a sorte de serem meus
amigos ou protegidos. Isso era amplamente demonstrado nesse instante, quando o
rei, meu pai, ausentara-se para tratar de negócios com o governador de outras
distantes províncias do reino. O rei tinha prazer nos negócios e gostava de tudo
administrar enquanto eu apreciava a melhor parte: as festas e diversões!
E a comitiva ia seguindo sob um sol que me vinha reverenciar e aos meus
caminhos iluminar. A poesia enchia os campos e bosques, tornando-os mais
alegres, os aldeões paravam seus labores para nos saudar, por que o seu futuro rei
e senhor os honravam com sua presença, respirando do mesmo ar. De repente, os
cães começaram a latir furiosamente, quase arrastando pelo chão os batedores que
à minha ordem os soltaram. Furiosos, lançaram-se floresta adentro, seguidos dos
batedores, de mais dois homens montados e de um de meus escudeiros. Uma
segunda parte da comitiva de caça seguiu logo atrás, ficando um terceiro bloco com
mulheres e adolescentes a aguardar, e embrenhamo-nos pela floresta. “Por aqui
Vossa Alteza!” gritava o escudeiro que havia seguido adiante e voltava para me
conduzir.
Os latidos estavam agora muito próximos, com toda a certeza os cães haviam
encontrado uma bela caça. Sem dúvida, poucos metros adiante, encurralado entre
os cães e um barranco, um magnífico veado se defendia dando marradas e
mantendo-os à distância como podia. Aproximei-me e o escudeiro estendeu-me um
arco e uma flecha. Era a honra real de atirar primeiro. Segurei o arco, enfiei a flecha
e retesei-o ao máximo, fazendo pontaria na caça. Porém, no justo instante em que ia
soltar a flecha, uma menina graciosa, envolta em vestes azuis, surgiu ao meu lado,
vindo não se sabe de onde e falou:
- Para que matar o pobre do bicho, Príncipe! - falou Rosinha interrompendo a
narrativa.
Príncipe estremeceu, abrindo bem os belos olhos verdes e mirou-a aparvalhado.
- Foi exatamente o que...ela falou. Mas como você sabe?
- Adivinhei, só isso! – respondeu Rosinha, encolhendo os ombros com graça –
Príncipe continuava a olhá-la com cara atoleimada e Rosinha perguntou – e o que
aconteceu depois?
- Ela..., eu folguei o arco olhando-a surpreso e ela sorriu mostrando-me
seus....olhos...azuis – ele olhou-a nos olhos notando a coincidência – então, quando
eu ia perguntar quem era ela e por que aquela ousadia, ela falou de novo: “Não o
mate, Príncipe, ele não lhe fez mal algum!” “Quem é você?”, perguntei-lhe
finalmente, sentindo a essa altura as coisas começarem a nublar, percebendo
unicamente um borrão azul de suas vestes, ouvindo sua voz que aos poucos se
apagava e dizia: “Uma velha amiga, breve nos veremos!”. E acordei estremecendo.
- Outro sonho sem pé nem cabeça! – comentou Janú trazendo todas as
atenções para ela, exceto do Príncipe.
- Mas foi bonito, Janú – defendeu-o Rosinha.
Príncipe não se incomodava nem um pouco acerca das opiniões e olhava
fixamente Rosinha tentando entender como ela fora parar no seu sonho!
- É a única coisa que o pobre faz sem se humilhar ou ter de pedir licença –
falou Gregório, metendo a mão no bolso e retirando um cigarro de palha,
desamassando-o e passando-lhe a língua.
- O que seu Gregório? – perguntou Rosinha.
- Sonhar, minha filha, sonhar! – enfatizou, levantando-se, indo até o fogo
acender o cigarro, dando duas baforadas e voltando ao mesmo lugar. Rosinha
reparou como ele era alto e como realizara aqueles movimentos com elasticidade.
Ele continuou – Mendigos como nós não são gente, são mendigos. Nascem assim e
morrem assim. Para tudo precisam pedir, rastejar. Hoje comem, amanhã não.
Adoecem, mas não morrem, só mesmo quando o diabo chama, caso contrário vão
ficando por aí, como lixo que apodrece até não sobrar mais nada. Não têm direito de
frequentar lugares públicos, nem bares, nada, nem mesmo andar normalmente
pelas ruas sem causar aversão às pessoas. São indesejáveis mesmo estando
limpos e de banho tomado; as pessoas têm asco, viram os rostos, cospem no chão.
Não, mendigos não são gente, são mendigos!
Uma ponta de tristeza veio nublar o espontâneo brilho dos olhos da criança e
ela buscou o que dizer para consolá-lo:
- Áurea falou que todos nós temos valor ante os olhos de quem enxerga a
beleza. Corações fechados, olhos vendados. Quem somente vê a beleza das formas
e de trapos coloridos, nada vê de fato. Quem atravessa as formas com o olhar e
pressente a alma das coisas, enxerga a beleza verdadeira.
Príncipe agora prestava atenção no que dizia Rosinha, o mesmo fazendo Janú
e Calunga. Gregório levava o cigarro aos lábios deixando passar entre eles irônico
sorriso, murmurando imperceptivelmente:
- Onde estarão essas pessoas que sabem ver a alma das coisas?
Rosinha entrou com todo o cuidado e trancou o portão. Não havia ninguém à
vista e andou até as proximidades de uma árvore de casca áspera, metendo a mão
no bolso, trazendo a chave e a enfiando no pequeno buraco do tronco, rente ao
chão. Muitas vezes ali guardara pequenos objetos em suas brincadeiras de faz-de-
conta, na solidão de seu mundo. Nem tinha alcançado a via principal do bosque
Luiza surgiu de um dos lados.
- Rosinha!
Ela sobressaltou-se sentindo súbito tremor.
- Que é Luiza!
- Você não me ouviu chamar? Até passou da hora do lanche!
- Ah! – suspirou aliviada – Não ouvi nada, mas já estou indo!
* * *
Rosinha teve sono ininterrupto, embora acordasse pelas seis da manhã com a
mesma febre. Luiza, pela madrugada, controlara seu estado febril, vindo três vezes
tomar-lhe a temperatura que se mantivera igual. Nessa manhã, deu-lhe novo
comprimido e anunciou-lhe o cancelamento das aulas. Rosinha exultou, mas logo se
entristeceu porque o pai lhe faria novas e severas recomendações de permanência
dentro de casa, que ela foi obrigada a assentir com a cabeça demonstrando ter
entendido.
Pelas onze horas Rosinha se levantou; a sensação de mal estar não a deixara.
Não demorou, Luiza veio encontrá-la próximo à janela e verificou-lhe as condições
físicas. Rosinha tentava desviar as atenções procurando animar-se, dizendo-se boa
e nada mais estar sentindo. A dissimulação em parte surtiu efeito e a governanta
deixou-a para atender outras tarefas.
Tão logo almoçou, procurando forçar o apetite, ainda em seu trabalho
dissimulatório, anunciou que iria para o seu quarto. Luiza continuou sentada e
somente a acompanhou com o olhar. Rosinha foi de fato para o quarto, sentando-se
no chão apoiando as costas na cama. Estava impaciente, quase não aguentava ali
permanecer, imaginando que a essa altura eles lá estivessem aguardando-a. A fim
de melhor disfarçar, lançou mão de uma revista em quadrinhos, de sob a cama,
pondo-se a folheá-la fingindo lê-la. Como demorava essa Luiza! Finalmente,
pressentindo-lhe os passos, não descolou os olhos da revista. Luiza parou diante da
porta, mas Rosinha pretendeu estar concentrada na leitura, permanecendo imóvel.
Ela se foi e Rosinha suspirou aliviada, jogando a revista de volta para debaixo da
cama, levantando-se. Agora sim, realizaria a fuga, desse no que desse!
ROSINHA EM PERIGO!
Três dias se passaram, não chovera e o sol agora voltava pleno. O frio ainda
permanecia, mas na medida das horas um calor gostoso obrigava todos a se irem
livrando dos agasalhos. Rosinha se recuperava quase completamente e não mais
sentia aquele mal estar. Já voltara a estudar com Marga e após o almoço, mesmo
antes dos deveres de casa, saíra a passear pelo bosque e pomar, embora com
agasalho fino.
Dia seguinte, sem qualquer sombra de mau tempo, resolvida a sair novamente,
Rosinha tomou a chave e foi ao portão batendo três vezes. Não obtendo resposta,
decidida, enfiou a chave na fechadura e corajosamente se evadiu. Lá fora, tomou a
direção que sempre tomava ao lado de Calunga, e em certo instante desejando
passear pelas redondezas enveredou por outro lado. Ao cabo de algum tempo,
havia entrado e saído por três ruas, parado e conversado com crianças e entrado
numa casa para tomar um copo d’água. Estava solta e feliz, pensando alçar voo um
dia para muito além, a outros lugares, a novas situações!
Mais tarde, Gregório e Calunga a levaram para casa, não vendo sinal dos dois
homens. Rosinha, no entanto, carregava a incômoda sensação de que a vigiavam
de longe.
* * *
Dois dias depois Rosinha voltava a visitar a família de Calunga, levando coisas
e a alegrando. Em meio às conversas, Príncipe referiu-se à história contada no
portão da escola, que Calunga havia comentado, desejando escutá-la. Rosinha
fixou-se em seus verdes e sonhadores olhos, propondo-lhe algo diferente:
- Áurea contou-me outra história interessante, não prefere ouvi-la? Ele meneou
afirmativamente com a cabeça e mediante seu acolhimento e atenção de todos, ela
iniciou: - Havia um castelo e um príncipe muito belo e formoso. Era inteligente e
sonhador e um dia seria coroado o rei daquele país. Embora inteligente e de alma
sensível, nada queria com as responsabilidades, apreciando muito mais as festas e
os namoros com as moças bonitas. Tinha dezenas de namoradas dentre a nobreza
e fora dela, e de longe as moças vinham ao castelo sob pretexto qualquer, somente
para vê-lo e dele se enamorarem.
O rei, homem prático e ambicioso, gostava de negociar e acumular ouro, pouco
se importando com as necessidades do povo, impondo-lhes sempre taxas e tributos,
aumentando sua riqueza, mas também a pobreza do povo. A rainha pouco se
incomodava com isso, vivendo rodeada de damas da corte em seus encontros,
distrações e comemorações. Quando o rei se ausentava do castelo nas inúmeras
viagens pelo país, deixava o príncipe com a responsabilidade de dividir com a rainha
o governo, mas a rainha continuava com nada se importar e o príncipe se entregava
às dispendiosas caçadas e noitadas. Dava festas e mais festas, gastava ouro,
presenteava regiamente aos convidados que bebiam, dançavam e namoravam até o
sol nascer! A rainha participava das festas até certa hora; depois se retirava, fingindo
nada perceber dos exageros do filho.
O rei ao retornar com os baús cheios de mais ouro e contratos com as
províncias, condados e ducados para fornecer víveres ao palácio e pagar à realeza
altos percentuais sobre o que o país exportava, era sempre informado pelos
mexeriqueiros sobre as festas e caçadas do príncipe. Ficava furioso e corria aos
cofres para ver quanto de sua riqueza houvera escapulido, porém nada fazia para
castigá-lo porque o amava muito e à rainha.
O tempo ia passando e os exageros da família real chegaram a tal ponto que o
povo não suportando mais aquela situação se revoltou. A revolta fora manipulada e
dirigida por outros nobres não satisfeitos com as cobranças que o rei lhes impusera.
Como resultado, o rei e toda a realeza foram executados e suas almas levadas ao
Tribunal Celeste para serem julgadas de fato e de direito. Lá em cima, o Tribunal
mostrou aos três todas as suas faltas e abusos, provando-lhes que muito tiveram às
mãos e nada de útil tinham feito em favor do povo com quem haviam se
comprometido há dezenas de anos atrás, antes de descerem a esse mundo. Como
corretivo, o Tribunal Celeste obrigou-os a renascer no mesmo mundo, nas piores
condições, a fim de que sentissem na própria carne o mal que haviam cometido a
muitas famílias e expurgassem os venenos da usura e egoísmo. Por duas vezes, o
rei, a rainha e o príncipe se reencontraram sem saber por que passavam por
aquelas aflições materiais, porém na terceira e última vez dos reencontros, seus
sonhos e intuições mostraram-lhes o que provocara aquela situação presente. Uma
esperança tênue, mas constante, vinha dizer-lhes que aquilo estaria prestes a
acabar e tão logo uma mensageira chegasse-lhes, essa presença serviria para
confirmar-lhes que o fim das dores estaria próximo, bastando que completassem
seus dias na Terra. E a mensageira veio e eles a reconheceram!
Uma delas abriu o portão e se aproximou sorrindo. Rosinha deu um passo atrás,
embora segura pelo guarda, piscando timidamente. Calunga começou a fazer
trejeitos com o nariz e boca. A professora, jovem e bonita, olhou Rosinha
curiosamente, estudando-a da cabeça aos pés.
- Então você é a Rosinha de quem tantos falam?
Ela baixou o rostinho segurando as mãos atrás e não respondeu. Calunga,
vendo o embaraço da amiga, falou prontamente:
- É ela sim, dona, e é minha amiga!
Três outras professoras chegaram nesse instante e as rodearam. A primeira
continuou com delicadeza:
- Aquela história que contou para eles, onde foi que aprendeu?
- Foi a Áurea – respondeu com os olhos ainda pregados no chão.
- Áurea, quem é?
- É...
- Uma amiga dela, ora! – atalhou Calunga.
- Uma amiga, Rosinha?
- É sim senhora.
- Ela conta-lhe muitas histórias?
Rosinha confirmou com a cabeça.
- Como é ela?
- Ela..., ela...
- Poxa, que chatura! Ela já disse que é uma amiga, pra que ficar aí enchendo à
toa! – irritou-se Calunga.
- Quieta, Calunga! – repreendeu-a o guarda - deixe a professora perguntar ela
sabe o que está fazendo!
- Então, Rosinha, diga-nos como é essa Áurea, o que ela faz além de contar
histórias?
Rosinha pretendeu calar-se, nada mais falar. Afinal, ninguém poderia obrigá-la a
dizer o que não devia. Entretanto, a voz mais que conhecida falou-lhe aos ouvidos:
“Conte-lhes, Rosinha, diga-lhes quem eu sou!”
- Áurea! – exclamou a criança, levantando subitamente o rosto, procurando em
derredor, porém nada vendo, além de rostos estranhos.
- Sim, Áurea! – repetiu a professora.
- Ela...,é uma roseira! – falou decidida.
Houve espanto, e após segundos a professora recomeçou;
- Mas, Rosinha, roseiras não falam, elas dão rosas tão somente!
- Áurea fala, sim senhora, e me conta histórias belas ensinando sobre o amor!
As professoras, atônitas, entreolharam-se, voltando a fixar-se no rostinho pálido
e gracioso da criança. Uma delas, lembrando-se de algo mais, perguntou:
- E esse tal Sabe-Tudo, é uma roseira também?
Rosinha calou-se e dessa vez foi Sabe-Tudo quem lhe falou:
“Pode contar-lhes também, minha menina, eu deixo!”
- Sabe-Tudo é um pessegueiro! – respondeu com a mesma convicção.
- Um pessegueiro? – de novo o espanto geral e elas agora acreditavam que
Rosinha não seria uma criança comum.
- Pessegueiros também não falam, Rosinha – insistia a professora.
- Sabe-Tudo fala, ele é filósofo!
- E o que ele ensina? – outra professora perguntou.
- Coisas da vida.
- Conte-nos algumas!
Rosinha passou a dizer-lhes dos assuntos conversado com Sabe-Tudo. As
professoras ao sentirem a seriedade deles, mandaram os alunos embora, ficando ali
com as duas crianças e o guarda Félix, que as tinha largado e se afastara. Depois
falaram de Áurea. Rosinha contou-lhes uma rápida história. O sinal havia tocado e
os alunos se recolhido. A diretora veio correndo para saber por que as professoras
não haviam voltado para as salas de aulas e entrou na roda de curiosidade,
perguntando também. Finalmente, quiseram saber de sua vida, mas sobre isso ela
pouco falou, dizendo em certo instante:
- Minha única amiga fora de casa é Calunga, eu somente saio com ela.
Calunga riu e fez caretas para a diretora que a desaprovava. Como resultado
desse deboche, a diretora fez-lhe novas ameaças prometendo que a apanhariam e a
levariam. Calunga soltou meia dúzia de palavrões e puxou Rosinha pelo braço:
- Já chega, vamo embora Rosinha, corra!
Rosinha, assustada, a acompanhou e atravessaram a rua, desaparecendo na
esquina.
Rosinha pouco falava, mal estudava, não fazia direito os deveres e não se
incomodava nem um pouco com as ameaças de Marga em dobrar-lhe os deveres de
casa ou fazer relatórios desabonadores ao doutor Almeida. A palidez em seu rosto
aumentara, mas felizmente não tivera nenhuma crise de bronquite asmática ou outra
coisa qualquer que lhe abalasse a frágil saúde. Passara-se uma semana e somente
agora ela voltava a Sabe-Tudo:
- Como é que você sabia que eu estava lá e como conseguiu falar nos meus
ouvidos?
“Foi necessário, Rosinha, tivemos de fazê-lo, eu e Áurea!
- Mas de que jeito, vocês não são plantas?
- Somos?
Rosinha atrapalhou-se, mirando-o sem saber o que pensar. Porém, um
misterioso brilho perpassava seus místicos olhos e o rosto assumia ar sério ao
mesmo tempo reflexivo. Foi um momento único e fugidio. Tocada por invisível
despertar ela quase de imediato emergiu daquela revelação, embora uma dúvida
ainda permanecesse:
- Então por que você não me avisou que Luiza estava por perto?
- Há coisas que precisam ser empurradas, outras se deixam ao seu natural
curso.
- Não entendi nada, Sabe-Tudo! Somente sei que agora eles descobriram tudo,
me vigiam o tempo todo e não vou mais poder sair.
- Tenha calma, criança, tudo vem ao seu tempo. Seja paciente e aguarde!
Veio um novo final de semana e ela permaneceu novamente sem poder sair:
medida punitiva, sem dúvida alguma, e isso doeu-lhe profundamente. No meio da
terceira semana de isolamento, acusou um estímulo, uma estranha inquietação, que
a levava a ardentemente desejar sair e lançar-se à rua de qualquer maneira. Mas
como fazê-lo se a chave do portão lhe fora tomada e a outra desaparecera do
galpão? Por curiosidade ou indefinível impulso, ela projetou-se ao recinto da ala
secundária do interior da mansão onde guardavam o chaveiro. A porta estava
trancada e lamentou não poder adentrar. Não resignada, ainda sob a aura de uma
sensação estranha e movente, tomou o corredor principal e saiu à varanda. Sem
nada pensar foi estancar em frente ao portão de ferro da entrada social da mansão.
As travas de segurança, em cima e embaixo, estavam livres e sequer olhou-as.
Ainda em seu estado de semi-transe, levou à mão à fechadura pressionando o trinco
para baixo e o portão abriu-se!
Conduzida ainda por alguma coisa mais forte que sua vontade, ela puxou o
portão, meteu-se entre o vão e evadiu-se. Correu para a rua, daí para outra,
contornou o quarteirão e passou pelo fundo da propriedade onde costumava tomar
os caminhos já conhecidos. Um automóvel velho com vidros escurecidos parou junto
a ela; a porta de trás foi aberta e um homem avançou tapando-lhe a boca com uma
das mãos, enquanto outro braço a enlaçava pela cintura e a jogava para dentro do
veículo.
- Tudo certo. A caça está na mão, valeu a pena esperar todos esses dias – falou
o seqüestrador rindo e a amordaçando.
CAPÍTULO VII
SOFRIMENTO E FINAL
Correndo e se escondendo, ela subiu por uma rua estreita, margeada de casas
velhas e pobres. A comunidade era a mais abandonada do bairro, a pobreza de
seus moradores não poderia caber noutro lugar. Sob o vestido vermelho molhado e
manchado das águas barrentas Calunga ardia de raiva e indignação.
- Miserável! Eles vai ver só uma coisa se fizer mal pra Rosinha!
A tarde ia desfalecendo, o céu encoberto de nuvens cinzentas prometia mau
tempo; um vento frio começava a soprar. Ela precisava apressar-se se pretendia
descobrir onde tinham levado Rosinha!
Encostado a um canto, um carro estacionado achava-se coberto com panos.
Era sem dúvida o carro de ambos. Calunga soubera ainda há pouco de um velho
mendigo, amigo de Gregório, que eles tinham saído pelas onze da manhã e voltado
pelas duas da tarde nesse mesmo carro. Foram informações muito perigosas que
ninguém ousaria dar, porém Calunga houvera prometido comida e cigarros para o
velho. Pensava descobrir tudo e contar para a polícia. Ela parou diante do barraco
que o velho indicara se preparando para espreitar. Nesse instante, duas fortes
sirenes rasgaram o ar, a porta do barraco se abriu e os irmãos saíram, vendo-a ali
parada.
- Ela trouxe eles! – falou um dos sequestradores.
O outro fez movimento de puxar o revólver e Calunga pulou para o lado,
procurando se esconder atrás de outro barraco. Ele atirou e a bala foi cravar na
madeira. Ele deu mais dois passos e apontou de novo para Calunga.
- Parem, não atirem! – gritou o policial da janela do carro que já se aproximava.
Os dois não obedeceram, atiraram na polícia e correram rua acima. A polícia
respondeu ao fogo e os bandidos correram mais.
- Atrás deles, e peguem também a negrinha!
- Eles pensa que eu to com eles. Não vou deixar me pegar! – resmungou,
enfiando-se entre barracos e cercas, invadindo quintais!
* * *
Inútil tentar descrever o estado de espírito de Almeida e Luiza, mas pelos seus
rostos consumidos se tinha uma pequena idéia do turbilhão depressivo que deles se
apossara e do remorso que aos íntimos adentrara. Num martírio sem fim, Luiza
ficava dia e noite a vigiar Rosinha, mortificando-se ao lado da criança.
Nessa noite o tempo piorara; uma chuva intensa derramava-se pela cidade. O
frio se intensificara e os agasalhos coloriam toda a gente. Pela madrugada, Luiza
vencida pelo cansaço dormia sentada com a cabeça apoiada no sofá, meio estirada,
calcanhares apoiados no chão. Rosinha se remexeu e murmurou:
- Calunga!
Os olhos da criança se abriram e, agitada, sentou-se. Com movimentos bruscos
foi arrancando os tubos dos braços. Os lábios descerraram riso estranho; um brilho
de loucura ocupava o encanto de seu olhar. Jogando a coberta ao chão, pulou da
cama e cambaleante qual ébrio lançou-se em direção ao portal antecedente à
pequena sacada, arremetida ao alto sobre o pátio interno do hospital.
- Calunga!
Torcendo o trinco puxou a ambas as portas, parando sobre a soleira de
mármore. O vento gelado atingiu-a em cheio e um jorro da chuva ensopou seu rosto
e peito. Luiza, sentindo o impacto gelado pulou assustada do sofá.
Rosinha, meu Deus, que está fazendo?
Correndo para a criança alcançou-a no justo instante em que ela desabava,
amparando-a antes que atingisse o chão, trazendo-a de volta para a cama.
Tão logo se viu segura pela amiga uma corrente de energia percorreu-a
fortalecendo-a, e se foi dali, coberta por vestes azuis em vestido de gazes
reverberantes!
- Você demorou, Calunga, pensei que nunca mais a veria!
- Agora ta tudo bem, eu vou levar você pra um lugar onde eles vem lhe buscar.
Seguiram por lugares e cores, flutuando mais do que andando, de mãos dadas
e felizes. Em certo lugar Calunga parou:
- Aqui, Rosinha! Prá lá eu não posso seguir, só você. Eles deve ta vindo!
- Quem? – atentou pela primeira vez.
- Eles! Olha lá, ta vindo!
Duas formas iridescentes desprendendo luz e beleza em tons distintos
chegaram e as envolveram.
- De novo livre do corpo – falou a primeira delas, a mais azulada.
- Sabe-Tudo, você?
- Purificada e liberta! – disse a segunda, a mais dourada.
- Áurea, você também?
- Sim, Rosinha, como sempre juntos de você – disse Sabe-Tudo
- Mas por que a vida lá embaixo, o sofrimento, aquelas coisas todas?
- Foi necessário, criança, para você e para o mundo. Agora que triunfou a
levaremos de volta ao verdadeiro lar, seu planeta, seu mundo azul! – explicou
Áurea.
- E Calunga? – questionou preocupada.
- Eu fico, Rosinha. Eles me disse que tenho de ajudar os meu e outros mais.
Vou ter muitas coisa pra fazer, eu sou daqui, esse mundo é o meu!
- Eu vou poder voltar para visitá-la?
- Claro, minha menina, sempre que as condições astrológicas assim permitirem
– informou Sabe-Tudo. Ela alegrou-se e se abraçou à amiga.
- Vamos então? – convidou-a Sabe Tudo - A nave está esperando!
- Vamos! Respondeu a criança.
Eles a envolveram em dois feixes de luz e ela refulgiu. E como uma pluma
ergueram-na se desprendendo para o alto. Era um voo mais do que fácil e ela olhou
para baixo vendo Calunga cada vez mais distante, acenando com alegria e
felicidade.
* * *
Com a morte da filha, Almeida isolou-se por algum tempo. Deixou a mansão e
largou a direção da fábrica a cargo de seu vice-presidente. Ninguém sabia por onde
ele se enfiara, nem mesmo Luiza. Depois, ele voltou magro e abatido. Chamou a
governanta e comunicou-lhe ter pensado e sofrido muito, não desejando morar mais
nesse lugar onde vira a esposa e a filha morrerem e onde somente recordações
tristes encheriam sua vida. Lembrando Rosinha, e o que ela certamente aprovaria,
iria transformar a propriedade num grande orfanato, com isso talvez conseguisse
amenizar em si o tremendo remorso que carregava na alma.
Assim foi feito. Logo a propriedade foi mudada em alguns aspectos com
moderno projeto adaptado à nova situação. Muitas crianças encheram de outra vida
as dependências da mansão, o bosque e pomar. Por todos os lados ecoavam suas
vozes em horas de lazer e aprendizado ao ar livre. Luiza dirigia e ocupava-se. O
orfanato tinha voluntários de ensino, assistência médica e tudo mais que
necessitasse para a formação de futuros cidadãos e cidadãs. E Luiza viu desfilarem
ante seus olhos muitos corpinhos desprezados por pais egoístas ou visitados pela
fatalidade, amando-os profundamente com carinho e tolerância. Almeida cumpria
fielmente a promessa de nada deixar faltar-lhes, porém jamais voltara ao lugar,
embora se casasse novamente e tivesse a felicidade de ser pai mais três vezes.
Rayom Ra.