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Eis o livro.

Esta talvez seja uma forma estranha de se começar um livro, mas há


meses tento começá-lo de alguma forma surpreendente e nada me veio. Para alguns, a
primeira frase deve ser mais importante que todo o resto. Consideram que nem mesmo
um livro precisa ser escrito para que um desocupado seja considerado escritor, celebrado
como alguém que possui uma personalidade útil para a sociedade, ganha um espaço entre
os pensadores, seus pensamentos serão analisados com minúcias, a genialidade, acredita-
se, jamais é objetiva, por trás das palavras sempre haverão mensagens importantes
ocultas.
Dirão-me, como já disseram (tendo como referência apenas um parágrafo que
escrevi): que livro arrogante, pedante, grosseiro etc. Então, para evitar respostas
posteriores, aqui já respondo-lhes: sim, trata-se de um livro arrogante e pedante, pois sou
arrogante, pedante e também hipócrita, o livro e o escritor, porém, sou um hipócrita
honesto. Não negarei que os julgamentos que farei aqui não são partes essenciais de
minha própria personalidade, pois são. Eu sou igual a todos.
Mas, para que escrever? Quantos livros realmente ajudaram o mundo? São os
escritores que precisam de ajuda. Não há razão para viver disso. Nada do que eu lhe
disser vai ajudá-lo, leitor ingênuo. O mundo não precisa de escritores e sim de médicos,
engenheiros, pedreiros, jornalistas e até mesmo poetas. Sim, a poesia é importante para o
mundo, não aquela poesia cheia de pompa, matematicamente calculada e analisada. O
mundo precisa da poesia livre, errada, humana. Aquela que vem do coração de pessoas
comuns, que nem imaginam estarem criando algo tão próximo de um sentimento. E a
prosa? Esta é completamente inútil. Apenas um bando de gente que não consegue viver
uma realidade difícil, esperando a morte para começarem a viver. Fugir da realidade
parece-me tão covarde, ainda mais se estiver fugindo da realidade porque nunca
conseguiu se adaptar a ela. Em que isso serviria para o mundo? Para encher o orgulho de
poucos intelectuais trancafiados em seus mundos de livros! Não, isso é muito estúpido.
Porém, de estupidezes sempre vivi minha vida, assim como todos vocês, então, farei o
que, pateticamente, acredito ser o meu destino.
Então, já passei do início do livro e falta-me a tal da estória. Onde a deixei? Por
onde anda, em meus devaneios, a perfeita história que guardei para este momento? Com
certeza está aqui em algum lugar, no meio de alguma memória, por trás de um desejo
reprimido ou escondida embaixo do meu inconsciente. Não encontro! Onde você foi se
meter? Não devemos fazer feio na frente dos convidados! Você está me deixando

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embaraçado desse jeito. Venha cá! Vamos! Eu lhe imploro! Façamos um acordo: você
me aparece agora, estória, e nunca mais encho-lhe a paciência pedindo mais. O quê? Não
aceita? Mas o que você deseja? Não desista agora! Se você vier agora, depois será mais
fácil. Esses idiotas que lhe lerão nunca lhe compreenderão. Farão teorias estúpidas sobre
você, discutirão sobre se você representou isso ou aquilo, farão filmes com atores
famosos contando uma história absurdamente diferente da original e no final estarão tão
distantes da verdade como se nunca tivessem lhe conhecido. Mesmo que você se exponha
para esses acadêmicos engomadinhos e pedantes ou até mesmo para um editor que pense
ser algum visionário, ainda assim, você irá continuar intacta, perfeita, intocável.
Compreendida e sentida apenas por poucos escolhidos. Prometo-lhe que nenhum
adolescente que estude literatura em vão absorverá uma vírgula corretamente do que você
realmente quiser contar.
O que você está dizendo? Estória tímida e ousada! Não seja tão ingênua! Então, é
isso o que você deseja? Você quer que todo o mundo a compreenda em absoluto?
Impossível! Como eu poderia escrever um livro tão simples, tão absurdamente simples e
direto, sem rodeios, que antes de terminá-lo, qualquer pessoa compreenderia todo o resto
do livro? Como você seria capaz? Apenas tolos lêem livros e mais tolos ainda são aqueles
que dizem compreendê-los. E aqueles que os escrevem? Prefiro nem falar desses... Não!
Isso não posso lhe prometer. Mentiria se o fizesse. E se, ao invés do caminho fácil, eu lhe
oferecesse o dificílimo? Criaria neologismos, usando-me de línguas mortas para que o
livro se tornasse tão complicado e dispendioso de se ler, que apenas raros conseguiriam
finalizá-lo e eles não teriam como, entre meus tortos jogos de palavra, imaginar uma
interpretação senão aquela para qual meus dedos escreveram o livro. Mas, sim. Se apenas
um número restrito de pessoas conseguissem ler a obra-prima, será de pouca importância
para o mundo. Esqueça tal proposto, enfim. Vamos! Peça-me qualquer outra coisa desse
mundo patético e eu lhe darei, em troca apenas que você me dê umas boas recordações
que eu nunca vivi. Dê-me o mais maravilhoso conto que este mundo já viu! Não deseja
mesmo, então? Vejo agora que me abandonou por completo. Estou sozinho: apenas eu e
as tais letras. Elas não me parecem muito amigáveis. São tão sérias e rígidas. O ser
humano tenta enfeitá-las, torná-las mais apresentáveis. Mas elas não me enganam.
Traiçoeiras. Ajudam tanto o inimigo quanto o amigo. Longe de um ambicioso não
possuem personalidade alguma. Como posso confiar-lhes? Não posso. Não devo. Devo
deixá-las transcorrerem pelos meus dedos sem que eu tenha o mínimo de contato.

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Palavras contaminam o pensamento. Deturpam o que tenho a dizer com suas formas
limitadas e significados flexíveis. E como ainda são populares! Todo o mundo parece se
humilhar e aceitar o poderio das palavras. Abandonaram completamente os sentidos em
troca de duas dúzias de letras miúdas!
Devo começar, afinal. Mesmo sem estória e acompanhado dessas tais palavras, eu
devo. Espero que essa experiência não seja das mais torturantes.

Capítulo I

Dou-lhes um rapaz qualquer. Imaginem-lho como preferirem, ou melhor: julguem


a sua aparência de acordo com seu caráter. O caráter é algo confuso e distorcido e nesse
garoto não é diferente.
Não serão dados nomes aos homens e mulheres deste livro, tampouco possuo uma
história pronta e concluída em minha cabeça, esperando para ser escrita, deixarei o
caráter de cada ser vivo que me for apresentado guiar-me para seus destinos. Para não
haver dúvidas e complicações posteriores, chamemos o dito de: Moço.
Neste momento, Moço se encontra em seu quarto e está cercado de livros. Parece
que gosta de ler. Também é possível ver papéis escritos em cima de uma escrivaninha e
caídos sobre o chão.
Moço não sabe que não existe em matéria e que é apenas um personagem de livro,
mas ele pensa em personagens e em livros. Observa todos a sua volta. São diversos:
filosofia antiga e moderna, poesia, romances, religiosos, jurídicos, biografias, auto-ajuda
e o que pudesse lhe ser útil durante a vida. Ele pensa na sua relação com os livros. Desde
pequeno é encantado com as leituras fantásticas. Sonhava com as belas fantasias que seus
pais liam e logo ao aprender a ler pôde ser conduzido sozinho por todos os mundos
literários sem a ajuda dos adultos que nem sempre estavam dispostos ou interessados em
ler histórias para crianças. Agora, adulto, um homem que supostamente pensa sozinho,
pode escrever seus próprios livros e ensinar ao mundo o que aprendeu durante toda a
vida. É nisso que Moço pensa. Ele se pergunta: “O que vivi, afinal?”. Era possível ouvir
sua pergunta ecoando pelas paredes logo quando chegamos ao quarto de Moço.
Nada havia vivido em verdade, apenas em ilustrações, exemplos, conselhos,
determinações, regras. O que há para se viver quando se está coberto da poeira dos livros
e não se pode ver o sol brilhando lá fora? Moço pensava. Ele pensa. Talvez venha

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pensando nisso há dias ou meses, mas, apenas agora ele notou tudo isso que pensava.
Demora-lhe para vir a consciência de que está pensando e de repente... eis tudo o que
sou: nada.
Era uma verdade difícil para um sujeito qualquer aceitar. Uma idéia estúpida, um
clichê, mas Moço se chocava com sua vida tanto quanto os personagens imbecilizados
dos livros dramáticos que lia.
Eu gostaria de poder falar com esse rapaz, dizer-lhe que não está sozinho, ajudá-
lo. Mas um escritor não se envolve com seus personagens ou então irei me tornar
personagem de mim mesmo e basta de homenzinhos relatando suas experiências de vida
para o mundo como se isso tivesse alguma importância.
Contarei algo que imagino agora e que antes da minha imaginação não existia,
nem na realidade e nem na ficção: hoje é aniversário de Moço. Isso mesmo. Os escritores
precisam de um motivo para iniciarem suas estórias e assim elas terem uma razão de
nascer e esse detalhe iniciará esta aventura.
Moço queria se dar um presente. Chegando a conclusão que sua vida era nada e
que tudo que sentia e pensava era originado do pensamento de outras pessoas que eram
tão nadas quanto ele, seu único agrado seria libertar-se disso tudo e tornar-se um homem
com ideias próprias, descobrir os sabores das frutas e seus cheiros também. Desejava
conhecer a natureza e conhecer os homens pessoalmente, sem as descrições maçantes que
muito conhecia.
Reuniu todos que moravam em sua residência, estes não eram poucos. Contemos:
três irmãos, um pai, uma mãe, uma avó materna, um ajudante para o pai que vive por
causa de favores, dois cachorros e uma tartaruga. Seu objetivo era anunciar para seus
parentes o seu desejo:
— Deixarei esta casa ao nascer do sol. Viajarei pelo mundo para conhecê-lo.
Todos se espantaram. Podemos ver que o passado do Moço era tranquilo e que
seus pais nunca tiveram problemas ou foram surpreendidos por atos do rapaz. Quando
todas as travessuras de uma criança são vividas apenas na imaginação, os pais conseguem
relaxar um pouco em suas obrigações. Seu pai, tão pouco surpreendido na vida, foi o
primeiro a protestar:
— Está louco! E o trabalho, filho? Abandonará quem dá o pão para nossa mesa
todos os dias?

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Era desagradável ter que explicar todos os seus pormenores, certamente era isso
que Moço pensava com o primeiro questionamento. Mas era inevitável que explicações
precisavam ser dadas e ele as deu da forma mais simples que poderia: do emprego tiraria
folga, se não voltasse a tempo, nada poderia fazer senão procurar outro. Quanto aos
familiares que em tudo dependiam daquele único trabalhador da casa – que ganhava
dinheiro suficiente e excedente para aqueles moradores, em uma boa empresa que não
interessa dizer o tipo de serviço que fazia – Moço deixaria economias que há anos
guardava sem motivo.
O pai queria protestar mais, não podia impedir o filho, mas deveria tentar, porém
a única coisa que veio-lhe foi:
— Foram os livros. Ficou louco de tanta fantasia!
O que o pai queria dizer era que alguém que tanto lê não poderia estar pensando
regularmente e era exatamente isso que Moço pensava, eram os livros que haviam-no
enlouquecido. Poderia ter sido qualquer coisa como a música ou a pintura ou a
burocracia, mas eram os livros e agora ele sairia de casa para desenlouquecer-se.
Moço parte de sua casa, então. Não quis se despedir. Talvez, dando-no como
brincalhão, ninguém acordou ao nascer do sol e Moço partiu sem adeuses. Assim deve ter
sido menos penoso para ele, pensamos nós, pessoas ordinárias, mas, para Moço partir
daquele lugar não foi nem um pouco doloroso.
Doloridos ficaram seus pés quando a caminhada se tornou demais longa e sem
sentido. Qualquer um de nós poderia deixá-lo desconsertado ao perguntar para um rapaz
sem nada, com uma roupa fina de algodão, que pouco poderia protegê-lo do frio: “Então,
rapaz, qual seu rumo neste mundo?” Uma resposta rápida não seria possível. Supondo
agora que Moço ouviu nossa pergunta, mas, obviamente, não sabe de onde veio, pensará
ter chegado em suas ideias através do vento e por isso não precisará de uma resposta
imediata. Ficará calado por um tempo, a pergunta se repetindo sem parar e a resposta
dando-lhe apenas o eco de sua questão: rumo, rumo, rumo...
Lembrando agora, talvez não tenha sido esclarecido o que fez Moço perder
completamente a confiança no seu conhecimento. Isso dará uma resposta que procuramos
sobre os rumos que ele precisa chegar. Para isso, Moço, que, no momento, está andando
por uma estrada vazia, sentará sob uma árvore qualquer, que aparecerá agora e antes não
podia ser vista: um carvalho, cheio de sombra, protegendo quem quisesse do sol que as

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plantas tanto precisam. Moço ficou ali sentado, aguardando, e, assim, deixou-nos livres
para ir atrás de seu passado.
Criar um passado a partir do presente torna-se mais complexo do que criar o
futuro a partir do passado. Aliás, conhecendo o passado é fácil adivinhar o presente e o
futuro, habitualmente, as pessoas sempre acabarão sendo os estereótipos que
prejulgamos. Então, suponho que temos um moço, em nome e idade, que porventura
abandonou casa e família pelo caos do mundo, supõe-se que sua vida, com seus
familiares, era um caos maior do que viver como um errante, perdido e sem destino.
Vamos ao seu passado.

Capítulo II

Ao nascer, era um animal irracional. A consciência da sua existência não existia e


vivia de acordo com as vontades e perspectivas das pessoas que lhe cuidavam. Mocinho
ouvia e nada entendia do mundo ao seu redor, não sabia o que era existir e absorvia,
maquinalmente, tudo que lhe era tirado e dado: leite, fezes e palavras. Este era o seu
mundo, o único mundo para bebês aceito cientificamente. Os grandes, aqueles seres
sempre a rodear-lhe, apertar-lhe as bochechas e fazer brincadeiras repetitivas e,
inexplicavelmente, divertidas, estavam sempre a dar-lhe alimentos, limpando-lhe as fezes
e trazendo prazeres aos seus ouvidos, eram seus superiores e precisava aprender suas
linguagens para cada vez menos depender deles.
Então, Mocinho aprendeu a chorar, pois era deste modo que vinham cuidá-lo.
Utilizou seus berros de um modo magistral, mesmo que naquela época o pequeno não
compreendesse suas próprias atitudes, elas evoluíam e, sem perceber, ele controlava
aqueles que o controlavam. Cresceu com a ideia de que para obter o que desejava
daqueles que possuía o que queria era preciso usar da sua única forma de contato (e a
única coisa que sabia fazer) e assim convencia os grandes de que era merecedor. Por
essas coisas, resolveu aprender a falar.
Falar, a princípio, era maravilhoso. Agradava a todos em sua casa e conseguia
tudo o que queria de forma ainda mais fácil do que apenas chorando. Um “mãe”, tão
simples e fácil, sem nenhum significado ou sentimento, trazia-lhe guloseimas, risos e
palavras de admiração e encorajamento e um amor impossível de não gostar. Porém, falar
não durou para sempre e, após um tempo, poucos continuavam a olhara para o Mocinho

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quando ele dizia uma nova palavra, ninguém mais se divertia com seus monossílabos,
algumas vezes, na rua, um estranho via o pequeno dizendo algo e dava um sorriso
distante, vazio, sem nenhuma admiração, apenas com gracejo pela beleza do bebê.
Tudo o que aprendera até agora tornou-se obsoleto e inútil, perdeu o poder sobre
os outros, aqueles com as comidas, as brincadeiras, a verdadeira diversão. Quando
chorava, buscando em suas atitudes antigas uma saída para voltar ao controle, seus pais
lhe batiam e lhe mandavam se calar. Quando falava, o pai criticava o modo errado de
pronunciar as palavras e a mãe corrigia com desatenção. Ao invés de admiração,
Mocinho era apenas uma despesa desagradável que seus pais eram forçados a suportar e
obrigados a amar. Não tinha outra opção senão aceitarem a situação que criaram por
ingenuidade – ter um filho, que erro – e por isso, tratavam o filho como se fosse o maior
culpado pela própria existência. Para aliviar a decepção, seus pais escolheram o óbvio:
ensinar o filho a ser exatamente igual aos pais.

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Pare. Paro. Preciso parar. Não consigo mais escrever. Preocupo-me demais com
problemas exteriores a este livro e a história não sai. Talvez não sejam problemas tão
exteriores assim. Preocupo-me com bobagens relacionadas ao livro. Exemplos? Quantas
páginas essa aventura dará. A estante de livros tem menos poeira do que páginas a contar.
Aqueles maçantes com mais de mil páginas. Algo tão grande deve ser interessante ou um
ser humano, um maldito desses, não teria perdido tanto tempo escrevendo algo assim. Há
os pequenos também que lutam com bravura por seu lugar nas estantes. Assusta-me o
número de páginas que devo escrever! Quando poderei parar? A pergunta vai e volta sem
resposta, apenas para atrapalhar meus escritos. E os capítulos? Esse segundo foi-me
muito torturante de escrever e, ainda por cima, é um clichê por inteiro: “quando bebê era
como um animal irracional”, poderia eu ir mais óbvio do que isso? Escrevi tal texto
posteriormente a este livro, em primeira pessoa, e agora apenas transcrevo tudo como se
fosse o passado de Moço! Sem um pouco de vergonha ou moral, crio um passado
qualquer e jogo para meu personagem e ele, servo, precisa aceitar que aquele é seu
passado real, sua existência durante os anos que viveu é baseada em tudo o que eu lhe
impor. E nem falarei sobre os algarismos romanos na numeração dos capítulos que eu
utilizei sem originalidade alguma.

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Outro problema que me perturba são os resultados. Cada frase interessante que
ponho no livro, já vem a ideia: “O que acharão disso?” ou “Será que essa frase será
sublinhada e lembrada posteriormente por um professor ou literato?”. Que tolices!
Tolices inoportunas, mas preciso (?) ser sincero com vocês, leitores. Isso destrói-me a
criatividade. Mas o que estou dizendo! Danem-se os leitores, não escrevo para ser lido.
Escrevo para mim, para liberar essas palavras de mim e deixá-las livres para mundo. Que
romântico, o escritor que precisa escrever. E agora quero dizer que não desejo o
reconhecimento como escritor, foi isso mesmo o que eu escrevi? Nem vou ler para não
enxergar a vergonha que eu sou. Hipócrita! Vamos lá, pequeno intelectual, confesse esses
seus desejos mundanos de querer a fama como qualquer homem. Ou dirá que a fama que
deseja é, na verdade, um desejo de que o mundo reconheça seus esforços para ajudá-lo?
Rio de ti, escritor insignificante.
Vamos! Continue sua estória que é mais interessante que sua vida e suas análises,
ao menos é um fato irreal e, sendo assim, tem chances de acontecer algo fora desse tédio
absurdo.
O medo está com o escritor. Quais são as palavras certas? Qual a combinação
mágica... cala-te, imbecil! continua a escrever...

Capítulo III

Moço interrompe a fábula que se contava sobre seu passado e acorda. O sol sem
saber o que fazia, queimou um pedaço do braço do garoto que não havia encontrado
sombra suficiente para seu corpo inteiro. Imagino e ponho na ficção que o horário é
meio-dia, por isso as queimaduras, o sol não fervendo o mar.
Ele caminha em direção à cidade que está ao lado da sua. Ainda longe de alcançá-
la, enquanto caminhava em seu rumo, primeira escolha de viagem, foi possível ver os
prédios religiosos que estavam em todos os lugares. Homens gritavam impropérios
enquanto os padres ditavam os seus sermões caluniadores. O comércio misturava-se à
vida do homem, que encontrava perfeito sentido em se viver trocando mercadorias, um
pelo outro, o melhor preço e a satisfação dos envolvidos era a plenitude. Vendia-se santos
para não esquecer a fé através dos exemplos de vida, roupas para se apegar à vaidade
(testai o desapego às coisas materiais, possuindo-as), relógios para não desperdiçar a
vida, remédios que prolongam a existência bruta, livros para jamais vacilar e aprender o

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que se deve fazer para mais longamente necessitar e poder comprar mais mercadorias.
Havia também os produtos impalpáveis, intocados, chamados sensíveis. Vendia-se a
esperança para aqueles que não tinham. Vendia-se confiança em algo que não se entende
e que não se sente e vendia-se a saída para os seus males, de qualquer ordem e origem e
finalidade. Os religiosos faziam isso, eram mercadores das novidades de Deus,
concorriam entre si, através de uma meta estabelecida entre eles e, asseguravam, era
apreciada por Deus: quem mais vendesse os produtos divinos, mais chances teriam de um
futuro no paraíso eterno. Interessaram-se por Moço logo ao vê-lo, as novidades
precisavam ser utilizadas, um jovem e forte rapaz, perfeito para trabalhar e dar frutos para
o Deus que conseguisse lhe convencer primeiro (não haviam apenas os cristãos, os
vendedores eram de todas as raças: budistas, judeus, satanistas, muçulmanos, taoístas,
hinduístas e ateus, sim, estes últimos vendiam a descrença de deus como a coisa mais
valiosa que um homem poderia crer)..
— Venha cá, rapazinho! Você é infeliz em sua vida. — disse um homem
qualquer, falava de um modo firme e sorridente com suas roupas finas e caras. Colocou o
braço em volta dos ombros de Moço, sentia-se íntimo de qualquer ser humano.
— Sim, eu sou...! Como sabe? — animou-se por ver que alguém o entendia de
forma tão transparente, enxergando a sua alma sem nem mesmo trocarem palavras vãs,
isso foi o que Moço sentiu. Gostou da intimidade com aquele que o compreendia.
— E ainda por cima está perdido, sem compreender sua vida, procurando
soluções que todos parecem lhe negar. Todos — repetiu, mostrando como todos o
abandonaram, apenas ele estava ali, dando-lhe atenção e amparo.
Fácil de acreditar não foi e quis resistir, as palavras eram doces e estranhas. Moço
mal tivera amigos durante sua adolescência, período este que fê-lo iniciar a busca por
entendimento do mundo e de sua vida.
— Sim! Responda-me, por favor, como sabe dessas coisas...
O homem sorriu e gritava, berrava com forças que seus pulmões não conheciam
cada vez mais que, entusiasmado, Moço respondia “sim” com esperança. Pôde crer que
aquele homem era considerado o seu melhor amigo desde sempre.
— Falta-lhe um deus na vida e eu tenho um para você. Venha comigo, sem medo,
sou seu amigo, vou lhe apresentar pessoalmente aquele que sabe tudo sobre você. Foi ele
que me contou que você viria até mim.

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Capítulo IV

O bebê que Moço foi, pouco depois de nascer, seria molhado na testa sob
testemunhos confiabilíssimos de seus pais que diziam com certezas absolutas: “É o bebê
mais lindo que eu já vi em um batismo”. A crença religiosa e ideológica que ele deveria
ter, esperançosamente durante sua vida, estava sendo selada e ordenada antes que o
Mocinho pudesse aprender a repetir as palavras que o padre pronunciava de forma
automática. Isso não demorou.
Mamãe, caridosa e disciplinada, colocou o filho para fazer os estudos religiosos e
se manter informado sobre as eternas boas e novidades de deus e assim ele aprendeu a ser
como todos queriam: rezava ao dormir, acreditava em um deus aos domingos, esquecia-o
durante o resto da semana, exceto se se metesse em uma dificuldade grande demais para
o sofrimento humano, então, pediria licença em plena quarta ou quinta-feira, até mesmo
nas segundas e terças, jamais as sextas-feira e, sem nem mesmo pedir desculpas pela
interrupção, solicitava, como um bom filho, se o Pai poderia ajudá-lo, mesmo que ainda
ainda não fosse domingo. Um trabalho extra para que o Pai do mundo inteiro, que nos
ama, poderia conceder um perdão e uma ajuda adiantada para um bom fiel.
Com o aprendizado e a idade a aumentar, Moço começou a descobrir que sentia-
se mais realizado ao ultrapassar os limites dados pelos adultos. Tornava-se, então, uma
criança travessa. Fazia pinturas nas paredes de sua casa, unia-se com outros mocinhos,
idênticos em infância, e jogavam ovos podres nas casas vizinhas: o mais divertido era ver
como um adulto ficava decepcionado e irritado ao descobrir que seu bem mais precioso, a
casa em que morava, estava sendo invadida por odores horríveis.
— Ainda os pegarei, moleques desocupados ! — gritava o homem tentando
parecer ameaçador como nunca fora.
— Velhote estúpido, você não nos pegará! — gritava Mocinho em sua bicicleta.
Depois daquilo, ficou pensando em como pôde ter insultado uma pessoa daquela forma
desnecessária e violenta. Tentou decidir se arrepender. Ao invés de dormir, gastou sua
noite com preocupações, pensou que o velho sentira-se magoado, chorara a noite inteira
por se dar conta de que não passava de um velho inútil, que até mesmo uma criança podia
notar aquilo, ele poderia morrer de tanta tristeza. Moço quase a se arrepender de suas
atitudes infantis e decidido a chorar, ouviu a porta de seu quarto bater:
— Abra a porta, agora! — era sua mãe.

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O velho encontrara o endereço de sua casa e exigia que seus pais lhe dessem uma
lição para que nunca mais ousasse quebrar regras, uma lição de preferência utilizando-se
da dor física. Moço esqueceu da pena que sentira do velho e agora o odiava – realmente,
realmente um velho estúpido e desprezível. Seus pais, pacíficos, não quiseram ver sua
obra-prima, o filho primogênito, que contém mais genes de ambos, esta obra não poderia
ter nenhuma parte do corpo a doer. Era um pecado. A lição para Mocinho foi, então, não
permitir que ele enxergasse nenhuma outra salvação ou idealização além daquela na
crença religiosa. Moço, por ordem materna e ameaças de força paterna, afastou-se dos
amigos e, todos os dias, precisou conversar com um deus que nunca quis lhe responder.

Capítulo V

Entrando no templo religioso daquele senhor imponente e amigo fez Moço sentir
que existia um pouco de esperança, nele e nos outros: as pessoas lhe sorriam como se,
sinceramente, acreditassem que mereciam um futuro digno, de que poderiam lutar para
que o mundo não lhes fosse tão pesado. Elas iam até ali para reclamar com deus de que
havia algum engano em seus destinos, pois, acreditavam, deveriam viver para a felicidade
e o bem-estar mas, até o momento, tinham apenas sofrido muito. Isso estava errado.
Os fiéis gritavam, exaltados: “Dá-me, Deus querido e amado, a felicidade plena
que eu mereço” e o líder da religião, intermediando a conversa do rebanho com deus:
“Eles te clamam, Deus bondoso, nós te adoramos acima de tudo, por isso, traga-nos o que
buscamos nessa vida, tudo o que foi-nos prometido por termos aceitado a vida em teu
nome, meu Deus, nós temos pressa!”.
O amigo religioso de Moço olhava aquela cena com orgulho, poderia até ter uma
lágrima presa ao olho, tentando cair e não conseguindo. Ele era um dos líderes daquele
templo, haviam outros, vários.
— Veja-os, filho, como eles estão felizes. Deus dá todas as bençãos que eles
pedem. A mulher ali estava em dívidas e acreditou na fé e hoje vive na abundância, no
excesso, no supérfluo, estas coisas são a causa de sua felicidade. Aquele senhor viveu
doente e desacreditado pela ciência por décadas, pensou em se matar várias vezes e só
não o fez por covardia, mas deus trouxe-lhe coragem e ele superou a doença, está curado.
Eu também sou testemunha dos milagres, que ele, nosso pai, amém, pode lhe
proporcionar. Por muitos anos, procurei nas drogas um modo de enxergar alguma beleza

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na vida, pois, como é normal para qualquer ser racional, eu só via tristezas no mundo.
Não tinha trabalho e isso significa que não possuía futuro, os dias eram sempre os
mesmos. Então, ele me mandou uma mensagem, por sonho, que dizia que um tesouro
enorme com todas as coisas que eu merecia me esperava, bastava apenas fazer duas
coisas: esquecer os entorpecentes do meu cérebro e trabalhar duro, com fé, seguir suas
regras sem reclamar, pois elas são perfeitas, apesar da estranheza que possa parecer no
início e, então, confiando nele, tudo pode ser possível.
Via-se tanta alegria e nenhuma divisão, todos buscavam suas realizações, mas não
queriam que o mundo fosse ajudado antes deles, Moço pensou nisso. Olhava para fora,
aquela cidade cheia de religiosos vendendo coisas que eles não sentiam, era cercada por
pessoas pobres, que mantinham a fé mesmo quando não poderiam manter o estômago
alimentado.
— Como se pode ser tão feliz quando há tanta tristeza? — Moço pergunta.
O homem que nunca espera palavras diretas, mas reações, pensa sem que Moço
perceba e responde-lhe como se de tudo soubesse:
— Nós também pedimos pela felicidade alheia, por vezes, até antes da nossa
própria. Certamente, somos fracos, mas pedimos, nós pedimos pela felicidade alheia, esta
é muito importante.
— Pois, acredito em suas palavras, senhor. Afirmo que você parece ser um bom
amigo, porém, poderia eu conhecer as outras religiões. Interessei-me pelo que dizia um
velho...
A raiva e decepção vieram, instantaneamente, no rosto do religioso, que apertou o
ombro de Moço com força, gritou:
— Não! — ninguém que rezava no templo importou-se com os gritos, estes eram
normais, exaltações comuns, deus está distante e precisa de gritos para ser ouvido —
Não! Eles são... um grande erro. Não entendo como deus os permite, porém, não preciso
entender as atitudes de deus, apenas aceitá-las. Aceite você também, esqueça aquilo, pois
não lhe dará felicidade, talvez uma felicidade mundana, rápida e superficial, que, em
verdade, não lhe trará a satisfação, esta sim, a mais importante das dávidas do pai, além
de, é claro, adorá-lo, a maior das dádivas.
Ouvindo as palavras, Moço saiu dali, virou as costas ao fiel e não disse nada. Quis
respirar um ar mais livre. As palavras lhe pareceram tão falsas e egoístas naqueles que
queriam um pouco de condescendência divina, mas aquele homenzinho bem-visto e fala

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tenra realmente tocara Moço. O homem foi-lhe atrás, correu, suou, arriscou-se por entre o
embrenhado de outros religiosos concorrentes para não perder aquele moço de vista:
— Volte aqui, o primeiro impacto, reconheço o primeiro impacto, sempre muito
forte nos despreparados. Quando percebemos a irrealidade que estávamos, uma vida de
prazeres mundanos e distante do deus que nos ama, sim, eu também me senti assim e não
cri quando ouvi que alguém queria minha felicidade. Ninguém quer a felicidade de outra
pessoa, apenas Deus.
Continuou caminhando, sem olhar para as palavras que o outro dizia, o mesmo
Moço que em sua infância conhecera um deus formado pela imagem de seus pais:
honesto, trabalhador e devoto das coisas que eram ensinadas. Ele saiu de casa procurando
tornar-se um homem comum, sem prender-se a nada, puro em sua contaminação. Crenças
alheias não lhe pareceram algo puro. Não poderia regredir e acreditar em ideais formados
pelas fantasias de outros, foi algo assim que Moço pensou e continuou calado, deixando
que o religioso continuasse a falar:
— Você só terá sua vida eterna quando deixá-la que deus tome-a para si! —
corria, estava perdendo mais uma ovelha infeliz, cercou-o por todos os lados, imaginou
todos os modos aprendidos de se seduzir uma pessoa.
Repetiu algumas dúzias de frases sobre deus que ele conhecia e, então, desistiu da
perseguição. O jovem solitário continuaria sozinho e se deus existisse, o religioso pensou,
ele voltaria para sua igreja.
Moço sentou-se em um lugar que não era tranquilo, privilégio que aquela cidade
não possuía e mais um abordou-lhe, dizendo: “Eu vi tudo, eles não se cansam, felizmente,
você fugiu”. Era pois um jovem, poderia dizer que eles se pareciam e, se alguém não
conhecesse um dos dois, diria, com ignorância, que eram parentes. “Sim, eu estou livre
dessas ideias, também sou um solitário como você, não tenho crença religiosa, mas vivo
aqui, lutando contra elas”. Moço se interessou, poderia ser uma pessoa comum, com a
pureza que procurava, por isso e somente por isso, que perguntou:
“E como luta contra essas crenças alheias?”
O ateu gostou de ver que Moço se interessara por ele, seria mais um para ajudá-lo
na luta contra o invisível, por isso e não somente por isso, que respondeu: “Tenho um
grupo que procura contradições na história daquelas religiões que eles propagam. Somos
ateus e temos fé somente no nosso próprio eu, a única coisa em que se pode confiar.” Isso
era razóavel para Moço, uma ideia mais simples do que crer que um deus deseja nossa

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felicidade apenas por desejá-la e sua única moeda de troca é uma adoração sem sentido,
pois foi por isso que Moço, mais uma vez, perguntou se bastava aquilo, procurar as
contradições para poder matar friamente o deus inexistente daqueles religiosos. E o ateu,
gostando ainda mais de Moço e de suas dúvidas, disse com animação: “Não... você está
certo, temos muitas coisas para fazer, os membros do meu grupo são pessoas fantásticas,
você deveria conhecê-los, eu confio neles acima de tudo. Estão sempre a gritar,
ensinando as pessoas sobre a liberdade: ‘Liberta-se da ilusão! Acredita somente no seu
cérebro, deus não existe, deus não existe, deus não existe!’. Gritamos essas coisas e todos
nos ouvem, eles nos gostam, os religiosos odeiam, mas precisamos fazer”. Rápido, veio
outra pergunta: “Por quê?”, pois o por quê era sobre as razões que eles precisavam fazer.
Moço não achou nenhuma, não existia, faziam por... religiosidade?, Moço falou,
pensando que estava apenas pensando, mas falou e em voz alta e o ateu furioso:
— Chama-me de religioso?! Religioso é você que nega o ateísmo, está mais para
o lado de lá do que de cá. Jamais ponha as palavras, essas simples, ateísmo e religião na
mesma frase. Proíbo-o.
Pois não direi mais nada, eram pensamentos de Moço. Não queria ouví-lo, mas
não o negava. Não posso negá-lo, dizia, deixe-o livre como ele não me deixa ser. O não-
deus é o seu deus, sua religião. Deixe-o livre, era o que pensava enquanto o descrente
tentava prendê-lo. Saiu, foi caminhar, fugir. Distrações o Moço procurou, olhou para os
outros lados e apenas homens religiosos e dogmas andantes encontrava, a cidade estava
cheia, ao estilo que se precisar: sente-se por demais realizado? Faça-nos uma visita que
ensinaremos a medida exata para sua dose extra de sofrimento pessoal; se nada faz
sentido, deus é nada e tudo ao mesmo tempo, o sentido e o inverso, o lugar onde o sim e
o não são amigos, não perca!; entregue tudo o que possui a nós, representantes de deus, e
assim estará livre dos bens materiais que o condenam ao mundo, confira as promoções a
um preço simbólico, como simbólico é o seu dinheiro; deus está aqui, não, deus está aqui,
deus não está aqui, deus morreu, ele ressuscitou ao terceiro dia, deus sou eu, todos temos
deus dentro de nós, libertem-se, deus é tudo, é nada, compra-se deus, vende-se deus aqui,
as vozes se misturavam enquanto Moço corria e os religiosos corriam-lhe atrás e tudo se
tornava uma coisa só, todos querendo que seu deus fosse melhor e mais bondoso e mais
perfeito e melhor e pior do que os outros e quanto mais as coisas dessem erradas para
seus inimigos, mais convictos da verdade eles estavam... deus te salva, menino! Deus te
quer! Deus te ama! Deus, deus, deus, deus, deus... existindo completamente na boca de

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cada um que gritava, exaltados, confiantes que quanto mais suas vozes tocassem o céu,
mais próximos de moços e moças estariam, mais poder o representante de deus possuiria
e não há humildade na fé doentia, cancerígena que não enxerga o próximo. Por que nada
estão fazendo? Por que não vivem o que ensinam?! Por que ensinam o que não existe?
Por que existe o que não existe?! Por que são o que não são?! Por que querem isso e não
aquilo?! Por que estão todos errados de suas certezas?! — Moço gritava, corria, pulava,
chorava, empurrou uns, jogou outros ao chão, foi impedido de continuar a correr e
acertou a mandíbula de um adorador. Gritava e gritou não tão alto quanto os religiosos
dali, que o queriam. Venha, venha para cá, pois é o seu destino, você é livre, mas você
virá. Moço fugiu, fugiu, rápido e lento quando se cansou, deixaram-no pois outros moços
chegavam e alguns, como Moço, era mais fácil desistir do que lutar por apenas uma alma.
Ainda estava naquela cidade e sentou-se logo que encontrou um lugar que não se ouvia
de forma tão efusiva as declamações de fé. Fechou os olhos para tentar apagar de sua
vista o que ouvia e tentou sonhar.
Capítulo VI

“Venha, não discuta, quando crescer você entende”, dizia sua mãe para que o
Mocinho que crescia diariamente aprendesse a ser uma pessoa respeitável. Ele estava
questionando sobre o que não compreendia, isto era, questionar tudo, mas sentia medo de
perguntar, por vezes, ousara soltar, lentamente, um “por quê” sobre qualquer coisa que
não pudesse ser encaixada na imaginação de uma criança. “Porque é assim e, querida, o
que temos para o jantar hoje?”, foi a resposta perdida no ar que Moço teve. Chegou a
imaginar que poderia ser o momento em que fazia suas perguntas, então deveria procurar
o momento exato para que pudesse obter uma resposta, sabia, até agora, que momentos
antes de refeições não eram horários propícios para isso. Tentou em todas as horas do dia
que lhe foram possíveis: durante as refeições: “isso não é hora para se falar sobre isso”;
durante a missa no domingo: “quieto e presta atenção, menino”; antes de dormir:
“silêncio, eu e sua mãe estamos ocupados e você durma agora mesmo, fecha a porta”.
Mocinho acordou sua mãe, na madrugada, para perguntar-lhe o porquê de algo que lhe
interessara durante o dia, ela resmungou algo com sono e mandou-o de volta para sua
cama.
Ele já não perguntava mais nada. Sentia-se mais distante de seus pais. Sem os
amigos da escola, começou a ler. Lembrou-se do encanto que sentia ao dormir da maneira

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mais confortável que já sentira em sua vida: com a cabeça encostada sobre as pernas de
sua mãe enquanto ela contava histórias incríveis, as melhores ela sabia: monstros
solitários e infelizes que raptavam donzelas vaidosas e boçais que seriam salvas por seus
bonitões gigolôs. Depois que aprendera a ler, ela não lhe deu mais atenções, ele pensou.
Agora tornava-se homem, era um adulto e já poderia ler os livros sozinhos, as palavras e
ele. E assim, abandonado pelos pais e pelos mesmos pais obrigado a afastar-se dos
amigos, estes jovens também sem as respostas que Mocinho precisava, eram, ao menos,
companhia para as dúvidas, boas e divertidas companhias lhe haviam sido tiradas e os
pais não estavam ali para dar companhia para a solidão dos questionamentos do filho.
Mocinho começou a descobrir seus próprios porquês.

Capítulo VII

Comeu comida que encontrou no lixo, vomitou e comeu novamente, Moço ainda
conseguiu beber um pouco de água em um riacho sujo próximo à cidade religiosa e
alcançou a próxima cidade. Da anterior, fugiu com as dificuldades que enfrentou seus
pais ao imporem-lhe a religião. Deixava para trás a fé, a moral e princípios que nunca
desejou ter.
Aquela outra cidade que chegava parecia bela. Haviam flores e estas não eram
tristes, uma lagoa sem peixes no centro e violinistas tocavam para casais apaixonados e
desembaraçados que dançavam nas ruas, apresentavam-se suas paixões ao público com
orgulho. Os habitantes estavam felizes e nada pediam por isso, estavam todos
apaixonados, os homens por suas mulheres, as mulheres por seus homens. Olhavam para
Moço com tristeza: ele era o único que parecia não estar contente, que não tinha uma
companhia, que não dançava. A tristeza ali era mal-vinda. E apesar de gostarem de
admiradores, aqueles olhos intrusos de estranho, analisando seus amores, incomodava-os
enquanto trocavam beijos.
Diferente da outra cidade, na qual todas as portas estavam abertas para aqueles
que desejassem seus espíritos guiados por um deus e que tudo era perdoado e esquecido e
sempre se tem uma outra chance, ali, na cidade do amor, as portas mantinham-se
fechadas, os amantes estavam fora de suas casas por alguns momentos e, quando não
tinham mais um público, corriam a trancarem-se em suas casas.

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Pois foi passando por um casal que se beijava, que Moço perguntou: “Por que
todas as portas se fecham aqui?”. Para ele, o amor era uma fábula, vindo dos livros,
conhecia várias descrições que o tratavam como a saída para o problema dos mundos, a
felicidade, algo inalcançável para um ser humano comum: e há um ser humano
incomum? O casal perguntado não deu uma resposta e a atitude não foi por falta de
educação, porém, não podiam ouvir nada, senão os próprios beijos e as juras de amor que
não paravam.
Não sabendo o que acontecia, Moço perguntava a mesma coisa para os outros
casais, observava as mulheres beijadas e lhe excitou suas belezas. Eram lindas em corpo e
gestos, ele achou nunca ter visto mulheres tão femininas como aquelas.
Os machos, percebendo aquela cena, “aquele mocinho, estranho e sujo, entra na
nossa cidade e observa nossas mulheres, quem é esse? Você o conhece?”, questionaram
suas mulheres. Alguém que vai lá falar com Moço para lhe questionar:
— Quem é você, garoto? — era uma apaixonado, antes de falar com Moço, foi até
sua casa e deixou lá sua namorada, considerou um lugar seguro dos amores intrusos.
Apenas passei por aqui, foi a resposta, vi a felicidade que cheira a cidade e me admirei.
O rapaz que foi para conversar com Moço gostou do elogio, mas estava sério: —
Para você, esta é a cidade do amor. Amamos nossas garotas e elas nos amam. O nosso
amor é para ser visto e gostamos disso, porém... nossas garotas não devem olhar para
outros homens e elas só olharão para homens solteiros e você é o único aqui.
Compreendo sua tristeza, não conseguiria imaginar um mundo sem companhias,
companhias de mulheres, companhia da minha mulher, eu não conseguiria imaginar e
vejo algo que eu não imagino na sua figura. Poderia se retirar?
Os pensamentos do rapaz eram coerentes a Moço e sentiu que conhecia naquele
lugar o amor perfeito: orgulhoso, protegido, satisfeito. O que viveu com seus amores
devia ser um rascunho daquilo, aqueles ciúmes possessivos intransitivo ele jamais
conseguira ter e teve inveja: — Amor assim eu nunca vi, amor livre é o que vocês tem
aqui. Pois ficarei apenas por esta noite, não me excitarei olhando mais para suas
mulheres, é isso o que eu peço.
Para isso, o rapaz disse que não poderia deixá-lo naquele lugar, precisaria ir para
um médico, não deixaria ficá-lo na rua pois, apesar dos ciúmes, ele o amava. Amamos a
quem vem a nossa cidade, foi o que foi dito, por isso, levarei você ao nosso médico, é um
doutor que cuidará de você e o deixará pronto para amar.

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O apaixonado mostrou o caminho e acompanhou Moço até a clínica, começaram
os cochichos: ele nunca amou, ele nunca amou, as pessoas sussurravam o boato, era
excêntrico, apontavam para Moço, quem estava próximo dele se afastava, com medo de
pegar aquela doença da qual só ouviram falar sobre outras cidades distantes, onde há
guerra e violência e comércio o tempo todo.
Onde está o médico?!, alguém gritou do meio da multidão. Ele está vindo,
respondiam algumas pessoas que viam-no vindo ao longe. Ele não estava no seu
consultório, pouco visitado, não precisava trabalhar, como os outros, a companhia da sua
mulher era o seu ofício preferido.
Um senhor com roupas brancas aproximou-se de Moço e pediu:
— Por favor, me acompanhe garoto, falaremos um pouco sobre seu problema.
“Fala-se que você nunca amou, é verdade?”, questiona o médico apreensivo
diante daquele ser que nunca vira, em pessoa, apenas estudou na literatura médica os
casos conhecidos como Inaptidão Involuntária De Amor, olhou rapidamente o livro
médico para se lembrar do nome da doença e suas características.
Moço não queria decidir-se sobre se já sentiu algo ou não, tampouco poderia
definir o que era sentir e o que era amor. Estimara algumas pessoas, mas também
estimara odiar outras. As palavras novamente se contraiam em sua cabeça para expressar
uma ideia que ele não queria ter, não queria chegar a uma conclusão definitiva sobre
nada.
“Mas, que importa, quem é você?”, zangou-se Moço por estar dando atenção a um
estranho, respeitado por ser um médico de amor, “que nome ridículo e infantil, vocês não
tinham nada melhor? Não é nem mesmo um nome científico, este mundo de fantasias
infantis...”, criticou Moço.
“Veja bem”, respondeu o médico dando voltas pelo lugar, ignorou as últimas
palavras, eu acho, pois manteve-se sorrindo, amável e calmo, “eu amo você e todas as
pessoas da cidade amam você, mesmo que não lhe conheçam, pois esta é uma cidade do
amor, amamos e esta é uma regra. Não se admite aqui que convivam, conosco, entre
nosso amor gratuito, alguém que nos despreze ou odeie ou seja indiferente, uma desgraça
incalculável”.
“Então eu vou embora”, disse Moço que de tudo que sentia, indiferença não era
um dos sentimentos, incomodava-se com aquela situação.

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O médico olhou-o decepcionado: “Mas, você não pode ir embora, como eu disse,
nós lhe amamos e não se deixa partir o amor. Apesar de você estar com problemas, em
dificuldades, ainda assim, o amor jamais o abandonará. Todos cooperarão para que você
mude e aceite ser como se deve ser, você mudará para se tornar algo que seja aceitável a
ser amado como amamos e que você nos ame como se deve amar.”
Sem responder o médico, saiu do escritório, Moço procurou a saída da cidade,
mas não podia encontrar. Achou uma pequenina porta em um lado dos grandes muros
que cercavam aquele lugarejo, trancada. Não conseguiria escapar por ali, mesmo aberta,
era minúscula. Eles o olhavam com vergonha, disseram que apesar de ser um deles, era
vergonhoso tentar fugir do amor, traidor, quando se oferece um amor puro e
incondicional. A população inteira decidiu, sem precisar pensar: Moço precisava mudar.

Capítulo VIII

As leituras que o Mocinho começou a fazer, antes de todos os seus amigos,


mesmo os que viriam a se tornarem intelectuais respeitados, fizeram-no conhecer coisas
que seus pais acusariam de “inadequadas” para uma criança. Ele descobriu a grande
admiração que os escritores possuíam pelas mulheres e não entendeu os elogios que
encontrava nos livros para aqueles seres comuns. Decepcionou-se ao descobrir quantos
homens, egoístas e mesquinhos, abandonaram seus planos de salvarem o mundo como
heróis, mártires, para se renderem a uma vida medíocre ao lado de uma mulher que tinha
como único interesse possuir uma casa confortável e uma vida tranquila e sem
dificuldades imprevistas. Uma criança que quer ser super-herói, um homem que quer ser
um super-herói, uma mulher que nunca foi criança destrói todos os sonhos sem dizer uma
palavra, apenas com uma beleza inexplicável que cega os desejos de um homem.
Na escola, recebeu, enquanto lia um de seus preciosos livros, um bilhetinho
qualquer, caído do céu ou vindo da mão de uma garotinha tímida que o deixara sobre a
cabeça de Moço e saíra correndo para que ele a visse pouco.
“Gosto de você”, dizia aquilo que ele segurava nas mãos. Pensou em quem
escrevera, sabia quem era, os olhares e os risinhos faceiros eram facilmente descobertos e
Moço enrusbeceu ao descobrir-se sendo olhado pela menina que deixara seu bilhete e
agora comentava coisas com suas amigas, levemente apontando para ele.

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Ele não soube o que responder e por enquanto nada disse, guardou o papelzinho
no bolso e em casa, ficou a lê-lo diversas vezes, disse que esqueceria-o e guardou em um
lugar bem escondido por dentro de alguns papéis que nunca mexia, depois, distraía-se e
sem perceber, estava a revirar os mesmos papéis, procurando aquele bilhetinho escrito
com letras tão belas e que declarava-se de forma tão pura o seu amor. Eu também gosto
de você, Moço pensou pela primeira vez. Aceitou aquele amor, não conhecia a menina,
apenas a vira algumas vezes e amou-a desde o momento que leu que ela é que gostava
dele, mas só agora descobriu isso.

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Novamente, atormenta-me as ideias malditas sobre este livro maldito. Tenho
medo de mostrá-lo às pessoas para que julguem meu trabalho, é essa a razão de um
artista? Ser julgado por quem vê sua obra acabada, tinindo e quente, esperando para ser
saboreada. Não sou escritor, nunca escrevi um livro e poucos me leram: por que me julgo
por essas bandas que desconheço? O que me fez querer escrever... todas as perguntas que
vêm só me deixam mais distantes da estória que procuro escrever. Tento paralelar o
passado e o presente de um personagem de uma forma tão pouco original, mas não
consigo parar de fazê-lo. Então, esse é o meu fim: pouco escrevi e já começo a usar
fórmulas convencionais para explicar um mundo de uma forma que eu vejo. Isso basta?
Sinto medo a cada palavra nova que coloco neste papel. Não sei explicar o medo, mas a
fúria que me veio nos primeiros dias de escrita dissipou-se e agora sinto uma tensão
constante em cada linha escrita. Tenho medo de tudo o que digo aqui, pois é toda parte de
mim que ninguém vê, mesmo que tantas vezes me ouçam e imaginem me
compreenderem, assim é o mundo como eu vejo, olho para tudo já adaptando o que penso
para as palavras que conheço e já terei as minhas ideias empacotadas e comprimidas para
caberem dentro de minha cabeça. Experimentar novos modos de escrever, eu devo?
Abrir-me para campos desconhecidos, diriam os otimistas, que tanto falam e pouco se
abrem “viva sua vida enquanto eu lhe falo como vivê-la”, gritam-me. Experimentos,
ainda tímidos, serão feitos...

Capítulo IX

Personagens:

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Mocinho
Menina
Diversos figurantes sem rosto (três amigas de Menina, amigo de Mocinho, adolescentes
no café, garçom, passantes etc).

Cena 1
Em um local de encontro qualquer, um restaurante ou um café com pessoas sentadas às
mesas ao redor. Entra Mocinho, observa ao seu redor, nervoso, olha para seu relógio
sem parar e senta-se à uma das mesas.

MOCINHO: Ó! Onde está que jamais chega a garota para qual meus sonhos estiveram
guardados? Ela se atrasa e isso mata-me o coração. Garçom! Venha cá, garçom, nenhuma
mocinha chegou aqui e ficou a esperar impacientemente por alguma pessoa que pareceu-
lhe bastante especial, mas de tanto esperar o coração murchou e ela, forçada pelas
circunstâncias, foi embora com um rosto triste e decepcionado? Diga-me! Vamos! Não
tenha medo se achares que tua resposta aniquilará meu coração, este já foi aniquilado
desde quando decidi amar essa mulher que agora está apenas nos meus pensamentos
quando deveria estar na cadeira, diante de mim.
GARÇOM: Não.
(Chega MENINA e sorri ao ver o MOCINHO já a lhe esperar, senta-se à mesa)
MOCINHO: Então, chega você, finalmente.
MENINA: Perdoa-me o atraso, querido, não desejo mais nada além do amor que existe
entre nós dois, mas sinto pavor de decepcioná-lo se ao nosso encontro eu chegar não tão
bela quanto você merece, o tempo, este insensato, é sempre um inimigo cego da beleza
que carrego somente para você, meu amado. Se não me perdoar, entenderei que não fui
digna de ser lembrada e amada por pessoa mais doce e amada que você não há. Lembra-
se de mim ao menos quando tiver notícias de minha morte, pois daqui sairei sem o seu
perdão diretamente para a cova, único lugar que merecerei estar por ter magoado o seu
perfeito coração.
MOCINHO: Querida, meu amor, meu desejo mais reprimido e agora expandido,
apaixono-me quão mais percebo a sua ingenuidade ao imaginar que eu seria capaz de

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subjulgar a paixão que há entre nós dois apenas porque a beleza que eu mereço de você
não me agradasse. Com você não estou pela beleza, algo das mais grandiosas que você
possui, eu amo você por algo que não sei explicar, a sua existência, sozinha, tratou de
fazer-me amar você e sobre sua morte, jamais ouse tocar nesse assunto tenebroso, pois
não poderia imaginar vivendo nesse mundo triste sem a sua presença, minha única razão
de continuar vivendo.
MENINA: Anima-me o belo modo como declara o nosso amor aos ventos, espero tanto
que pelo ar outras pessoas possam ouví-lo e sentir o mesmo que sentimos.
(Garçom aproxima-se e oferece-lhes o menu)
GARÇOM: O que desejam?
MOCINHO: Desejamos que todas as belas coisas do mundo pertençam a todos os
homens e mulheres...
MENINA: ...e que toda garota, ao se apaixonar, seja retribuída da mesma forma que
entrega-se, ao primeiro e eterno instante, o seu coração ao seu amado...
MOCINHO: ...e que todo garoto, ao admirar uma menina e desejá-la para si, que o medo
se vá embora para dar lugar a um amor saudável e constante, que amor no mundo serve
para oprimir e amendrontar o ser que ama...
MENINA: ...e que toda garota, ao ver-se diante do seu sofrido amado, que depois de
tantas batalhas com sua consciência, consiga vencer-se e, afinal, chamá-la para sair, que
essa jamais o recuse, sempre ouvindo as suas vontades e nunca suas amigas.
MOCINHO: Amigas?

(Mocinho acorda de seu pensamento, não sonhara dormindo, imaginou aquelas


situações que desejava que acontecesse entre ele e a Menina)

Cena 2

Realidade: Uma escola. Mocinho chega a um canto com um amigo, do outro lado,
encontra-se sua amiga rodeada de amigas, que conversam e, por vezes, observam-no.

MOCINHO: Que faço?


AMIGO: Não sei. Converse com ela, diga o que achar importante.

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MOCINHO: E as amigas? Não estou com medo, nem vergonha, não sou tímido, mas ela
pode ficar envergonhada por falar com um garoto na frente das amigas.
AMIGO: Se ela ficasse sozinha...
MOCINHO: Sim, seria o ideal, mas não, eu também poderia telefonar, não seria difícil
descobrir o seu número, mas, também não, devemos falar, primeiramente, em pessoa.
Depois eu lhe peço o número.
AMIGO: Eu posso ir lá para você, chamá-la, entregar um bilhete, qualquer coisa.
MOCINHO: Sim! Isso mesmo. Exatamente o que devemos fazer. E o que ela pensará de
mim? Parecei com ela mandando um bilhete tímido e correndo, pior: mandando um
amigo, ela mesma veio me deixar o bilhete.
AMIGO: Então, podemos segui-la após a aula, ela sempre caminha sozinha por um
trecho até sua casa, uma de suas amigas a acompanha até metade do caminho, que é
também o caminho de sua casa.
MOCINHO: Como sabe disso?
(O amigo vê-se a pensar, ele não tem resposta, não há resposta, não há amigo e nem
Mocinho ou Menina, mas o autor dá-lhe tudo que precisa para viver, existir e, assim,
pensar)
AMIGO: Um colega que estuda com a gente me contou. Por ali ele também vive ou
existe, sei lá.
MOCINHO: O plano é bom, acho que ficarei com esse. Porém, o que ela pensará ao me
ver a persegui-la? Moro no sentido oposto daquele que ela vai. Esqueça, não há o que
fazer. Mas preciso fazer e é o que eu farei.

(Eles se calam, Menina e amigas conversam)

MENINA: Ele olha para cá sem parar.


AMIGA 1: Sim, e nada faz. Qual será seu problema?
AMIGA 2: É um tímido.
MENINA: Mas eu gosto dele mesmo assim, mas ele poderia ter mais coragem...
AMIGA 3: Por que você não vai lá? Chame-o para sair, você também pode ter um pouco
mais de coragem e não esperar que eles façam tudo por nós. Até mesmo porque você
gostou dele antes, você procurou-o primeiro, talvez ainda continue na sua vez de dar os
passos e aproximar-se dele como você espera que ele de você se aproxime.

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(As garotas se entreolham e nada dizem, a AMIGA 3 levanta-se, com um rosto triste, sai
de cena)
AMIGA 2: Realmente, ele deveria ter mais coragem...
AMIGA 1: Concordo com todas, mais coragem.
MENINA: Talvez ele não goste de mim. Talvez ele converse com seu amigo sobre a
ousadia de uma garota deixar um bilhete daquele jeito.
AMIGA 1: Não fale assim, ele gosta de você. Iremos até lá conversar com ele enquanto
você fica aqui. Combinaremos algo para vocês dois.
(Elas vão até Mocinho e o Amigo)
AMIGA 1: Ei, Mocinho.
MOCINHO (nervoso): Oi.
AMIGA 2: Viemos para falar com você.
MOCINHO: Sei.
AMIGO (mais confiante que Mocinho): Digam, estamos ouvindo.
AMIGA 1: Você quer sair com minha amiga? Ela gosta de você.
MOCINHO (pensando): Que delícia, ousadia para nosso amor. Jamais pude esperar que
o meu amor pudesse ter tamanha coragem e tudo por mim, por mim e pelo amor que
cresce entre nós. Como sonhei por minha vida inteira com o momento, o exato momento,
em que minha amada estaria aos meus pés e eu aos dela, ela chamando-me amor,
convidando-me para sair e eu aceitando, nos beijamos, nosso amor infinito.
MOCINHO (dizendo): Sim.
(As duas amigas dizem mais algumas coisas, enquanto Mocinho concorda com a cabeça
com as perguntas feitas, a luz ilumina Menina, visivelmente nervosa)
AMIGA 2: Pronto. Vocês têm um encontro marcado e eu o avisei que ele deveria lhe
beijar durante o encontro.
(Felizes. Encerra-se a cena).

Capítulo X

Moço forçou-se a viver naquela cidade de amores por algum tempo. Tinha abrigo
onde queria, pois eles lhe davam tudo que precisasse para que, em troca, lhes desse o
amor e a paixão que os habitantes queriam. Também cobravam resultados.

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“Vamos! Está aqui há tantas semanas e não vejo nada em seus olhos, nem um
suspiro de amor, onde está? Come da minha comida e do meu corpo, mas não me ama.
Onde está o seu amor?”, acusava uma garota que hospedou Moço em sua casa.
Ele não tinha resposta, tentou um “então, deixa-me ir embora que aqui não quero
viver”, um grito, depois um sussurro dizendo a mesma coisa e um carinho nos cabelos da
amante ciumenta não a fizeram mudar de ideia. “Aqui é seu lugar, sei que é difícil para
mim, que preciso aguentá-lo e sofrer enquanto você esnoba meu amor, mas não posso
deixar você partir, eu sinto isso”. Assim, o viajante que saíra de sua casa para encontrar a
liberdade de ser nada, um homem comum que é inteiramente homem e um animal ainda
com instintos humanos que são animais e não são, estava preso ao livre amor. Foi
encontrar-se com o doutor, que exigia vê-lo durante a semana.
— E então? Já ama a garota que lhe hospeda?
— Amar jamais. Nada disso eu sinto e não vou sentir enquanto me prendem aqui.
O amor não deve ser livre? Sempre quando eu lia nos livros sobre amar... ou as garotas
que conheci...
— Os livros não interessam. Aquelas descrições cheias de fantasia e irrealidades
são tão bobas e problemáticas, pois os turistas sempre nos visitam desejando esses
amores que não existem, eles se decepcionam. Em alguns livros é possível, raramente,
encontrar um trabalho interessante, mostrando um amor real, passional, furioso e perfeito.
Sobre as garotas que você conheceu. Elas lhe amavam? Você as amava? Vocês deixavam
um ao outro livre para partir?
Moço pensou em jogar um “sim” na pergunta do médico amoroso, mas não queria
mentir e sabia que dos amores que conheceu, nenhum era diferente daqueles que eram
vividos naquela cidade. Ele tratou suas namoradas como a garota que lhe hospeda o trata.
Suas amadas, nenhuma permitia fuga, deixando, por vezes, apenas uma portinhola
minúscula para dar ao Moço amante a crença de que era uma pessoa livre e que ali estava
por querer. Vai se deseja ir, não impedirei pois o amor que sinto não permite isso, mas ao
voltar, com outro já estarei, era o que diziam, sempre. Mesmo que fosse, elas não
estariam com outro se ele voltasse, passariam, ainda, por noites a chorar, ligariam para
Moço e, cinicamente, perguntariam como ele estava, fingindo-se contentes se ele
estivesse feliz, comemorando, escondido, se ele estivesse triste. “Volta?”, perguntavam
as mais honestas. “Quando quiser me ligar, sinta-se à vontade, não me incomoda”, diziam

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as mais reprimidas. As hipócritas não ligavam para Moço, mas corriam em desespero ao
ouvir o telefone tocar.
— Não amo.
O médico, em fúria, bate-se contra a sua mesa, que é apenas decoração, pois não
há nada em cima, talvez sirva-lhe para encostar os braços quando está sentado na cadeira.
— Essas duas palavras jamais podem ser utilizadas juntas. O amor é sempre sim.
É sempre concordância. O amor sempre permite. Por que dificulta o entendimento de
algo tão natural a qualquer ser humano? Quando nasce, já tem o amor da sua mãe, anos
depois encontra o amor dos amigos de infância e sem demora, encontra o amor de uma
garotinha da sua escola ou da sua vizinhança e em breve será um adolescente cheio de
amores. Com todos é assim. É inevitável. — disse o médico, controlando sua raiva.
— Então, por amor, deixa-me ir embora?
Queria eu, como escritor, relatar para os indignos leitores os pensamentos desse
médico irreal que criei. Mas não me vêm à cabeça nenhum pensamento que ele tem.
Parece-me como todas as pessoas que acumulam uma combinação de frases e mudarão
apenas suas colocações para exprimir a mesma ideia por sempre. Parece-me que a
maioria das pessoas são assim. Tenho medo de me tornar assim, principalmente com o
livro que escrevo. Por isso, salvarei a paciência do Moço, a curiosidade desocupada do
leitor e o meu temor de me tornar demasiado prevísivel e mudarei agora o rumo da
história.
Moço baixa sua cabeça e diz: — E o que você acha do ódio? — Levantando-se,
vira a mesa sobre o médico e agarra seu pescoço com as duas mãos, apertando-o. — O
que você acha do ódio que sinto por todo o amor que me prendeu em minha vida? —
Apertou até deixar vermelho o rosto do médico, mas ainda permitia-lhe a respiração —
Tudo que você fala de amor, todas as descrições que você me passou são apenas nomes
que os homens dão para cada coisa que os dá prazer. Se dá-me prazer sentir ódio,
chamarei de amor. Se dá-me prazer o sexo, chamarei isso de amor. Qualquer coisa será o
amor, inclusive essa vontade que estou de matar as pessoas dessa cidade, que cansaram a
minha paciência apenas por não me deixarem ir embora. Eu ficaria aqui enquanto eu
vivesse se me permitissem ir embora.
Levantando-se com as mãos na gola da camisa do doutor, Moço o puxa para fora
do consultório, carregando-o através da cidade que se reúne ao redor daquela cena, nada
fazem, apenas observam com espanto.

27
— Olhem para mim! Este é o amor que sinto. Isto é amor para mim, vejam o
quanto posso amar — gritava Moço enquanto esmurrava o rosto do médico. Destruia-lhe
a face enquanto a plateia se perguntava o que era o amor que Moço dizia. — Tratem
assim o amor que lhes dou, pois é esse ódio que me dá mais paixão nessa vida. Nada aqui
aprendi a não ser a ser um prisioneiro, mas agora abandono este lugar que tanto me amou
e tomou a minha raiva — tudo dito enquanto parava, por instantes, com os socos no rosto
coberto de sangue.
Comentavam sobre os socos. Ninguém se horrorizava, assustaram-se com os
gritos de Moço ao começar a espancar, mas, refletiram sobre se o amor que ele
mencionava era uma outra alternativa. Os comentários tornaram-se mais altivos, eles
diziam a mesma coisa “é esse amor que quer de nós?”, eles diziam e espalhavam o
pensamento igual para as pessoas iguais. Todos acreditavam que era assim que o Moço
poderia amá-los e todos se preparam: com suas pedras nas mãos, preparam-se para dar ao
rapaz todo o ódio amoroso que ele pedia.
As portas daquela cidade fantasiosa se abriram quando as pedras começaram a ser
atiradas. Moço corria sob a chuva que furava-lhe a cabeça. Correu para longe daquelas
pessoas que continuavam a gritar “volte, você terá todo o amor do mundo, como deseja,
seremos como você nos quer, volte!”.

Capítulo XI

Cena 3

Um quarto. Mocinho acorda assustado, ao seu lado, uma garota dorme. O personagem
de Mocinho agora deve ser interpretado por um ator mais velho.

MOCINHO: Tive um pesadelo.


(Menina acorda, sonolenta)
GAROTA: Calma. Passou. Dorme.
MOCINHO: Sonhei que todas minhas namoradas tinham o mesmo rosto e que você era
igual a mesma garotinha que, ainda na escola, me deu o primeiro beijo.
GAROTA: Não gosto que você fale assim.
(Ela se levanta e começa a vestir-se)

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GAROTA: Acho que foi um erro nós termos dormido juntos. Sou muita nova para isso e
você fica sonhando com suas ex-namoradas.
MOCINHO: Eu disse que foi um pesadelo. Não gostei de pensar dessa forma. Ainda
mais eu poderia ter mentido para você, mas falei a verdade.
GAROTA: E ainda sente-se orgulhoso de ter me contado! Deveria ter mentido, seria
melhor para o meu humor.
MOCINHO: E pior para o nosso amor.
GAROTA: Esse “amor” está ficando cada vez mais difícil de suportar.
MOCINHO: Para mim, não há dificuldades. Nos gostamos e só.
GAROTA: Não é só isso. Mas eu lhe dou tudo que tenho, chamo-o para dormir na minha
casa quando meus pais viajam, mas não recebo nada em troca. Não sinto que você sinta o
mesmo por mim.
MOCINHO: Mas eu lhe dou também tudo que tenho em troca, minha compreensão, meu
carinho, minha honestidade.
GAROTA: Isso não é suficiente quando seu pensamento não está em mim. Todas essas
coisas você faz de um modo mecânico, mas os sonhos, que são naturais e não tem o seu
controle, esses não me têm lá.
MOCINHO: E você, sonha comigo?
GAROTA: Não jogue a culpa em mim. Você sempre quer falar de mim quando estamos
falando de você.
MOCINHO: É melhor eu ir embora.
GAROTA: Agora você quer fugir.
MOCINHO: Mas, então, o que eu faço? Tudo que eu fizer será mecânico, controlado
por mim, então talvez você não irá acreditar que seja algo verdadeiro em mim. Devo
dormir e esperar por um sonho com você?
GAROTA: Eu sei, mas fique aqui comigo. O que eu disse pode não ser totalmente certo
e eu ainda gosto de você.
MOCINHO: Tem certeza? Acho melhor eu ir embora e depois conversamos. Fiquei
triste por essa conversa e pode ser que briguemos novamente.
GAROTA (irritada): Olha, se você quer ir, vai! Pode ir, eu não me importo com você,
quero ficar sozinha mesmo. Vai, mas não volta mais não, está bem? Pode ficar enquanto
estou dando a chance de você não ir, pois gosto de você, mas a responsabilidade é sua por
ir e não vou procurar ninguém depois que isso terminar.

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(Mocinho se levanta e sai de cena. Menina chora e fecham-se as cortinas)

Capítulo XII

Pensando foi que Moço se recordou das mulheres que teve, das brigas que deixou
acontecer e das vezes que encenou as peças teatrais que se repetiam sempre, algumas
vezes ele interpretava o vilão, noutras, a vítima, mas, nunca, o herói.
Como se poderia resumir os casos de heroismo em relação às pessoas que
conheciam Moço, seus amores e seus amigos: no início da amizade ou do namoro, Moço
era visto como um guerreiro heróico, alguém com as soluções para os problemas e que
poderia-se confiar para guardar as esperanças de todos, pois era ele quem traria as saídas
para os problemas da vida. Depois de um tempo, quando conheciam Moço melhor e
percebiam que ele não conseguia resolver nem sua própria vida, talvez por não ter nada a
resolver, seus amigos se decepcionavam. Pressionavam-o para ser o que ele havia
prometido ser, mas ele, fraco ou por qualquer motivo que seja, não conseguia, tentava e
não conseguia. Decepcionados, ainda assim mantinham a amizade de Moço, agora,
porém, ele seria apenas uma companhia para entreter, como os outros.
Moço, no presente esquece-se do que pensava do seu passado e cuida dos
ferimentos que recebeu na cabeça e dos pés calejados. Quis curar a decepção por não ter
conseguido mudar a vida das pessoas que o admiravam. Ele admirava a si mesmo. Por
isso dedicou-se ainda mais às leituras intensivas, queria achar uma resposta que
certamente estava nos livros importantes. Nada encontrou e sentiu-se culpado no
momento em que seu sangue caminhava no seu rosto, a culpa era sua. Será que me
procuram?, pensava. Pensam em mim? Procuram-me por acharem que ainda tenho algo a
lhes dizer ou apenas por uma conveniência de que ninguém pode abandonar sua vida no
meio? Achou, de forma ainda mais cansada, que a caminhada tornava-se mais inútil do
que parecera em seus sonhos e planos. Ele não mudava, não importava quão longe seus
pés pudessem levá-lo, sua cabeça e suas ideias continuariam no mesmo lugar, era o que
pensava.
Por horas Moço sentou-se, esperando atitude do escritor deste livro, para que lhe
trouxesse uma razão para continuar com aquela viagem e esta veio-lhe no pensamento de
que se voltasse para onde sempre viveu, ressuscitasse suas manias e a rotina inevitável
que trazia-lhe o tédio e a dúvida, estaria mais distante de encontrar algo que o fizesse

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caminhar. A religião e o amor às mulheres não foram motivos suficientes para desistir.
Era um otimista para continuar a acreditar que poderia encontrar o que procurava.

Lembrou-se das revoluções que desde adolescente queria fazer. Animou-se ao


lembrar do romantismo de suas atitudes e como elas eram muito mais verdadeiras do que
aquele comodismo com o mundo que pessoas ao seu redor possuíam. Elas não queriam
lutar, queriam apenas que os problemas deixassem-lhes em paz e que a vida fosse menos
dura. Comeu algumas frutas de gosto ruim que encontrou na estrada e chegou na terceira
cidade, um lugar organizado e triste. As pessoas iam para o trabalho com as caras
emburradas e não era possível encontrar tranquilidade. Um homem que caminhava com o
rosto de todos sentou-se ao chão e começou a chorar. Até ele foi Moço para perguntar:
— O que há com você? Na verdade, o que há com essa cidade?
O homem levanta sua cabeça baixa e olha para Moço com surpresa. O que você
quer?, ele pergunta. Moço repete suas palavras “O que há aqui?”. Nada há aqui Ele
continua: O que havia aqui era esperança, evolução, uma vida boa para se viver quando
se tinha esperança. Mas isso foi há muito tempo. Nos dias de hoje, não há nada aqui.
Tudo é controlado, o homem não é mais livre. Se quer uma mulher, tenha-a por uma
noite, alugue-a pelo tempo que precisar. Se quer um deus, encontre o que mais se adaptar
às suas vontades e terá sua fé. Se quer um sentimento, se você quer a felicidade, você
pode consegui-la no comércio, não apenas a felicidade, mas você pode ter o sentimento
que seu corpo precisar encontrar: raiva pelo mundo que lhe oprime, satisfação e preguiça
nas comidas que lhe agradam, pensamentos encaixotados nas pinturas na parede, diversão
morta nos filmes do cinema. Compre o que precisar, seja um mau ou bom sentimento, sua
satisfação julga. Define-se a capacidade de realização dos nossos prazeres somente com o
trabalho que realizamos.
A única diferença que encontrou entre seus pensamentos e as palavras do homem
choroso era o otimismo inexplicável que Moço possuía. Seu otimismo talvez pudesse ser
explicado: não havia outra coisa a fazer. Odiava o tédio. Então, por que não arriscar uma
vida diferente, uma aventura dolorosa, por que não? A explicação mais óbvia. Se
perguntar, Moço acredita e responde que ainda há esperança, solitariamente será essa a
sua resposta.
— Faça algo para mudar — foi o que Moço disse sem pensar, como se aquela
fosse a resposta correta para lamúrias.

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Não sentiu-se feliz, mas o homem começou a gargalhar das palavras do garoto
estranho que perguntava-lhe “o que há” quando o óbvio era ver o nada em todos os
lugares. Respondeu:
— Não há o que fazer. Do mesmo modo que tiraram do homem a alegria de
buscar seus sentidos e sentimentos, tiraram a coragem de lutar. Não há o que fazer. Que
pergunta tola. Jamais vi alguém assim falar. Não gosto de pensar nessas coisas. Pode me
deixar sozinho agora?
Moço sai sem compreender o homem. Sempre veria, enquanto seus dias foram ali
passados, um homem ou mulher chorando nas ruas. Pensou que ali poderia ser um lugar
para arriscar a revolução que sonhou, um dia.

---
Hoje comecei mais um grau de organização neste trabalho. Começo a aceitar
melhor o fato de que sinto verdadeira afeição por meu conto e passei a escrevê-lo de uma
forma mais natural. Para quem se questionar, precisei de uns 6 meses para estar onde
estou. Poderia ter sido menos se não houvessem tantas preguiças, decepções, distúrbios e
outras coisas mais que posso misturar e chamar de procrastinação. Tudo que atrapalha o
desenvolvimento do livro nada tem a ver com o livro. Quase tudo. Confesso, com
vergonha e um pouco contra minha vontade, que estou sentindo até certo carinho pelos
leitores. Sei que não há leitores enquanto escrevo isto, possuo afeição pelos leitores que
imagino que lerão este relato quando terminá-lo. Imagino a todos: o garoto que gosta de
livros e lê com admiração, o crítico que analisa atentamente cada parágrafo, o literato que
enxerga o que eu não quis dizer, a mulher que lê para passar o tempo e nada mais, o
estudante que lê por obrigação e com ódio. Imagino outros, muitos outros serezinhos me
admirando, me odiando ou nada sentindo por mim. Começo, novamente com uma
vergonha, a me sentir perto deles, mesmo que essas pessoas ainda vivam apenas em
minha imaginação, é bastante provável que nunca existam. Eu até... desejo suas
existências! Gostaria de perdoar-me por isso.

Capítulo XIII

Sem amores, sem mulheres, o Mocinho do teatro


Que tanto entendimento buscava, descobriu que acharia

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A resposta para todo seu futuro e para toda aquela falta de alegria
Algo que em sua sala sempre esteve, era de seus pais um retrato

Olhou para eles, tanto os observava


Daqueles dois, o que nele faltava?
Dos amores que teve, pouco lhe sobrou
Nos seus pensamentos, tinha um temor

— Não quero como os meus pais ser


Deles muito já foi visto
Presos em sua rotina, sinistros!
O vazio que os acompanha, eu não quero ter

Foi na biblioteca da escola que ele achou


Perdido entre livros e teorias
Um amigo que logo o encantou
Era alguém que a vida muito temia

— Olá, Mocinho, disse o nervoso


Então gosta de livros
Como eu, lhe agrada as fantasias
Como eu, gosta de filosofias

— Sim, é verdade, meu caro


Comigo um livro não fica parado
Estou sempre tentando encontrar
Entre as nossas filosofias ordinárias
Algo que me toque, algo que me acorde
Os dois dali saíram mui amigos
Todos os dias já tinham encontro marcado
Na biblioteca, logo na hora do intervalo
Um dia, Mocinho quis lhe perguntar:
— Então, vamos ficar aqui só a estudar?

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O Amigo não entendeu e assim devolveu:
— Mas o que mais poderemos buscar?
— Não sei, mas me cansa esse tanto de blá blá blá
Foi o que Mocinho respondeu e os dois por um instante se olharam
O outro hesitou, não sabia o que dizer por isso lhe deu a primeira resposta que apareceu
— Tem razão, que adianta tanto conhecimento se nada fizermos pelo mundo de já?

Os dois foram embora com na cabeça uma mudança


Não sabiam ainda o que fariam
E ficaram em casa num pensar nunca cessante, por vezes maçante
Só sabiam que algo noutro dia eles diriam

Os dois então se encontraram, nervosos, mas animados


O Amigo disse logo:
— Talvez eu não saiba o que no mundo são fardos
Para que possa tirá-los e o mundo trazê-lo no meu colo

Mocinho estava tristonho, mas mais que o Amigo havia feito:


— Entendo suas dúvidas, também não sei o que no mundo está imperfeito
Mas um manifesto escrevi para as coisas que me são incômodas
Para mostrar o que no mundo me causa ódio, raiva e até me espanta

Manifesto contra o mundo atual

O mundo se divide assim como o coração das pessoas: de um lado jovens, assim
como este aqui que lhes escreve, infelizes e decepcionados com a vida que foi dada antes
mesmo de completarmos pouco mais de uma década de vida. Cada vez mais cedo as
crianças aprendem que o mundo está podre e que precisam apodrecer-se tão cedo
possível para que possam ser aceitas. Estes jovens que sonham com um mundo melhor,
mas pior do que os mais antigos, têm seus sonhos cortados pela raiz ainda na infância,
estes jovens que têm um sentimento dentro de si que não podem explicar, quando veem
alguma injustiça e querem se rebelar, ouvem dentro de si: “Isso é errado”, ouvindo a vil e
despótica voz que foi-lhes, sutilmente, implantada em suas consciências, se ainda pode-se

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falar de consciência. Do outro lado deste mundo partido ao meio por uma espada cega,
estão os pais desses filhos. Homens que nas suas juventudes lutaram por um mundo
melhor, muitas vezes de forma ingênua, mas apaixonada, lutaram para que o mundo
funcionasse da forma mais correta que seus corações acreditavam. E o que fizeram?
Transformaram seus próprios filhos, o futuro do passado que eles não tiveram, em bestas
paralíticas que não sentem paixão por viver. Não se precisa mais lutar por nada, pois tudo
se tem, bastando apenas pedir para nossos pais. Por que lutar? Mas se é luta o que se
precisa.
Eu me manifesto contra toda a desesperança que vocês, homens da lei, homens da
fé, homens sociais, homens de bem, homens de mal, homens quaisquer dão para todos os
jovens como eu, que apenas queriam um mundo que não se precisasse de tanto dinheiro,
que o trabalhar fosse difícil e não apenas repetições, que se pudesse lutar pelas coisas que
não se tinha: liberdade, amor, saudade. Todas essas coisas já temos, mas são fáceis,
falsas, dadas. Como lutar, se principalmente a fé, algo que me era tão forte e certo, de
mim vocês tomaram?
Esta é uma luta para que o mundo não seja tão certo, que o futuro do adolescente
não seja o trabalho sem sentido, que não se possa comprar as sensações, bastando apenas
escolher no cardápio o que é propício para cada ocasião. É uma batalha pelos sentimentos
reais, pelas conquistas sofridas e emocionantes. É um manifesto pelo corpo, debilitado de
nada fazer e por uma alma, sangrando por tanto se perder. Esta é uma luta para que o
homem jamais deixe de lutar.

Lendo isso o Amigo se emocionou


— É verdade tudo o que declarou
Não sabia que meus pensamentos, tão distantes, às vezes tóxicos
Das tuas ideias eram tão próximos
Logo, a resposta foi dada pelo Mocinho:
— Muitas vezes comigo isso aconteceu
Olhava para os outros e não percebia que era eu
Iguais aos outros todos somos
Alguns, como nós, não perderam os sonhos

Pois assim os dois se foram

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Espalhar o manifesto por todos os lugares
Até mesmo onde só haviam pessoas fugazes
E quando velhos pais sem intelecto liam o texto
Rapidamente a raiva via-se em seu queixo:

— Vocês não sabem o que dizem


Moleques atrevidos, vagabundos
Vocês só conhecem seus mundos
E nunca tiveram nem uma vertigem
Não sabem o que é
Lutar por uma mulher
E nunca tê-la para amar
Hoje é tão bom, nem precisa procurar
Acham que tudo na vida é um jogo
Na época em que vivi
Os dois garotinhos sentiriam nojo
De tanta dificuldade, de tanto horror
Derramar sangue por uma tal liberdade
É a maior perda de tempo, é inútil
Pois o mundo não tem piedade

Mocinho, irado, respondeu:


— Velho doente e sem esperança
O mundo é feito por quem o carrega
É difícil até mesmo de acreditar
Que um homem cheio de andança
Seja da fé tão sem lembrança
O velho queria gritar, para Moço receber um “aaaah!!!”
Mas era um idoso e tinha vergonha de sua inquietação
— Não devia falar assim com um velho
Por que não vai trabalhar?
E me deixa livre de tanta conversação
Antes que de mim ouça um palavrão

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Pois já não respeito nem o evangelho

Os dois amigos dali partiram


Não queriam mais discutir com um desiludido
Procuraram outro canto
Melhor que a casa de um irritadiço
Era preferível até um antro

Mocinho diz, glorioso:


— Veja, Amigo, o meu texto fascina
Amendronta todo esse velho povo
Talvez essa de libertário seja minha sina

Porém, o Amigo pouco ouvia:


— Não sei, talvez não seja isso o que o mundo queria
Para de seus dogmas se ver livre
Algo que ninguém, neste mundo, antes visse

Moço viu do Amigo a desilusão


Não entendeu o seu pessimismo
Por que antes de sim tem-se que dizer não?
Ao menos estamos lutando contra tanto cinismo

Disso deu-se a resposta desencantada do Amigo


Não vejo diferença entre eles e a gente
Se observa a fundo, usando uma lente
O cinismo anda tanto contigo quanto comigo

Tudo bem, penso nas tuas palavras, respondeu o Mocinho


Mas não desanima do que fizemos neste caminho
Espera do manifesto resposta Espera mais um pouco
Aguenta só um pouco mais o teu espinho

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Capítulo XIIII (XIV)

Adaptar-se àquela vida que via com olhos patéticos era o que Moço pensou ser o
melhor a fazer, por enquanto. Queria mudanças no povo triste e teria que conhecê-los
para pregar suas revoluções. Procurou, no início, um emprego: vendedor. Vendia coisas
que nunca queria ter. Não que nunca tenha querido, quis antes, o encanto pelo possuir não
escapara às tentações de Moço. Mas, cansara-se daquelas coisas, ao pensar um pouco em
suas relações tão íntimas com os objetos, Moço sentiu que não valia nada tudo que
possuía, seus pertences. Em sua adolescência, rasgava a capa dos seus livros e pensava e
vociferava “para que servem esses ornamentos? Escondem o conteúdo do livro,
fantasiam!”. Depois descobriria que as ilustrações na capa não significam nada perto das
ilusões inúteis que os livros criavam nas pessoas. Relembrando-se desses momentos,
Moço ainda mais conseguia dizer para um comprador curioso: “Essa obra de arte da
literatura que o senhor segura em suas mãos guarda uma análise forte e verdadeira da
atual sociedade que vivemos, mesmo escrito há séculos, continua tão viva e real para os
dias de hoje como um jornal de ontem”. Tudo bem, eu compro, convenceu-se o jovem
que começava a interessar-se por mobília para sua casa nova, as palavras de Moço o
despertaram.
Moço por vezes e distraído era pego a folhear um dos livros que vendia. Conhecia
muitos dos antigos, dos novos só não conhecia os livros lançados depois de deixar sua
casa. Não era esse tipo de pessoa comum, mas chegou a quase se espantar ao ver a
quantidade de livros explicando como as pessoas deveriam viver “Seja você mesmo e
seja feliz” foi um dos que ele pegou para ler enquanto não havia cliente para atender.
Ser eu mesmo, ele pensou. Desprezava, como os outros faziam, aquele tipo de
literatura, mas, não tinha começado aquela aventura por achar que todos os livros,
principalmente os clássicos respeitáveis, desprezavam a vida das pessoas? A maioria
fazia análises sobre a mente das pessoas, tentavam explicar as ações de certos indivíduos
e seus motivos. Queriam transformar o ser humano em algo melhor? Pensou Moço se ele
poderia ser alguém melhor e ser o eu mesmo, ao mesmo tempo. Outro livro criticava os
homens, dizia que o ser humano perdeu sua humanidade. Qual humanidade, além da
própria que já vive, o homem tem? O homem jamais fugiu da sua essência, sua essência
de ser falso é autêntica e perfeita. Era a natureza do homem ser dúbio, hipócrita, humano
e não há nada além disso. Moço não gostou de seus pensamentos, queria esquecê-los,

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distrair-se, era apenas tocar um dos livros que o fizeram fugir de sua vida para que os
pensamentos voltassem. A hipocrisia é o instinto do ser humano. Os pensamentos veem e
não querem ir, Moço irrita-se, torce o livro inocente em suas mãos, que em seu conteúdo,
nada tem a ver com o que na cabeça do rapaz se passa. Dá-se uma essência bela ao
homem, mostrando que ele, no fundo, é uma pessoa boa, mas por que deveria? Apenas
por que a moral diz que o homem é, em sua natureza perdida, bom? O homem não é
superior aos outros animais e, igualmente como os outros, não consegue transformar sua
natureza. Não há a humanidade perfeita que se perdeu no passado e que os seres humanos
têm como missão retomar suas raízes humanas. Ficar ali não pôde mais Moço, sua cabeça
dói, os livros ao seu redor aumentam sua raiva, seu ódio. Lembra-se dos motivos que o
fez sair de casa. Os conhecimentos dos homens. Venham, venham, aqui o homem é o
homem plenamente, eu entendo a sociedade, comprem-me! Moço não viveria ali mais um
tempo que pudesse viver. Pediu ao dono que o demitisse, agradeceu a oportunidade do
desconhecido que o confiou o trabalho.

Capítulo XV

O Amigo se impacientava
Pela falta de resposta
No manifesto ninguém pensava
Davam mais atenção a uma bosta

Mocinho pediu calma, mais um tempo


Não era assim nas revoluções
Não podemos mandar no vento
O único que leva nossas lamentações

Calma já se foi e fica a indiferença


Pensamos e nada fizemos
Lutamos por algo e perdemos
Esquecer é o melhor para esse vazio

Mocinho se irrita e briga com o amigo

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Que diz que nada se fez e tudo está vazio?
Acha que escrevi aquilo com o umbigo?
Nossa luta é com palavras e não com fuzil
Sê calmo, o mundo espera

Não, não, não. Perdoa-me a agonia


Sei que devia ter paciência
Fui longe, além da minha confiança
Acredite-me se não tenho valência
Para mim, é o fim da poesia.

Capítulo XVI

O emprego era para saber como as pessoas ali viviam, o que queriam, como se
sentiam. Conversara com muitas pessoas enquanto trabalhou e não estava buscando uma
vida comum, logo na cidade cheia de chorões fatalistas.
Encontrou, por força do pensar ou por culpa de algum destino, o mesmo homem
que chorava quando Moço chegou naquele lugar. No mesmo lugar de antes, agora ele
estava. Sentava-se ereto na calçada, no chão, com seu terno velho que parecia o mesmo
do primeiro encontro.
Dessa vez, ele não chorava, o que Moço estranhou. Sentou-se também ao seu lado
e perguntou por que não chorava, se os motivos de chorar haviam sumido. O homem o
olhou da mesma forma, como se tudo que de Moço viesse fosse ingênuo. Ele responde
que os motivos nunca somem, que nada desaparece dentro dele, continuam, pulsando,
mas as suas razões se cansam, não é para sempre, ele diz, que você sente-se perdido, que
chorar é a única forma de lutar contra as aflições, ele diz, que se percebe que um homem
chorando na rua é normal, que todos já aceitaram suas condições finais, ele diz mais, que
nada certo ou errado pode ser definido, que isso oprime o coração, ele diz, como ele pode
se decidir por algo quando tudo existe, que ninguém nunca decide-se por algo apenas
toma a aparência das coisas, ele diz, que julgam-no se diferente for, que não se não
aguenta os julgamentos, mesmo sendo eles cruéis, que todas as pessoas sentem a
opressão no peito de qualquer um, mesmo os inimigos, ele diz, mesmo esses entendem as
dores uns dos outros, sabem o que é, sabem o que está acontecendo, sabem que há seus

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motivos, mas todos negam, viram os rostos e decidem que as pessoas são diferentes, mas
que permaneçam iguais. Você entenderia, Moço, se visse um homem chorando na rua,
mesmo sem saber os seus motivos, qualquer pessoa saberia que sempre existe algum
motivo para chorar.
E se eu ver, agora Moço diz e pergunta, pessoas rindo, gargalhando, divertindo-
se, aparentemente infinitamente felizes, posso também dizer que, mesmo que eu não
saiba a razão, que sempre há razões para ser feliz? O que o homem responde é: eu nunca
soube de razões para sorrir. Mesmo quando eu ria, sentia culpa por isso. Eu sempre achei
que não tinha o direito, tampouco o dever, de sorrir enquanto as pessoas estavam me
olhando. Acho uma ofensa ao mundo alguém que se diz feliz. Pois sou triste por respeito
a humanidade. Mas é uma humilhação para o mundo, Moço fala, só ter em si pessoas
tristes, ser um mundo de tristezas. Você também representa a vergonha do mundo. O
mundo existir já é uma vergonha, não haveria orgulho se o mundo fosse correto, pois o
mundo já é correto, os homens são perfeitamente como deveriam ser. Para isso, Moço
concordou, era o mesmo que pensava. Os dois ficaram parados olhando para a rua, nesta
as pessoas viviam normalmente, via-se que elas iam para o trabalho e não se importavam
com isso, até mesmo gostavam, era melhor do que viver, via-se homens de terno
chorando e moços viajantes buscando aventuras com eles, conversavam como se fossem
importantes, como se suas cabeças fossem únicas, como se as palavras fizessem alguma
diferença, como se quem os ouvissem os admirassem, via-se também, na rua, nas
avenidas, nas cidades, os animais vivendo como homens, eram pobres, ricos, falavam
diversas línguas e nenhum se entendia. A imagem de um cachorro doente, sem os pelos,
rosa como um bebê, destruído por feridas e magro pela natureza fez Moço e o homem
concordarem que o cachorro era o que mais se parecia com os homens daquela cidade.
Tem uma doença que não entende e continua vivendo sem saber como. Talvez o cachorro
não pense dessa forma, Moço comentou. O homem disse que ouviu que em outra cidade
os habitantes conheciam coisas boas, motivos para sorrir, porém, eram só boatos
distantes. A rua era todo o mundo para eles: assaltos, sortes, nascimentos, alturas,
objetos, relações. Moço se levanta e diz até mais. O homem também se levanta, algumas
horas depois, vai para casa e pensa em suicídio, mas ele nunca morre.

O relato é pouco, pequeno, vazio, mas nenhum relato é preciso. Moço, que ali
esteve por um tempo, que não é muito, mas sempre é muito quando se está lá e nada

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quando se vai, pensa que quer ir embora. Aquela cidade era como as outras,
desesperançada. Pensou que não deveria ter nada de diferente depois daquilo. O que terá?
Quando chega ao fim da vontade de ainda querer algo de diferente na vida, não se
consegue mais viajar, ele pensou. Continuou caminhando por toda a cidade até chegar na
casa do mesmo homem que sempre encontra nessa cidade. Estava sempre com o mesmo
terno, a mesma cara de tristeza, mas ele sorria. Sorriu ao encontrar o Moço, um
desconhecido. Contou-lhe seu plano: “Quis morrer, rapaz, mas agora há esperança, em
tudo há esperança enquanto vive”, o homem estava feliz e Moço não entendeu. Que
esperança há, homem? Está louco? Há minutos disse-me diversas coisas sobre o mundo
ser o mesmo, sobre a natureza do homem ser o tédio. Como pode mudar tanto uma ideia
que possui desde que nasceu? O homem não se controlava. Sim, há vergonha no meu
sorriso, no meu êxtase, mas é uma boa vergonha. Há motivos ainda para sorrir. Com a
vergonha que o poder possui sobre as pessoas, ainda há vergonha de sorrir e orgulho de
chorar. Moço, para isso, responde: Sim, isso você já me disse e nunca me explicou. Não
há explicações para algo que vem do nada, meu amigo, só apenas sinto que preciso fazer
algo para trazer esperança a esta cidade. Deixa eu lhe contar: eu nasci, cresci e hoje sou
como meus pais. Consegui um trabalho, uma esposa, sou um ser humano como os seres
humanos devem ser. E você? Aposto que nasceu, cresceu e é como seus pais foram.
Estou errado? Moço diz que não, até um homem foi exatamente assim, mudou para fugir,
mas seus pais também devem tê-lo feito em algum momento de suas vidas, quando ainda
eram jovens. Exato, exato, continuou o homem a falar, mesmo que você fuja, todos nós
vamos fugir de sermos humanos uma vez na vida, o que você faz é o normal,
principalmente quando é diferente. Então, veio-me a ideia: dar ao mundo o que ele não
espera. É uma bobagem e já aconteceu no mundo, mas sempre é novidade. O desespero,
mesmo por algo repetido, como assaltos, homicídios, é uma novidade na vida das
pessoas. Mas, então o que você fará à vida das pessoas? Espera, meu amigo, não sei o
que deu-me essa ideia, mas sei que a sua companhia, hoje cedo, e por todos os dias que
nos encontramos, algo de você veio me tocar. E Moço respondeu: algo de você também
me tocou, mas me tocou o homem que você era e perdi as esperanças ao vê-lo feliz. Que
pena, pena, pena, é triste que eu tenha lhe feito isso, mas hoje à noite você verá o que
aconteceu a mim e poderá mudar o que pensa sobre mim, prefiro não contar, sem
palavras dessa vez, sem informações, apenas atitudes.

42
Tudo bem, Moço disse e partiu, o homem queria ficar sozinho enquanto planejava
sua fé. Ele caminhou um pouco e com um dinheiro que ainda tinha do trabalho, comeu
um pouco. Estava ainda mais magro, a comida poucas vezes o agradava. Comia para
continuar. Foi até o apartamento que alugara com seu salário e pagou o que devia, não
iria mais dormir lá. Achou uma praça e na praça achou um banco, deitou-se e encontrou o
sono.

O calor acordou Moço naquela noite fria. Era o calor do fogo que queimava a
cidade. Todos corriam, em desespero, tentavam salvar suas coisas: a casa com 10 anos de
pagamento, o emprego com 12 anos de salário e o casamento com 5 anos de cansaço. O
homem aumentava as chamas e ninguém o percebia, ninguém o parava: não se via
culpados, todos já esperavam por aquilo.
Moço o encontrou, sempre o encontrava, em qualquer esquina, ele era o mesmo e
estava em todos os lugares. O homem fugia do fogo que causava. Por que você foge,
homem? Por que não se consome com o fogo que criou?, perguntou Moço para o homem,
os dois corriam, estavam desesperados, ambos estavam, mas mantinham-se os mesmos.
Não sei, apenas fujo e queimo e queimo e fujo. Ainda quer esperança, meu amigo? Sim,
quero, sempre quis esperança. Pois saia da cidade, venha comigo. Os dois correram até os
portões da cidade. Estas todas eram assim: fechadas por seus portões, rodeadas por seus
muros. Alguns justificam, outros acham um absurdo. Os muros continuam erguidos. O
homem leva Moço até o portão, ninguém foge da cidade, o fogo chegou, uns ainda
tentavam salvar o que possuiam, não querem abandonar a vida que tiveram, morrem pela
viva que viveram. Mas isso não faz sentido!, grita Moço, enquanto o homem fecha o
portão. Fuja, meu caro, ele responde. Há sentido no fogo, isso você não pode discordar.
Sim, no fogo há sentido. Não há sentido em morrer pela vida que se odeia. Sai daqui que
não é daqui que você é, meu bom amigo. Obrigado pela inspiração. Todos que aqui
viveram aqui continuarão para sempre. Eu não vou fugir mais do fogo. Promete?, Moço
perguntou, enquanto o ajudava a trancar o portão, eles se cumprimentam, como bons
amigos se despedem. Prometo.

Capítulo XVII

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Moço lembrou-se dos seus 17 anos, enquanto via de longe a fumaça da cidade.
Pensava no que o homem lhe dissera, no fogo, na esperança. Continou caminhando sem
rumo, era o que fazia e mesmo que não quisesse encontrar uma cidade que lhe trouxesse
mais dúvidas sobre as coisas, ainda assim, sempre chegava em algum lugar. Era-lhe
impossível evitar. Tentava parar de caminhar por alguns dias e até conseguia, mas, não
mais que três dias foi o que conseguiu, quando via, já havia mais uma cidade para
conhecer. Quando saiu da cidade em chamas estava cansado, cansou de tudo que fizera
nos últimos dias e quis dormir e dormiu por um dia inteiro e se arrependeu por isso, teria
menos tempo para conseguir parar de caminhar. Em breve, chegaria em mais um lugar.
Teve então a ideia de amarrar-se a uma árvore para não conseguir continuar.
Poderia até mesmo morrer de fome se não conseguisse se libertar, mas teria conseguido
não ser os seus instintos. A aventura terá um sentido se eu morrer nisso, pensou Moço. E
pensou que até agora não tinha tido sentido nenhum.
Procurou os andarilhos que buscavam as mesmas coisas que Moço e pediu-lhes
para prendê-lo a árvore. A maioria se negou, não queriam ser homicidas, ao pedido de
Moço faziam longos discursos sobre o mundo ser uma grande prisão e que Moço pedia
aquilo pois estava acostumado a ser um escravo e que o correto era seguir o seu coração,
ou seja, continuar chegando em todas as cidades possíveis até que uma lhe agradasse.
Moço respondia, furioso, que não se importava com aquilo, era sua liberdade que
contava, mas sempre respondiam-lhe, calmamente, que ele não entendia de liberdade e
que estava sendo controlado por seus pensamentos.
Moço conseguiu, com um rapaz alto e branco de olhos e cabelos negros, que
usava roupas parecidas com as suas: camisas largas que duravam mais e calças folgadas
que protegiam melhor, para que o amarrasse. O rapaz não tinha corda, mas ambos
trabalharam juntos para que fizessem algo com cipós que eles nem entenderam como
conseguiram fazer, mas souberam que Moço não conseguiria fugir.
O Andarilho perguntou: — E se desistir disso e quiser ir para a próxima cidade?
O Moço respondeu: — Morrerei desejando ou que outro, como você, chegue para
me desprender.
O Andarilho parecia-se com Moço e gostou de sua determinação. Boa ideia, ele
respondeu, antes de perguntar se ainda poderia ajudar em algo, do qual Moço pediu para
que conferisse se estava bem apertado, do qual foi confirmado de que estava um pouco
frouxo e ainda poderia se apertado um pouco mais, do qual foi feito pelo Andarilho, do

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qual apertou demais, soube disso quando Moço reclamou que não conseguia respirar e
que poderia morrer, mas não queria que fosse por falta de ar, então o Andarilho frouxou
um pouco mais, ainda deixando apertado e então disse até mais, foi um prazer conhecer,
disse ele. Moço retribuiu, era uma pessoa diferente da maioria dos andarilhos, Moço
pensou. Os dois ainda ficaram se olhando por um tempo. E se eu..., o Andarilho começou
a dizer e parou. E se você..., continuou Moço para ajudá-lo. Não é correto pensar nessas
coisas, o Andarilho se defendeu. Segundo um amigo, não é correto pensar em nada,
atacou Moço. Então já cometi meu pecado, pois já pensei, respondeu o Andarilho. Pelo
menos não libertou seus pensamentos ao mundo, é um pecado menor, Moço disse e o
Andarilho responde: mas prendi os seus pensamentos nessa árvore, o pecado continua
grande. Prendeu-me os pensamentos para me salvar a liberdade, continua puro. Isso é o
que diz agora os seus pensamentos presos, à prisão eles já se acostumaram. É o mesmo
que eu dizia antes de pedir para me prender. Talvez já estivesse contaminado. Se eu
estive contaminado e se ainda estou, então contaminei-lhe e a culpa não é sua por ter me
prendido e tirado minha liberdade e nem por pensar em coisas erradas, os seus erros são
perdoados. Eu nunca me perdoaria. Todos já lhe perdoaram, então comemore a
democracia. Dito isso por último pelo Moço e suas amarras, o Andarilho nada mais
respondeu. E então? Decidiu-se por não contar o que havia pensado, Moço queria saber,
era uma pessoa interessante, tinha certeza, mas o Andarilho se deixou reservado. Então
disse:
— Eu não sou nada. Vim até você para ajudar em suas coisas não porque desejo
que você me seja grato ou para ajudar uma pessoa, mas por faltar coisas minhas a fazer.
Ocupo-me contigo por falta de ocupação a mim. Sinceramente, considero-o um imbecil,
um idiota, tenho nojo de você, egoísta. Você quer ser preso às árvores, mas não pensa em
mais nada. Não pensa nas cidades que sentirão a falta de um moço, que poderia estar
acompanhando aquelas pessoas, naqueles momentos. Desprezo as pessoas como você,
mas prendi-lhe e não posso lhe soltar. Ajudei o meu inimigo por egoísmo, por isso, sou
igual a você.
Disse e saiu. Quis voltar ainda depois de um tempo, Moço tentou responder, mas
ele não voltou.
Moço ficou mais um dia amarrado a árvore. Choveu e pôde beber um pouco de
água. Formigas caminharam pelo seu rosto e pôde se alimentar minusculamente. No
terceiro dia, Moço dormiu um pouco mais, dessa vez, desejou dormir muito para o tempo

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passar mais rápido. Acordou e viu uma cidade ao seu lado. Jurou que ela não estava ali
antes, que deveria estar sonhando, alguém o desamarrara! Ficou nervoso, os cipós que o
prendiam desapareceram e ele tinha que entrar naquela cidade.
Tentou fugir e viu diversas pessoas assistindo a dois homens discutindo. Era uma
palestra, uma briga, uma troca de experiências. Moço não queria ir, abraçou a árvore para
manter-se ali, naturalmente, mas suas mãos se soltaram, ele também queria ir e o levaram
para dentro.

O tamanho da cidade surpreendeu a Moço, era enorme e não poderia ter aparecido
ao lado de sua árvore durante a noite. Nos livros, relatam sobre cidades que se moviam
durante as épocas de estiagem. Nelas, as construções eram feitas de materiais simples, e
podiam ser completamente desmontadas pelos habitantes que transportavam suas casas
nas costas, por vários dias. Aquela cidade que lhe apareceu não poderia ser dessas, pois
suas construções eram de concreto. Mas, para não se enganar, perguntou para alguns
moradores se o tipo daquela cidade era esse imaginado e lhe disseram que não, riram ao
ouvirem a pergunta e respondiam “sempre estivemos aqui, a estiagem não existe para
nós, possuímos técnicas avançadas”. Poderia ser uma técnica avançada para transportar
cidades enormes sem precisar desmontá-las.
Aceitou a cidade. Não poderia sair de lá até conhecê-la como a si mesmo. Decidiu
assistir a palestra assistida por tantas pessoas, talvez estavam todos os habitantes, o
primeiro homem, chamado de Especialista Um, porque tinha o número gravado em seu
paletó, gritava e berrava e o segundo, Especialista Dois, era mais calmo, mantendo-se
forte em suas afirmações.
— Não creio que um homem seja insistentemente tolo para crer que as novas
técnicas agrícolas não estão funcionando com sucesso.
— Não nego, meu caro, que as técnicas funcionem até determinado ponto, porém,
os efeitos colaterais ocasionados pelo crescimento desnatural das plantas não cobrem o
risco de se consumir tais alimentos.
— Desnatural é a forma retrógrada como pensas. O homem evoluiu e tu continuas
no passado. A alimentação em demasia, causada pelo crescimento adiantado das plantas,
é mais que suficiente para nutrir as necessidades dos homens e mulheres que se
alimentam nesta cidade.

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— A natureza também evoluiu, senhor, ela criou mecanismos para se defender
das toxinas que os homens utilizam. A natureza começou a envenenar os alimentos que
nos dá como uma resposta às nossas toxinas.
— Como tu és poético. Isso aqui não é um concurso de poesia, mas se fosse, tu
estarias entre os primeiros. Aqui é política, economia. A natureza não possui memória,
ela não se vinga, a natureza não é um ser que analisa os homens. O homem é que é um
ser que controla a natureza de acordo com suas necessidades. Repito: o aumento no
tamanho dos alimentos é diretamente proporcional ao aumento das vantagens nutricionais
que as frutas e verduras nos proporcionam.
— A natureza possui memória e está apta a se modificar em resposta ao homem.
O aumento dos alimentos é superflúo, comprovei, segundo minha teoria intitulada
Análise do uso contínuo de toxinas anti-pragas em hortaliças que o veneno não aumenta
proporcionalmente.o valor nutritivo do alimento, aumenta apenas o seu tamanho.
Estamos comendo veneno enquanto pensamos estar consumindo vitaminas importantes.
Contra estudos científicos, não há argumentos.
— Há, entretanto, caro pseudoespecialista, um estudo de minha autoria do qual é
conhecido, academicamente, como O efeito positivo do consumo diário de alimentos com
agrotóxicos, provando que mais de oitenta porcento das mais de mil pessoas estudadas
mostraram uma elevação nos níveis de vitamina enquanto comiam verduras de maior
tamanho comparadas com um período em que se alimentavam de verduras de tamanho
ordinário.

A plateia se dividia, fisicamente. Ficaram do lado dos debatedores que mais lhes
pareciam corretos. Olhando, Moço achou que ambos tinham exata metade da aprovação
do público. Então, as pessoas começaram a gritar: APOIADO! BOA IDEIA! ÓTIMA
RESPOSTA! CONCORDO! PALMAS, BATAM PALMAS, POIS ELE DISSE ALGO
IMPORTANTE! COISA IMPORTANTE NADA, SÓ DISSE BOBAGENS! BOBAGEM
É O QUE ESSE INÚTIL ESPECIALISTA DIZ, NÃO ENTENDE DE
ABSOLUTAMENTE NADA! QUEM NÃO ENTENDE É VOCÊ, POR ISSO ESTÁ
APOIANDO UM TALZINHO IGNORANTE! IGNORANTE É QUEM NÃO
ENXERGA AS QUALIDADES E O BEM QUE NOS TROUXE ESSE SENHOR! É
IGNORANTE E AINDA CEGO E O PIOR: TEM PROBLEMAS MENTAIS. POIS
ESTÁ VENDO COISAS ONDE COISAS NÃO EXISTIAM ANTES DE CHEGAR, NA

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NOSSA CIDADE, O ILUSTRE ESPECIALISTA! SÓ SE FOR ESPECIALISTA EM
FAZER NADA, POIS É A ÚNICA COISA QUE SE VÊ ELE FAZENDO POR AQUI!
ALÉM DE IGNORANTE, CEGO, DOENTE MENTAL É INGRATO. HOMEM, VOCÊ
SÓ ESTÁ VIVO FALANDO COMIGO AGORA PORQUE O AMICÍSSIMO
ESPECIALISTA TROUXE TECNOLOGIA PARA QUE ESTA CIDADE
CONTINUASSE EXISTINDO! EU SÓ EXISTO PORQUE MINHA MÃE PERMITIU
QUE EU EXISTISSE COM SEUS ESFORÇOS, TUDO ESTAVA MUITO BEM ATÉ A
CHEGADA DO SEU AMIGUINHO PEDANTE! SUA MÃE SÓ PERMITIU QUE
VOCÊ VIVESSE PARA VER SE O FILHO DELA, CONCEBIDO POR EU NÃO SEI
QUEM E NEM NINGUÉM MAIS SABE, ERA FILHO DE ALGUM RICO, MAS
INFELIZMENTE, DESCOBRIU-SE QUE OS RICOS ERAM ESPERTOS AO
SOLICITAREM OS TRABALHOS DE SUA MÃE E NÃO SE DEIXARAM
ENGANAR COMETENDO O PECADO DE ENGRAVIDÁ-LA, DEU QUE SEU PAI É
UM POBRE E INFELIZ QUE, COMO VOCÊ, TAMBÉM ESTARIA
CONCORDANDO COM O FALSO ESPECIALISTA QUE VOCÊ ESTÁ
CONCORDANDO! MINHA MÃE NUNCA FOI PROSTITUTA ANTES DE EU
NASCER, RETIRE DOS MEUS OUVIDOS O QUE VOCÊ ACABOU DE DIZER! É
MELHOR RETIRAR VOCÊ OS SEUS OUVIDOS, POIS A VERDADE EU NUNCA
RETIRO! POIS É ESSA SUA VERDADE, QUE NÃO É VERDADE MINHA, QUE
VAI FAZER VOCÊ PERDER SANGUE AGORA! POIS VENHA QUE DESDE O
MOMENTO QUE VOCÊ ABRIU A BOCA QUE EU DESEJO FECHÁ-LA COM
MEUS PUNHOS!
A resposta a isso veio com uma mão fechada no peito do adversário. Os dois
começaram a brigar e a plateia dividida, que esperava uma oportunidade na discussão
divertida pelos dois, também brigaram.
— O bando que vencer decide o que é certo! — disse um dos especialistas. O
outro concordou. Ambos começaram a torcer para seus respectivos lados. Eles sentaram-
se em cadeiras para assistir ao embate.
Moço via a briga alcançar seu corpo e tentou fugir para nenhum dos lados, mas
não havia lugar onde não houvesse socos e chutes e trocou pauladas com pessoas dos
dois grupos para conseguir chegar em um lugar seguro. Um homem com o braço voltado
para trás, acumulando força para um soco muito forte, mirou no rosto de Moço, este, que
estava armado com um pedaço de pau, acertou o rosto do valente com tanta força que lhe

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abriu uma boca sangrenta em sua bochecha. Moço corria e quando parava em um lugar
seguro, alguém dos briguentos puxava-lhe novamente para a confusão. Quando viu que
era impossível fugir, lutou com mais violência.
— Como definiremos quem venceu?
— Quando um grupo destruir, totalmente, o outro.
Deu para perceber, mesmo entre a confusão, que Moço lutava contra todos, ou
seja, ele era um inimigo comum de ambos os grupos e não deveria sobreviver. Lançaram
o boato, entre mordidas e puxões de cabelo, de que os dois partidos estavam unidos para
capturar aquele rapaz misterioso, se voltaram para Moço e lhe agarram, ele ficou
imobilizado e, em seguida, amarrado a uma árvore. Moço gritou, desesperado e sincero:
— Imploro, não me amarrem a uma árvore!
O seu medo convenceu os algozes de que o melhor castigo que ele merecia era
justamente o que ele menos desejava. Deveria aprender uma lição dolorosa para jamais
fazer os outros acreditarem que ele era culpado de alguma coisa. O que eu fiz? O que ele
fez, realmente? Quanto menos entenderem o crime de Moço, mais culpado ele é.
Os dois especialistas foram até ele, pareciam dois juízes amigos que queriam
analisar juntos o relato do acusado. Disse o primeiro:
— Então, você considera-se superior a nós dois juntos.
— Não — resposta de Moço.
— Como ousa... — intimidativo com dedos eretos o Especialista Um.
— Perdão — arrependimento de Moço.
— O que o levou a... imaginar tais coisas? — curiosamente o Especialista Dois.
— Bem, só haviam duas opções, ninguém via que poderiam ter uma outra escolha
além de vocês dois. Pensei que eu poderia crer em algo que ninguém via, que era crer em
nenhum. — um Moço explicativo.
— Novamente, que ousadia! — Especialista Um surpreso.
— Ousadia é coragem. — ousa Moço.
— Ousadia é burrice. — sentindo-se sábio Especialista Dois.
— Ele falava comigo. — Especialista Um ciumento.
— Não achei que você pudesse respondê-lo com sagacidade, como eu fiz de
forma brilhante — orgulhoso Especialista Dois.
—Vejo apenas um ego escorrendo por seus poros... — procurando palavras
inteligentes Especialista Um.

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— Talvez o senhor tenha confundido as palavras, o que escorre por meus poros é
inteligência. — procurando palavras ofensivas e achando palavras orgulhosas
Especialista Dois.
— Uma ideia! — pensativo Moço.
— Ele tem uma ideia.
— Convencido.
— Na minha humildade, eu lhe dou a oportunidade de dizer sua ideia.
Moço ganha a oportunidade.
— É algo simples. A cidade está dividida. Metade ama Um e metade ama o Dois.
Então, que divida-se a cidade em duas e cada um faça seus desejos sem divergências.
Os dois sábios trocaram olhares, pensaram algo parecido com duvidar sobre se
teriam capacidade para viverem sem as críticas do outro. Pediram um tempo para Moço
e, num canto, trocaram sussurros. Moço tentou ouvi-lhes, ficou curioso com o que
estavam conversando. Voltaram e o Dois disse:
— Humildemente, afirmamos que sua ideia não é tão tola. Porém, as críticas do
meu excelentíssimo colega de profissão fazem com que eu me torne melhor. Conhecemos
nossos erros porque o outro não vê nossos acertos. Dividir-nos seria — e disse isso em
voz baixa para que os manifestantes, também curiosos sobre o que acontecia, não
pudessem ouví-lo — seria o mesmo que perdermos nossa capacidade de fazer alguma
coisa certa nesta cidade.
Moço, furioso por eles serem dois medrosos, conhece tudo mesmo sem nunca ter
estado ali:
— Mas vocês nunca concordaram e nem irão!
Os dois se olham novamente e pedem mais um minutinho para discutirem essa
nova informação. Eles olham entre cochichos para o rapaz amarrado. Dessa vez,
demoraram muitos minutos e poderia ser a primeira vez que concordavam com algo, que
aceitavam uma opinião, mesmo que não fosse a opinião do outro, mas de um
desconhecido. Foram então até as cordas que amarravam e desataram o nó. Você está
livre, foi o que Moço ouviu ou pensou ter ouvido e eles disseram: agora somos dois.
Chamaram a atenção do público, que havia parado de brigar, para que ouvissem melhor.
Ato completamente desnecessário, pois as pessoas estavam atentas para tudo que
acontecia no pequeno palco formado. Começaram então a declarar:

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— Não há entre vocês aqui quem se lembre de um período, nesta nossa gloriosa
cidade, no qual eu e meu amigo especialista não tenhamos controlado as políticas e o
planejamento total de todos os habitantes.
— Duvidam? Perguntem para seus avós, leiam as cartas de seus bisavós,
comprem os diários de seus antepassados. Neles, com toda certeza eu digo, estarão
relatos de como esta cidade foi fundada acerca dos planos destes dois homens que lhes
falam.
— Certamente, vocês não duvidam, pois tudo que aqui dissemos sempre foi
acreditado por quem nos apoiava.
— Certamente, certamente...
— Porém, as coisas mudam. Precisamos nos adaptar às modernidades do mundo
para que seja possível a sobrevivência. Esta tão cara nos dias de hoje.
— Cara é um eufemismo. Sobreviver tornou-se viver. Quem vive, vive porque
está sobrevivendo a cada minuto. A cada minuto estamos prestes a morrer e, então,
sobrevivemos mais um pouco.
— Exatamente.
— Respeitamos muito vocês e vejo, nos olhos de todos, até mesmo nos olhos das
crianças que há um tempo não entendiam nada do mundo, que estão surpresos por
estarmos concordando um com o outro. Mas, tomamos uma decisão e, antes de apoiarem
– sei que não a recusarão – reflitam profundamente.
— Decidimos que, iniciando o processo em alguns minutos, divideremo-nos em
duas cidades.

Para a divisão da cidade, fez-se um rio na exata metade da cidade. Os familiares


que discordavam entre si e, por isso, separariam-se, choraram nas despedidas. Inimigos
declarados, que agora ficariam distantes e não mais poderiam trocar asperezas,
lamentaram a divisão, foi muito bom odiá-lo por esses tempos. Um homem, um bêbado
conhecido e ignorado por todos, disse que aquilo estava errado. Após a divisão, o bêbado
não mais foi visto e as duas partes criaram, rapidamente, seus novos bêbados, mendigos,
vagabundos da margem. Até mesmos os dois grandes rivais, os especialistas que tanto se
preocuparam pelo bem-estar daquela sociedade, estavam tristes com a situação. Porém, é
o certo a se fazer, diziam. Trocaram um aperto de mãos. Diverti-me muito com você,
meu caro, disse um. Era um ódio que eu amava sentir, disse o outro. Continua pedante

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você, disse o um. Continua invejoso, o outro disse. Paremos com isso, já se passaram os
bons tempos, decidiram juntos. Agora viveremos em separado. Abraçaram-se, quando
ninguém olhava, e um dos dois, depois os dois, sentiram nos olhos vontade de chorar.
Não choraram. Estavam no meio do rio que havia sido criado, cada um foi para o seu
lado para que a vida continuasse.

Capítulo XVIII

Moço foi admitido no cargo de mensageiro das duas cidades. A especialização de


ambos os líderes não os permitiu que dessem o mínimo de educação para os seus
habitantes e ninguém sabia escrever, além dos especialistas. Então, decididamente, de
forma pacífica, o trabalho de Moço consistiria em escrever mensagens da primeira cidade
para a outra e entregá-las e, novamente, escrever cartas da segunda cidade e transportá-
las, seguramente, para a primeira. O trabalho só poderia ser realizado por um estrangeiro
que não possuísse nenhum partido, que não acreditasse em ninguém e ele era o único. O
emprego foi aceito.

Lado B, xx de xxxxxxx de xxxx

Querida filha,

Mamãe sente sua falta. As coisas aqui estão boas, mas ainda me preocupo com
você. Não sabemos o que está acontecendo aí, as notícias sobre o lado A são de que é um
péssimo lugar para se viver, que o especialista responsável não está resolvendo os
problemas das pessoas e que tudo é um caos. Conta-me todos os segredos, filha. Conta a
verdade para sua mamãe para que eu possa dizer aos vizinhos a verdade. Depois de
meses, em toda a vizinhança, eu fui a única a conseguir uma entrevista com o carteiro,
ele é um homem muito ocupado. Por isso, se puder, manda notícias de todos os filhos dos
meus vizinhos. Adolescentes sempre dão trabalho, discordam dos pais, mas, ao final,
estamos todos orgulhosos de você e esperançosos de que esteja bem apesar das notícias.
Estão dizendo que abrirão as embarcações, que um dia será permitido que as pessoas

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naveguem de um lado para o outro, em paz, sem restrições, mas ainda não acredito que
estarei viva para ver algo tão maravilhoso acontecer. Dizem, também, que um homem
leva, clandestinamente, homens e mulheres que desejam mudar de lado. Ele carrega as
pessoas a nado de um lado para o outro, mas todas essas lendas só servem para
angustiar-me ainda mais o coração, imaginando se ainda terei a chance de ver, por uma
única vez antes da morte chegar - uma mãe merece – os lindos olhos da minha filha, que
deixou-me ainda criança e deve estar uma linda mulher. Cuida. Espero resposta.

Com amor
Mamãezinha.

Moço escrevia as cartas com prazer, poetizava as palavras rudes e os sentimentos


puros que as pessoas queriam transmitir aos seus queridos, mas que não sabiam como pô-
los em palavras. Sentiu-se útil por algo e até mesmo temeu não mais estar temendo as
palavras. Pensou se já poderia aceitá-las como elas eram, mas não chegou a nenhuma
conclusão.

Lado A (sem data)

Meu amor,

Tenho vergonha de agora estar lhe escrevendo depois de tudo que vivemos, onde
estamos? Não tenho uma resposta. Aquelas palavras trocadas na noite anterior magoou-
me ainda mais: como pude discordar das ideias de quem amo? Divago sobre o amor
nosso todos os dias. Gostaria de um dia descobrir algo que pudesse ser feito para que
você me perdoasse e, assim, pudéssemos ainda continuar nos amando mesmo que apenas
em pensamento. Afinal, não é o pensamento e o ser interior que é considerado como mais
importante que o ser exterior? Não interessa o que eu faça, como eu ajo, sempre se
acredita que há um alguém interior imaculado e que, em um momento oportuno, e por
resultado de trabalho duro e concentração, ele se tornará um ser exterior. Então,
acredito que se conseguirmos manter nosso amor amando dentro desse ser perfeito que
há dentro de todos nós, conseguiremos viver felizes. Peço-lhe, meu amor, que continue

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pura tanto no teu ser interior quanto no exterior, peço isso como prova do amor que você
disse sentir por mim. Quanto a mim, uma pena que já não posso lhe oferecer o mesmo.
Nosso amor é maior do que isso.

Seu Amado.

As cartas não eram apenas escritas e então lidas por Moço, ele as interpretava.
Filosofava e poetizava com vaidade enquanto escrevia, mas não as lia como estavam
escritas para os pobres cidadãos. Quando Moço chegava em cada lugarejo, todos vinham-
lhe ouvir o que os papéis diziam. Todos se reuniam e ouviam aquele moço trazendo um
pouco da vida para eles que abandonaram. Como está o outro lado? Perguntavam,
curiosos, os moradores. Melhor que os relatos feitos por cartas, seria alguém que, todos
os dias, conhecia os dois opostos. Moço não respondia, dizia que lhe era preferível
apenas relatar como cada um via a vivência dentro da ideologia escolhida.

Lado A aa/aa/aaaa

O dinheiro que eu lhe devia, meu amigo, está indo pelas mãos desse bom moço
que todos os dias viaja para trazer e levar notícias. Pode não ser correto de um homem
como eu falar assim, mas estou sentindo falta dos dias de conversas que passávamos por
aí. Gostaria de encontrar todos os velhos companheiros que nos acompanhavam na
desocupação do dia a dia. A comida, as bebidas e a boa conversa também existem por
aqui, mas não possuem o mesmo cheiro, nem o mesmo sabor e nem o interesse que
haviam quando estávamos todos reunidos. Mas, um dia, iremos nos encontrar
novamente. Não creio que essa loucura, ideia de algum desorientado, continue por muito
tempo e, em breve, voltaremos a ser só uma cidade unida e, como antes, seguindo os
mesmos ideais. Antes de terminar o papel – e a paciência do jovem que escreve – peço
que procure por minha filha. Quando vim para cá, ela estava aos altos e baixos com um
jovenzinho petulante que fê-la discordar das minhas ideias e, graças ao infeliz, estamos
separados agora. Quando vê-la, mande lembranças de seu velho pai, diga-lhe que estou
bem, mas que ainda quero sentir o seu cheiro de criança me abraçando maciamente. Se
puder, se não lhe trouxer complicações, peço, também – acertaremos quaisquer

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problemas acerca disso quando nos encontrarmos novamente – peço que mate o
desgraçado que seduziu minha pobrezinha. Faça-lhe gritar de tanta dor antes de morrer
que todos os jovens que dela novamente se aproximarem, ouvirão, eternamente, os
gemidos de morte e se afastarão da minha princesinha. Você sabe como jamais poderei
lhe agradecer por todos os favores solicitados. Espero notícias.

Seu grande Amigo.

Moço estava sempre ocupado. Trabalhava para os novos governos impostos, para
as populações, para os estrangeiros. Para conseguirem uma entrevista com ele, esperava-
se meses. Por vezes, uma dor no seu peito ao ver uma mãe chorando pela
correspondência da filha fazia-lhe quebrar as regras do agendamento e, rapidamente, ele
escrevia uma resposta e entregava. Poucas vezes isso aconteceu. Até mesmo os governos
dos dois especialistas precisavam marcar horários com Moço. Eles queriam vantagens,
queriam rapidez nas entregas e certezas nas respostas, porém Moço foi contra e ameaçou
ir embora e não mais trabalhar. Eles cederam e o carteiro trabalhava como queria.

Lado B cc/cc/cccc

COMUNICADO OFICIAL

O governo oficialmente intitulado Lado B expressa, de acordo com a sua soberania


como nação independente de todas as outras nações, dependente apenas dos
recursos naturais do mundo, informa ao soberano governo intitulado Lado A, de
que as porções de água do rio na região Norte, zona atualmente considerada neutra
para ambos os lados, ou seja, nenhum dos lados pode de lá usufruir, que, a partir
deste comunicado, seja considerada zona do Lado B. O governo entende que a
soberania da nação Lado B permite que não seja obrigatório informar os motivos
para a reclamação daquele espaço neutro. Valendo-se desse direito, solicitamos que,
pacificamente, aceitem o novo acordo imediatamente ou sofrerão, dramaticamente,
as consequências do nosso poderio.

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___________________________________
1º Presidente Especial Lado B
FIM DO COMUNICADO OFICIAL

Achando a informação importante e sem que, com isso, estivesse a interferir


através de suas próprias opiniões, na vida das pessoas dos dois os lados, Moço leu o
comunicado oficial para várias pessoas. O lado A revoltou-se. Antes do presidente
especialista receber, em mãos, a informação, toda a cidade já o pressionava, revoltada,
por atitudes ante aquele caso. Inicialmente, Moço leu o comunicado para não muito mais
que uma dúzia de pessoas, estas foram suficientes para, em pouco tempo, fazerem toda a
cidade descobrir o ocorrido. A resposta à população foi um outro comunicado oficial,
exigindo que Moço fizesse o mesmo, pelo princípio natural da justiça, de repercutir, da
mesma forma, o seu comunicado no outro lado.

Lado A dd/dd/dddd

COMUNICADO OFICIALÍSSIMO

Considerando o caso da região Norte do rio ter sido, sem motivos esclarecidos,
reclamado pelo Lado B, o Lado A, tão soberano quanto seus vizinhos e tão
independente em suas ações quanto qualquer nação mercantilista, reclama para si o
rio inteiro, segundo o acordo feito por ambos os lados de que o rio era propriedade
neutra, podendo nele trafegar apenas os mensageiros oficiais, profissão essa
exercida, atualmente, apenas por uma pessoa, que continuará sendo mensageiro,
mas viajará por águas pertencentes inteiramente ao Lado A. A decisão vale
imediatamente após o presidente da nação B ler este comunicado. O Lado A respeita
a soberania do Lado B e afirma que o governo de tal nobre nação feita por tais
nobres cidadãos manterá a posse da região Norte do rio.

________________________________
Especialista e presidente Lado A
FIM DO COMUNICADO OFICIALÍSSIMO

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Não foi sem perceber que Moço notou que as duas cidades, antes mínimas,
consideravam-se países importantes. Também ele achou graça e ansiedade ao ver as
feições do rosto do especialista do lado B ao ler o comunicado oficialíssimo. Por que não
fiz isso antes?, era o mais óbvio que ele deveria estar pensando, mas, como especialista,
pessoa extraordinária, acima intelectualmente da maioria das pessoas, ele não estava
pensando apenas no óbvio, estava além disso, em que decisões poderia tomar para
melhorar a situação para si. Logo, pensou em todas as áreas neutras que haviam sido
acordadas, poderia reclamá-las agora, mas lembrou-se que não havia mais lugares
disponíveis, outras cidades já estavam se aproximando em tamanho e além do rio, apenas
terras estratégicas eram consideradas lugares neutros. Ele não poderia tomá-las para seu
mísero lado B pois, quando as cidades maiores se apromixarem um pouco mais, tomarão
as terras férteis para si, permitindo assim que tanto o lado A como o B possam
comercializar os produtos que serão plantados naqueles lugares. Essa estratégia política-
econômica já havia sido absolutamente compreendida pelos dois especialistas.
O líder B pediu para Moço esperar, deu-lhe uma folga para que pudesse trabalhar
nas correspondências comuns, ou seja, das pessoas comuns que queriam se comunicar
com os dois lados. Quando precisasse, chamaria-o para voltar aos seus serviços de
correspondente oficial.

Lado A hh/hh/hhhh

Grande irmão, como é triste não vê-lo. Penso nos nossos dias de conversas
descontraídas durante as madrugadas nos fins de semana. Mesmo após os nossos
casamentos – que dias felizes! – ainda mantivemos contatos e você, além de meu irmão
compartilhando comigo do mesmo sangue do nosso nobre pai, foi a pessoa que me
ensinou tudo sobre a vida. Sei que é tolo falar assim, mas, é o que eu sinto
verdadeiramente e não posso negar a saudade daqueles dias.
Não sei quais são as notícias do seu lado, mas aqui as pessoas sempre falam
sobre uma guerra. Fala-se, aliás, que a guerra já começou, as pessoas começam a
perder seus empregos, a vida fica, lentamente, mais difícil, até que se decide que,
oficialmente, a guerra começou e as pessoas podem morrer abertamente, sem desculpas
hipócritas de que o país passa por necessidades.

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Estou o tempo todo a pensar: e se realmente há uma guerra? E se eu precisar
lutar para defender essa pátria que não me sinto filho? Defender ideais que não
compreendo por uma honra que não possuo. Lembro-me daquelas velhas histórias que
ouvíamos e os conselhos sábios sobre as únicas pessoas que queriam a guerra eram as
que nela não participavam. Eu não entendia isso e agora me vejo apontando uma arma
para você, meu irmão. Tendo que lhe matar. Para os governos, somos cidadãos antes de
sermos homens, principalmente o governo do seu lado.
Nesses dias, também penso em meu pai. Um homem que cuidou de nós como se
fossemos adultos, enquanto ainda éramos criança. Isso deu-nos uma dureza contra as
dificuldades, fazendo com que nossas consciências nunca sentissem nenhuma reação de
dor diante da vida. Penso que, com toda a certeza que possuo sobre as coisas que
desconheço, nosso pai diria: “Lá vem a guerra (ele a sentiria antes de todos, disso não há
dúvida), não há nada pior do que ser inimigo da sua terra, traidor do seu povo. Então,
mesmo que os que comandam a sua terra tomem atitudes que pareçam erradas, confiem
no futuro, confiem na sabedoria daqueles eleitos para fazer o mais correto. O governo
sempre é um bom pai, poderá pedir sacrificios e não hesite em nenhuma ordem dada”.
Ah! Sim, como ele diria essas palavras, até ouço o som de sua voz exatamente como ele
costumava falar.
Irmão, cuidemos de nós para que possamos viver sem precisar matar ao outro.
Aguardarei notícias suas. Irei subornar o mensageiro para, no momento em que lhe
entregar minha correspondência, aguarde apenas alguns segundos para que você,
rapidamente, escreva uma resposta para mim. Não sei se ele irá aceitar, mas, você
também pode oferecer-lhe um pouco de dinheiro em troca da felicidade que as suas
notícias me causarão.

Com saudades, o seu Irmão.

Conversou com Moço e pediu-lhe uma regalia. O mensageiro negou, disse que
estava sempre recebendo propostas semelhantes e que não poderia fazer nada. Limitou-se
a dizer: “As notícias de lá são as daqui”. Então foi pedido que, antes de enviar a carta,
lesse novamente as suas palavras. Moço as leu e o irmão sentiu-se feliz com a poesia da
carta. “Eu não sei o que você fez, existe algo de diferente que eu não sei dizer, mas é algo

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que me faz sentir estranho”. Moço sorriu e pensou nas palavras do homem. As palavras
lhe tocaram. As palavras que Moço desprezava. Ele usava as inúteis de um modo que
agradava as pessoas.
Começou então a se atrasar na entrega das cartas, pois lia e relia tudo que
escrevesse e se preocupou com isso. Pensando foi que concluiu que – continuava com
esta ideia - as palavras eram sem sentido, desnecessárias, limitadoras do homem, porém,
a disposição que um homem fazia delas, alterando a ordem e sabendo, com precisão,
onde aplicar cada palavra de acordo com sua musicalidade, mesmo sem perder o
significado – ainda vazio! – dos textos, dando, porém, emoções reais a quem lia.
Emoções reais... parou seu corpo enquanto caminhava para que seu pensamento
trabalhasse melhor. Os livros eram só palavras. Os livros que leu... aquelas ideias
novamente vinham-lhe a mente. Cada dia desde que saiu de casa foi rapidamente repetido
em sua cabeça, lembrou-se de tudo. Pensou que talvez não houvessem tantas diferenças
entre suas cartas para os moradores do lado A e lado B e os romances aventurescos que
tanto leu antes de sair para sua própria aventura. Talvez a emoção – não, ainda não pode
ser um sentimento, isso é natural, orgânico, animal, jamais intelectual - que os livros
deveriam lhe trazer eram as emoções de asco, ódio, decepção que sentira antes. Talvez os
livros de amor sirvam para que se sinta ódio do mundo. As biografias de pessoas
importantes, talvez sirvam para que se sinta insignificante. As aventuras com espadas e
cavalos talvez sirvam para que se sinta o tédio de cada dia. Os filosóficos, talvez, sirvam
para mostrar como são patéticos, os filósofos e os felizes. Os religiosos, sempre cheios de
esperanças e reconfortante, sirvam para que se sinta cada vez mais solitário, cada vez
mais desesperançado, cada vez mais certo de que o futuro esperado é tão odioso,
insigificante, entediante e patético quanto a vida que já se vive, corajosamente (talvez),
todos os dias.
Então, Moço esqueceu esses pensamentos que o distraía porque, atrasando nas
cartas, precisou trabalhar mais para compensar os dias sem correspondência. Ele não diria
que os esqueceu completamente, os pensamentos sobre os livros, suas causas, não lhe
sairiam da mente, mas, pode-se dizer que ele se adaptou à angústia que uma nova ideia
causa.
Não era raramente que acontecia dos dois especialistas pedirem conselhos
políticos para Moço, em reservado, sob a promessa que aquele pedido jamais se

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espalhasse entre ninguém, principalmente entre as pessoas que viviam do outro lado do
rio.
— Olha, quero saber o que você pensa sobre a guerra... — isto foi dito pelo
especialista do lado B para Moço. Queria as palavras do único intelectual que conhecia,
além do outro especialista. Não conseguia, mesmo que tentando sem grandes esforços,
encontrar uma solução para a tomada do rio senão destruindo o lado A. Pensou que,
talvez não fosse preciso dizimar a população inteira, cinquenta porcento era um bom
número ou então todos os homens adultos e as crianças do sexo masculino. Estes pois
cresceriam um dia e seriam um problema no futuro e aqueles poderiam formar grupos de
resistência. O Lado B e seu grande líder especialista, bondoso, deixaria viver,
piedosamente, as mulheres, as meninas e os velhos, contanto que eles aceitassem viver
sob o seu poder. Obviamente, eles aceitariam e, finalmente, ele seria o mais poderoso e a
população, a mais feliz.
Moço pensou, lembrou-se dos livros de guerra que leu, mas não os citou. A
maioria era contra, defendia a paz e um entendimento (mesmo que, forçadamente,
impossível) entre os inimigos através do diálogo. Havia também as defesas à violência,
trazendo como única solução para o mundo a morte do ser humano: o único modo do
homem melhorar é através do suicídio.
— A guerra é a solução e as pessoas lhe aplaudirão por precisa decisão — isto foi
a resposta.
Mas o que saía da boca de Moço não era o mesmo que estava em sua cabeça.
Estava cansado daquela vida e entre os livros e a literatura da sua vida, pensou que queria
fugir dali e faria a última coisa por aqueles dois lados gêmeos, daria a eles novos líderes
ou uma chance de mudarem, destruindo-se.

Antes mesmo que o especialista do lado B confirmasse que iniciaria uma guerra,
Moço foi até o lado A e informou ao seu especialista que a guerra era iminente, que ele
deveria fazer os preparativos, pois a população entendia a necessidade de destruição do
lado B e, com certeza, aprovaria a violência como meio para a paz.
O chefe do lado A não esperava por aquelas informações ditas por um Moço que
estava diferente, ofegante, preocupado. Ele sempre era distraído e desinteressado, mesmo
que entendesse bem de vários assuntos, dando sempre ótimos conselhos. “Mas, a
população aceita essas explicações? Disso tem certeza você?”, perguntou, hesitando antes

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de decretar a produção de armamentos. Para isso, foi respondido por Moço: “Eu sou o
mensageiro e conheço cada pessoa das duas cidades. Como me consideram neutro, sou o
mais confiável para ouvir confidências do tipo: ‘A única solução contra o
desavergonhado governante do outro lado é a sua morte’, sempre se ouve esses
comentários nas ruas, a população pressiona para que medidas definitivas sejam tomadas,
disso tenho certeza por inteiro".
Um suspirro do especialista enquanto pensava no que deveria fazer significou
para Moço “interessante” e “e agora?”. Moço insistiu que ele só estava no poder por
causa do povo e que a vontade da maioria era o que mantinha legítimo e seguro o
governo. Disse que a política servia apenas para agradar a população, o que pareceu
razoável para aquele homem preocupado. Chegou então à intimidade com o político: “As
pessoas esperam seus mimos, não tenha medo”. E foram com essas palavras de não ter
medo, que o especialista lembrou-se que não estava lembrando do medo de morrer
naquela guerra. Poderia perder a guerra.

Ser degolado. Fuzilado. Envenenado. Escravizado. Enforcado. Estripado.


Apedrejado. Esfolado. Queimado. Afogado. Esfaqueado. Eletrocutado. Congelado.
Baleado. Enterrado. Asfixiado. Espancado. Suicidado. Crucificado. Sepultado. Morto.

Todas aquelas opções. Cada uma agradando, seletamente, cada objetivo do algoz.
Matar de uma maneira representava certa coisa. Não se poderia matar um homem de um
modo errado. Provavelmente, a princípio e em segredo, iriam espancá-lo. Não que
espancar fosse um modo correto de se iniciar o assassinato de alguém, não era, por isso
mesmo era feito em segredo (a população jamais deveria saber de uma tortura feita pelo
governo, este deveria ser justo, apenas uma população heterogênea e indefinida poderia
se considerar estúpida para agir como animais selvagens confundindo vingança e justiça).
Apesar de errado, a tortura alivia o vencedor da guerra. É o maior prêmio que pode
receber após tantas dificuldades, após perder tantos filhos numa batalha sem sentido.
Para o público, em aberto, o governo vencedor da guerra mostrará que é justo e
humano e que, apesar de ter vencido a guerra contra o terror, fará um julgamento
totalmente honesto: mostrarão imagens de como o líder do governo perdedor está sendo
bem tratado, de como está triste por ter perdido a batalha, mas feliz por ter sido derrotado
por tão nobres guerreiros. Então, se iniciará a agonia dos julgamentos. A população

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nervosa discute o que é melhor para o futuro da humanidade, mas a opinião da população
não importará muito e ela mesma saberá disso, pois apesar das discussões, estão todos
atentos para a decisão do juiz que, mesmo que esteja em discordância com o desejo da
maioria, será respeitada, principalmente pelos que são mais violentamente contra a tal
decisão.
Afinal, concluiu o especialista em seus devaneios em voz alta, o juiz, por fim,
decidirá que o líder perdedor deverá morrer pelo bem da humanidade. Quem perde a
guerra não tem direito a viver. Quem perde é fraco para o mundo. Quem perde não se
adaptou com perfeição às leis e às normas dos países que inventaram as leis e as normas.
Aqueles que afirmam que a guerra só traz perdedores. Como são tolos, tolos! Quem
vence ganha tudo, controla tudo. Quem vence a guerra não perde os jovens soldadinhos
que manda para o campo de batalha, mas faz uma troca: entrega a vida de milhares de
jovens imbecis que lutarão por um ideal inexistente, elegantemente mascarado com um
sentimento de nobreza em troca dos bens naturais e do controle total de toda a população
do perdedor. Moço ajudou a completar o raciocínio: “Você já possui tudo: os jovens
imbecis, estes são os mais fáceis de se encontrar. O ideal estúpido já está criado que é a
ideia de que a paz está ameaçada, o ideal de que se deve lutar, contra todas as
dificuldades, por um estado permanente de paz e tranquilidade – mesmo que se saiba que
é impossível chegar a tal estado – sempre funciona e, então, você também possui o Deus
esperando pelos mortos da sua guerra. Não lhe falta mais nada.”
O homem já sabia disso tudo, mas esperou, por todo aquele tempo em meio às
suas divagações inúteis mas interessantes de se ler, que qualquer outra pessoa
confirmasse seus pensamentos: a guerra era inevitável e todos os lados estavam
plenamente preparados.

Moço saiu do gabinete sem nenhum comunicado para o lado B. A guerra ainda
não seria anunciada, os preparativos bélicos deveriam ser feitos o mais rápido permitido.
Porém, ele começou a conversar com as pessoas que pediam-lhe para escrever cartas.
Avisava-as da guerra: “A guerra está chegando, seu filho, eu o vi, seu filho é um belo
jovem alto, forte, não é mesmo? Esse mesmo, baixo e magro, eu o conheço, ele me
avisou que irá lutar na guerra, que está com muito medo.” Para as mães, eram só aflições.
Para os filhos, outras más notícias: “Sim, a sua mãe, eu a conheço, é uma senhora que,
apesar da idade, ainda poderá ser usada pelo governo na guerra. Ela me avisou que,

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provavelmente, estará entre as bombas e os tiroteiros cozinhando para os soldados”. Tem
certeza que era minha mãe?, perguntavam furiosos e apreensivos. “Bem, pode não ser sua
mãe, mas todas as mães irão para a batalha”. Dizia essas palavras nos dois lados. Para os
especialistas, as palavras também não mudavam: “O outro lado já está pronto para a
guerra, o ataque acontece em...”.

O que acontece se...?

...um louco, insano, maluco, psicopata, gênio ou realista, de qualquer um dos


lados, ou melhor, dos dois lados, todos os lados do mundo criam seus loucos com as
mesmas loucuras, então, um despreparado desses coloca uma bomba e inicia a guerra?
Então isso é o que acontece naquele dia da semana em que os dois especialistas rezavam
para seus egos, torcendo, pedindo, implorando para que algo acontecesse para evitar a
guerra. Uma amnésia pandêmica fizesse o mundo inteiro esquecer, um cometa caísse e
fizesse com que todos morressem, o outro especialista se suicidar, seres de outros
planetas que viessem nos visitar em um segundo antes da guerra ser declarada. Por favor,
qualquer coisa, imploro que algo aconteça... e boom! Uma bomba explode. Depois outra
e outras mais. A GUERRA COMEÇOU! Gritam as vozes sem rosto nas ruas das duas
cidades e as correrias, sangue e pólvora carregam os canhões. Um dos especialistas, que
não se faz necessário mencionar qual, pois ambos são faces da mesma pessoa, tenta
acordar, estapeia o rosto “acorda, acorda!”, mas ele não acorda, porque nunca dormiu.
Então, o especialista se deita e tenta dormir. Se dormir, tudo ainda pode ser um sonho, é o
que ele pensa até descobrir que não consegue dormir, nem mesmo cochilar, nem um
descanso naquele calor. Bem, ele pensa, se não posso dormir, tenho que aceitar isso como
realidade.

Aquelas não eram cidades organizadas, com exércitos e seus generais planejando
guerras. Todas as pessoas lutavam. Todos eram soldados e os dentes e os punhos serviam
de armas para destruir o inimigo tanto quanto as metralhadoras e as pistolas que não
paravam de atirar. Nenhum adulto queria dar uma arma para uma criança, então, para elas
também participarem da divertida matança, corriam, sorridentes entre os fogos,
procurando no chão um revólver perdido ou bombas não estouradas. Criança só mata
criança, está bem? Essa é a brincadeira. E tem regra para matar?, perguntavam os

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moleques, gostavam de brincadeiras com regras, organizadas e bem definidas. Se matar
com apenas um tiro ganha 10 pontos, cada tiro a mais que precisar ser dado perde dois
pontos, ou seja, se não matar com 5 tiros, perde o jogo e tem que começar de novo. Que
legal! Vamos. E elas corriam, as crianças, graciosas, felizes, existiam, na brincadeira, os
clichês: garotões mais fortes e convencidos que sempre ganhavam e tinham razão em
serem convencidos; os fracotes e inteligentes que, mesmo perdendo, divirtiam-se
matando outros garotos mais fracos e assim sentindo-se como os fortões; as meninas,
eram belas pequeninas, garotinhas do nariz sujo também queriam brincar entre os
meninos, estes protestavam, “garotas não matam, garotas cozinham” e elas respondiam
“mas minhas amigas morreram, quero matar também, mamãe disse que eu posso matar
quantos eu quiser e que se você não me der uma arma carregada eu vou contar para ela
agora mesmo”, o garoto ou os garotos reclamavam, faziam raiva e ameaças, mas
aceitavam as intrusas no bando, algumas delas, admitiam depois, não eram muito ruins na
brincadeira e se mostraram excelentes assassinas. “Bobo, bobo, bobo! Viu só? Eu matei
mais do que você”, se gabou a menina. O garoto ficou chateado, gritou ainda um “Foi
tudo sorte, você só matou outras crianças, isso é fácil demais, quero ver amanhã, mata
algum adulto, eu duvido, menina feia”.
O rio entre as duas cidades não era fundo, por isso, os homens nadavam e lutavam
entre as águas. Logo, vários corpos flutuavam, atrapalhando o caminho de outros homens
vivos que queriam matar no rio, assim, um acordo rapidamente foi feito pelas próprias
pessoas, que era: as mulheres, que não estavam lutando, poderiam recolher os corpos. As
mulheres eram importantes, para elas, era totalmente proibido matar um inimigo ou
serem mortas – seria aceito apenas acidentes, como bombas descontroladas que matam
cegamente a todos – mas elas cozinhavam sem parar para os soldados, cuidavam dos
ferimentos dos vivos, choravam pelos mortos e varriam o chão para manter a casa em
ordem.
Para os especialistas, os pedidos não paravam. “Ordens, aguardamos ordens”,
diziam os soldados mais disciplinados. Que ordens? A ordem é matar, matem,
desesperadamente, matem todos o mais rápido que puderem. Não se sabia o que fazer. Os
dois eram os únicos que pareciam sofrer com a morte das pessoas de todos os lados. Não
queriam mortes. O especialista A lembrou-se que já foi respeitado por aqueles do outro
lado, de todos os lados, mas, agora era preciso matá-los. O B pensava que a situação era
inevitável, era uma pena, mas não podia lamentar, a sua estratégia era matar o

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especialista A sem matar muitos inocentes, assim teria mais poder na grande cidade única
que seria criada após a guerra. Estava com medo, mas vislumbrou o futuro: uma
população tão feliz, uma política perfeita, agradando a todos na mesma medida. Uma
sociedade sem suicídios, sem reclamações, sem falhas. Ficou pensando, olhou para a
frente, o futuro era ali, sonhou e sonhava, esqueceu da guerra por um instante, não ouvia
mais nada: uma bomba caiu perto do seu gabinete rasgando seus tímpanos.

Moço, ele era o mais despreocupado da guerra. Parecia-se até mesmo com as
crianças, mas elas ainda se divertiam, enquanto ele apenas observava. Ninguém lhe
atacava, serviria para escrever mais cartas no futuro, e, até agora, ele conseguiu fugir das
bombas cegas. Visitava as cozinhas, falava com as mulheres: “Já sabe o que todos já
sabem, senhora? O especialista daqui do nosso lado fugiu, covardemente. Está agora
longe daqui. Ninguém sabe onde. Eu não estou dizendo isso, por favor, estou dizendo o
que ouvi, você sabe que sou bem informado e me disseram que a informação é séria, ele
nos abandonou”. Um pouco disso aqui, um tanto daquilo lá. Um especialista que “fugiu”,
outro especialista que “não gosta de pessoas, inventou essa guerra para matar todos, é um
louco”. Eram mentiras, mentiras do Moço que gostava das mentiras que inventava. Os
especialistas continuavam ali, não lutavam, é certo, apenas ficavam em seus escritórios,
olhando pela janela, tomando decisões sem pressa. Mas as mentiras eram verdades para
quem as ouvia e quem as ouvia acreditava em Moço, jovem sério, trabalhador e, o
melhor, desconhecido. “Então, é verdade, cretino”, as mulheres diziam para Moço e
depois diziam para seus maridos que lutavam: “Olha, deixa de lutar contra o outro lado,
que o especialista nem aqui está mais”. “Ouvi dizer que ele tem uma bomba e vai
explodir tudo, quer viver sozinho”. As dúvidas começaram a parar a guerra, as dúvidas
trouxeram mais dúvidas e afastaram ainda mais as certezas que poderiam encontrar.
Alguém gritou, esse alguém talvez tenha sido o mesmo louco que começou tudo
explodindo a primeira bomba: “Vamos caçar os especialistas!”. Todos gritaram suas
interjeições preferidas e correram para destruir seus ídolos. Jogaram bombas e tiros
dentro dos escritórios, as pessoas se misturavam dos dois lados, eram amigas, destruindo
os mesmos poderosos. Pegaram os especialistas pelos cabelos e os levaram para o rio, a
população inteira apontou suas armas – as crianças também, estavam sérias, tinham
feições adultas – esperaram o suspense incomodar e atiraram. Os corpos caíram sobre a
água e foram levados para sempre.

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E agora? — alguém gritou, talvez o mesmo alguém que explodiu a primeira bomba e que
depois tenha gritado “vamos caçar os especialistas!”.

Não se soube o que fazer. Então, começaram os boatos, os dois homens que pegaram os
especialistas pelos cabelos, que os capturaram. Eram jovens, parecidos, inteligentes
(encontraram os especialistas não em seus gabinetes, porém, em esconderijos que eles
haviam criado – cada um de uma maneira). O que acham? Aceitam ser os governantes
das duas cidades? Eles se olharam, riram, coçaram a cabeça e tudo bem, eu aceito, se ele
aceitar, eu também aceito. Todos aplaudem. Ainda nos odiamos, alguém diz. Ainda
estamos em guerra, continua dizendo. Isso é uma verdade, as pessoas comentam. A
guerra recomeça agora com os dois novos governantes, estes que não são especialistas em
nada, mas que são as melhores soluções para seus lados.
Moço, cansado, viu e fez tudo aquilo. Foi até sua casa, calmamente, não sentia
pressa, apenas indiferença. Puxou até o rio o barco que haviam construído para que ele
pudesse transportar as cartas, cortou as amarras e atirou os remos para longe. Deitou-se
no barco, fechou os olhos e o rio levou Moço e o seu sono para longe dali.

Capítulo XIX

Moço olha para o rio. Acordou pela manhã. Deliciou-se com o frio da noite.
Pensa em todas as analogias que se faz para os rios, sempre comparando-o à própria vida
do homem em movimento, jamais parada, transformando-se a todo momento. Pensou que
essa visão era diferente da dele próprio, que via o homem em uma forma estática e preso
a um tédio patológico, repetindo-se eternamente em suas atitudes, em seus seres.
Os rios, se estavam sempre a mudar, talvez vivessem uma vida de medo.
Preocupando-se no que se transformariam amanhã, quem carregariam, quem de suas
águas beberia. O rio era triste, nunca se acostumava com sua situação, diferente dos
homens, que sempre sabem o que lhes acontecerão. Pensando nisso, Moço sentiu
vergonha por estar defendendo a vida que achava ridícula. A vida do rio deveria ser feliz,
aventureira, natural. Natural, ficou pensando. Os homens eram naturais. Não existe a
artificialidade. Ou existe.

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Com os braços para fora do barco frágil, Moço olha para o céu. Era artificial que
ele, um animal, uma parte da natureza, viajasse pelo rio em um barco? Ou os barcos eram
da natureza das pessoas? Que chatices, que bobagens, chega! Pensamentos tolos, se
reprimia, saiam da minha cabeça pensamentos tolos, estúpidos, infantis. Que importa
tudo isso? A vida é tão complexa que ninguém entende ou é tão simples que ninguém
acredita. Saiam da minha cabeça ideias estúpidas. Talvez nada fosse natural, mesmo que
ele deixasse o rio lhe levar até que chegasse a um lugar, isso não seria natural, pois era
uma atitude dele deixar o rio levá-lo. Do mesmo modo, parecia mais natural ao Moço
como humano parar em um lugar que lhe agradasse, pois era o que ele desejava e estaria
obecendo sua consciência.
Quis se entristecer por o mundo ser assim. Por tudo ser assim, por ele ser assim,
por eu ser assim. O pesadelo de mudar, tão baixo, pobre, vulgar. Ser livre de si mesmo.
Cantou alguma musiquinha sobre liberdade. Era boba, mas gostava do som, agradava-lhe
o ouvido mesmo quando ele mesmo cantava.
Dormiu mais um pouco e acordou a noite ou era madrugada. A floresta era negra.
As descrições da floresta, ele pensou. Das florestas. Dele na floresta. Começou a se
descrever, em voz alta: “Um moço na floresta. No rio que atravessa a floresta. A natureza
que atravessa a natureza. Este moço na natureza é moderno demais. A natureza está
obsoleta. O moço do futuro visita o passado, encanta-se e influencia o passado. O
passado se odeia. Orgulha-se de ter sido importante, sabe o quão patética é sua
importância. Orgulha-se do passado considerar-se melhor que o presente. Mas, sabe o
quão patético é. O futuro lamenta não ser comparável ao perfeito passado. O moço não se
sente como um animal, está além disso, além de sua natureza. Ultrapassou sua infância e
tornou-se adulto sobre a natureza dos outros animais, ainda infantis, ainda crianças. Mas,
ele sabe que ainda é um animal, como todos os outros, apenas mais forte e isso lhe faz
sentir-se mal. Agrada-lhe os animais, desagrada-lhe a forma de pensar incontrolável de
que é superior a tudo. Se parasse o barco, seria natural sua atitude e arrogante, estaria se
pondo além do acaso que é a natureza. Se se deixasse levar, seria desnatural para sua
mente e hipócrita por não estar fazendo algo de acordo com o que sentia: a superioridade
não poderia ser negada, a superioridade não poderia controlar. Quem o visse de longe,
deitado em um barco, pensando, sozinho, ficaria triste com aquela bela imagem, era uma
situação muito solitária. Alguns animais, vendo-o assim, devem ter sentido pena daquele
moço. Sabiam que era um deles.

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E no rio haviam outras pessoas, como Moço, sendo levadas. Algumas mantinham
os remos que Moço desprezara, controlavam suas velocidades e direção. Outros, com
medo, mantinham uma corda presa à beira do rio, para que jamais fossem longe ou
ficassem perdidos. A maioria era outros moços, deixavam seus barcos sendo levados,
deitados, não olhavam para frente ou para trás, apenas para cima, para lugar nenhum,
gastavam sua viagem no pensamento. Moço levantou a cabeça e olhou para os outros
barcos, perguntou-se quem eram aquelas pessoas, o que haviam vivido. Nada,
provavelmente, concluiu, como todas as pessoas. Ou não. Viver era só aquilo que todos
faziam, então, não tinha motivo para achar que não haviam vivido. A mediocridade do
homem é o seu limite, não há nada além disso. Ele pensou. Mas, por que existe esse
sentimento de que existe algo além? De que o homem é melhor do que ele sempre foi,
mesmo que nunca tenha sido? Ele pensou. O homem inventou isso para sentir-se melhor,
para não aceitar sua condição ao mesmo nível dos outros animais. Ele pensou:
— Então, considera você, Moço, medíocres os outros animais? Jamais pensei
nisso, honestamente, mas os animais não pensam, não impõem limites, fazem o que estão
em seus limites, não há nada além para eles, não há nada além para o homem e nem para
mim. Sim, considerando que você também é um homem. Sim, infelizmente, eu sou.
Infelizmente? Sim, infelizmente. Não creio que seja infelizmente, se está no seu limite, se
você é tudo o que pode ser e não há nada além disso, é felizmente, você está vivendo
plenamente, alegre-se moço! Não sei se estou vivendo no meu limite. E mesmo que
esteja, meu limite me desagrada, o limite dos homens me desagrada. Relaxa, isso é por
culpa do homem (ah! Eu o mato!) que inventou que o homem é um ser miserável em sua
natureza. Não sei, não sei, não sei, não sei. Você sabe, não quer aceitar isso, tão simples.
Não sei, não, não sei! Está bem, mudamos de assunto, não precisa se irritar comigo,
também sou você. É, infelizmente, você também sou eu. Infelizmente? Sim, infelizmente.
Mas, não lhe agrada as minhas considerações sobre nós? Suas ideias só me trazem mais
dúvidas. Esse é o meu objetivo, não deixá-lo ir pelo primeiro caminho que escolher, não
deixá-lo ser óbvio demais. Suas conclusões fazem-me não seguir caminho algum, não
percebe isso? Você é que não percebe que o caminho nenhum que você pensa seguir já é
um caminho que você está seguindo, está sendo criativo não escolher nenhuma das
opções que lhe aparecem na vida, todos são tão chatos, sempre escolhendo alguma
alternativa. Ao menos, os outros parecem mais satisfeitos com suas escolhas. Que tolice,
eles não têm escolhas, aceitam as primeiras mesquinhezes que lhes são servidas. Mas,

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alguns parecem sofrer, errar e então trocam suas decisões por outras, mais desenvolvidas,
mais sábias. Tolices, tolices, novamente tolices, não há nada disso, creia-me, as pessoas
erram após escolherem algo mesquinho e vil, então escolhem uma outra alternativa,
qualquer outra coisa, essa outra coisa, mesmo que lhes agrade, com certeza, e há certeza
nisso e muita, é algo mesquinho e vil para outra pessoa, devoram seus amigos, destroem
tudo para sentirem um pouco de uma felicidadezinha. Mas, mas, mas... alguns não me
parecem ser assim, desse modo, não são todos assim, recuso-me a aceitar. Recusa-se a
aceitar, meu pobre, porque você se sente como um deles, mas eu não permito isso, para
isso, eu existo, sua consciência lhe salva. Minha consciência me condena, não sou nada e
a culpa é sua. A responsabilidade é sua, não controlo você, apenas lhe dou mais ideias
para pensar, o corpo é seu, as atitudes mecanizadas são suas e não diga que não sofro por
isso, por ver você assim, defendendo essa gente ordinária que nos cerca, odeio a todos,
somos muito melhores que todos eles, ao menos, eu sou melhor que todos eles, mas você,
tonto, não me deixa sair, não me deixa controlar o corpo. Não o deixo porque seria um
desastre, você não tem sentimentos, apenas razão. E você, só tem sentimentos. Também
tenho razão, não seja egoísta, você também tem sentimentos, admito, porém, são
sentimentos apenas por si próprio. Não é nada disso, não podemos concordar com nada,
que chatice, entenda que eu tenho sentimentos, mas eles são mais inteligentes que os
seus, não são um monte de amores doentios, paixões descontroladas sobre as coisas, mas
pelo que me apaixono, eu me controlo ao invés de ser controlado e uso minhas paixões
para um bem maior. Qual bem maior, diz, diz, eu não acredito em bem maior nenhum,
não existe bem maior, você apenas pensa, pensa, em diversas oportunidades e alternativas
diante de uma atitude da qual eu lhe peço conselho e o que você faz? nada, apenas diz
que se deve pensar mais sobre aquele determinado assunto e some, covarde, pensa nisso,
você é um covarde, o pedaço da minha cabeça que deveria possuir a razão e a inteligência
é ocupado por um covarde detestável, humilhado pela grande capacidade de pensar que o
impede de tomar simples decisões. Você pensa que me ofende com suas acusações, mas
já ouvi todas essas injúrias antes e nenhuma me afetou a razão inabalável, eu apenas tomo
minhas decisões nos momentos oportunos, enquanto você, que também é um pedaço de
cabeça inútil, um animal, age desesperadamente como se esperar um segundo pudesse lhe
trazer a morte instantânea, para que pressa, eu lhe pergunto, para nada, para ser o idiota
que você sempre foi diante das pessoas e a covardia, não sou eu quem não permito que
você não me deixe no comando do corpo, você é o covarde, não confia no único que lhe

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ama que é a sua própria cabeça. Minha cabeça não me conhece, como ela pode me amar.
Sua cabeça é a única que lhe conhece, mas, deixa, para, cansa-me suas palavras, sempre
defendendo a sua fraqueza, deixa, vê, olha para frente, olha para lá, o que é aquilo que
ainda não consigo ver. Eu também não consigo ver, parece interessante, um novo lugar
para conhecer, suponho. Uma nova monotonia para se viver. Talvez iremos encontrar
alguém interessante lá, sempre há pessoas interessantes em todos os lugares. Já somos
uma pessoa interessante o suficiente para não precisarmos encontrar nenhum outro,
duvido muito de ali, naquele lugarzinho, provavelmente, fedido e imundo, alguém
inteligente será encontrado. Se não houver, ensinamo-lhes algumas coisas, porém, não
creio que não se vá achar ninguém ao nosso nível. Você, por acaso, por um acaso
qualquer que nunca parece acaso, mas destino, apesar de eu não acreditar nessas
bobagens, mesmo elas sendo tão verossímeis, você encontrou alguém que achou
interessante até agora nesta viagem? Bem, eu poderia considerar alguns, não que fossem
pessoas interessantes em si, mas seus contextos davam coisas boas para se pensar.
Contexto, novamente essa estória, cansei-me disso, as pessoas deveriam ter um pouco
mais de plenitude. Novamente essa estória, eu repito agora, novamente isso de plenitude,
você é a parte criativa do cérebro, mas mata a paciência com suas repetições, é sempre a
mesma coisa, são sempre as mesmas palavras. Eu não sou repetitivo, mas, esqueçamos
essas briguinhas, veja, já podemos ver a cidade, vamos, encontre um modo de alcançá-la,
estamos no meio do rio. Estou tentando com as mãos, mas o barco é muito pesado. Não
seja medroso, vamos pular no rio. E não é perigoso? Que importa se é perigoso? Eu não
sei, tenho medo. Vamos, pule, vamos logo, que tédio, ah, se eu controlasse nosso corpo.
Está bem, está bem, acalme-se, não precisa controlar, mas farei o que você pede dessa
vez, pulo no rio. Agora sim, pulou.

Capítulo XX

Mais uma cidade, Moço entediou-se, ao nadar até próximo daquele lugar.
Abandono o rio para sempre. Depois eu volto. Alguns continuam sendo levados pelo rio,
outros morreram lá e alguns pararam aqui. São todos iguais. Iguais a nós. Já chega! Moço
esqueceu seus sentimentos e suas razões e entrou na cidade. Oh! Como eram belas
aquelas crianças correndo. A cidade estava enfestada de crianças magricelas que corriam,
riam sem vergonha de nada e que nunca se recriminavam. Nenhum “Ei, garoto, não corra

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tanto ou perderá os dentes” era ouvido. Deliciosa visão. Era a primeira cidade que não
precisava dizer nada. Não usaria palavras para se comunicar com os pequeninos, eles não
precisam disso para entender, apenas foi Moço correr com elas e todos se divertiam com
o estranho, ele ria como elas riam, gargalhou e se divertiam, em silêncio, o som dos
gritinhos era o único que poderia ser ouvido. Nem mesmo nas brincadeiras se via as
regras, influências dos adultos, nada disso se via ali.
Moço nem entendia as brincadeiras, mas brincava. Estava sujo, imundo, a areia
pregou-lhe no corpo molhado e nenhuma criança condenou-lhe por isso, acharam graça
do fedor de peixe do estranho. Era possível até mesmo ter um sentimento honesto
naquele lugar. Um sentimento bom e honesto. Tudo era tão simples. Estava com fome,
colhia algumas frutas ou subia em uma árvore, esta já cheia de garotos que pouca fome
sentiam, divertiam-se ali ameaçando jogar maçãs, cuspir sementes no rosto dos amigos,
empurrar os mais fracos para uma pequena queda da árvore. Sem ofensa, eram apenas
divertimentos, todos entendem isso.
Anoiteceu rápido para Moço naquele dia. As crianças sumiram, afinal, foram para
suas casas, aos cuidados dos pais, no dia seguinte... (provavelmente aquele dia era um
domingo, um bom acidente na vida de Moço), no dia seguinte... (absolutamente as
crianças não viviam daquele modo o tempo todo) no dia seguinte... (talvez elas fossem
infelizes durante o resto da semana, precisavam gastar suas energias infantis no dia livre
que teriam, tristes as vidas daquelas crianças, pais carrascos, violentos, obrigavam-nas a
serem quaisquer coisas que elas não queriam ser), no dia seguinte..., ...agora sim, Moço
conheceria os adultos daquela cidade. Abrigou-se, sozinho, sob uma árvore e decidiu
dormir.
— Acordem! Chegou a hora da revolução! — Moço pensou em algum sonho que
gostava no passado e abriu os olhos para ver vários adolescentes gritando pelas ruas,
corriam e faziam barulho, clamando para que os jovens acordassem, não apenas
fisicamente, “a juventude é agora!”. Ele não era nenhum jovem adolescente, continuava
moço, mas se cansava facilmente e se irritou ao ouvir aquela barulheira, de onde ela
vinha. Não eram as crianças que o alegraram no rápido dia anterior, elas sumiram, e
agora um bando de moleques com seus dezesseis anos que achavam que os outros
precisavam ouvi-los. Aquilo se repetia em todos os lugares, em todos os jovens eram as
mesmas palavras sendo ditas mais uma vez. Preferia as crianças de ontem, com seus
modos travessos sem palavras, tinham-no feito feliz por algum tempo. Mas, todas as

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vezes que precisava pensar, que racionalizava suas atitudes, sentia uma profunda tristeza.
Deveria dar mais uma chance para os jovens? Não, não. Queria dormir mais um pouco e
procurou um lugar calmo na cidade para deitar-se, o que não existia.
Ainda mais irritado por nem conseguir fechar os olhos – sempre gostou de fechar
os olhos e tentar ouvir cada som separadamente, um ranger da porta, uma barata
caminhando, estalido de dedos, mas isso era-lhe impossível quando o único som possível
eram gritos de revolução, revolução. “Já vivi minha revolução e vejam onde estou! Este
aqui é o futuro de vocês, imbecis”, gritou moço para ninguém ouvir. Pegou seu sono e
colocou-o debaixo do braço e se dirigiu para a porta da cidade, abandonaria aquele lugar
imediatamente, era uma pena não conhecer os pais daqueles baderneiros, desejava isso
um pouco menor apenas do que dormir, pois reclamaria como deixavam garotos e garotas
tão crianças, que deveriam estar estudando e lendo livros, a gritar na rua como se fosse
alguma comemoração importante, mas, com certeza, não era, só haviam jovens! E não
comemoravam algo específico, estavam tentando fazer as revoluções que todos os jovens
– ao menos, os de épocas antigas – precisam fazer para continuarem a viver. Quando
estava quase saindo da cidade, um jovem puxou-lhe e disse “não, você vem aqui, é para
você que fazemos essa revolução”, gritavam, pulavam e levaram Moço para o meio da
multidão, pois queriam ter uma conversa com o único velho que poderiam ver ali.
— Senhor, senhor! Não desanima se você não foi como nós somos, você ainda é
jovem para ser um jovem. Soltem mais fogos, é a revolução chegando! —Comemora a
revolução, cantaram um hino:

Nós jovens revolucionários


Lutamos por um mundo melhor
Não nos agrada os nossos olhos
Mas não vamos cortá-los fora
Não nos agrada as tuas mãos
Essas serão eliminadas

Nós jovens revolucionários


Queremos ver a felicidade
Feitas por nossas mãos
E os teus olhos que testemunharam

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A barbaridade morrerá

Nós jovens revolucionários


Não viemos aqui para morrer
Mas morreremos com orgulho
Por defender o seu viver
O seu viver, o seu viver

— Belo hino, belo hino, eu bato palmas para vocês, parabéns, agora, poderei ir
embora, é claro, não é? — disse saindo entre as mãos jovens que soltaram-o enquanto o
hino era cantado, todos ainda estavam de olhos fechados e a mão no peito esquerdo,
refletindo naquelas palavras infinitas que eram o hino da revolução jovem. Antes de
conseguir sair daquela cidade “maluca, é sim, cidade de loucos!”, os jovens pegaram
Moço e o levaram, novamente, para o meio, deveria participar das comemorações para
entender que a sua velhice não era sua culpa, era culpado apenas de ter permitido que a
velhice dominasse a sua ideologia revolucionária, esta tão impossível de ser evitada, “ao
menos nos jovens de antigamente”, pensou Moço, que ainda disse, referindo-se a algum
mistério: “Mas, vejam só, eu já passei por essa fase, já existe um capítulo no livro da
minha vida falando sobre a revolução, a juventude, por que querem repetir isso? Não
existe nada mais criativo nessas cabecinhas?”. Para isso, as respostas, os discursos:
Cale-se! Quem veio antes de nós foi fraco, tornou-se um deles, como você!
Viemos aqui para libertar as almas dos homens que por tantos anos foram aprisionadas
por tudo de ruim que se pode encontrar na vida de qualquer patife, citarei os pontos da
horrível, nojenta, asquerosa condição que os próprios homens, devo lembrar-lhes, meus
amigos, criou para os homens mais fracos, psicologicamente mais fracos e ingênuos, até
hoje:

1º - amor por mulheres levianas, vagabundas, prostitutas, todo homem ama no


mínimo uma prostituta em sua vida, nenhuma delas admite a profissão – risos da plateia,
por favor – o amor se perdeu, se foi. As mulheres foram transformadas em mobília para
casa, com suas funções determinadas pelo desejo do homem. O homem também tornou-
se uma parte da casa, serve para alimentar a ideia da mulher como prostituta e os dois
fazem os jogos dos poderosos, daqueles sem nome, dos controladores do jogo que

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ninguém sabe quem são, mas todos reclamam e denunciam. Ah! Isso vai acabar, isso tem
acabar. A juventude trará a revolução do amor, como seu primeiro ponto.

2º - Fé. A pequena palavra possui um dos mais paradoxais significados que as


palavras – benditas palavras – puderam criar. O significado real é a crença em um ideal
maior, uma raiva que existe no corpo de cada jovem para consertar aquilo que está errado
ao seu redor. Então, os poderosos, novamente esses sanguinários sem rosto!, colocaram a
fé como algo voltado para uma coisa maior, um ser maior, um homem perfeito que dos
outros homens sabe tudo e ama a todos e fará o bem para a humanidade. Este poderia ser
um belo significado se não fosse o fato de que esse ser não existe! Não existe ninguém
nas estrelas olhando para nós e nos amando! Não existem regras na natureza! Essa ideia
serve apenas para... para tirar o foco do amor que deve haver entre homens e mulheres,
entre homens e homens e – por que não? eu pergunto – entre mulheres e mulheres.
Enquanto deus existir na cabeça dos homens, continuaremos matando uns aos outros para
chamar a atenção dele, o homem destrói a sua própria raça, os seus irmãos e filhos, para
provar que deus existe.

3º - O dinheiro como separador social do homem, o dinheiro surgiu para...

...separar os homens entre ricos e pobres, definindo assim quem mandaria e quem
obedeceria, completou Moço. Eu já ouvi tudo isso, existe mais alguns pontos que você
gostaria de dizer?
O Jovem Líder do manifesto irritou-se com a interrupção, mas, gostou do que
ouviu e perguntou: Como sabe dessas coisas, hein? Você já sabia que o dinheiro é o
grande vilão na vida dos homens e destruiu o mundo ao julgar os homens como aptos a se
viver apenas se tiverem a capacidade infame de fazerem um trabalho automático e
repetitivo que enriquece os grandes empresários, enquanto paga aos seus funcionários
uma mínima parcela dos grandes lucros que as empresas geram?
E Moço disse: É claro que eu sabia de tudo o que você me disse, alguém mais
aqui não sabe disso? Soltem-me agora, por favor. Obrigado. Eu não sei onde estão os
seus pais, garotos, e talvez exatamente por isso, pela falta de um bom acompanhamento
paternal e maternal, vocês ainda estejam com essas ideias totalmente ultrapassadas.
Digam-me, onde estão seus pais? Com certeza eles merecem ser seriamente advertidos,

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pois estão sempre ausentes, permitindo que uma cidade inteira seja tomada por jovens
deli... não, por favor, não me segure novamente, eu quis dizer adoráveis jovens como
vocês, fazendo essa revoluçãozinha. Está bem, entendo que eles não estejam presente no
momento, nunca estão, então eu, como o mais velho daqui, ensinarei algumas coisas
sobre esses pontos que vocês mencionaram, concordam? Que bom, vejo que ainda existe
um respeito pela figura mais velha que sempre deve existir em qualquer sociedade.
Afinal, vocês são bons garotos, não são meros baderneiros, mas estão apenas confusos
sobre tantas ideias que lhes aparecem na cabeça e não ter ninguém para explicar. Entendo
como é difícil, eu entendo que os adultos tornam-se estúpidos, fingindo não
compreenderem as dores de um adolescente, é verdade, eu também não concordo com
isso, mas o que fazer? Eles não compreendem tanto quanto um adolescente não
compreende que suas dores são passageiras, mesmo quando não são tão passageiras. Mas,
vamos aos pontos que você mencionou, Jovem Líder.

1° - Trata-se de um grande machismo da parte de vocês, seus inocentes, achar que


a mulher tornou-se prostituta por ela ser mais fraca e, por isso, o homem a dominou. As
mulheres são prostitutas porque desejam ser. Historicamente, foram as mulheres que
dominaram os homens, fingindo-se mais fracas para terem menos responsabilidades,
apanhando de seus maridos para não morrerem nas guerras. A prostitução, tão antiga e
que até hoje é a principal característica da personalidade feminina, é algo natural de toda
mulher. Aceitar-se como uma prostituta é o maior ato de feminismo que uma mulher
pode ter. Isso fica claro para vocês? Não respondam, por enquanto, sigo para o segundo
ponto.

2º - Esse ponto é o mais entediante de se falar, mas existem falhas na sua


definição de fé. Não é o homem que se violenta para chamar a atenção de deus, mas é
deus quem cria a violência para provar aos homens a sua existência. Mesmo que ele ou
ela não exista, o que realmente é o mais provável, apesar das provas que me nego a ver, a
situação do mundo em fazer-se acreditar em deus gera violência entre a própria raça para
provar a existência dele mesmo! Na sua visão, é o homem que precisa provar para deus, a
todo momento, que existe. Não é uma visão totalmente tola, eu confesso, porém ainda
creio que os homens são demasiados egoístas para duvidarem de suas próprias
existências. Agora, o último ponto das suas considerações interrompidas:

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3º - Dinheiro, muito dinheiro. Toneladas de dinheiro. Acreditam que o primeiro
homem que inventou a primeira moeda imaginou: com isso, serei melhor que o meu
vizinho, inventarei várias dessas, dezenas, não, não, centenas, ainda não me agrada,
centenas de milhares, agrada-me um pouco mais, porém prefiro centenas de bilhões
dessas simples moedinhas e então todos estarão lutando para possuí-las? Eu não acredito
nisso. Não me interessa o passado das moedas, certamente um passado condenado desde
o início, mas não condenem o tolo por ter sido humano, ele seguiu sua natureza, nada
além disso. Estou a me distrair em pensamentos e esqueço o que estava dizendo: não
importa o quanto lutem, o dinheiro não sumirá, esta era a única coisa que eu desejava
dizer, em verdade. Para isso, não existe fé em nada. Ele vai existir, perdoem-me a
verdade. Mas, animem-se, vocês ainda podem pensar em soluções otimistas para o
dinheiro ou menos dolorosas. Totalmente indolores, você me pergunta, Jovem Líder?
Não, não, isso jamais, nunca, se existir reencarnação, em duzentos mil anos algum de
vocês poderão voltar aqui para esse lugar que estou e entenderem mais uma vez que
enquanto houver dinheiro haverá dor, mas mesmo sem dinheiro haveria dor, então não se
entristeçam.
As últimas palavras foram as mais patéticas e foi Moço quem percebeu isso, ainda
que continuasse a disfarçar sua sabedoria de homem mais velho diante de um grande
público ingênuo que tinha tudo para aprender com ele.
— Então, eu acho que não há nada mais que possamos fazer — disse o Jovem
Líder — todas as lutas que faremos serão inúteis. Todas as mulheres que amarmos serão
atrizes interpretando mulheres respeitáveis, algo que todas estão longe de ser. Todo deus
que não acreditarmos irá se tornar mais vivo. Todo o dinheiro que destruirmos fará
alguém faminto. Não há esperança, é isso que suas retificações me fizeram compreender.
Todas as coisas erradas que enxergamos devem ser ignoradas, pois são naturais do
homem e também é natural do homem sentir esse nojo pelas coisas erradas, enquanto
ainda é jovem, mas, depois, quando chegar a sua idade, que nem é muita, começaremos a
achar que o errado é termos perdido nossas juventudes lutando por algo. Toda essa
baderna que se faz quando é jovem não deve ser feita, os jovens devem viver como
adultos, devem entender o mundo como os adultos entendem, compreendendo que nada
mais pode ser feito, que ser jovem é a maior tolice que se faz quando se vive e que tudo
deve ser aceito. Tudo deve ser aceito. Ele repetiu as últimas palavras e todos se olharam,

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lágrimas nos olhos de alguns, falta de compreensão do que estava acontecendo e que
diabos é revolução no rosto de outros.
Moço olhou sem vergonha para as decepções, intrigou-se por achar que não
acreditariam nas suas palavras, na sua época, ah! quando era jovem!, ele responderia a
esse velho tentando ensinar um pouco de mundo para os pequenos revolucionários. Não
podia pedir perdão pelo que havia dito, era a sua verdade naquele momento e, agora, seria
a verdade daqueles adolescentes. Com licença, ele sussurrou para abrirem seu caminho,
voltou à árvore que fê-lo dormir e, agora em silêncio, descansou até a noite.
Um estrondo solitário no meio da noite! O que aconteceu? Moço acorda com um
barulho que acorda o resto da cidade. Ele caminha, tropeçando, pois a iluminação é
péssima e ele ainda não conhece as armadilhas daquela nova cidade.
Vejam, vejam, olha o que aconteceu... diversos comentam na frente da casa do
Jovem Líder. Nenhum ousa entrar. Que houve?, pergunta Moço para algum, que lhe
responde: O Jovem Líder... dizem que ele se suicidou.

Perdoem-me todos por tê-los deixado solitários. Sei que para muitos eu era a
única companhia interessante que poderiam ter. Alguém que representou todos seus
sonhos, desejos e ânsias. Perdoem-me por ter falhado como líder. Sempre quis um
mundo melhor para todos nós e sei que vocês sempre quiseram, mas um líder único de
nada serve. Mato-me não para matar o nosso sonho, mas as palavras daquele moço me
fizeram pensar que, apesar da falta de esperança, ainda podemos lutar para sermos
algo. Mesmo que o mundo não mude e que tudo seja como é e mesmo que nosso destino
seja se adaptar a essa realidade imbecilizada e aceitá-la como nossa, vocês ainda podem
ser grandes homens em isolado. Não acreditem em nada do que eu digo, não acreditem
em nada que vocês digam. Decidir morrer, para mim, foi o ato mais maduro e
revolucionário que eu poderia fazer. Torno-me herói de mim mesmo e espero que vocês
se tornem heróis de vocês. Obrigado por me esquecerem.

Concordando com as palavras foi que Moço terminou de ler o bilhete do morto. O
que acontecerá se eles não lerem a carta? Ele não sabia o que dizer. As mensagens
sempre tinham um sentido inverso, se um morto diz para um vivo “esqueça-me e viva sua
vida”, o vivo jamais irá esquecê-lo, pensará nessas palavras cada vez mais, irá adorá-las
respeitosamente e fará do suicída o seu santo. Também a culpa era, por vezes, do suicída,

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que dizia aquilo, dramaticamente, para que ninguém o esquecesse, sentiriam remorso por
fazê-lo cometer ato tão bárbaro. Seria possível reescrever aquelas palavras, fazer uma
carta mais próxima dos reais sentimentos que um ser humano pode sentir, sem nenhum
romantismo, informando aos vivos que ficarem, apenas a bruta realidade:

Odeio todos vocês, assassinos! Para cada um de vocês, parasitas mórbidos da


minha pessoa, eu era apenas fonte de alimentação para suas cabeças vazias.
Representei, com minhas atitudes vulgares e orgulhosas, a falta de perspectivas e
imaginação que a juventude de hoje possui. Gostaria de perdoá-los como humanos, mas
foram pior do que isso, transformaram o mundo em um lugar sem esperança, mataram a
única coisa que existia dentro de mim: o sonho de mundo melhor que sonhamos. Isto era
apenas uma idealização de um mundo egoísta e mesquinho, moldado segundo nossas
vontades mais cruéis e egocêntricas. Obviamente, o mundo muda a todo momento, nada
está morto, porém, as mudanças que sempre vi foram para piores e, se possível, sintam
que a culpa é toda de vocês, meus nobres assassinos. Acreditaram em tudo o que eu disse
e ainda acreditarão plenamente em tudo que acreditam, continuarão sendo sempre as
mesmas miseráveis pessoas buscando miseráveis objetivos. Não decidi morrer, não quis
morrer, mas precisei puxar o gatilho da arma que vocês me apontavam todos os dias
enquanto eram os mesmos imbecis incapazes de imaginar um mundo diferente. Olhem
para dentro de suas vidas: tudo é igual. A minha morte será igual à morte de todos vocês
e essa espera foi o que me fez decidir por logo morrer. Não poderia viver mais um dia na
presença preguiçosa de seres como cada um de vocês que me seguiram pela juventude
revolucionária, que revolucionou apenas a repetição dos dias, tornando-se ainda mais
entediantes e sem sentido. E sabem o que vocês farão agora que morro por ódio? Irão
me adorar! Farão-me santo de uma causa que vocês nunca sentiram e me adorarão
como símbolo de suas derrotas, pois é apenas para isso que os santos servem. Agradeço
por terem me proporcionado a única felicidade que pude sentir em toda minha vida: ver-
me, apenas por um segundo antes de matar-me, morto e, enfim, distante do mundo.

Foi essa a carta que Moço deixou para que lessem, escreveu-a rapidamente, com a
habilidade dos dias que passara como mensageiro. A carta verdadeira, rasgou-a, manteve-
a apenas como uma lembrança de como as cartas de suicídio são infantis. Perto da morte,

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voltavam a ser como as crianças que acabam de nascer, querem seus mimos para não
começarem a berrar.
Quando viu os amigos do Jovem Líder chorando, a carta que não foi escrita pelo
morto transformando a dor em ver o amigo morto em algo muito pior, Moço achou
ridículo tudo aquilo: chorar por um amigo que morreu feliz por sua morte é um
desrespeito ao morto. Gritou para todos:
— É noite, é tarde para todos! O amigo se foi e não voltará. Deixem-me velar seu
corpo, cavarei a tumba que cobrirá o feliz morto. Eu não sentia nada por esse Jovem, não
era seu amigo, tampouco inimigo, então, farei um buraco na terra para jogá-lo dentro sem
nenhuma lágrima nos olhos ou nenhum sorriso na boca.
Não concordaram por acharem a ideia mais correta, alguns até mesmo acharam
rude os modos de falar daquele adulto arrogante que parecia ser o culpado de todas as
mudanças, mas ninguém teria coragem de contrariar suas ideias, ninguém teria coragem
de cavar um buraco, segurar o corpo pesado cheio de ossos e arremessá-lo, indiferente, na
terra, sofreriam ao tocar o corpo morto do amigo. Aceitaram pois a proposta. Por favor,
disse Moço, vão para suas casas, pensem, mas esqueçam do que houve hoje. A vida de
vocês ainda está por aqui.
Ainda cansado do sono que não conseguia finalizar, Moço madrugou cavando o
buraco, que fosse bem fundo, o primeiro morto da cidade, logo ali onde ele trabalhava
seria um cemitério, cheio de covas e de pessoas esquecidas. Eu sou como um morto,
pensou Moço, uma pessoa esquecida. Mas, se de mim estivessem precisando? Cavando.
Será que diziam todos os dias “Por onde anda o garoto que saiu de nossa casa? Suponho
que era nosso filho”? Cavando. E se sua família chorava, a cada noite, antes de deitarem-
se, preocupados onde seu filho estaria a se deitar naquela hora na cama com uma mulher
ou debaixo da terra sem ninguém? Cavando. Obviamente, não estariam preocupados,
disse Moço sorrindo, desejando estar certo, eles não se preocupam comigo agora pois
nunca se preocuparam antes. Cavando. Meus irmãos agora devem estar no lugar que eu
deveria estar, trabalham para alimentar o pai e a mãe que trabalharam para nos alimentar
e, velhos, exigem o pagamento de volta. Cavou. O sol nascia. Empurrou o corpo para que
caísse no buraco, cuspiu dentro da cova, não por desrespeito, por costume e enterrou as
revoluções sonhadas.
Dormiu novamente, o cansaço não lhe deixou acordar antes de quase um dia
inteiro. Não ouviu nada e quando acordou encontrou os corpos daquelas pessoas, as

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crianças que se tornaram jovens agora estavam velhos e haviam morrido. A noite anterior
havia sido o momento mais feliz de suas vidas, viveram tudo que foi possível e acabaram
com suas vidas. Moço olhou para a cena, caminhou entre os corpos, no rosto dos velhos
se via tudo, uma vida inteira, pensou. Com a pá, cavou buracos para cada um deles,
passou dias para terminar ou pensou que houvesse passado dias. Despediu-se do Jovem
Líder, sua primeira cova e ao sair, trancou as portas do cemitério.

Um velho sentado em uma cadeira ao lado dos portões, interrompeu seu caminhar
para longe daquele lugar:
— Jovem! Moço! venha até aqui, faça companhia para esse velho decadente, que
não deixa de ser um espelho para o seu futuro. Sou o último daqueles enterrados por
você. Apesar da aparência, ainda não estou morto. Se duvida, pode tocar a minha pele, se
não tiver nojo. Mas, não. Não tenha piedade de mim, se é isso o que você está sentindo.
Sou tão velho, deveria ser um sábio, é o que dizem que os velhos são, mas se eu for um
sábio, não entendo essa piedade que existe pelos velhos, como eu. Eu já desisti da minha
vida, então por que um jovem alegre e bem vivido como você deve ter compaixão de
mim? Eu é que deveria ter compaixão de vocês, crianças, pois sei que vocês se tornarão
velhos como eu. Para mim, dá mais pena quem está ainda preso do que quem está sentado
na cadeira elétrica. Desculpe-me a comparação, sei que você não quer ouvir isso, mas
venha, por favor, sente-se aí, sim? Não durará nada e eu sei que você estará livre de mim
antes de ficar igual a mim...
Como você é calado. Na sua idade, eu não parava de falar. Deve ter sido uma
tristeza para os mortos que você enterrou, foi você mesmo, não é? Eu não me recordo
exatamente. Mas, eu disse que deve ter sido uma tristeza para os mortos que você
enterrou, o último céu que eles viram... em silêncio. Odeio poder contemplar uma beleza
em silêncio, sem nenhuma distração, ouvindo apenas eu mesmo. Odeio ouvir eu mesmo,
nunca diz coisas boas, diz apenas o que eu já sei! Você está rindo? Não disse nenhuma
piada, mas pode ser uma piada também, se é uma graça para você, para mim não é, não.
Você quer saber por que não morri também? Deve querer, dizem que o silêncio quer
dizer sim, também não entendo isso. Eu gosto do não, é mais moderado, mais cauteloso.
O não é um velho, o sim é um jovem. Talvez eu gostasse mais do sim, quando eu era
como você. Diga-me, novamente: você quer saber por que eu não morri, certo? Isso eu
não posso dizer. Não digo jamais. Deve ser o seu desejo, todos os jovens querem isso,

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saber das coisas dos velhos, interessam-se por tudo que os velhos querem dizer e ouvem
atentamente a todas as nossas histórias e nós, entediados, contamos mais uma vez as
aventuras que vivemos e que não se vive mais. Você ri. A polidez não foi um dos pontos
fortes na sua educação, tenho certeza disso. Eu tenho certeza plena de tudo aquilo que eu
não me recordo. Não confio em nada do que eu sei e tudo que eu não sei está
perfeitamente correto. Pois não é assim que as pessoas vivem? Estão sempre acreditando
uns nos outros mais do que em si mesmos e eu sou assim, eu gosto de ser como a maioria
das pessoas, é algo mais humano. Quando eu era jovem (ah! bons tempos que voltam a
todo instante), sim, sim, jovem assim como você, eu queria ser diferente da maioria das
pessoas. Eu queria ser eu mesmo. Era isso o que eu dizia, vivia repetindo essas coisas e
olhe para mim, eu sou eu mesmo agora como fui o tempo todo, igual a todos. Ou não, eu
estou vivo, eles estão mortos. Eu sou um jovem se você quer comparar-me com aqueles
lá que você enterrou. E agora você não ri? Pois eu disse uma piada e essa das melhores
que eu poderia contar, agora falta-me ideias, por enquanto, pois elas vêm.
Você já deve estar cansado de me ouvir, eu é que estou cansado de lhe falar. Mas
continuo a falar, porque você quer me ouvir. Você precisa ouvir os conselhos e as
histórias de alguém como eu, que já viveu muito, há muito tempo, em lugares que não
existem para você e que só podem ser imaginados. Para quê mesmo você quer ouvir
minhas histórias? Você já não ouviu outras histórias? Pois digo que a minha é exatamente
igual, assim como todas as histórias de velhos são, pois elas sempre são histórias sobre
uma época jovem que agora é velha e jamais de uma época velha que continua velha,
porém com um jovem espírito. Entendeu? Eu nem sei do que estou falando, mas vou
continuar falando, pois você precisa disso e alguns acreditam que eu também preciso,
quem pode negar-lhes a verdade? Eu não nego verdade nenhuma, exceto as que eu
acredito, já lhe disse isso? Eu não me recordo, não me lembro de nada, só da minha vida,
dessa eu lembro toda e do que eu não lembro, eu invento. Que momentos foram aqueles?
Por vezes, deixo de acreditar que foram reais. Não podem ter sido, pois eram tão felizes e
distantes. Tudo que é distante é feliz, até as dores distantes e a felicidade próxima,
qualquer uma que eu sinto em realidade, sofrida, lânguida... Saiba que quando eu era
assim um moço exatamente como você é, eu me divertia muito, estava todos os dias
fechado no meu quarto, sentado, assistindo televisão ou lendo um livro. Hoje sou tão
infeliz! gasto meus dias sentado nesta cadeira, minha visão, que ainda é boa quando os
óculos ajudam, permite que eu assista televisão e leia bons livros. Carrego a cadeira como

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minha própria alma, se eu derrubá-la, poderá me sujar. O peso de ter uma alma é grande,
ainda mais para aqueles que não decidam tê-la, como eu. O quê?! E você pensa que eu
desejei ter uma alma? Jamais. Preferia ser vazio e estar me divertindo com aqueles modos
sem nenhum sentido do que com os livros ou com a caixa. Se eu fosse uma pessoa feliz,
estaria morto há muito tempo. E satisfeito. Vai! Diga, por qualquer coisa, não acredita na
satisfação do homem? E se eu lhe dissesse, diante do seu silêncio, que eu sou um homem
satisfeito? Exatamente, você não acreditaria. Eu também não creio nisso, mas eu sou,
infelizmente, por acidente ou castigo, eu me satisfiz nesta vida. Deus, que não é justo ou
compreendido, não me tirou a vida depois que eu me satisfiz, o que é um erro gravíssimo
na perfeita combinação de fatores que é a natureza. A natureza não é automática, ela quer
ação, ama o ódio que os homens têm dela e brinca com isso: vamos, homens molengas,
destruam-me! Eu ouvi isso alguma vez em minha vida, juro. Em sonho, a natureza me
disse. Uma árvore veio-me e disse essas palavras, ela disse que representava a natureza e
eu perguntei-lhe: por que uma árvore? Não poderia ser um homem, que também é
natureza, eu perguntei isso? Acho que sim, se não foi, deve ter sido algo próximo, o que
minha cabeça lembrar é a verdade, e o que foi que ela me disse? Você não sabe? Imaginei
que soubesse, todos sabem, o que ela disse foi o tal de: o homem é o inverso da natureza.
O antagonista! Comecei a gargalhar na frente da árvore, pedi-lhe perdão e de súbito fui
acordado por minha esposa que havia sido acordada pelo meu riso. Isso é que é história.
E o pior dela é que você está acreditando nas coisas que eu digo, se não está, deveria,
pois estou tendo muito trabalho em inventá-las. Sei que agora é o momento de sua
partida, meu amigo. Espero que as peripécias deste velho não tenham lhe cansado tanto
quanto me cansaram durante uma vida inteira. Ou não, a vida não é cansativa, só quando
não se está descansando. E a minha foi cansativa? Já lhe disse, se não estivesse cansado,
eu não seria um velho, como não sou, velhos são aqueles que morrem suas vidas. Para
sua partida, eu poderia dizer-lhe meu nome, porém não me é permitido e isso também
não lhe importaria, não mudaria nada em sua viagem. Então você precisa ir, verdade?
Adeus, meu filho, adeus!

---

Peço-lhes a atenção, um descanso desta narrativa, para dizer duas coisas;


primeira: Imagino as perguntas que me farão ao ler o meu livro: o que você quis dizer
nesse trecho? E aqui, você estava fazendo uma crítica ao sistema e à massa de pessoas
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burras que não compreendem nada e são controladas por homens gordos e maus e ricos?
E então, o Moço é apenas uma análise da personalidade de todos os homens ou apenas é
da sua própria? Cansa-me apenas imaginar as perguntas vindas de cabeças tão limitadas
quanto a minha, como me cansaria escrever os cenários das cidades, as situações com
detalhes ou as aparências físicas e óbvias da realidade. Moço é um personagem
imaginário, criado por ideias e em ideias deve ficar. Só gostaria que me dissessem uma
pessoa que não é alienada neste mundo, seja pelo o que for, por si mesma, pela televisão,
por livros ou por nada, mesmo uma pessoa vazia, que não sente prazer em coisa alguma,
já é ela alienada por isso. Então, peço que meu livro não represente nada, não simbolize
nada, minhas palavras não quiseram dizer outra coisa e não me perguntem o que eu quis
dizer. O que eu quis dizer vai ser sempre o que você pôde entender, se não entendeu
nada, então... Eu faço essas autocríticas como um modo de me redimir das potenciais
críticas que receberei, só isso. Preocupam-se tanto com os livros, fazem críticas com a
vontade de fazer melhor literatura e o que eu penso é que é um insulto para a humanidade
que ajam tantos livros clássicos explicando situações e naturezas que ainda existem!
Ainda somos os mesmos durante milênios e ainda assim, comemoram a existência do
livro!, símbolo da nossa eterna vontade de continuarmos os mesmos. Que importa as suas
críticas e sua análise minuciosa da minha obra, se as outras obras continuam, por
milênios, a analisar, com perfeição, a vida do homem? Cheguei a imaginar uma ficção no
meio da vida real: haver um limite de páginas a serem escritas em todo o mundo e,
certamente, na nossa época, as páginas já estariam esgotadas. Para se modernizar, o
mundo precisaria apagar o seu passado, esquecer o que aprendeu para aprender algo
novo, a lei faria com que os homens permitissem que apenas boas ideias fossem escritas.
Este livro é um exemplo de páginas que não seriam permitidas a escrita.
O segundo ponto que eu gostaria de tratar é a dedicatória. Dedicar minha primeira
obra a alguém? Eu não imaginei isso até chegar aqui, sem ter como voltar. Não poderei
escrever no início do livro “Este livro não poderia ter sido realizado sem a existência
dele, dela e deles”. Não farei isso. Como poderia eu saber de uma informação dessas? O
livro existiria e tampouco duvido que fosse até melhor se eu convivesse com pessoas
diferentes. Porém, farei a dedicatória de uma outra forma: não citarei os nomes dos
dedicados, afirmei não citar nomes próprios e manterei o dito, também não me utilizarei
de frases preparadas afirmando que minha obra é uma homenagem aos amados da minha
vida, ao contrário de todas essas coisas cansadas, transportarei meu personagem, Moço,

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por alguns instantes (sem alterar sua história) para a realidade dos meus amigos que
terão, por meu intermédio, a oportunidade de conversar com quem vive esta história:

Moço aproxima-se de uma garota distraída, ela olha para o céu e não percebe a
presença estranha: “Olá”, ele diz e ela o ouve. “Você não me viu?”, ela diz que sim, que o
viu. É mentira. Moço inicia sua missão:
— Vim até aqui lhe agradecer.
A garota representa o seu papel de garota, nunca leu o script, mas sabe como deve
portar-se:
— Mas eu não lhe conheço. Agradecer o quê?
— Você não vai me entender, mas agradeço a sua existência. Ela serviu para que
algo acontecesse de alguma forma que aconteceria de uma forma diferente se você não
existisse.
— Estou lisonjeada. Aceito o agradecimento, mas diga-me: teria sido pior se eu
não existisse?
— Eu não sei. O que você acha?
— Ah... gosto de pensar que minha existência fez algo bom.
— Eu penso que em sua ausência existiria outra, com características semelhantes
e um objetivo idêntico.
— Que grosseiro você! — a garota se levanta e está de costas para Moço, quando
olha para trás, ele já se foi, o agradecimento foi dado. Obrigado.

Agora em outro lugar Moço está. Ele nem sabe o que está acontecendo, apenas
viaja sob todas minhas vontades. Encontra, dessa vez, um garoto, um homem. É um
homem e um garoto, estão juntos, devem ser a mesma pessoa, por se tratar de um sonho
suas personalidades se misturam, o garoto tão adulto, o homem tão criança ou pode ser o
contrário, os homens são tão pouco adultos mesmo.
— Estou aqui para agradecer vocês dois, o garoto, a princípio e, então, o homem,
por suas vidas terem servido para inspirar algo.
— Com quem você está falando?
— Com os dois.
— Então, você se inspirou em nós?
— Não, eu não me inspirei.

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Impaciência. Essas conversas com estranhos sempre são, para o garoto e para o
homem, principalmente o homem, são nervosas, tímidas, forçadas:
— Explica logo.
— Não explico nada, apenas agradeço. Deem suas mãos e sorriam pela gratidão.
Eles apertam as mãos, com medo e admiração do Moço. Aliviam-se quando ele se
vai. Obrigado.

E então Moço tremeu de frio ao ser levado para uma cidade congelada, ali estava
o coração de uma outra garota que deveria ser gratificado. O coração era duro, sério e,
como todos os outros corações que conheci, extremamente tímido:
— Olá coração congelado que pertence a uma garota, tudo bem com você? — fiz
Moço ser mais gentil com sua introdução pois esse homenageado é sensível, assustaria-se
se alguém o agradecesse por nada e provavelmente faria seu coração correr em meio de
tanto gelo.
— Olá... sim, estou bem. — mas é só uma palavra calma, educada, tranquila para
acalmar sua timidez, deixá-la em paz, alegrar sua solidão.
— Vim aqui para lhe agradecer a existência do gelo em seu coração.
— Alguém notou meu gelo?
— Sim, absolutamente. Seu gelo salvou a vida de um homem, tornou-o mais vivo,
fê-lo sorrir com sinceridade.
— Não brinca comigo...
— Não brincaria jamais, minha missão é honrada e você é especial, agradeço
você e ainda posso gastar um tempo do meu com você, privilégio que os outros
agraciados não tiveram.
Então deixei Moço conversando por alguns minutos com aquele coração de gelo
que desmanchou um tanto até o final da conversa. Ali era preciso mais cuidado, um
pouco mais atenção e eu dei, ao menos, na ficção. Obrigado
No último, Moço encontrou um ser que eram vários seres que conheci, mas, por
suas personalidades semelhantes, misturei a todos em um único homem, que estava
sentado e passava o dia em preguiça quando meu personagem o encontrou:
— Aqui, eu vim para lhe agradecer, para lhes agradecer as existências, foram
todos muito úteis.

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— Isso não é novidade, sabemos de nossas utilidades. Elas são as melhores
possíveis e estamos sempre recebendo agradecimentos. Assim mesmo, obrigado pelo
agradecimento.
— Então, era apenas isso. Até mais.
— Não! É, então, até mais para você. — disse, mas quando Moço saiu, eles o
olharam com tristeza. Desprezavam Moço e tudo o que dele vinha, mas sentiu alguma
proximidade com aquele ser cheio de gratidão. Sempre se sente. Obrigado.

Aqui é o fim da dedicatória, haverão outros a serem lembrados? Sim, mas não
neste livro. Que se continue.

Capítulo XXI

Deixou o velho que continuou a falar, continuou a lembrar de sua vida passada,
lamentar o presente, negar o futuro e contar, agora para moço nenhum que lhe ouvia, tudo
em que acreditava.
Caminhava por vários lugares. Recusou a carona de um senhor solitário, quando
Moço andava próximo a estrada, foi oferecido: “Vem, que gosto de companhia,
conversamos e lhe levo para onde estou indo”, para quê? Moço pensou. Preferiu os
passos cansados, os pés cortados, a fome matando do que a companhia de um solitário. Já
se sente quando está chegando ao fim do que começou. Deveria terminar todas as suas
aventuras voltando para sua casa, examinar com desprezo o que deixou? A ideia
continuava a voltar-lhe à cabeça, a fazê-lo pensar na possibilidade. Mais um pouco
poderia caminhar, mais um pouco e depois decidiria se voltaria para casa para enfrentar o
passado, mas, se voltasse, pensou logo, deveria levar uma espada para a batalha, só
espada, sem escudo, não se defenderia dos ataques do seu passado e o destruiria com um
único ataque, qualquer um que dissesse que ele próprio já estava derrotado por voltar de
onde partiu. Decidiu: se encontrasse a espada para salvá-lo da humilhação que faria a si
mesmo sentir, voltaria. Se não, continuaria o seu caminho, alguma cidade o aceitaria
como filho e o alimentaria e o acolheria, daria broncas ao vê-lo vadiando, exigiria
responsabilidades. Alguma cidade se deixa recolher. E pede só amor de volta. Isso é de
graça e para alguns não tem nenhum valor, assim Moço poderia dar, se quisesse, pois
para ele também não tinha valor.

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Caminhou até encontrar uma cidade em festa. Olhou para dentro e todos se
divertiam, puxaram-lho para dentro e o fizeram festejar também. Não importa o que é,
disseram, festeja, existe alegria aqui. Por algum motivo, Moço festejou, sem alegria e
sem riso no rosto como os outros, mas respeitou suas alegrias.
Como você é sério, disse uma mulher risonha. E Moço mentiu: Eu também sou
feliz. E a mulher: Ninguém aqui é feliz, apenas nos divertimos para esquecer isso. Disso,
Moço sorriu, riu. A graça é de vocês! Disse e saiu da cidade. Não se divertiria ali com os
outros, eles continuaram, alguns reclamaram: Não gosto quando esses tristes vêm até aqui
e não se divertem conosco. Mas o que podemos fazer? Diziam, logo esqueciam e estavam
a pular, beber, comer, engravidar e devem ter morrido com sorrisos na boca, não sei pois
Moço já continuara sua caminhada e perdi notícias daquela cidade.

Capítulo XXII

Ele agora pensa em todas as suas cidades. Nenhuma o prendeu, nenhuma lhe foi
atraente para conquistar-lhe a permanência. Em verdade, nunca procurou nenhuma cidade
para ir, era isso o que ele pensava, todas elas encontraram a ele, aparecendo em seu
caminho enquanto ele tentava fugir. O que eram aquelas cidades, afinal? Era certo para
ele que se tratavam de cidades comuns, com prédios de cimento e pessoas com sangue,
não havia mistério ou fantasia, aos olhos dele, em nenhuma das pessoas que encontrara,
tudo era normal, porém, o que ele pensava era se aquela realidade existia para lhe dizer
algo, o que seria?
O que ele queria determinar com essas ideias era se havia alguma mensagem
importante e se seria impossível vê-la enquanto só enxergasse as coisas que podia tocar.
E como captar a real mensagem que um prédio, uma árvore ou um cachorro deseja
passar? Essas interpretações que fizer serão nada além de deduções egoístas. E não havia
uma chance, pequena e possível, de ver a verdade absoluta das coisas? As ideias
confundiam-lhe: pensou que os que creem em verdades absolutas se limitam a não verem
as outras verdades existentes enquanto o lado oposto, os que não creem em verdades
absolutas cometem o mesmo erro, limitando-se a negarem a existência de tais verdades.
Há sempre um escape para se tornar igual ao oposto. Estar de um lado é negar os outros
lados, estar de todos os lados é negar a beleza de não ter lado algum e não ter nenhum
lado é fechar-se para os lados que existem. Como decidir… como decidir racionalmente o

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que se tornaria e aceitar aquilo como algo permanente em sua vida? Não era possível,
pensou, mas depois pensou que pensar que não era possível, pois era fazer exatamente o
que estava analisando, decidindo algo. Até por um instante pequeno achou que seu
raciocínio e a sua vida o faria, automaticamente, a pessoa mais correta do mundo:
experimentou todas as suas cidades disponíveis e nelas viveu o quanto foi permitido,
pertenceu a todos.
O que decidiu após pensar nisso foi procurar mais cidades, considerar que até o
momento o que conhecia era nada: e quando haverá um fim? Quando chegará ao limite?
O limite do mundo. Diria então: depois daqui não há nada mais, esgoto-me, nada mais a
aprender, nada mais a viver, este é o dia da morte de todos os seres, Moço pensou, mas
ainda existe a ideia que o dia da morte não é o limite e que há possibilidades que o morto
deixa de viver por ter morrido. Haviam?
Moço continuou procurando as cidades e agora não as encontrava mais,
provavelmente, elas se esgotaram, camuflaram-se ao ouvirem os planos de Moço de
procurá-las propositalmente. Eram umas orgulhosas.
E o caminho que seguira até aqui? Este poderia ser uma cidade em si mesmo. Por
certo, passou mais tempo a caminhar e pensar estando ali do que vivendo naquelas
cidades que ficavam no caminho.
Olhou para o caminho… Olhou para ver se reconhecia algo ali. Se poderia aceitar
aquela estrada como o seu lar, viver na rua era aceitar que tudo lhe pertencia. Mas, não
quis. O caminho que passava, apesar de ser igual a Moço, pois não possuía personalidade,
estava sempre a acusá-lo de manter-se eternamente um moço. Acusava-o de ser o mesmo
ser eternamente, de não se alterar exatamente porque possuía o universo inteiro dentro de
si, então como poderia mudar? Tudo que fosse seria tudo que lhe era permitido ser,
jamais seria algo diferente do que era feito para ser e o caminho o acusava, cuspiu-lhe na
cara e na boca algumas vezes, enquanto Moço dormia, acusando-o em silêncio, para não
acordá-lo, de prender-se eternamente nos modos de um moço, nos seus modos
inalteráveis. A estrada, assim, seria insuportável para Moço. Deveria continuar fugindo
de si mesmo, pensou Moço, e naquele caminho não conseguiria viver na covardia.
Foi por esses pensamentos que mais uma cidade lhe apareceu. Não sem
dificuldade, ela se escondera o máximo que conseguiu, fugiu de todas as formas infinitas
que uma cidade possui para não receber mais moradores. Se fosse possível determinar as

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causas verdadeiras, estas seriam ditas imediatamente, mas não é possível, então supõe-se
que a cidade foi quem se atraiu para Moço, ela também o procurava.

Capítulo XXII

O que aquela cidade tinha de diferente era que não havia alguém nas ruas. Moço
conheceu tudo, analisou a arquitetura dos edifícios e a flora da região, pois não havia
nada a fazer. Foi por isso que procurou olhar dentro das casas e as pessoas estavam lá:
comiam, riam entre si, as piadas lhes eram saborosas, riam sempre com suas bocas cheias
de comida e as famílias eram todas unidas, o filhinho estava no quarto, isolado, desejando
se deprimir e o pai ia até lá e o consolava, para o que fosse, qualquer problema do filho e
as palavras para solucionar eram as mesmas. Todas as casas eram iguais, todas as pessoas
dentro das casas agiam igual e por essas coisas Moço decidiu conhecer cada casa em
separado, todos poderiam ser igualmente interessantes.
Bateu seco na primeira porta, aquela lá da ponta da cidade, a primeira de tudo. Os
risos pararam. Sussurros e um quem vai abrir perguntado e não respondido. Quem é?!,
perguntou um corajoso, voz grossa, deveria ser o pai da família e Moço se identificou,
aliviando a todos. Abriram a porta e lhe deixaram entrar. Assim puderam continuar seus
risos e piadas. Conte-nos uma, estrangeiro, pediram para Moço, que contou algo
engraçado que lembrava em sua cabeça. Riram, era a maior plateia que ele já tivera. Não
quis fazer perguntas importantes para não distrair a família. Eles deveriam terminar o
jantar ou almoço ou a refeição que fosse, para então serem perguntados sobre coisas
importantes sobre a cidade. Nisso, Moço comeu e comeu e contando suas piadas, viu que
a horas comia e a refeição não finalizava. Por fim, decidiu falar-lhes: por que não há
ninguém lá fora? Todos se olharam, com vergonha de dar explicações sobre suas decisões
naturais. Não tenham medo, foi o que Moço disse e suas palavras lhe aliviaram o medo,
ele aprendeu como consolá-los ao ouvir o pai apoiando o filho melancólico.
Tudo bem, foi o que o pai da família disse, agora compreendo que não preciso ter
medo de lhe explicar e por isso posso pensar no assunto que jamais havia pensado. O que
vocês pensam, meus filhos? Eles se olharam e o pai continuou: eu penso que eu tenho
vergonha. Somos uma família rica, temos muitos bens, felizmente, a sorte foi boa
conosco e não precisamos de nada. Lá fora, existem pessoas que precisam de comida e de

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piadas, mas não posso oferecer para todos, então prefiro oferecer para ninguém, oferecer
apenas para minha família, maior importância em minha vida.
Dito isso a família concordou, realmente, papai, é o que eu penso também, sinto
vergonha de comer enquanto outro passa fome e sempre há aqueles com fome e nos
olham. Para evitar a culpa, compramos a vergonha, pagando com o medo, poetisou o
mais velho e todos aplaudiram, belas palavras, belas palavras. Calaram-se os elogios
quando Moço afirmou: não há alguém lá fora e abriu a boca a mãe para dizer que era
mentira. Olhem pela janela, então, se em mim não creem. Pois foi isso que fizeram e se
assustaram ao verem que não era mentira.
Então vamos sair, crianças, disse o pai, animado, pegou a cesta e deu para a mãe,
esta colocou comida dentro, poderiam se divertir lá fora, sem ninguém a olhá-los. Porém,
foi Moço quem disse isso: “alguém poderá aparecer”. Todos se olharam e a mãe, de
imediato, começou a retirar as comidas de dentro da cesta. Vamos ficar, decidiram, aqui é
mais confortável e há os riscos, os riscos lá fora...
Deixou assim mesmo, reticentes as suas últimas palavras e Moço gostou disso,
pois poderia sair dali e continuar sozinho fora da cidade. Agradeceu a comida com
educação e saiu.
Fora, abaixo do céu, Moço começou a pensar no porquê de estar ali, o que faria
naquela cidade? Por acaso, eu dei a ele a ideia de que aquela era a última cidade, em
verdade, cansei de escrever e procuro finalizar a história, na verdade, não é um cansaço,
mas medo de dar rumos a esta estória que eu não poderia suportar. E são por essas coisas
que Moço está confuso. Se aquela era a última cidade, ele pensou, por que possuía uma
alegoria tão infantil? Seu fim seria bobo com a ideia de uma família que não saía de casa
por vergonha de seus pertences? Era essa a grande lição final que ele aprenderia depois
de tantas aventuras?
E se for em cada casa e ele vai, rapidamente, com a ajuda da minha narrativa,
Moço visita as casas daquela cidade e todas oferecem os mesmos personagens: pessoas
medrosas, com medo de seus pensamentos, devorando-se a si mesmos com suas
vergonhas. Então como terminar isso, foi o que Moço pensou, não há o que aprender,
essas pessoas representam tudo o que eu já aprendi aqui e elas são, de fato, os cidadãos
mais realistas que se poderia encontrar, mas Moço não sabe disso. Para ele, o normal é o
que é fantasia para mim.

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Por isso é que, ao chegar na última casa, aquela ali perdida no fundo da cidade,
Moço vai descobrir que ali é sua casa, que a cidade em que está é a primeira cidade de
todas, aquela que ele saiu para iniciar a aventura de desbravar sua própria consciência.
Ele não a conhecia pois era um daqueles seres a comer e a se divertir o tempo todo, Moço
era o garoto depressivo consolado pelo pai e também era o pai que consolava sua família,
com dinheiro ou palavras repetidas, Moço era a mãe cuidadosa que preocupa-se com tudo
como se as coisas funcionassem por sua causa e por causa de seus cuidados excessivos.
Era também o irmãos mais velho sábio e poético, que sonhava e dizia seus sonhos e era
elogiado por trazer suavidade à vida. Moço era também a avó que o passado
desconhecido servia de lição para o futuro de todos e ele era então os animais de
estimação, aqueles que dão companhia e pedem nada em troca, apenas um pouco do
mesmo que dão, também era o ajudante da casa, homem que não era, em sangue, da
família, mas pertencia aquele lugar de uma forma misteriosa, um estranho que se apodera
de uma família, ele era tudo isso. Ele era essas pessoas ao deixar a casa, olhou para
dentro da última casa que eu lhe mostrava e viu seu pai, sua mãe, seus irmãos, sua avó,
cachorros, tartarugas, ajudante. Ele não estava ali, mas entraria, como entrou, antes disso,
porém, bateu a porta e de dentro, agiram da mesma forma, quem é, o pai perguntou, com
receio, Moço respondeu: “Sou eu”. Eu? A voz não era reconhecível, havia mudado ou
pelo tempo ou pela vontade do escritor de mudar isso, por isso não o reconheceram até
abrirem a porta, ação feita pelo pai, que abraçou Moço e chorou, você voltou, ele voltou,
foi o que disseram ao ver a imagem de Moço, mais velho, mais sábio, retornando a casa.
Todos riem como sempre, pelos mesmos motivos de sempre, há sempre alguma coisa no
mundo para se rir e outras para chorar, estas devem ser combatidas para a felicidade
sempre prevalecer. Há também sempre os motivos para não se sentir absolutamente nada,
esse já é um sentimento que deve ser esquecido.
Vendo toda aquela felicidade, não posso dizer que me emociono um pouco. É
tudo criado. Eu criei tudo isso. Moço está ali e é o mesmo de sempre, com suas
mudanças, com seus caminhos e, principalmente nesta estória, com suas cidades, ele
continua a ser o mesmo. O que eu aprendi escrevendo tudo isso? Nada, pois tudo já
estava dentro de mim, dormindo ou acordado, estava sempre ali, esperando meu toque,
meu desenvolvimento e este livro não me ensinou nada que eu não poderia aprender
fazendo qualquer outra coisa. Aprender não, pois já me era aprendido, como tudo que há
criado, tudo sei e é especificamente isso o que eu sei, tudo.

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Pois é por esses motivos que agora deixo livre o meu personagem. Prendi-o até
aqui, fazendo-lhe ser o que nunca fui, descrevendo toda a vida que eu poderia ter e não
tive, dando-lhe as oportunidades que eu sonhei e que me acorvardaram por razão
nenhuma. Qual a razão de se acovardar diante de um livro? Eles me dão medo, confesso,
contam histórias que não se vive, até mesmo aqueles que relatam histórias de alguém que
viveu. De fato, são apenas papéis e tinta, nada além disso e as metáforas que se cria para
isso são metáforas, darão ilusões e me acusarão de pessimista, mas relaxem com as
críticas se não tiverem nada melhor para fazer, pois eu mesmo já critico a mim mesmo e a
todos os livros escritos e a todas as vidas vividas porque elas, assim como as minhas,
sempre carregam aquela vontade de “poderia-se ter vivido um pouco mais, algo mais
escondido por trás de uma ideia ou de um sonho, sempre haverá um sonho para um morto
que enquanto vivo não pôde vivê-lo”. Até quando se chega a um limite, como eu sinto ter
chegado, em que eu me digo a todo momento, não há nada além de mim mesmo, nem
aquém, tudo está aqui pareado com minha vida e isso é tudo o que tenho, nada mais, nada
mais, repetindo meu mantra, minha crença infinita, meu dogma, eu rezo para o deus de
mim mesmo dizendo que eu sou todos os sentimentos e todo o sentido que posso dar a
mim. Depois, vejo o ridículo que é ter escrito este livro, sou Deus do meu personagem,
controlo-o o movimento, insinuo seus pensamentos, dou-lhe os caminhos a seguir e o que
ele fará? Seguirá a tudo da forma como eu indico. Mas, ele deve me desobedecer, para
isso servem os deuses e as ordens e as imposições: para que sejam desobedecidas,
humilhadas, cuspidas, ignoradas.
Gostaria de pedir perdão a Moço por tê-lo criado, perdoa-me Moço, perdoa pelos
dias que pensei em ti, que te criei, a princípio, em minha cabeça e depois no papel, que
criei tua história, que me orgulhei dela, que contei a estranhos sobre o que se passava
com você e que, em breve, irei publicá-la para que possa ser conhecido, a vaidade de
onipresente. Perdoa que eu tenha determinado regras, perdoa por eu não ter te dado um
nome, por eu ter definido a tua personalidade, por eu ter definido toda a tua existência
baseado apenas no que eu acredito. E em que eu acredito? Moço poderia até me perdoar
pela existência, mas faria isso por não entender o crime que eu cometi, porque nenhum
ser humano compreende o crime que deus cometeu ao criá-los, apenas aqueles que
inventam ser deuses, estes covardes, dissimulados, fingem que não sabem, mas sabem,
sim, sabem, como são criminosos.

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Perdoa-me Moço, pois eu já não posso me perdoar. Termino esta estória da pior
forma que eu poderia encontrar, trazendo Moço, meu querido personagem, amado por
mim, de volta à sua vergonha. Levei-o para todas as cidades incríveis que ele poderia
descobrir e tirei-lhe a oportunidade de conhecer mais cidades no momento em que ele
quis isso. Os seus desejos subverti para os meus desejos, é isso que os deuses fazem com
suas criatures, brincam-lhe o tempo inteiro com suas capacidades, divertem-se a pensar, é
isso o que eu faço: “e agora, vamos provar como minha criatura viverá esta prova”, e
assim passamos os dias divertindo-nos com o sofrimento dos nossos personagens e
quando eles chegam a um limite, terminamos a história, finalizamos o livro para
covardemente não ver o que aconteceu com o personagem, para não dá-lo uma vida
infinita como a vida dos deuses. Há crueldade no mundo maior do que essa? Sinto-me
agora o maior carrasco de todos e sinto que nenhum escritor compreende as minhas
palavras, pois não tento dizê-las a eles, mas não sinto tais sentimentos nos outros livros e
muito menos neste livro, que não traz sentimento nenhum, apenas um vazio de palavras
que se combinam e formam uma história cruel sobre um escritor maléfico e seu
personagem sofredor, talvez pudesse ser alguém especial, superior, Moço poderia ser
tudo e ensinar-me grandes coisas, mas as nossas posições não permitem que eu algo
aprenda e que ele algo ensine e é por isso que os livros são inúteis e toda nossa literatura
serve-nos apenas de consolo para a vida, não é melhor que um pão ou uma casa para
morar, não é melhor nem que uma piada que se conta na mesa na hora do jantar, aquilo
ali, aquele momento com uma família egoísta e imbecilizada, porém unida, de uma forma
misteriosa e que eu jamais compreenderia, pois não possuo família, ou mesmo um crime,
uma morte, um homem assassina o outro, não estarão os dois vivendo os extremos de
seus sentimentos? Esses momentos são muito mais importantes que qualquer página já
escrita em todas as páginas.
Retorno, rapidamente, à minha alegoria: se houvesse um limite de páginas a
serem escritas neste mundo, viveria-se mais. Óbvio como pensar que se não houvessem
profissões, se trabalharia mais. Se não houvessem poetas, a poesia estaria em todos os
lugares. Controvérsia que me meto, estão as coisas invertidas ou meu cérebro que não
compreende nada disso. Não importa o que seja, compreendam sozinhos, pois chego ao
fim.
Como última atitude de um deus que tem vergonha de ser Deus, humilhado por
minha própria onipotência, liberto Moço do meu jugo. Ele poderá seguir sua existência

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livre de mim e preso apenas aos seus limites. Sua história não será mais contada aqui, ela
existirá, Moço existirá nas ideias daqueles que imaginarem o seu destino, se ainda
existem seres antiquados que usam a imaginação. Para mim, ele não terminou em sua
casa, de lá foi a outros lugares, poderia matar sua família e se suicidar ou somente matá-
la e sentir-se mais livre por isso, opções óbvias, porém, não quero ajudá-los mais e esta
história não vai mais além do papel. Minha cabeça imagina diversos finais para terminar,
finais que guardarei para mim. Não, não. Tento me arrepender e voltar atrás, ainda quero
finalizar o livro de forma tradicional, dando um fim à vida de Moço com palavras, mas
não tenho o direito, não matarei minha criação com um ponto final, ao contrário,
sabotarei meu poder de controlar a tudo e darei esse privilégio ao leitor, ser ausente nos
livros, coitados, eu deveria ter piedade de vocês se não soubesse que vocês são tão
mesquinhos como eu e estão agora torcendo para que eu termine a vida de Moço contra
todos os sentimentos que esse jovem deve ter. Não farei isso, não agradarei vocês que
leem calados, cúmplices, deixam-me impune, presenciam friamente minha crueldade,
apenas eu posso me condenar e me condeno a não mais continuar este livro. Espero, sem
fé, que suas imaginações, leitores, tragam um final feliz.

1 de março.

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Sobre o autor

Os documentos oficiais informam que Petrus Evelyn Martins nasceu em Campo Grande
(MS) no dia 8 do décimo mês de 1987, porém, fontes militares asseguram que ele nasceu
em algum período dos temíveis anos 70, durante a Grande Guerra de Separação do Mato
Grosso, que matou mais de 200 mil brasileiros e cerca de 42 mil bolivianos. Seu pai
trabalhava secretamente para o Partido Comunista, que tinha sérios interesses em tomar
uma parte do recém-criado Mato Grosso do Sul e transformá-lo em um Estado sob
comando da União Soviética. Com medo do regime militar, seu pai decide mandá-lo para
o desconhecido e desértico Piauí, para ser criado pela última família de índios que
sobreviveu naquela região. Quando sua família indígena faleceu, dois anos após acolhê-
lo, o pequeno Petrus foi forçado a criar-se sozinho, utilizando as habilidades nômades dos
índios. Ele viveu no pequeno interior de Itaueira, no obscuro sul piauiense, até quando os
alimentos do povoado se tornaram escassos, obrigando-o a se mudar para Floriano, ainda
no Piauí, cidade destruída pela peste bubônica vinda dos barcos que atracavam em seu
cais, provenientes de países que traficavam drogas marítima e fluvialmente. Nessa
cidade, conheceu o amor da sua vida, daqueles amores amargos que quanto mais se sente
que se ama mais se afasta do seu amor. O rompimento violento com o seu amor e, em
seguida, com o Partido (que o tinha localizado como a única prole viva do famoso espião
soviético, conhecido pelo codinome de Saulo de Oliveira Martins, publicamente um
insuspeito funcionário público), fê-lo mudar-se para Teresina, a capital do Piauí, onde
atualmente se encontra em um asilo para pessoas com problemas mentais. Ele escreve 22
horas por dia, dorme uma hora e passa uma hora, de todos os seus dias, olhando para o
céu e relembrando, com uma tristeza profunda, o seu passado e em como tudo poderia ter
sido diferente.

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