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AGAO DO BRASIL « FORMAGAO DO BRAS. “Texts sobre aspects particulars -socias,econtmicos,histbtcos,reigiosos fxn Bross pang ese dics eoponsivels pla Formasto do Bra. Uma bast BO BRASIL « FORMAGRO DO BRASI* FOR A INVENGAO REPUBLICANA 1. 0 este paulsta e a Replica — Sandra Licia Lopes LIMA 2. Histéria da: Antropologia no Brasit (1950-960) — Testemunhos — Mati:» Coréa (organizadora) Vol. 1 — Donald Pierson e Emilio Willems 3. A invengtio republicana: Campos Sales, as beses © a decadéncia da Primisi « Repéblica brasileira — Renato LESSA 4. Teatro das sotibras: A. politica. imperial — José Murilo de CARVALE™ © POR ¢ a Internacional. comunists (192050) — Michel ZAIDAN FILES Co-edigao EDIGOES VERTICE . ¢ IUPER] (INstrruTo UNIVERSITARIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO) com apoio do ‘As obat com numerapSo 6 esto publcads ou no prt. Ministéaio DE EDUCAGKO SESu — Programa Editorial Itica, pelo [UPERJ — instituigo a qual esta ligado doutorando do programa de Ciéncia Politica. De 1975 1979 trabalhou no CPDOC (Centro de Pesquisa ¢ Docu mentago sobre Hist6ria Contemporanea do Brasil), on entrou em contato com os temas tratados neste livro. 1980 trabalha no Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais dal UFRJ, onde atualmente ¢ Professor Assistente do Depar4 tamento de Ciéncias Sociais. Trabalha também na UFF, saci ee a ra REPUBLICANA (1983/1985) e criou em 1985, o Departamento de Ciéncis Politica, tendo sido, ainda, o seu primeiro chefe (1985/] Campos Sales, as bases e a decadéncia da 1987). Primeira Republica brasileira. ‘Dados de, Catalogisto nn Pubteasio (C1?) Internacional ‘chara Brescia do 1iveo, 8, ‘Besai "K javengio repobicana : Campos Sal, a6 bases © 2 geradéncte da Primers nepdbics basil / Renato Lewe, — so. Panio ¢ Wérce, dita Revis ES"Febuots Rio. de Janeito * ioaituto Univertiavio de Pesquisas do Rl} ey rotted (Gormagto do Breit 3) Rilopati, ; ison etigcos2 ST ina - Le Replica, 1409-190 2. Bra Police e seye20 aA SE SE Bale eds Mala a ta'Siot © 0 deecdeiin Go Bieta ‘i Satie 72165 "e055 ee H PE See eee eee eee Steer ete etree fndtecs para catéiogo sntemitca: 1. Campor Sales ; Perlodo qovstmamental, 1896-1902 Brag”. Psotin sel os8 <2. Pima Repobica, 1851990 + Breall 7 Politics © geverse s20-S8i05. w G519G A INVENGAO REPUBLICANA: ‘Campos Sales, as bases ¢ a decadéncia da Primeira Repéblica brasileira Renato Lessa 12 Parte 2. Parte © desta edigio: 1988 + Editora Revista dos Tribunais Ltda. EDICOES VERTICE Res Conde do Pinhsl, 78 7 ‘Tel, (O11) 37-2485 — Caixa Postal 678 f (01501 - Sfo Paulo, SP, Brasil. 70D08 05 DIREITOS RESERVADOS. 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A colméia oligatquica (1894-1898) ......... 73 A POLITICA DEMIGRGIGA (1889-1902) 4, Saindo do caos: os procedimentos do pacto .. 99 5. Os fundamentos da nova ordem: os valores do PACD ee eeeereeeee 6. Os novos Ambitos do absurdo ....... 119 137 - 165 | | | | | | “Pelo menos, ele tinha seu senso de ordem, uma ordem estpida & ainda melhor do que nenhuma.” ‘THoMas MANN, in Dr. Fausto. Introdugio Mazes Finley, em seu trabalho sobre o mundo de Ulisses, registrou uma instigante caracterfstica do espfrito humano, presente nos momentos em que se tora compulsério classificar ¢ mensutar o enigma do tempo. + Diante do passado remoto, as perspec- tivas temporais tendem a fabricar domfnios compactados: milénios valem por séculos ¢ estes, convertidos em anos, se transformam em ‘unidades minimas de medida do tempo. Milénios egipcios ¢ séculos ‘gregos emergem como médulos de tempo compactado, capazes de seometricamente reduzir a variedade da vida & unidede da razio. © desconforto de Finley — adorador confesso da paidéia groga — parece, em uma primeira aproximagio, Mio nos dizer algo de apli- cével 2 cena brasileira e 20 seu diminuto passado. Além do fato de que nfo hé nada neste passado que autorize qualquer nostalgia seme- Thante a que se pode sentir diante das ruinas da Acrépole ou do palécio de Cnossos. No entanto, a diminuta parcela do espirito huma- ‘RO que se ocupou em pensar e eserever sobre o Brasil, também tratou do tempo de modo pléstico. Ao contrétio dos séculos que Moses Finley tratou de descompactar, hé na histGria brasileira momentos ‘cuja compreensio parece derivar da capacidade do analista em decom- por infinitamente o tempo em pequenas unidades, conectadas arbi- trariamente pelas cronologias, tidas como procedimentos indispensé- de pesquisa. Aqui, minutos indignos se converteram em séculos, enquanto que os séculos gregos, prédigos em dignidade, podem ser congelados em poueos pardgrafos. © periodo de tempo que me coube analisar neste livro pertence ' famfia dos tempos compactados. A primeira Repiblica, com seus 41 anos de duragio, foi até recentemeiite representada como uma noite monétona, 2 exibir um enfadonho rodtzio de oligarcas agrérios,,/ ‘emoldurades pelo latifindio exportador ¢ pelo folclore coronelista. | Para LAURA ‘Amor me move: $6 por ele eu falo (Dante, Divina Comédia, Inferno Il, 71) ¢ Lufs pe Castro FARIA " Até meados da década de 70 a literatura disponivel sobre a Repiiblica Velha praticamente se resumia a textos de época, memérias ¢ as histé- rias da Repiblica publicadas por José Maria Bello e Edgar Carone. * Importantes:no esforgo de descompactacso da ordem oligirquica fo- ram 08 varios estudos, publicados nos anos 70 e inicio dos 80 sobre a dimensio regionalista da politica brasileira, como testemunham 0s trabalhos de Joseph Love, John Wirth, Robert Levine e Eul Soo Pang. * Paralelamente ao esforco por investigar os componentes regio- nais da politica oligérquica brasileira, abriu-se caminho para estudos sobre aspectos parciais da sociedade. Assim demonstram a relativa proliferagéo de teses pesquisas sobre movimentos sociais urbanos no perfodo, notadamente incidindo sobre 0 comportamento operirio* © 0 jé cléssiop texto de José Mutilo de Carvalho sobre as: forcas armadas na 1% Reptblica, * De fato, a produgio académica nos iltimos 15 anos sobre a pri- meira Repdblica parece estar atribuindo maior dignidade temética a0 perfodo, Temas e questées suscitados por outros contexts nacionais ou por épocas mais recentes da hist6ria brasileira vém sendo crescente- ‘mente incorporados ao esforco de conhecimento sobre o perfodo. Do ‘meu ponto-de-vista um exemplo evidente de incorporagdo de questdes, Provenientes de outros contextos ¢ 0 crescente interesse sobre um: cenério diminuto ¢ minoritério no/continente agrério brasileiro: a cena urbana, e, em particular, a cidade do Rio de Janeiro — a eco- logia dos bestializados inventados por Aristides Lobo. ® Ainda assim, a despeito do evidente incremento de anélises sobre a primeira Reptblica, creio que sabemos pouco a respeito da ordem politica que se implantou no Brasil com o golpe republicano de 1889. Aspects fundamentals para o entendimento de qualquer ordem pol tica contemporanea, tais como formagéo ¢ desempenho das burocra- cias péblicas, papel e comportamento do Legislativo © geragdo ¢ modos de domesticagio das crises politicas, entre outros, permanecem inexplorados com relagfo aos anos da primeira Repiblica, Em termos mais enféticos, ainda nfo foram desenvolvidas pesquisas sobre a primeira RepGblica com alcance semelhante aos trabalhos de Sérgio Buarque de Hollanda, Fernando Uricoechea e José Murilo de Car- valho,? que trataram, por diferentes caminhos, da ordem politica imperial e da construggo do Estado Nacional Brasileiro, Embora reconhecendo esta lacuna, men interesse neste enssio nfo 6 empreender tarefa semelhante & dos autores acima citados, mas 12 | saosomente investigar o que julgo ser a génese da ordem politica brasileira, inaugureda com o século XX ¢ apontar para suas vittudes estabilizadoras bem como para as bases de sua decadéncia. O que os ‘eapitulos seguintes procurardo construir é apenas uma versio plau vel a respeito da geracdo da otdem, ptiblica no, Brasil da pritneira, Republica. De modo del evitarei_buscar.em fenémenos de natureza estrutural a explicago para comportamentos © opgBes pre- sentes no cendridpoliticg, Os atores ndo falam o idioma das estru- turas, 0 que coloca o analista diante do seguinte dilema. Qu ignora-se ‘0 que os atores dizem, supondo. que estiio constantemente enganados a fespéito de sf inesiios, ou toma-se o.seu comportamento — mescla de discurso ¢ agéo — como tinico modo de acesso a0 raundo real. Até prova_em conteitio,-a-realidade. ¢ aquilo. que os. atores. di ‘que-ela &, Quando o dissenso a respeito do que é real é dilatado, 0 apelo As estruturas inintencionais pode gerar textos racionais ¢ com consistencia I6gica, mas inteiramente desertos ou compostos por per- sonagens unidimensionais. Por essa tazdo me absterei de estabelecer qualquer conexfo causal entre a “estrutura econdmica", 0 “capitalismo \ internacional” ¢ outras entidades imateriais com os aspectos visiveis presentes no processo de construgdo da ordem republicana. De moda mais claro, meu interessa nflo seré o de contra-argu- mentar diante da difundida crenga de que o Estado brasileiro na primeira Repiiblica falava exemplarmente o idioma das oligarquias agrérias. Nao seria prudente fazélo, mesmo porque néo havia outra lite disponivel para ocupar o governo. Pretendo simplesment ender o juzo diante da torturanté questo de saber quais as causais que se estabelecem entre a ess8ncia e a aparéncia da sociedade. Do meu ponto-de-vista, a aparéncia j4 coloca um mimero excessive de problemas a investigar. *"O objesivo. central deste ensaio ¢ 0 de analisar a génese ¢ a implantago da ordem politica republicana, tomando como évidéncia a f6rmula politica aplicada no governo do Presidente Manoel Ferraz de Campos Sales, no periodo de 1898 a 1902. Outros analistas jé trataram de modo competente as caracteristicas e as implicagdes daquela férmula, consagrada pela literatura com o nome de politica dos governadores. Refexéncia especial merecem os trabalhos de Maria do Carmo Campello de Souza e Fernando Henrique Cardoso,* que apresentam os aspectos mais relevantes do modelo inaugurado por Campos Sales: a cridgfo extralegal de um condominio de oligarcas 15 iB — os chefes éstaduais — como corpo dotado de prerrogativa de defi. nir a composigéo do Executivo e do Legislative federais e o controle sobre a dinimica Legislativa, através da Comissiio de Verificacéo de Poderes. © texto de Maria do Carmo Campello de Souza,procura, a partir da apresentago das caracteristicas préticas do que chamarei de mon delo Campos Sales descrever 0 processo politico-partidério da primeira Repiiblice. Sua @nfase incide sobre os momentos de maior instabili dade presentes nas sucessGes presidenciais, nos quais os céleulos pott- ticos eram em grande parte refeitos. Jé Fernando Henrique Cardoso considera com maior detalhamento 0 modelo Campos Sales, mas acaba por limité-lo a um mero arranjo politico adequado as necessi- dades do predominio econémico dos fazendeiros de café. Ambos os textos foram fundamentais para a minha reflexio sobre o periodo, mas no correr da tese procraret argumentar a partir de perspectivas distintas, embora nfo necessariamente opostas. Para coniiderar-o:impacto.e.o.alcance. do.madelo. Carapos-Sales, procederei em primeiro. lugata.uma.anélise. do legado politico do Impétio e dos problemas suscitados pela primeira década republicana, aqui batizada como os anos entrépicos, por razGes que sero vistas adiante. O objetivo dessa remissio ¢ duplo: trata-se por um lado de considerar 0 quadro hist6rico que antecedeu ao governo Campos Sales @, por outro, de especificar os problemas politico-institucionais que, naquele contexto, deveriam ser considerados de forma compulssria para a criacio de uma ordem politica rotinizada e com padrées mini- mos de estabilidade. O segundo aspecto é de longe o mais relevante, pois implica considerar as respostas dadas pelo modelo ao seguinte Jeque de questies: 1. relagies entre Executivo ¢ Legislativo; 2. rela- ‘es entre 0 Poder Central ¢ os Estados; 3. modo de integragao entre olis, demos e governo, * Polis, no correr da anélise, seré entendida como o conjunto dos atores que, além da posse de direitos politicos formais, ocupam de fato posigées privilegiadas na estrutura do poder, em seus diversos nichos: Executivos estaduais, burocracias, Legislativos estaduais e Con- ‘gresso Nacional. Desta forma, a polis circunscreve a totalidade dos atores com probabilidade de acesso a0s postos de governo. O demos representa a diminuta parcela da popula¢do que possui direitos polt- ticos formais, sendo incorporada, portanto, 20 processo eleitoral. Na consideragao do perfodo anterior ao governo Campos Sales, procurarei 4 mostrar de que modo o Império estalebeceu nexos precisos de inte- gragio entre governo, polis e demos, bem como 2 sta aboliglo em 1889 abriu caminho para uma expetiéncia politica qualificada como enirOpica. Com o termo pretendo designar a primeira décad: blicana, caracterizada, além da quséncia de. mecai ionais shinimamente rotinizadores, pelo comportamento erritico dos atores, {que no tratamento das fontes de instabilidade acabaram por introduzir finda mais incerteza e confusio. A versio explicativa construfda para jinterpretar,o perfodo incorporaré ainda a8 fdéiay de absurdo.« trdgédia. ‘A primeira) de inspiracio becKeitiana, se aplica a um contexto no ‘qual a” ¢xperiéncia vivida pelos atores nfo 6 representada como cexperiéncia comum, e sim marcada pela superposiglo de inémeros sen- tidos, projetos e verses a respéito do” que se. passa, sem-que: haja- ‘qualquer mecanismo de iniegragéo. O absurdo, aqui, nfo é a mera auséncia de sentido, mas sim a sua proliferagio desenfreada. A idéia de tragédia aparece como ‘apropriada na medida em que os anos entrépicos apresentam a seus protagonistas uma dilatada quantidade de desafios, impedindo a qualquer dos atores a’ posée de um mapa cognitive capaz de erradicar a ignorincia sobre 0 que se passava, ‘Como se veré, nem mesmo aqueles atores que puderam derivar do caos da primeira década republicana Alguma ordem e estabilidade, encontrarao pleno descanso no futuro. O prépric mecanismo inventado para erradicar 0 caos republicano levou a novas situagGes trégicas no futuro, No tratamento do modelo Campos Sales a estratégia seguida seré diferente da dos autores que j4 se ocuparam no-assunto, Minha hip6- tese é a de que este modelo contém dois aspectos distintos: o procedural © 0 substantivo. 1.0 primeiro é composto por um conjunto de procedi- mentos postos em agdo para obter estabilidade e dotar a Repaiblica de um padrio nanimo de governabilidade, Eles se resumem na montagem a politica dos governadores e na operacéo da Comissio de Verifica- gio de Poderes. O segundo aspecto diz respeito aos valores que Campos Sales’ atribuiu ao seu modelo, notadamente uma concepgio despolitizadora e administrativa do governo, dotado da atribuigao de resguardar absolutamente o interesse nacional, Como se verd no correr da anélise, enquanto 0 aspecto procedural concede plena auto- nomia aos chefes estaduais para tratar do demos estadual, por métodos heterodoxos, 0 aspecto substantivo representa a comunidade politica nacional como um agregado de altrufstas. O modelo, portanto, pres 15 creveu ambas as condutas, e 0 embate politico do fim dos anos 20) foi protagonizado por duas facgies que agiram detitro da ortodoxial de Capos Sales. No tratamento do modelo, portanto, procurarei de: monstrar que arranjo que, a partir de 1898, propiciou estabili politica ao regime republicano, era construido sobre premissas opostas, | cuja incompatibilidade deve ser considerada na andlise da crise regime, em 1930. A hipétese sugerida sobre a existéncia de dois aspectos distintos| no interior do modelo torna plausivel um tratamento enddgeno. a| respeito da crise da Reptiblica Velha. 1 A despeito da ago de forgas| exégenas, tais como a rebeldia militar dos anos 20, o protesto operdrio’ © 0 desencanto das camadas média urbanas, o proprio modelo continha| os fundamentos de sua decadéncia, dada a incompatibilidade entre procedimentos que autorizavam uma’ ética egoista ¢ predatéria e os valores que, obcecados pelo ideal de pura administragdo, exigiam dos] atores um comportamento baseado em uma ética altruistica. ‘A criag&io do modelo Campos Sales pode ser percebida também) como exemplo de politica demitrgica, aparentada com um padréo| designado por Friedrich Hayek como construtivista. 1 Segundo Hayek| a premissa bésica do construtivismo é a de que a ordem deriva da vontade dos atores, que a partir do uso privilegiado de sua razéo podem reinventar e melhorar as ordens existentes. Seguindo a tradigfo| dos moralistas escoceses, Hayek parte da premissa oposta, qual seja, ade que existe no mundo ume inerradicével dose de ignorancia af respeito dos limites da ordem e de seus fundamentos. Isso se deve ao fato de que a “autoria” da ordem é absolutamente inimputével a ‘qualquer um dos seus membros: a ordem & produto da ago, e niio da vontade. O axioma de Adam Fergunson *¥ passou a constituir a base do espontaneismo hayekano. © construtivismo de Campos Sales ¢ evidente quando se consi- deram os valores do seu modelo: aversio as paixdes, a0 turaulto da capital da Repiblica, aos partidos, enfim, a tudo aquilo que designa movimento, espontaneidade e incerteza. Dai sua obsessio_por um Estado mergulhado no ideal cientifico de administragao, infenso as ambigGes e, Como ele gostava de dizer, & “perfidia das reservas mer tais”. Mas apesar de seu componente construtivista Campos Sales foi obrigado a lidar com a. conformagao espontanea da ordem. brasileira: 8 proliferagio dos poderes locais, a dificuldade histérica por parte das elites em discriminar entre o que é piblico e privado, quando se 16 trata de administrar os recursos do Tesouro ¢ uma ética social que, jé na época, se configurava como predatéria. Em suma, tudo aquilo que Faoro admiravelmente resumiu com a seguinte férmula: a uigdo natural do poder. Desta forma, creio que este livro poderd ser tido alegoricamente, como um estudo de caso a respeito da eroséo inevitével da razio construtivista, diante da espontaneidade social, entendida como o conjunto das ages humanas cujos efeitos escapam no designio dos mortais e, talvez, dos imortais. Esta possibilidade de Ieitura poderd atrair, portanto, além dos estudiosos da histéria potitice brasileira, aqueles que, como eu, esto assolados por erescentes taxas de enfado com este Pafs contrafactual, ‘Algumas palavras sobre a estrutura do livro. No primeiro capftulo apresentarei 0 legado“imperial brasileiro, bem como os limites das reformas que foram propostas pelas elites, com 0 objetivo de carac- terizar 0 conjunto de instituigdes e procedimentos de regulagdo dos conflitos, vetados pelo’ golpe republicano de 1889. A partir da utili zagio da idéia arendtiana de banalidade, tentarei demonstrar ainda que o momento historicamente grandioso da derrubada de um regime septuagendrio néo implica de modo necessério existéncia de atores grandiosos. Como se veré, ages banais © superficiais podem confi- gurar momentos draméticos e alterar drasticamente o leque de alter. nativas abertas para o futuro. © segundo capitulo trataré dos primeiros anos do novo regime, concentrando-se nos governos de Deodoro da Fonseca ¢ Flotiano Pei- xoto, Trata-se de um ensaio que tentard extrair da idéia de entropie, alguma utilidade analftica para lidar com ‘tiomentos dé alta incerteza. Esse capitulo procuraré estabelecér"ofato. de_que.o_comportamento dos atores, mesmo quando voltados para reduzir a instabilidade, acaba Por gerar cada vez mais incerteza e ingovernabilidade. ‘A primeira parte do: livrose encerra com 0 terceiro capitulo, que trataré do periodo de governo de Prudente de Moraes (1894/ 1898). Perfodo marcado ainda por enorme dose de caoticidade, a des- peito da progressiva retrago de segmentos militares ¢ jacobinos, com maiores afinidades autoritérias. O capitulo enfatizaré as dificuldades de institucionalizagéo plena da RepGblica, apesar da Vigéncia da Cons tituigo de 1891. Os dois primeiros capitulos da segunda parte tratarh exclusive mente da formulagdo ¢ das caracteristicas do Modelo Campos Sales. primeiro deles, o quarto do livro, descreverd a montagem do governo a Campos Sales e focalizaré prioritariamente os mecanismos gerados| para obtengo de estabilidade. Desta forma sero analisadas a chamada| Politica dos Governadores e a reforma do regimento da Camara dos| Deputados, que alterou a composigdo da Comissdo de Verificagdo “dos Poderes, encarregada de decidir a respeito da renovagao do Legislativo, No quinto capitulo procederei & andlise dos aspectos valorativos, ou doutrindrios, das reflexdes de Campos Sales a respeito da politica| corrente no Brasil. A suposigfo que sustentard esse exercicio € a de que as opiniGes do estadista a respeito da “boa sociedade” néo confi guram simplesmente um aspecto residual ou racionalizador de suas} “verdadeiras inteng6es”. Ao contrério, partirei da premissa de que clas formalizam um conjunto de “teorias” sobre questées relevantes para a geragéo da ordem piblica, tais como 0 papel do governo, os limites da ago social autGnoma, a funcdo dos partidos, os interesses,| a administragio e as paixées. 0 iiltimo capitulo tem por finalidade mostrar que os dois compo nentes do modelo — 0 substantivo e o procedural — partem de pre, ‘missas distintas, podendo, pois, desenvolyer um padrdo tenso de inte-| ago, propiciando, por esta via, a interpretacdo de que a decadéncia da ordem oligérquica, a partir dos anos vinte, ndo pode ser debitada exclusivamente a ado de fatores externos ao modelo, Se os seus com- Ponentes partem de premisses distintas e autorizam formas confli- tantes de ago politica, as bases da decadéncia podem ser localizadas em suas prOprias regras de operagio. ‘Na elaboragdo deste livro contei com 0 apoio inestimavel de Wanderley Guilherme dos Santos, amigo sempre presente com sua orientagio © estimulo. Aspésia Alcantara de Camargo acompanhoy 0 inicio de minha pesquisa. A ela devo mais do que sugestes, mas so- bretudo sua arriscada aposta na minha capacidade de desenvolver 0 tema. José Murilo de Carvalho e Mério Brockman Machado foram leitores atentos ¢ criticos embora nem sempre obedecidos, fato que, certamente, depde contra a qualidade do livro. O TUPERJ, case a qual estou ligado desde os tempos de estudante de mestrado (1977), forne- ceume grande apoio institucional, sem o qual este ensaio dificilmente seria escrito. Ali encontrei, além de estimulo intelectual, o incentivo de amigos, tais como’ Olavo Brasil de Lima Jr. que, ainda que nfo estivessem diretamente envolvidos com minha pesquisa, colaboraram | decisivamente para que viesse a ser produzida, A essas pessoas ¢ 20 18 TUPERY registro minha gratidiéo, Minha mulher, Cldudia Chigres, imprudentemente jamais duvidou, a despeito de meu ceticismo, de sinha capacidade e, fnimo para concluir este ensaio. Sua paciéncia e carinho viabilizaram ess apost NOTAS 1. Moses Finley, The World of Odiseus, New York, The Viking Press, 1965, 2. Refirome especialmente a José Maria Bello, Histéris da Repiblica (1889.1902), Rio de Janeiro, Civiizagio Brasileira, 1954 e Edger Carone, ‘A Repiblica Velha, Sio Paulo, Ditel, 1974. 5. De Joseph Love, v. O Regionalismo Gaiicho, Sto Paulo, Perspectiva, 1975, ¢ A Locomotiva’ Sio Paulo na Federagao Brasileira (1889-1937), Rio de Janeiro, Pez e Terra, 1982; de John Wicth, O lel da Bolanca: Minas Gerais ‘ha Federapto Brasileira (1889-1957), Rio de Janeiro, Paz © Terra, 1982; de Robert Levine, A Velha Usina: Pernambuco na Federacio Brasileira (1889- +1957), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980; de Eul Soo Pang, Coronelismo ¢ ‘Oligarquias: a Bahia na Primeira Repiblica Brasileira, Rio de Janeiro, Civil zagio Brasileira, 1979, 4. Do meu pontode-vista, os mais importantes sfo: Boris Fausto, Trabo ho Urbano ¢ Conflito Social (1890-1920), Sto Paulo, Difel, 1976 e Sheldon Maram, Anarquistas, Imigrantes ¢ 0 Movimento Operirio Brasileiro (1890- 1920), Rio de Janeiro, Paz ¢ Terra, 1979. 5. V. Joré Murilo de Carvatho, “As Forgas Atmadas na Primeira Repé- blica: © Poder Desestabilizadoc”, in Boris Fausto (org) Histéria Geral da Cis lizagto Brasileira, 11/2, S60 Paulo, Ditel, 1977. 6. José Marilo de Carvalho, Os Bestializados: 0 Rio de Janeiro ¢ a Repiblica que ndo fol, Rio de Janeiro, Cis. de Letras, 1987. 7. Sérgio Buarque de Hollands, Histéria Geral da Civiliapto Brasileira, 1/5, Sto Paulo, Difel, 1972; Fernando Uricoechea, O Minotauro Imperial: ¢ Burceratizapao do Estado Patrimonial Brasileiro no século XIX, Sto Paulo, Difel, 1978 ¢ José Murilo de Carvalho, A Construgio da Ordem: a elite polt tica imperial, Rio de Janeiro, Campus, 1980. 8. Maria do Carmo Campello de Souza, “O Processo Politico Partiério ‘ne Primeira RepGblica”, in Carlos Guilherme de Motta (org) Brasil em Perspective, Sio Paulo, Difel, 1974 e Fernando Henrique Cardoso, “Dos Gover: os Miltares a Prudente — Cempos Sales”, in Boris Favsto (org.), ob, cit, WI/1, Sao Paulo, Ditel, 197 9. © problema ¢ a terminologia foram inspirados por Wanderley Guilher smo. dos Santos, em seu texto “O século de Michels: competicéo oligopélica, Nigica autoritéria e transigdo na América Latina”, in Revista Dados, v. 28, n. 5, 18. 10. Pera um tratamento rigoroso dessa distingio v. James Fishkin, Tyranny and Legitimacy A ertique of Political Teories, Baltimore and London, ‘The John Hopkins University Pres, 1979. 19 1, Para -uma discuss0 mais rigorora sobre processos de. de: endogena, v. Wanderley Guilherme dos Santos, Modelos Endégenos de déncia Liberal, IUPERJ, Série Estudos, janciro/S. 12. © tema aparece disperso em’ toda a obra politica ¢ fileséfica Hayek. V. especialmente, Law, Legislation and Liberty, v. 1, Rules ind Ordee! Chicago, The University of Chicago Press, 1973 e Nuevos Estudios, Aires, EUDEBA, 1981. 13. V. Adam Fergunson, “Unintended establishments”, in Louis “der, The Scottish Moralists: on Human Nature and Society, Chicago, The Uni versity of Chicago Press, 1967. “Quando penso na alternativa de miséria e de crime em que vivems aqueles patses sow for- cado'a pensar que para eles o despotismo seria um, beneficio” Tocauevitte, apud Joaquim. Nasuco, O Dever dos Monarquistas (Rio, Tipogratia Leu- zinger, 1985). 1.4 Parte A DECADA DO CAOS (1889-1898) Absurdo, aventura e veto “Em tais condigdes imaginar que s6 a Repi- blica tem raizes, ou que ela as langou em uma camada mais profunda do que @ monarquia, do que a religido, do que a familia, do que a propriedade, parece a inversao de toda a ciéncia social. E preciso no esquecer 0 modo como ela se fundou. O general Deodoro rio foi senao um segundo Caramuru, Assim como Diogo Alvares se fez quaée adorar pelos indi- ‘genas ilisparando uma espingarda, ele fez acla- mar a Repiblica no Campo de Santana dando uma salva de 24 tires. O povo de 15 de no vembro, que ndo conhecia a linguagem polt- tica da artilharia, 6 0 mesmo gentio do Des- cobrimento que nio conhecia a detonagio da pélvora”” Joaquim Nasuco — O dever dos Monar- quistas. AXs seconstiigdes comentes ¢ depoimentos sobre 0 golpe ‘de estado republicano de 15.11.1889 revelam um con- junto de acontecimeéntos marcado pela idéia de auséncia. Austncia de ovo, ! de animo reativo oficial compatfvel com as glérias ¢ a duragio do Império, e de programa consistente unidade, por parte dos vito- tiosos. E mais: para os céticos a respeito das possibilidades da civi- Jizagdo nos tr6picos tratava-se, antes de tudo, de auséncia de sentido. Em menos de 24 horas, uma experiéncia institucional septuagendria foi erradicada, sem que os sujeitos responséveis por tal ousadia pos- 23 ea algum consenso minimamente suficiente para dar curso adf Na verdade, apenas a impresséo de que 0 pais_hé muito no possuta peters gover, ¢ de que as coisas pablicas se mantinham tnica ¢ exclusi- e le se caracterizar pelo estado de bestializacao, .ddf yamente pela inércia, O enfado e 0 alheamento do Imperador, diante ‘ersfo de Aristides Lobo, o povo da capital parecia reeditar 2 disp do aue se passava foi, publicement, registrado por Raul Pompéia, 20 so de a do Kass, diante da instabilidade e da incerteza prof descrever a partida da famflia real para 0 exflio: focadas pela prol “ : ; la auséncia de Ulisses. Com a ajuda de T. S| Aparepeu o préstito dos exilados. Nada mais triste. Um coche negro, puxado a passo por dois cavalos que se adiantavam de cabega baixa, como se dormissem andando. A frente duas senhoras de negro, a pé, cobertas de véus, como a buscar caminho para o triste veiculo. King rules or barons rule But mostly we are left to our own devices, And we are content if we are left alone? _exbnica_ monarquiste initia na_estemporancidade :, pagada ausénci ‘se ele pugnava por reformas, elas virlam e seriam. vante, no Se eo protagonista ou, até mesmo, coadjuff riplementadis pelo Gabinete do Visconde de Ouro Preto. Para que,” ada do antigo regime, no constituiff entio, ousar uma revolucdo, dirigida por um her6i militar semicensan- recuperad 2 descido pela avangeda idede, precéria sade e pela adulagéo de“ Fale eat ce set prestigio junto ao demos de capital niof{ alguns republicanos? Que sentido haveria em abandonar as rots, ~ Para demonstragdes e provas de fervor civico queff institucionais do Império, jé comprometidas com a necessidade de ‘mudangas endégenas, ¢ iniciar uma aventura cujo sucesso em destruir 6 passado nao the gatantia virtude suficiente para produzit no futuro ‘uma ordem legitima, estavel e lastreada na tyadigd0? A afirmativa dos liberais monarquistas, a respeito da inelutabi- lidade das reformas 6 inverificdvel, como de resto o so todos os 4),,., juizos emitidos no futuro do_pretéite. Mas, cabe indagar: Haveria, alguma plausibifidade naquela suposigio? A questio € controversa, * pois, para muitos, 0 Império, em suas wltimas décadas, se mostrou ~~” inteiramente impermeavel a mudangas institucionais. Por outro lado, | : através de reforma eleitoral — a Lei Saraiva — ric i 0 eletorado brasileiro de 1.114.066 para 145.296 votanon,* Fe dag peito de suas intengdes moralizadoras, a lei nio evitou o mondtor e aviltante espeticulo de sucessivas eleigdes para a Camara ni quais o partido do governo fabricava maiorias ¢, até mesmo, unani. ‘midades. Os analistas do perfodo final do Império sio quase undn! ‘mes em apontar a erosdo das lealdades do demios para com a ion Quis. A possibilidade de um terceizo reinado, que implicaria em termos priticos coroar um monarca estrangeiro, foi na década de} ee alternativa com pouco lastro social. falta de fervor civico capaz de dar als alento & monarquii nao correspondew algum entusiasmo, digno de malo considerasio, “com relagio 20 novo regime. A prépria. maneira.pela qual, a props. ganda republicana, em seus diferentes segmentos se organizou, ta mente permitiy maior. incorporagie popular. $ Sisudos republicanos| Baulistas, mais afeitos a prudéncia do que & aventura, somaram-se a ‘excdatricos positivistas e a alguns profissionais lberais e consttuiram ~ um movimento, eujo lider teve sua escolha mais deierminada pela légica da posigao do que por suas convicgGes' republicanas, Outra auséncia marcante dizia respeito ao comportamento do, sistema politico imperial diante de sua crise terminal. Neda de reagié. 2 elite politica do segundo Reinado, sobretudo a partir dos anos 70, |" no era de todo insensivel & necessidade de alterar algumas regras valores politicos e, até mesmo, sociais. ‘A retorica dos debates parlamentares sobre, p. ex., réformas elei- torais, 2 despeito de seu limitado efeito pritico, demonstra significa- tiva preocupagéo com as distorgées habituais do sistema represen- tativo, implantado no Brasil com a Carta de 1824, e com a proliferagéo de “doutrinas” legitimadoras da fraude, do abuso de poder ¢ da interferéncia governamental nos resultados eleitor __Na verdade, no insondavel campo das distorgées, a primazia ‘goube 20s liberais. Tanto no plano prético como no doutrindrio. Jé ém 1841, o liberal Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, justificando 4 a ‘massacre imposto 20s conservadores pelo seu partido, nas tristemente} célebres “eleigdes do cacete”, pontificava que o governo tinha o direit de intervir no processo eleitoral. Com maior elegéncia, ow cinismo, (© ministro Alves Branco — Visconde de Caravelas — em 1844, lego a0 sistema politico imperial duas edificantes doutrinas. A ptimeita delas buscava demonstrar que a existéncia de majo] rias esmagadoras a favor do governo néo resultava, de modo neces} sétio, do emprego da violencia e da fraude. Este seria 0 caso “maiorias artificiais”, produzidas pelo nefasto principio da lealdc por compressii. Por isto mesmo, haveria que se distinguir aquel falsas maiorias das verdadeiras: as “‘maiorias de amor”, regulada pelo virtuoso princfpio da lealdade por gratidao. A segunda “‘doutrina Alves Branco” dizia respeito as relagde ‘entre 0 governo, com sua malha administrativa, e 0 partido que oca sionalmente ocupa o poder. De acordo com o ministro, os funcionsrio: piiblicos devem lealdade no a0 Estado, entidade abstrata, mas at governo que, de modo prético, realiza a obra administrativa. segue-se perverso silogismo: se 0s funciondtios piblicos devem Ie dade ao governo e se 0 governo & a materializagio de uma di partidéria, logo, aqueles funcionérios devem chediéncia compulséri 20 partido que ocupa o governo. Que o diga o ministro: “... ass © funcionério pablico que, esquecido dos deveres de sua posicdo, ligarse ao adversério do governo, e maquinar contra a sua causa, constitui-se na imposstbilidade de continuar a servir”.7 A’ doutrina analiza prética que se tornaré corrente em todo periodo imperial, A medida em que se estabelece o rodizio dos partidos no poder, po escolha imperial, haveré ampla redistribuigao de cargos e emprego: no servigo pablico. Semelhante rodizio se estabelece em 1848: 0 Poder. Modera. demitiuo Gabinete liberal, convocou os conservadores para o govern: e dissolveu a Camara, marcada por amorosa maioria liberal. Nas ele Ges de 1848; 0 novo governo, dirigido pelo conservador Pedro de Atatjo Lima — Marqués de Olinda — reduziu a bancads’ liberal apenas um deputado, O engenho e a arte dos novos habitantes. do poder, no desempenho das liberais doutrinas Antonio Catlos/Alve Branco, nfo, passaram despercebidos a Teéfilo Otoni. Tempos depois, fem sua “Circular aos eleitores de Minas”, de 1860, recorda: *... Minas no ano de 1849 nfo tinha havido eleigfo, mas um saturnal indecente, onde a ilegalidade e a violéncia primaram a par do escérnio| © do cinismo”, 26 ‘Ao que tudo indica, as eleicbes de 1852 também foram satumais. 0s consetvadores, no poder com o Gabinete Itaborai, obtiveram a unanimidade da Cémara: 113 deputados. Coube, no entanto, a um ‘conservador — Nabuco de Araijo — 0 lamento: 0 governo néo deve buscar a erradicago do partido contrétio. Deve, mesmo, apoiar a leigéo de “oposicionistas esclatecidos e moderados”. O que estaria sendo ameagado, se tal no fosse feito, € 0 préprio sistema represen- tativo, “falseado pela unanimidade” e a propria satide politica do bloco vitorioso: “quando nfo tivermos o inimigo em frente, naque- las cadeiras, havemos de dilacerar-nos ¢, dar um triste especticulo & oposigao”.® 7G impeto reformist, pid ¢ insuficente, buscava operar como contraponto as crescentes taxas de “estérnio” e “cinismo”. Indepen- dente de seus efeitos imediatos, eabe consideré-lo para indicar a sensibilidade de segmentos de elite imperial & necessidade de reformas, bem como seus limites. Algumas pistas podem ser percebidas no debate sobre 2 reforma da lei eleitoral que deu origem a Let dos Cfreulos (1855).* Segundo Tavares de Lyra, a Lei dos Circulos continha trés idéias, cepitais: incompatibilidades eleitorais, diviséo das provincias em cit- culos (disttitos) de um deputado ¢ elaigio de suplentes. Os dois primeitos aspéttos incidiam sobre pontos essenciais do sistema poli- tico: quem tem acesso a polis ¢ cotno.se organiza, para fins de repre- sentagdo, 0 demos. A lei buscava’ obter maior nitidez em ambas dimensGes, no alterando os limites de incorporagio do demos, pro- curando impedir, no entanto, que as fungGes de representagao fossem desempenhadas por atores que exerciam fungées administrativas. Pelo principio das incompatibilidades ficam exclufdos borgiana- mente da competicao eleitoral as seguintes categorias: presidentes de provincia e seus secretirios, comandante de armas, generais em chefe, inspetotes de fazenda geral ¢ provincial, chefes de policia, delegados e subdelegados ¢ juizes de direito ¢ jufzes municipais, além, é ébvio, dos incluidos na presente classificagdo. O alcance virtual da medida pode ser registrado no comentério de um deputado, na época: “... eu J4 tive 0 desgosto de estar em uma Camara composta de 103 membros. € que contava em seu seio com 95 funcionétios pablicos”. # Umma década antes, um viajante belga — o Conde de Straten-Ponthos — havia assinalado com espanto a invengdo, no Brasil, de original d trina, Enquanto que nos paises centrais a funcio de representag 7 cumprida pelos parlamentos, implicava 0 controle sobre # utilizacdo, por parte do governo ¢ da administragao, dos dinheiros pablicos, no Brasil procedewse a singular superposigao. O exercicio da represen: taco e da fiscalizago dos orgamentos coube aos beneficiérios deste ltimo. Tratar-se-ia de um regime de fiscais que se autofiscalizam. ‘A indole reformista da lei incidia também sobre a alocagdo dos eleitores em distritos, com dircito a eleger um deputado. Em termos substantivos, 0 que se buscava era alterar as relagdes entre represen tantes ¢ representados, ao aproximé-los e ao projetar sobre a Camara as peculiaridades do localismo. Este, curiosamente para um pais mar. ado pela centralizagto imperial, € definido como a “real expressio” da nacionalidade. (Os resultados préticos da lei, se néo resclveram as mazelas do sistema representativo imperial, a0 menos introduziram inovagées. Nas cleigées que se seguiram & efetivagio da lei, apesar de maioria con- 3 Servadota, os liberais (na oposi¢go) elegeram considerdvel bancada, ‘Além disso, a expressio do localismo trouxe para o cendrio da Cémara grande quantidade de “celebridades devaldeia”, na formula de Ber- ihardo Pereira de Vasconcelos, 0 que pode ser traduzide por renovaca0 parlamentar acima da habitual. : (© debate a respeito do gperfeigoamento da Ici eleitoral © de seus procedimentos esteve sempre presente na Camara, no Senado ¢ em varios programas de.governo ¢ Falas do Trono. Os vicios do sistema so constantemente indicados: falhas na-qualificaggo de eleitores hnas apuragées, coacéo por parte das attoridades e interferdncia inde- vyida dos governos. Pode-se dizer que a intensidade dos debates foi, no mpério, inversamente proporcional a sua eficécia: as mazelas perma ‘neceram como invariantes, diante das diferentes modificagdes legais. 'No fim da década de 1870 as intengSes reformistas com relagao ao sistema eleitoral se manifestaram com maior nitidez, Houye refor- ma em 1875 — a Lei do Tero — que visava dar garantias @ expressio eleitoral das minorias. Houve, sobrefudo, a busca de uma espécie de panacéia, capaz de erradicar o universo dos vicies eleito- rais, A idéia_a qual se atribuiram varios, efcitos curativos de > que sc eleigdes diretas, jplicava a reformulagao do sistema institufdo ‘pela Carlie T824. Por esto sistema, coma & fartamente eabido, ope- tava duplo procedimento censitério que distinguia entre votantes ¢ “eleitores, Os primeitos, que finham como um dos critérios de restrigéo 2 exigéncia de renda anual acima de 100$000,:escolhiam em eleigbes 28 primérias os eleitores qualificados para, em segundo turno, definir a representagio nacional e provincial. Segundo a Constituigéo do Impé- rio eram considerados eleitores, entre outres exigéncias, os votantes, com renda anual acima de 200$000. AAs eleiges priméias, ou paroquiais, tradicionaimente eram pro- bleméticas. A qualificacio dos eleitores feita por Mesas Eleitorais, segundo amplo rosério de Iamérias e dendincias, cra fraudulenta e seletiva, evitando incluir votantes que néo estivessem entre os adeptos da situagdo. Na década de 1870, 0 diagnéstico a respeito da sade do sistema representativo brasileiro localizava neste dominio os focos de contaminagéo. Contratiando a indole moderada das elites imperiais, a solugo, neste caso, aparece como radical: eliminar as eleiges pri- mérias, excluindo da massa de “‘cidadios ativos” aqueles que nelas participavam. Tal como notou Sérgio Buarque de-Hollanda: « ° © que agora se pretende ¢ proceder a uma tigotosa selegio do cleitorado, na suposigdo de que 36 eleitores bem esco- Ihidos podem bem escolher candidatos. Deixaré de existir no eleitorado a hierarquia de antigamente, mas deixaré de existir porque vai desaparecer a camada inferior, ¢ muito mais nume- rosa, do eleitorado antigo. ~ ‘ Foi tarefa dos liberais, sob 0 Gabinete Sinimbu, 2 afirmagio ¢ formalizagio dessas inteng6es. Em 1879, com aprovagiio dé mais de 2/3 da CAmara’ (72 assinaturas), 0 Gabinete apresentou um novo projeto de reforma eleitoral que, segundo Sérgio Buarque de Hollands, eliminou as eleigGes primérias ¢ considerou eleitores, entre as restri- ses de praxe, os que dispusessem de renda anual minima de 400$000 © que fossem capazes de ler ¢ escrever. ‘Tratava-se de aristocratizar 0 eleitorado, na suposigio de que “melhores eleitores” seriam mais capazes de formular ‘preferéncias racionais. As alternativas a essa inovagao, segundo os defensores do projeto, serlam a manutengfo dé um corpo eleitoral majoritariamente desqualificado para 0 voto, ou a adogo pura do sufrégio universal, percebido como instrumento das tiranias ¢ dos despotismés. ‘A. dissidéncia liberal da época, embora numericamente impo-| tente, Jevantou pesadas eriticas a0 projeto: em um momento no qual, | 1o cenatio internacional, havia nitida tendéneia no sentido do alarge mento do voto, pretendia-se impor ao Brasil uma reforma restritivs A principal voz oposicionista foi a do liberal José Bonifacio, o Mosk sas ae Este projeto, ... 6 um projeto odioso. Depois de tantos j anos de governo constitucional, depois de 78 projetos, alguns # convertidos em lei, depois da eleicgo em circulos de um, | depois do alargamento pelos distritos de trés, depois de res taurada a eleigéo por provincia e do voto incompleto, que- 4 rem dar a delegagao nacional pela vigésima parte da nacdo 4 brasileira. A histéria do pais protesta contra a acintosa excu- | slo das massas ativas do Império, Nio temos a luta do prole. | propriedade, 2 desorganizagio dos costumes comerciais, © tudo isso quando o projeto diz as massas: Pagai impostos, ‘mas no votareis. projeto de 1879 — bem como os debates que a ele se segui- § ram conduziram & tltima reforma eleitoral do Império: a Lei Saraiva tinha como principal objetivo obter méxima regulagio sobre 0 pro- eess0 eleitoral, no sentido de garantir sua lisura. Isto seria possivel § pela combinago entre reducio do eleitorado.e introdugao de indme- 10s procedimentos capazes de garantir a hionestidade de todas as 4 etapas do mecanismo eleitoral. Segundo Tavares de Lyra a Lei Saraiva refundiu em 37 attigos toda a legislagao eleitoral do Império. Suas principais prescrig6es sfo: — Considera eleitores os cidaddos brasileiros com renda liquide anual de 200$000. i — Indica “meios de prova da mesma renda’, — Submete o alistamento de eleitores aos juizes de direito. — Determina que as eleigdes sejam realizadas em um dia, sem as ceriménias religiosas ¢ legais (missas ¢ leituras de regulamentos). — Profbe a presenca e a intervengao da forca pablica. — Altera a composicéo das mesas eleitorais, tornando-as acesstveis a cidadaos que repregentem diferentes corren- tes politicas. — Garante 0 voto secreto. — Reestabelece 0s ofrculos de um deputado. — Faz com que apuragio seje controlada pelos juizes de ireito. 30 — Exige que 0 candidato eleito por um circulo tenha maioria absoluta, prevendo para isto a realizagio de 2. tumo, entre os dois mais votados, caso aquela maiotia nfo tenha ocorrido. A lei implicou em dréstica redugdo do eleitorado. A Diretoria- Geral de Estatistica do Império, em 1874 estimava a populagao elei- toral brasileira em torno de 1.114.066 pessoas. Com a Lei Saraiva este nimero cai para 157.296, algo como 1,3% da populacio global. © censo alto era claramente excludente.. Segundo André Rebousas, em Minas Gerais, no. ano de 1883, 0 salério médio era de 144§000 anuais. Na prépria capital do Império, Joaquim Nabuco afirmava existirem, em 1881, apenas 5.928 eleitores, dos quais 37% eram fun- Bionérios publicos (civis e militares), 28% ligados 20 ‘comércio 1% profissionais liberais. O restante eta composto por “artistas”, clé- rigos, guarda livros e despachantes. A primeira eleigéo pés-Lei Saraiva registrou um comparecimento de 6496, algo em tomo de 93.000 eleitores. Tavares de Lyra apresenta ‘05 resultados como “modelares”: os liberais, no governo, conquis- tam 75 cadeiras, enquanto que a oposicio conservadora ocupa 47.12 Trata-se de distribuigdo atfpica na histéria eleitoral do Império, além do fato, igualmente incomum, de que dois minkstros de estado foram derrotados em seus distritos e de que todos os principais ideres con- servadores foram vitoriosos: Paulino de Souza, Duque Estrada Tei- xeira, Ferreira Viena, entre outros. A eleicio seguinte matitém a proporcfo: os conservadores, ainda fora do poder conquistam 40% da representaglo- nacional. Tudo parecia intdicar que a culpa a respeito da trajetbria de,simulacros elei- torais cabia realmente.ao-eleitor desqualificado, das parquias. Mas, ‘ou todos eram desqualificados, ou entiio o problema era imune a qualquer terapia legal: a ilusio moralizadora cai por terra: na ter- ceira eleigo pésSaraiva, o Brasil reioma seus trilhos. O Gabinete conservador do Bardo de Cotegipe obtém a dissolucdo da Camara 60% liberal © convoca novas eleigdes — em 1885 — que dato aos conservadores mais. de 80% das cadeiras. © contraste entre as eleigGes presididas por liberais e aquelas controladas pelos conservadores fez Joaquim Nabuco supor que o seu partido possufa um cbdigo de ética superior ao dos conservado- tes." No entanto, a recaida- do sistema eleitoral no vicio atingiu também governos liberais fo-final do Império. Nas eleigdes feitas 3 pelo Gabinete liberal do Visconde de Ouro Preto, as iltimas do Impé- rio, os conservadores ficaram com seis deputados e os republicanos com dois, Na verdade, as eleigdes seguintes & Lei Saraiva constituiram uum teste crucial para a “teoria” que esteve implicita na retérica dos reformadores. Segundo ela, a verdade eleitoral s6 seria factivel com um adequado espurgo no eleitorado, permanecendo apenas aqueles eleitores dotados de “haveres ¢ ilusteagées”. Houve, contudo, Snimo para reformas. O proprio Gabinete Ouro Preto, o tiltimo do Império, a0 se instalar anunciou amplo espectro de mudangas. O novo Presidente do Conselho revelou, mesmo, grande intencionalidade reformadora, contraditada, no entanto, por sua bio- grafia pregressa. O Visconde, além de not6rio defensor do projeto de 1879, esteve diretamente associado aos acontecimentos de janeiro de 1880, na Capital, mais conhecidos com o nome de Revolta do Vintém. Como ministro da Fazenda da época, 0 Visconde criou o “jmposto do vintém” (20 réis em cada passagem de bonde), ¢ se manteve imperturbével diante da firia irredente da populagao da Capital, que procedew A pandega de praxe. Passados nove anos, 0 Visconde de Ouro Preto — o “Afonso Vintém” — apresentou & Camara e ao Senado um amplo projeto de reforma, Sua crenga bisica era a de que o sistema imperial tinha elasticidade suficiente para absorver reformas, tomnando, por esta via, indcuas as propostas da propaganda republicana, Dizia Ouro Preto: Chegaremos a esse resultado... empreendendo com ousadia e firmeza largas reformas na ordem politica, social ¢ econd- mica, inspiradas na escola democrética; reformas que nao devem ser adiadas para ndo se tornarem improficuas. O que hoje bastar4, amanhi talvez ser4 pouco. Foram estas as principais propostas de reforma apresentadas pelo Visconde: — Alargamento do direito de voto, considerando como prova legal de renda 0 “fato do cidadio saber ler e escrever”. — “Plena autonomia das Provincias e Municfpias”, eleigdo dos administradores municipais e “nomeago dos presi- dentes e vice-presidentes de Provincia, recaindo sobre lista organizada pelo voto dos cidadaos eleitores”. — Temporariedade do Senado. 32 — Representago e governo proprio para o Municipio neutro. — Reforma do Conselho de Estado, limitando-o a questées administratives, Como jé foi dito, a plausibilidade da efetivagso de propostas de mudanga que, pelos azares do jogo politico, acabaram nao se materia- fizando & matéria controversa. O que pode ser feito com maior rea lismo é verificar até que ponto o desejo de mudanca manifestado pelos republicanos excedia 0s limites do reformismo monérquico. Mas, antes disso, € importante interpretar o legado de reformas que foi acima apresentado. ‘Uma primeira avaliagdo a respeito das tentativas de reformat o sistema politico imperial pode sugerir ao analista a-presenga de um padro semelhante ao detectado por Sérgio Buarque de Hollands pot Paulo Mercadante, '* Entre n6s, dutante-o-Império,. teria yigorado ‘eforma as avessas” ou # onipresenca de uma “‘consciéa- ols onsefvadinr, ember eapares G8 Tovar 3 esteldade Dropésiss ‘mudanga institucional mais ousados. Com maior ceticismo, pode-se mesmo supor que tudo nio passou de farsa: a absessio reformista seria antes de tudo prima-irma de Narciso, ¢ 0 limite possivel das inovagdes seria a consciéncia da inadequacéo de tudo que nfo fosse espelho, 17 « No entanto, a obsessdo reformista permanente pode set levada & sério, sem envolver qualquer concepeao mais generosa sobre @ natt- reza humana. Trata-se apenas de considerar dois problemas cruciais na engenharia institucional do Império: © paradoxo da representacdo ¢ a Vverticalizagao da ordem poltica, © Brasil nasceu paradoxal. No predmbulo da Constituigéo de 1824 ficou estabelecido que o primeiro Imperador tinha como fontes de sua irrestrita legitimidade a “graga'de Deus” ¢ a “uninime acla- magio dos Povos”. © paradoxo do preimbulo, mais tarde, se fez na dinamica do sistema representativo: o Pafs tinba sua representacdo, ‘mas cabia ao Imperador a escolha do Presidente do Conselho de Minis- tros, reservada ainda sua prerrogativa de dissolugio da Camara de Deputados... oo Entre 1868 ¢ 1889 Yodas as legislaturas, com excegio de uma, fo- ram Taferrompidis pelo’ Poder Moderador. A crise politica de 1868 — nas palavras de Saldanha Marinho, o “estelionato politico” — eolocou abertamente © Imperador contra o simulacro de instituigSes represen ‘ativas ainda existentes: neste ‘atio Camara ¢ governo liberais foram 35 derrubados para dar lugar aos conservadores, liderados pelo Visco de Haborat. A partir deste ponto se multiplicaram as erticas a0 chi nado “poder pessoal” de D. Pedro I; muitos passaram a ver em uas intervengbes no jogo politico a sOrdida intengio de “desmoraliza 1 partidos e as eleigoes”. 4 ‘ mecanismo € conhecido, € fot consagrado pelo “sorites” ds Nabuco de Aradjo: # 0 Imperador escolhe o governo ¢ este invaria, velmente faz das eleigdes um ritual para obtengdo de apoio majoritic Esta seqiéncia, institulda em 1847, inverte as regras do Parlament rismo cléssico, no qual o governo é, em alguma medida, expressio Tnaiorias parlamentares, No caso imperial ocorreu 0 contrétio: maiorias eram, na verdade, expresses da orientagio do Poder ‘eutivo, instalado por injciativa do Poder Moderador. A auséncia di mecanismos capazes de alterar essa dirego, no sentido de que 4 leigdes sejam anteriores politicamente aos governos, fez com que Miniea forma de acesso dos partidos 20 poder fosse a escolha imperial ‘Constitucionalmente irresponsével. Isto fez de conservadores e liberais habitantes de um drama politico: os procedimentos que conduzem'f l6ria sfo idénticos aos que proporcionam decadéncia, Do ponto-de-vista manifestado pelo Imperador, em sua vasil produglo epistolar, 0 uso das atribuigdes do Poder Moderador era ui ra ele, as eleigies eram “uma calamidade”, ¢ politica aberta. Alguns diriam: servidio voluntéria, O juizo apropriado, com a condigao de por servidéo voluntaria indicueae ten zelagio na qual os que servem desfrutam de beneficios compensatéros. ‘A engenbaria politica do Poder Moderador, como se verd adiante, oo Se Eat da polis os critérios, com alguma aleatorie- le, 6 certo, de acesso ao governo, sem as atribuic “ getada” incorporagao do demos. ee Tem-se, pois, sufocante limite as it : , su pretensées de refo ou de “abertura politica”. A alternativa de alargar os Timites ue | porasio do demas ocorreu a poucos atores politicos. Com maior ex- pressio este foi o caso de Zecaria de Gées © Vasconcelos que, em 1875, sugeriu que todos os participantes das eleigSes paroquiais pas- sassem a ser considerados eleitores da representagéio nacional ¢ pro- vincial. Mas 0 eco foi fraco, pois seu partido em 1879, como {é fot visto, defendeu projeto extremamente restritivo. iE Dado o paradoxo ¢ dados os limites, o reform ‘ d 0 € ¢ iy smo imperiz a guia dnogio da verealizasio de orem pola. A expres € da vada do esquema a exposto por Robert Dahl. !° Segundo o modelo, é possivel distinguir duas dimensées te6ricas de um processo de mu- danca politice, chamedas de “liberalizagdo” e “includéncia”, que dem sor reproscntades graficamente do regain! moder: os, inevitavelmente ocorreria a etemizagdo do predominio de_ um Tavgdo, em detrimento da outra. O Poder Moderador, sua faculdad privativa de nomeur o Poder Exeeutivo, diante da “calamidade” liberelization ente a0 processo eleitoral, aparece como a tinica altemativa capaz ee ‘rradicar do sistema politico do Império o espectro das faccGes. ‘Do ponto-de-vista das facgGes, era arriscada a aposta em proj de reforma que incluissem 4 retragdo do Poder Moderador as idilics ftribuigdes de um rei que apenas reinasse. A cléusula do Visconde d Itaborat —o Rei reina, governa e administra — se por um lado limit fs faculdades de governo, por outro lado significa uma-malha protetoy diante da difundida tradigéo de falcatruas elcitorais. ‘Assim se estabelece 0 paradoxo da representacio: O Poder derador, fonte da inversio do sistema representativo, aparece cong “inico elo capaz de resguardar a vontade nacional, maculada pela fraud f pela manipulagio das facqdes. No limite, para as elites partidér ra preferivel a previsibilidade da tutela — que era fonte de Hdentidades politicas — & incerteza e 0 riseo da competis Tnclusivencss (participation) ) ° vertical — liberalization, ou public contestation — as a0 grau de consolidagio do pluralismo e da competicéo ‘ait ale eee alee aie ds ieee alten See tuclonaizagio dos aceset da polis ao govemo. Neste sentido, a di fo vertical do modelo pode ser desdobrada, pois aponta 20 mesmo tempo tanto para a insiitucionalizagto dos mecanismos de go- Yeo como pata o grau de abrangéncia e organizagéo da competigao 7 Politica. No caso do Império, isto permite vislumbrar a interagdo de 35 ‘um sistema governamental com um padrio de decisses altamente con- Gantrado, com uma elite politica — 0 corpo da polis — 2 disposislo para o exercicio do poder. Toda a dinfmica politica relevante op=m Posses limites. A passagem da dimensio governativa para a que cor Tesponde ao mundo da polis € prerrogativa de um poder demiirgico, | criador de todos 0s eixos. © segundo exo, chamado por Dab de.inclusiveness, comresponde’ | so tamanko da participagdo, ou seja, da incorporagdo da _populago 2° flamos, entendido como conjunto de atores dotados de direitos bé | sicos de intervengao na vida publica. A diltima lei eleitoral do império! Sptou por reduzirdrasticamente este vetor,eliintando da participacs politico -letoral cera de 85% dos cletores. Além disso, nfo foi apenas Pelt aleitoral que tratou de tudo aquilo que no é espelho, ou seis Gemos e subdemos. A propria morfologia social “resolvew” 0 aus cm outros contextos nacionsis se deu de forma tensa e dramética: clagdo entre ordem politica e o mundo do trabalho. Aqul, a preex & ‘Enea da eseraviddo teve como corolério a desqualificagao permanen/= de um contingente que correspondia @ algo em torno de 1/3 ¢ 1/421 da populacio global. Come sugeriu Bolivar Lamounier, as dimensoes da “IiberlizagSo"s e da “includéncia” nfo se apresentam aos atores politicos como rest] «os, ou como etapas necesséris, mas como escolhas, © A diversidadé, de padrdesinsttusionais pode ser pereebida como fungio de escolh com maior o% menor grau de liberdade, no importa, formulad ppelos atores politicamente relevantes. Isto parece ser adequado ag pee do Impétio, © padrdo institucional construido dependeu da inted excluir.e. limitar.o.demos néo, a obsesséo-pela-lisura-nas eleisdes, ad de dotar. de-maior visibilidade 0 process de maior coextensividade entre a polis,e © govern, sal ‘era impossivel, Tiipossivel, pois a completa coexter plena autonomia da polis para definir quem ocupe 0 governo, Zomo regres piblices de rotatividade ¢ limitagio de poderes, Absurdo Saas ndo farsa, pois esta idéia empresta aos atores total intencionalid fomando 2 existéncia politica um mundo impermedvel 2 tragédia, engano e 20 fracasso, : Os reformistas monérquicos, repito, nfo encena gtnero aparentado com a comédia. "Na ‘medida em we ae trescal tentos institucionais — escolha do Poder Moderador — que condu- em ma facs80 a glia podem levéle a decadénca, o género ee aprosina do enredo das tragédias. Ao contritio das comédias, as situagdes trégieas — como enfatiza George Steiner ® — sio marcedas pela passagem de uma situagéo de equifrio ou glia par aieeme- Gidvel queda na precariedade da vide, sem que os atores envolvidos tenham a preztogativa de conhecer o curso da aglo, Pode-se objetar gue no mpi oso en abjente cones, ma qu, ja das facgGes era rotativa,, nfo’ sendo, a lor de nethum mado dei: ei sonertdbe putin cn um sistema no qual 0 sucesso ¢ o: 6 aitboalin ua na no qual x epi inet. I "© fracasco dos que buséavam aperfeiyar 0 Império nfo sobre.” vse da rupagto do tempo ftir au ies poe pba, Velo de sev pip reset, um enjeto de lang enest ftica ¢ 0 sistema politico imperiais. Eram arriscadas eleigdes “ver- aadeeas” sem o attibuto ciretivo do Poder Moderador © eit, por sua ver, in ‘iliza o sonho por ym sistema minimamente represen tative dotado de alguma capacidade governativa —* ~Secani os republicanos mais ousedos? Em um certo sentido sim, pos emprecndera uma aventura politica que foi capez de eliminar 0 antigo regime. Mas, do ponto-dewvista do que idiossincraticamente podese chamar de modemizaiao politica, cabe a divida. O ‘mpeto refermador dog republicanos, na.diresio de um arrenjo politico aber, famhém fol limitado. Sua condita diante das quests inttw cionas discs no final d Impéco possi a marca da moderasio, sendo da quase completa suspensio do juizo. © rfdo feito durante a” QuestZo Militar, p, ex. foi nversamente proporcional ao desempenho republicano no debate abolicionista, Néo consta, também, que tenham Sido parclarent aves orto com relago propostas de fli do elev, energninat dna 1870 mais radi- Nabuco e José de Meese Jeckemmaeanc idan ‘Pereoem ter sido poucos os Yepublicanos como Aristides Mai ssid conten dos reps St mesmo mais aie iva Jardim, no acrescen i ; Soon Sir Ji, fo seta 9 wa encarta 9 37 .Siigva e de Saldanha Marinho, de que a Repéblica viria por evolusio. || Supor que a relevancia da propaganda republics js t io pritica _. o regime republicano exerce-se no campo da 6 | pola concentragdo das forgas politics, isto €, pela ditadura fo forte quanto dispensével. ‘buiram para Paulo Mercadante nota que um dos fatores que contri : injetar mator surpresa na queda da Monarquia foi o fato de que ela foi deposta por dyma facgao que vinha de um compromisso com @ istema”: Vari Tato permit a Sérgio Buaraue ; cana dos anos finais da monarquia, s Te perode regencial, Enquanto estes eclodiram na periferia de modo: adlcal, a propaganda dos anos 70 © 80 surgiu no “centro”: Corte eg ‘So Paulo, e de modo domesticado, a. i" ‘A prudéncia e a aceitagfo das regras do jogo caracterizaram, ante multo tempo, 0 comportamento dos republicanos paulistas. P dente de Moraes foi eleito deputado em 1877 pelo Partido Liberal, mais tarde, em 1884, quando foi para a Camara dos Deputados co feu correligiondrio Campos Sales, recebeu apoio dos conservadoress José Maria dos Santos mostrou, também, a aversio de Bernardino d Campos, principal lider do Partido Republicano Paulista, & associa fo dos republicanos com a dissidéncia militar. Chego mesmo a ¢ fcor duramente 0 Gabinete conservador do Baro de Cotegipe fancelamento de sangGes disciplinares, impostas pelo governo a of cizis rebeldes: : Ser necessério que eu rememore outra vez as capitulacd aviltantes do poder péblico, toda vez que o poder armado ergue diante deles? = 5.11.1889 fof 1 um engano supor que o Golpe de Estado de 1 a materiizagio de ‘um projeto de utopia, lentamente amadu i A licana, Talvez seja mais prudent Cido por duas décadas de aslo republicans, Talver set mais EES i i i com fare ad que se prociamoa wma replica, que Ihe reivindicou | Meméria: Confrontando com o que The era estritamente contemporain 7 ieee republicano € anddino. Seu principal texto, 0 Manife {e870 fo, como resalton Paulo Mercadante, um documento 4 “‘eunho pragmadtico”. A utopia dos anos 30°cedeu lugar & pondersy gio, no caso dos civis, ¢ ‘a crenga nas inabalaveis Jeis da hist6ria, eng versio tupi-positivista. Do ponto-de-vista ret6rico, o Manifesto adotou tom moderado ¢ inespecifico, buscando nfo impedir a adesdo de liberais descrentes da monarquia e de escravocratas descontentes com a politica abolicionista do Império. E cutioso notar que, no texto, quando so feitas exiticas ao sistema monérquico brasileiro, apela-se para citagdes de eminentes monarquistas, como foi o caso de Eustbio de Queirés, membro da vetusta “Trindade Saquarema”, a “extrema direita” conservadora que incluia também os Viscondes de Uruguai e Itaboraf. As propostas apre- sentadas, ¢ que “s6 poderiam ser implementadas com # Reptiblica”, } inclufam: soberania do povo, democracia, governo representative ¢/ £5. responsével e federalismo. 2 indtil procurar no Manifesto de 1870, ¢ x, nos outros que Iie seguiram, maior detalhamento, * Com tal nfvel de generalidade, o programa reformista dos repu- blicanos é mais limitado que a timida proposta de reformas apresen- tada em 1889 pelo Gabinete Ouro Preto. A comparagao se torna des- propositada se a lembranca alcangar o programa dos Liberais Radicais de 1868, Dois anos antes do Manifesto Republicano, os radicais pro- puseram vasta reforma no sistema monérquico: descentralizagao, li- berdade de ensino, policia eletiva, Senado tempordrio, extingao do‘ Poder Moderador, voto direto e generalizado, eleigao direta dos pr “Y dentes de provincia, poder judicidrio independente, fim da escravidso, incentives a0 trabalho livre, entre otras” -* ‘Neste vasto continente de pragmatismo, onde nenhuma utopia é trério de seu parente nérdico ¢ anglo-saxio, 9 fede como nova panacéia nfo guards nenhuma_rlagao-Cotit R ral e individualista, A ttularidade de direitos nio é alocade-cor-indic viduos--mas sim retirada_da_centralizagio imperial e atribuida as provinclas:-O folismo imperial cede’ logar & diversidade holfstica das suas unidades. Antes.de tudo, novas formas de domesticagdo e exclu- sq. do demos., ~*~ f oe E fartamente sabido que a idéia federalista exercia forte atragdo sobre segmentos da prépria politica no segundo Reinado. Joaquin Nabuco, em 1885, chega a apresentar & Cémara projeto de transfor- magéo da monarguia unitéria em federativa, na qual os governos pro- vinciais seriam “completamente independentes do poder central”, No ‘entanto, a pregagio republicana federativa opera em um cendrio mar- ado por crescente erosio de prestigio mondrquico e, sobretudo, sus- fentada pelas alteragées da morfotogia social. A ordem social brasi- leira parecia prefigurar, em sua disposiggo empirica, a idéia de fe- 39 deragéo. A unidade qfectinante a partir dos anos 70. A pressdo por politicas imigras A : ‘a emergéncia de novos interesse indi alteragio do sistema decisério, na medida em que “| Obrigava a produgéo de poiticas que devessem tratar da especificidade de situagdes regionais. Antes, a escravidio fora uma ‘mundo da economia ¢ do trabalhc Ge atributos universais. Com a erosio do Sistema, a ques Tho ficou obrigatorisinente regulada pelo ndo havia resposta “naturé além de significar a necessidade de ‘com relago 20 também a desejavam. suir uma identidade politica priado seria ter pelo-seperatismo; bandeira insisentemente, procT al”, pois as solugdes devel Politica 160 eficazes quanto capazes de perceber « dive reagdes replonas. 8 sepublicanos paulistas "tinham ral’ quando | dTitain que a questio sevil deveria ser decidida por cada provincia, 0, ¢ como tal 6r~Rara alguns Site. A “prova” disto era a de que monarquistas esta forma, ser federalista no implicava pos: 4 distinta da do mundo oficial. Mais apro-) ‘mada, por jornais, come “A Provincia de So Paulo”. Como nfo seré bonito quando ‘Times ou no New York Herald e outros novo mundo o seguinte: dado os seus neg Corrupgao ¢ Cia. dente, com a sua firma indivi altivez ’e dignidade, em vez. de duplicidade, velhacarias ¢ vardias da antiga firma... ** Em 1887, Martim Francisco — deputado republicano na Ass bisic provinelal — publicos uma comédia,inclufds em seu fvro © bie Pindooendente, Propaganda Separatista”. Nela procurava dog mostrar que @ 40 ‘unide Sto Paulo/Brasil era in Sio Paulo puder anunciar no jornais do antigo ¢ do! ‘A provincia de Sdo Paulo, tendo liqui-] os com a antiga firma Brasil Bragantino| ‘declara que constitui-se em napio indep jdual. Promete em suas relag ‘com outras nagdes manter a bos-fé em seus negécios, retidao, teiramente nefasta “politica natural” rsidade das J nogécios paulistas, 0 que poderia ser facilmente apreeridido através Sea : “ dade” 6a somparero entre as diferentes “‘personalidades” das provincias — Amazonas ¢ Pard: “negociantes de borracha gémeos” — Maranhfo: “professor aposentado” “filante de refrescos” 2 “fazendeito endividado” — Pernambuco: “lego sem juba” — Parafba; “ilustre desconhecida (usa vestido de cauda)” ‘Alagoas: “namorada do tesouro ptiblico” — Espitito Santo: “hoteleiro desempregado” = Rio de Janeiro: “velho feitor” — Municipio neutro: “Bilontra e Capoeira” — Parand: “trobalhador de bragos atados” — Santa Catarina: “‘moga que promete” — Rio Grande do Sul: “curatelato de farda” — Goifs: “inutilidade modesta” — Minas Gerais: “mulher séria e devota” — Bahia: “mie paralitica”” — Mato Grosso: “‘Assalarlado sem servigo” — Governo Central: “Pai da tribo” © “igagnifico recebedor”. Nesta classificaga i i ‘i ee icagio a identidade paulista é a de “pagador goral ‘A subjetividade separatista ndo era simples fruto s do delf nem da saudade dos tempos vicentinos. A empiria cortaborava tis sentimentos, Em 1889 a comparacdo entre a presenga de Séo Paulo ea de algumas provincies na Cémara revela: ee Tamanho das bancadas Camara SP BA 4 MG 7 PE 13 Ry 2 FONTE: Organizacao ¢ Programas Ministeriais: Regime lamentar Impeee Ute, Seah anal Sat vied ie Cate 41 | ' realismo, ou por achar que a queda de um Império unitério s6 seria Os dados orgamentérios vio na mesma dirego. Em 1883 a receita global da Provincia de Minas Gerais foi de 1.932.628$000, enquanto que a de Séo Paulo foi de 9.164.757$000, Nos limos anos do Im- pério, segundo Emilia Viotti, Séo Paulo pagava ao ‘governo central ‘cerca de 20.000.000$000, recebendo apenas 3.000.000$000, o que | equivalia a renda da alfandega de Santos durante trés meses. As con- |] ‘nibuigdes paulistas representavam 1/6 da renda total do Império. Para dilatar a fétia dos separatistas ainda havia outras correlagdes: um | deputado paulista correspondia a 16.000 habitantes da provincia, duas vezes a poptlagio do Espirito Santo a (2 deputados) ¢ 0 triplo da do : Amazonas (2 deputados). * Nao 6 absurdo, pois, constatar que a retérica dos separatistas usa ‘como stmbolos preferenciais metéforas derivadas do mundo dos negé- cios. Sd0 Paulo é uma “firma individual” ou um “pagador geral”, cujo desempenho empresarial & prejudicado por sua submissao a outro tipo de légica, A reforma radical separatista deve ser simples, pois deve apenas buscar a associagio entre So Paulo e o vasto espectro da “duplicidade, velhacarias e covardias” do restante do Pats. Q peso especifico do separatismo no movimento republicano paulista no deve, contudo, ser exagetadg. Apesat da consisttncia suas razbes, as propostas sugeridas acabaram por se domesticar. Por vidvel se conduzida por uma coalizio nacional, os republicanos pau- listas permaneceram brasileiros ¢ se limitaram a adotar o mandevi- Teano Tema da “Descentralizagio, Unidade”. ‘A queda de um sistema septuagendrio é, historicamente, um acon- tecimento grandioso, 0 que no implica, como corolério, que os seus autores sejam dotados de grandiosidade. A desproporgio entre a mag- nitude dos efeitos de uma ago e a baixa consisténcia dos propésitos dos seus agentes, além de introduzir na trama da hist6ria a perspectiva da aventura, aproxima-se daquilo que Hannah Arendt chamou de “banalidade do mal”.*! Para ela a expresso nfo designa uma dou- j trina ou teoria expeciticas, mas algo bastante factual: . the phenomenon of evil deeds, comitted on a gigantic scale, wich could not be traced to any particularity of wicked- ness, pathology, or ideological conviction in the doer, whose only personal distinction was a perhaps extraordinary shal- Townes. # 42 Seria extremamente idiossincrético enquadrar a queda do Im- pério como 2 materializagio de evil deeds, 0 que nao elimina a utili dade analitica da i de shallowness. O par banality/shallowness retira dos eventos politicos a paternidade das leis da hist6ria e da inevitabilidade, transformando as ages em escolhas cujos efeitos esca- pam & percepgGo e ao controle dos agentes. A aplicago ao golpe republicano no Brasil me parece evidente: 0 que dizer de uma coalizdo liderada por militares do velho regime, cuja sofisticagio intelecuial limitavase @ vociferar contra os “‘casacas”, senfo que ela possufa estreito parentesco com a superficialidade? Discutir se os republicanos “sabiam ou nao o que queriam”, ou se sob 0 manto da superficialidade taticamente existiam “‘projetos”, 6 tarefa diante da qual a prudéncia cética recomenda a suspensio do juizo, Mais apropriada parece ser 2 consideragio de que diante da ‘eroséo endégena da monarquia, formou-se erraticamente uma tipica coalizfio de veto, capaz de incluir o delirio separatista domesticado pelo realismo federalista, o ressentimento militar, a ética absoluta da dissidncia positivista ¢ 0 enfado de outros com’o regime monérquico. Seguem-se os paradoxos: uma aventura politica, protagonizada pela ousadia e superficialidade analitica, altera 0 modo dréstico 0 Teque de alternativas politicas dispostas ao futuro; uma coalizio de ‘yeto cuja eficdcia destrutiva néio lhe garante recursos suficientes para, de sua vitéria, derivar a dirego a ser seguida; uma ctistalizagio de atores, enfim, que nfo estava a altura dos efeitos que engendrou. Con- frontando o legado do Império com a aventura republicana de 1889, diffcil evitar a sensagio de que 0 que foi vetado foi mais relevante do que 0s desfgnios de quem vetou. Os primeiros anos republicanos se caracterizaram mais pela auséncia de mecanismos institucionais préprios do Império do que pela invengo de novas formas de orga- nizago politica. O yeto imposto,ao.regime mondrquico ago implicou invencio_positivade ‘ordem,, O que se seguiu, conforme sérd visto, foi uma completa destatinizagio, da, politica, o mergulho HO ca0s. Hf ‘Antes de proceder & necessézia reflexio sobre a entropia dos pri- ‘meiros anos da Repiiblica, importa considerar de modo sistemético 0 que fot vetado pelos republicanos: a engenharia politica do Poder Moderador. Isto possibiliterd verificar o impacto gerado no curto prazo pela supressio do padrio imperial, e perceber 0 que dele foi ecuperado quando — no governo Campos Sales — a ordem republi- cana definiu suas rotinas institucionais. 45 | | i. Am “Cofiteto-espirito-de-facgé0;-como guardifo da newivalidade e da con- ‘Bios que Seguiram ¥ proclamacio, na qual fisai desprovid® da “‘chave” de sua orgenizaedo institucional. Segundo a tradigéo do Império-ae, atribuigses do 1 (Sdetador cram fundamentais para estabelecer: ‘os limites e a dinfmica do corpo politico, Constitucionalmente defi- nido como iftesponsavel ¢ como prerrogativa exclusiva do Inperader, foi apresentado pelos intelectuais da Monarquia como gern set servagio e como “expresso de necessidades fundamentais”, ‘direitos adguirides, interesses criados, tradig6es e glérias”. * Para as finalidades desta reflexdo, a engenharia institucional do Poder Moderador apresenta as seguintes macto-caracteristicas: uma doutrina de representagao simbdlica,% e 0 processo de geragio e: constituigdo de atores politicos legitimos. ‘As avaliagdes conhecidas sobre o modelo imperial coincidem; com | excego daquelas marcadas pelo viés monarquista,* em enumerar suas “falhas”: indistinggo programitica e social dos partidos, auséncia de enraizamento do sistema politico na sociedade, eleigSes fraudu- lentas e inexisténcia de sistema representative. No entanto, como nota- ram José Murilo de Carvalho ¢ Bolivar Lamounier, %* 0 Impétio nfo } dispensou de sua organizago politica o prinefpio da representagéo. | $6 que em uma perspectiva distinta do modelo cléssico de representagio descritiva, na qual 0s poderes politicos de uma nagao ficam subordi- nados & comunidade politica, © caso do Império revelaria a opgéo definir o tamanho da polis e 0 alcance da incorporagio do demos. © Brasil, durante a experitncia imperial, vivenciou a superpo-, sigdo entre um critério liberal de representagéo — presente na consti tuigo da Camara dos Deputados — e um perspectiva hobbesiana, que’ fez do principe 0 criador da nagéo. Segundo insigne pensador, “o principe dew origém 2 sociedade, fundou a nacionalidade e, portanto, legitimou o Estado, ¢ nfo o inverso”. 7 As prerrogativas priticas dessa investidura so notérias: os poderes imperiais de nomear 0 Poder’ Exccutivo, dissolver Camara de Deputados ¢ controlar a adminis- tragéo das provincias. Temse, desta maneira, resolvido problemas cruciais da organizaglo politica: o processo de geragio do governo, a} 44 + reforga esta percep constituigfo e os limites da representagio nacional ¢ as relagSes entre “centro” ¢ “periferia” na estrutura do Estado. Tudo isso com a clara assignagio de quem detém o monopélio de escolha. 'A historia eleitoral e a da constituigao de governos no Impérig . Tudo parece indicar a presenga de um singular sistema de eleitor tinico, capaz de encarnar a yontade nacional a salvo das distorgdes ¢ do espitito de facgao. E 0 que se depreende da andlise de Sérgio Buarque de Hollanda: Pode-se, pois, dizer que a acao do Imperador vinha a suprir reste ponto o papel dos drgfos mais normalmente autorizados a dar expresso a vontade popular ¢ tinha funggo semelhante ‘A de um corpo eleitoral, do corpo eleitoral que o Brasit’ nao conhecia. ** De fato, se 0 modelo exposto por Tt. H. Marshall, * sobre os direitos de cidadania, possui alguma consisténcia, pode-se: dizer que © Império instituiu um sistema de cidadao ‘inico, com prerrogativas ‘maximizadas ao limite. Vejamos: eta termos de direitos civis, nfo pode haver maior liberalidade do que a situagdo na qual o portador 6 irres- tritamente irresponsével. Assim o Imperador. Sua titularidade de direi- tos politicos foi expressa no papel de eleitor Gnico, Antecipando o século XX, também usufraiu das pretrogativas emanadas da moderna definigdo de direitos sociais, que obtiga o Estado a incluir em sua agenda a promocéo do bem estar piblico: os gastos da Familia Real eram superiores, segundo orgamento piblico, aos do Legislativo, res- guerdada ainda a estabilidade de fungao para 2 pessoa do monarca € para a dinastia. ‘Um dos legados mais importantes do Império, vetado pelos repu- blicancs, foi 0 critério de geragio e constituigéo dos atores politicos legftimos e, por esta via, o controle sobre os mecanismos de competigio politica. A’ partir de 1840 0 Poder Moderador, por suas atribuigdes © pela légica do sistema parlamentarista adotado em 1847, se define como o ponto de fuga diante do qual as identidades partidérias se estruturam. Possuindo uma histria partidésia, o Império evitou, segundo Bolivar Lamounier, * quatro alternativas cléssicas: a) parti dos formados a partir de eleigées; b) partidos formados a partir do conflito social; c) partidos de principio; d) partidos formados pela evolugaio de grupos clAnicos. ‘Alternativamente, no sistema parlamentatista do Império, a cons- ftuigo e a identidade dos partidos enfatizou prioritariamente sua 45 relago com a “‘chave da organizagio politica”. Se os partidos em geral retiram de sua relagio com o eleitorado parte significativa de sua || dentidade, os partidos mondrquicos nfo se define obrigatoriamente | como casos de patologia politica. © problema todo é que s6 havia um ‘| cleitor. Serd tarefa da Repiblica inventar uma nova dindmica, capaz }| de erradicar 0 eleitor tinico, evitando, com igual énfase, o eleitorado #| classico. 4 veto a este legado implicou o abandono de solugGes tradicionais | 48 questées cruciais e pertinentes ao Sistema politico. O Brasil acordou sem Poder Moderador, em 16.11.1889. Isto é, sem ter qualquer | resposta institucional a respeito de si mesmo: quem faz parte da comunidade politica, como serdo as relagdes entre polis e demos, entre © poder central e as provincias, como se organizatio os partidos ¢ se definirio as identidades politicas, Enfim, sobre quem deveré mandar, | pois como disse Silvio Romero: “A questio toda hoje no Brasil é saber com que patréio se hé de estar”. 41 NOTAS 1. Aristides Lobo, com a expresslo “auséacin do povo” ¢ com 0 adi tivo “besializado”, orieatou a grande maioria das impresses sobre 2. attu do demos diants da Proclamasio, Mesmo historiadores do periodo, que e vyeram com mafor distanciamento, corroboram a impressio de Aristides Lobo, como pode ser notado em Carone ¢ José Maria Bello. Para uma revisto radical do “paradigma bestilizadoe” vee José Murilo de Carvalho, Os Bestatizados: © Rio de Janeiro e a Repiblica que no foi, Rio, Cia. de Letras, 198 2, Para ume descrivéo pontual da queda d# monarquia ver Sérgio Busr- que de Hollanda “Do Império i Repiblica”, in Histria Geral da Civlizagto « Brailira, tI, v. 5, Si Paulo, 1972; Evavisto de Moraes, Da Monarquia | para a Repiiblica, Rio, Athens Bd. S/A: Anfriso Falko, Histdria da Fundagio da Repibiica no Bras, Brasia, ed. da UaB, 1985; George Boheret, Da Morar- ‘quia & Repiblica, Rio, MEC; Visconde de Ouro Preto, Advento da Ditadura Militar mo Brasi, Paris, F. Pichon, 1986 eR. Magalies Yr, Deodoro: a Espada € 0 Império, So Paulo, Cia. Editora Nacional, 1957. 5. A referéneia 20° demos de ftace, bem como poesia de T, S, Eliott foram retradas de Moses Finley in The World of Odisseus, New York, The Viking Press, 1965, p. 89. 4. Dados apresentados por Sérgio Buarque de Hollanda, ob. cit, p. 224. 5. Sobre a propeganda republ it ot da Costa, Da Monarquia a Replica: Momentos Decisives, Sio Paulo, Liv. Editora Ciéneias Humanss, 1978, 6. A fniegra da descrigfo’ dark-naturalista de Raul Pompéia encontrase ‘em Evaristo de Moraes, ob. cit, pp. 179-18. q 7. A edificante doutvina de’ Alves Branco foi exposta por Sérgio Buarque de Hollands, ob. cit, p. 82. 8, Citado por Sérgio Buarque de Hollande, ob. cit, p. 82, iat 46 6. Para uma avallaio acurada do impeto reformista do Impéio, com elas algo pars, Joe Mio de Caratho,O Teairo das Sombras, ‘ilsmene 0 cap. V, Sob leisgSo clitoral do Império, v. Tavares, sreeetpegine elitr”, Cederos da UnB: Modelos Alleativos de Repre- ie cao Police no Brae Rogie Elio, 182190, rasa, ef. da Unb, taut? Antena Perec, Reforma Elon, rasta, ed da UnB, 1985, ¢ Fran ‘cisco Belisdrio Soares de Souza, O Sistema Eleitoral no Império, Brasilia, Senado Feral, 1578 To. Apud’Ségio Buarque de Hollands, ob. cit v- 1/53, 3. 1 Idem, 9. 178 12) bid. 205. 1S. Os das’ de Tavares de Lyra nfo coeapondem aos apresentados elo Baro de Java, Para ete & primera ello peel Saraiva tera dado te beast coin 998 open comrades De gag mo, 8 cule segue sendo apa Para un confront ene cs dfereates regi ee eltm ta obs ity Ge Tavares do Lyra, 4 ob. do Berio. de Jvas Srautzeiee e*Drogramas Ministers, Rio ae Janet, Imprens. Necional, ‘a. 1. Os dados apreseniados © d exstncia do eéiga de ca liberal foram reproduzidos por Sérpio Busrque de Hollanda, ob cit. V. tb. Joaquim Nabuco, Um Esadista do Império, Rio, Nova Aguiar, 1975. 15. Ver Visconde de Ouro Preto, ob, it, p. 215. 16. Refirome a Sérgio Buarque de Hollands, ob. cit, ¢ a Paulo Merea dante, A Conscizncla Conservadora. no Brasil, Rio, Saga, 1965. “17. Ouvis de Caetano Veloto « misice “Sampa", in Muto, Rio, Poly am, 1879, Fem gO “sorter de Nabuco" foi proferido durante a crise politica de 1868: “o poder modarador pode chamar a quem quiser para organizar minls- térios; esta pessoa fez a cleicdo porque hi de fazéla; esta elelgto faz maio- tia, Af estf 0 sistema representaivo do nosso Pais!”, Para uma anélie do peviodo ver Joaquim Nabuco, ob. cit, e Euclides da Cunha, em seu excelente enssior “Da Independéncia & Repiblica”, publicado no livro A Margem da Hiséria, Port, Livraria Chardon, 1908. 19. © Modelo de Robert Dabl foi apresentado no primeico capitulo de seu livro, Poliarchy: Participation and Opposition, New Haveo, Yale Univer sity Prest, 1971. : 20. V. Bolivar Lamounier, Perspectives on Democratic Consolidation: ‘he Brazilian Case, 1986, p. 19. 21. V. George Steiner, The Death of Tragedy, London, Faber and Faber, 1961, 22. Para uma anélie da reflexio de José de Alencar sobre 0 problema da representagio politics, v. de Wanderley Guilherme dos Santos, Crise ¢ igo: Partides ¢ Generais, Sio Paulo, ed. Vértice, 1987, especialmente © cap. 1. 25. Citado por Simon Schwartzman, Sdo Paulo ¢ 0 Estado Nacional, Siig Paulo, Difel, 1975, p. 114. Paulo Mercadante, Civis ¢ Militares: A Crise e 0 Compromisso, 1978, p. 111. 47 25. V. José Maria dos Santes, Bernardino de Campos ¢ 0 Partido Repu. blicano Paulista, Rio, José Olympio, 1960, p. 43. 26. Sobre 0 Manifesto Republicano, v. Paulo Mercadante, 1978; George Boherer, ob.'cit, e Américo Brasiliense, Os Programas dos Partidos ¢ 0 segundid Inpério, Sio Paulo, Tipografia de Jorge Seckeer, 1878. 27. A integra ‘do programa esté em Américo Brasiliense, ob. cit. 28. Apud Emilia Viotti, ob. cit, p. 516, 29. dem, p. 315. 30. Tbidem, p. 314. 31, V, Hannah Arendt, Bichman in Jerusalem: @ Report on the Bana. \ lity of Evil, Penguim Books, 1977. 32. Ver Hannah Arendt, “Thinking and Moral Considerations: A lee. sure", in Social Research, Spring/Summer, 1984, v..51/7, ns 1 ¢ 2. 33. Com a metifora “intelectuals da Monarquia”, refiro-me a: Visconde do Uruguai, Ensaio sobre 0 Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Typogta- phia Nacional, 1862; Braz Florentino de Aratjo, Do Poder Moderador, Recife: ‘Typographia Universal, 1864 ¢ José Antonio Pimenta Bueno, Direito Péblico ¢ Andlise da Constituiglo do Império, Brasilia, Senado Federal, 1978. 34. Sobre a idéia de representapio simbélica, v. Hanna Pitkin, The Concept of Representation, Berkeley, University of California Press, 1972. 135. Talvez a mais interessante avaliagio positiva do legado da. Monat. ‘quia tegha sido feita por Joaquim Nabuco, apesar de sua persuaséo liberal © reformista: “Tenho por certo que a fungfo benéfica da Monarquia no Brasil fol esta: descobrimento, conquista, povoamento, éristianizasio, edifice- 46, plantio, organizaygo, defesa do litoral, expulsio do estrangeiro, unificagio conservacio do todo territorial; administracto, estabilidade, ordem perfita no interior; independéneia, unidade politica, sistema parlamentar, sentimento da liberdade, altivez. do carter brasileiro, inviolablidade da imprensa, forga das oposigées, direito das minorias; tirocinio, aptidio, moralidade administra- tiva; vocagao politica desinteressada; crédito, reputagio, prestigio exterior; bbrandura ¢ suavidade- de costumes pablicos, igualdade civil das ragas, exting’o pacifica da escravidéo; glria militar, rendncia do direito de conquista, arbi- ‘tramento internacional; cultura Wterétia e cientifica a mais forte da América Latina; por tltimor— como o ideal realizado da democracia antiga, o governo ‘do melhor homem — um reinado Pericleano de meio séeulo”, Para um elogio | completo y. de Joaquim Nabuco, © Dever dos Monarquistas, Rio de Jenciro, ‘Typ. Louzinger, 1895. 36, V. Bolivar Lamounier, ob. cit, pp.’27-53 e José Murilo de Carvalho, ‘A Constituigdo da Ordem: a Elite Politica Imperial, Rio, Campus, 1980. 31, Refirome Wanderley Guilherme dos Santos e a seu ensaio “A Praxis Liberal no Bras, publicado em seu livro Ordem Burguesa ¢ Libera. lismo Politico, Séo Pevlo, Dues Cidades, 1978. 38. Sérgio Buarque de Hollands, ob. cit, p. 75. 59. V. T. H. Marshall, Cidadania, Clase Social ¢ Status, Rio, Zahar, 1967, 40. V. Bolivar Lamounier, ob. cit pp. 2753. 41. V, Sylvio Romero, Provocapdes e Debates, Porto, Livraria Chardron, 1910, cap. XX, “As Oligarquias e sua Classificagéo", pp. 401-416. a + Os anos entrépicos (1889-1894) “Uma revolugao gera os herdis, nivelando-se na sua corrente, martires e déspotas. Diverso é 0 golpe de Estado, propenso ao surgir dos ener- gdmenos, jantoches e burocratas” PAULO MERcADANTE, in Militares e Civis: A 4tica € 0 compromisso. Neer-mesmo os que acreditam ter « Histéria algum sentido podem hénestamente supor que,havia ordem subjacente e invisivel a régular o caos da primeira década republicana no Brasil. * ‘Ainda que a cronologia induza a supor uma seqiiéncka aceitivel do ponto-de-vista da razio comum, o tumulto dos primeiros anos repu- blicanos ¢ virtualmente avesso A narracéo sistematizada. Este capitulo inicie-se sob a sombra da duivida cética que, diante da multiplicidade de caminhos possiveis para a emisséo de juizos, recomenda a sus- penséo de qualquer opiniao, Para evitar a paralisié analitica cabe deli- near de antemgo a esiratégia argumentativa, dada a impossibilidade declarada de dotar, de algum modo que nao seja puro arbitrio, a em- piria selvagem e desordenada de um enredo regulado pela interacio décil de causas ¢ efeitos. “ objetivo global deste capitulo € considerar os anos iniciais da Repttblica, a partir de metéfora dé entropia. Como se verd no correr na andlise, a idéia de entropia, entendida como associagao entre estado de anarquia e elevado grau de incerteza, se manifesta a partir da rruptura dos canais de integragfo entre polis, demos ¢ governo, defi- nidos pela ordem imperial. O cardter entrépico da ruptura foi expo- nenciado pela legislacfo erritica republicana que, ao tentar superar 49 passado imediato ©, como se ver nos capitulos subseqiientes, pode ‘até mesmo incorporar em sua elaboracio institucional padres ¢ valo- res politicos j4 existentes no modelo imperial. Assim como a taxa de shallowness dos aventureiros republicanos no fez Justica ao seu papel hist6rico, a répida queda do Império. bem ‘como @ ataraxia do monarca no foram proporcionais & magnitude do egado politico-institucional da monarquia, A despeito da erosdo inter- na softida por suas instituig6es, néo hd como negar que o Império ptoduziu um padréo de state-building, com algumias macrocaracteris ticas marcantes: hipercentralizacdo politico-administrativa; controle da dindmica legislativa © regulagdo do mercado politico vie legislacio eleitoral; padrdo estdvel de exclusio do demos ¢ rigido controle sobre 1a formagiio de atores politicos coletivos. A isto deve-se somar 0 que José Murilo de Carvalho considerou: a homogeneidade da elite, nao apenas em termos de otigem ou extracdo, mas levando em conta tam- bém a sua persistente e duradoura insersiio em um arranjo institucional com molduras estéveis. * E quanto aos primeiros anos da Repiblica? Na auséncia de refle- xGes semelhantes sobre a formacéo das lites republicanas, vale a observagdo impressionista. A primeira equipe governamental repu- blicana, que compds 0 Governo Provisério chefiado pelo Marechal Deodoro,.possufa, segundo expresso dé José Maria Bello, “horizontés limitados”..Além de sua notéria diversidade, de origens ede prop6- sitos; tinlia’ como caracterfstica comum uma total “inexperiéncia na administragio péblica”. Com excegfio de Rui Barbosa, que possufa £ © vazio institucional provocado pela queda do Império produziu, como sera revelado, ainda mais incerteza. © que se procuraré demonstrar € que o abandono dos critérios mondtquicos de organizacio do espago ptblicd Inaugurou um pet de dilatada incerteza politica. Nela, todas as questées institucionais ¢ mecanismos, reguladoras, do direito que, de alguma forma foram {= resolvidos' pelo-Império, ficaram submetides 2 um estado de mundo ca6tico, que apresentava a dramética superposigéo de uma multi plicidade de ordens possiveis. Na verdade, a idéia de absurdo mais uma vez aparece como apropriada e comparativamente mais potente do que a de caos ou mesmo de entropia. Seguindo a tradigfo da , - estética do absurdo, aquela idéia nfo designa apenas um mundo ca- rente de sentido inalidade, de, mas uma, arena, dramatica, habitada ‘que engendram. ~~ Sein qierer-aderir a disputas teGricas intermindveis, fica diffcil considerar a mudanga politica operada ao fim do século XIX, no Brasil, como a necesséria manifestagdo de alteragdes estrutu sociedade, A atengdo mais detida as percepgées dos contempordncos, «| na suposigdo de que ndo eram cegos agentes das leis da hist6ria, revela uma significativa protiferagio da incerteza, a despeito do cardter mais ou menos apaixonado de suas apostas. E igualmente ilusSrio, ou pelo ‘menos sujeita & séria contrafacgao, a suposicéo de que apesar da “insta- bilidade” inicial a Repiblica pode materializar projetos que the ante- | cederam na ordem do tempo. ‘Tanto a perspectiva mégica, fascinada pela explicacéo de fend- menos visiveis a partir de entidades invistveis, sem expor o mistério do nexo, como a que fez a consolidagdo republicana p6s-1898 derivar da plena aplicacao de projetos oriundos da propaganda dos tempos do Império, desconsideram como arena relevante para a reformulagao - | dos EUA, ¢ de Quintino Bocaiuva, familiarizado com as vicissitudes’ da politica argentina, os demais “ignoravam todos eles a prética dot» regime na América do Norte ¢ na América Latina”.® we det Feita a revolucdo, proclamada a Repiblica, o Governo Provisorio divulge S8x" Primero decreo, exiO"no qual ematgem. a. prmeeas ; ue : intengSes, incertezas ¢ paradoxos inaugurais da nova ordem, Através de sistema politico brasileiro o perfodo dos anos entrépicos. O obje- i] gele-"5-demios bestializado tomou ciéncia de que o Pals tinfia novo no- tivo especifico deste capitulo é argumentar em outra ditegéo. Trata-se de sugerir que os tnos entrépicos representaram para a Reptblica consolidada, a partir de Campos Sales, mais do que um interregno inominavel, 2 separar dois modelos politicos “puros” © opostos. A Repiiblica oligérquica, rotinizada a partir da “politica dos governa- dores”, nfo se construiu tendo como contraponto negative a ordem imperial. Sua producio prética e retbrica exigiu a expiagao de seu ‘me: “Estados Unidos do Brasil”. Foi informado também de que havia govemno, ¢ sob nova forma: “Repiblica Federative”, formada pelas antigas provineias “reunidas pelo lago da federagao”. Sob os aspectos ‘mnblemitcos, as primelras. dliberagbes sobre-a.organizagdo mcfon cada “Estado” decretard sua Constituigao definitiva, elegends “compos doliberativos ¢ os seus governos”, E, finalmente, os procedimentos st 50 “conhecimento tedrico” sobre a “reptblica federal presidencialista”““<*. | préticos: a naglo seré governada por um “Goyerno provisério”, que Romearé delegados para governar os Estados, podéndo einda neles intervir para garantia da ‘ordem pablica”. Além disso, as forgas mill tares existentes fieam subordinadas ao governo provisério assim como todas as repartigées civis e militares até entdo ligadas 20 governo | central. © : : ‘Os analistas do periodo sO undnimies em localizar no Decreto 1 a marca de Rui Barbosa, presente na opcio. ppelo legalismo e pelo eréds (| federaista, Este pode ser entendido néo apenas como demanda pola descentralizacao politica ¢ pela sedistribuicio dos poderes entre | ‘2 polis, mas sobretudo como demande” pel wigs et Sob esta Stica as intengdes do decreto geram dois paradoxos. O ptimeiro, msis‘afeito aos que acreditam em leis sociolé gleas, viola 0 que poderia| ser designado como Lei, de, Tocqueville: fodag as revolugdes tém como produto hist6rico o, fortalecimenio do Estado 6°s Gentralizarfo politica. Como, entio, conduzir a bom termo lima revolugio coriiprometida, segundo parte de seus protagonistas, com, pelo menos, a dispersio dos poderes do governo central? O se ggundo paradoxo é mais tangivel: como implantar o federalismo tendo [? © desafio foi inédito na ‘como elemento propulsor_o governo central! historia brasileira, pois é fartamente sabido que es demandas federalis. ‘tas mais consistentes durante o Império tiveram como foco o protesto repionalista. Pode-se argumentar que a experiéncia regencial (1851-: 1840) autorizaria nova ‘entativa de implantagio do federalismo, pela 4 via do poder central. Mas a jurisprudéncia é, no mfnimo, precéria, pois & descentralizagéo regencial sucedéu a experiénci hipercentrali- zadora do segundo Reinado. ‘Os problemas derivados de uma opso pelo federalismo, implan- tado pelo centro, apenas em parte dizem respeito 2s inconsisténcias (da, primeira elite republicana, que ‘além da vaga acessio as idéias. | federalistas e da defesa da autonomia estadual, néo possula um pro- | jeto a respeito de como esses valores poderiam se materializar em uma’ | Seder politica e administrative. Sempre € possivel se _argumentar apelando para o realismo politico: naquela “conjuntura” a implantagio Jo federalismo “pelo alto” foi a nica alternativa disposta aos atores. Mas, aqui, como de resto, 0 aleance da explicagao realista € curto | ‘sem ser, no entanto, descabido. Cabe indagar, com maior profundidade,' sido a “nica alternativa”. 1 se manifestou_ em movi politicos organizados em | “alvéz porque a maior parte do Pais vivess i situagdo de federalismo de fato, mesmo sob a monarquia, ‘Esta pro- posigéo pode ser enunciada com maior radicalidade: talvez porque ‘a maior parte do Pais vivesse uma situagiio de auséncia de regime politico e de qualquer arena semelhante a um espago péblico. Este onto exige demonstragio. - ‘Uma das principais macrocaracterfsticas do Modelo Imperial foi a hipercentralizacso administrativa. Esta se materializava, entre outras formas, no controle que o Poder Moderador, via Executivo, ia sobre as administragdes provinciais. Como notaram Francisco Iglesias ¢ Sérgio B. de Holanda, * as administragdes das provincias, exercidas por prepostos do governo central, eram marcadas por uma extrema rotatividade: “os presidentes (de provincias) mandados da Corte 86 ficavam geralmente 0 tempo preciso para garantir o predomfnio da orientagdo partidéria do ministério no poder”. Suas tarefos bésicas ram: escolha de chefes politicos “hébeis”, capazes de garantir resul- tados eleitorais, manobrar postos da Guarda Nacional ¢ nomear as autoridades policiais. ‘Além da alta rotatividade, a admi cia de politieas go tals € pel terizando_um_padtio de_beixa institucionali vinciais. Francisco Iglesias cortou, para um periodo de 65 anos, nada menos do que 122 periodos_administr finas Gerais, regiéo politica n: . Do ponte-de-vista das/relagdes entre poder central ¢ administra Ges regionais, o modelo € altamente funcional: através dele se obtém © necessério para sustentar os sucessivos ministérios. Mas, como vive- tia 0 demos (@ 0 sub-demos) sob tal situacéo? Reminiscéncias de {taca & parte, o demos parece ter operado & rmargem de tudo aquilo. A imponé if 0 coexis- tia com a baixa intensidade da agéio do eo impermeabilidade, que caractétizava 26 + olei locais. Por esta via é possivel generosa Teittira de Nestor Duarte, ¢ Tevélar a dialética do Modelo Imperial: combinago de centralismo exacerbado com a proliferagéo de ordens privadas locais. Como indicou Simon Schwartzman, * os meios ou instrumentos, 2 disposicgo do governo central, para atingir a vida econémica e social das provincias, efain limitados, Poderse-ia dizer que as unidades vin- caladas ‘as mercado eterno constituiriam exceges, mas ainda assim é 53 discutivel a presenca positiva de mecanismos centralizados de governo. | No caso do boom cafesiro do Vale do Paraiba, nos anos 40, a “politica natural” da escravidéo fez o seu papel, ¢ na expanséo do novo oeste paulista talvez se possa falar de maior presenga do goyerno central, | em fungéo de politica que visavam a garantir 0 suprimento regular, | de forga de trabalho. Mas, a maior parte do demos nacional néo estava nos chamados niicleos dinamicos da economia, i Por todo 0 territério se espraiavam sistemas 5 local ou privado, baseados na propriedade da terra e em vinculos pal moniais, cuja dinémica era independente da légica do sistema politico 3 imperial. Separagéo que, por um lado thes garantia ceria intocabili- dade, mas, por outro, dadas as condigées do espago politico imperial, impedia a formagdo de corpos politicos regionais capazes de habitar 0 mundo péblico. Para a parcela do demos ¢ do sub-demos nacional que vivia sob tais sistemas locais 0 Pais nfo dispunha de regime politico. Ou, simplesmente, nao existia enquanto entidade politica supralocal. © compromisso federalista da maior parte dos membros do Go- yerno Provisério pode, entio, ser percebido como expresso daquilo j que o Brasil possuia, ao mesmo tempo, de mais “moderno” ¢ de mai “tradicional”, A modernidade ficaria por conta de unidades, como : Sao Paulo, dotadas de econdmias em expansio, viridiladas ao mercado internacional, € de elites regionais capazes de, a partir da 4 estadual, produzir novas formas de vinculagio entre demos, polis ¢) governo. Na maior parte das antigas provincias, contudo, emerge 0} “mundo natural”, Diante delas, os desafios abertos & primeira ine republicana séo miltiplos, Ao destruir o Leviathan imperial no emer-, gem, de modo automético, formas ‘aliernativas de vinculagao entre demos ¢ polis locais, capazes de gerar alguma experiéncia de espago || piblico, O federalismo, que em outros contextos apareceu‘como de-.) manda de paries que, voluniariamente, querem se coligar, no, caso | brasileiro néo pode dispensar uma roupagem construtivista. Para im- nian cial, Pelo contrario, havia que fabricar os seus atores. “A erenga dos propegandistas, fascinados com a utopia federalista, representava 0 Brasil como uma nagdo subjugada pela centralizaga exacerbada, que_se exguin como pesada cortina a impedir.a sua ex- pressdo real. Como em um cénério hobbesiano clissico, o Leviathan, ‘ia os direitos de seus stiditos-provincias, obrigando-; téncia regulada, obediente ¢ temerosa. Com o golj sepublicano, 0s ex-propagandistas, agora dotados de responsabilidades executivas e legislativas, tiveram diante de si o outro lado do espectro de Hobbes: 9 mundo natural. Como tratar do problema evitando a terapia imperial? Enguanto durou (de 15.11.1889 a 25.2. 1891), 0 Goyerno Pro- visbrio teve diante de si uma ainpla ‘quantidade de tarefas, suscitadas pela stbita desrotinizacéo da politica. Aos dilemas provocados pela ‘opgfo pelo federalismo, o governo acrescentou em sua agenda proble- mas ligados ao seu proprio funcionamento interno. Ao mesmo tempo ‘em que era obrigado a reconstruir os mecanismos de poder nos estados ¢ subordind-los a uma ordem nacional, o governo, em fungio da concentrago em suas mfos de atribuigdes executivas Jegislativas, néo poderia operar sem que definisse seu modo de funcionamento. A tarefa parece nfo ter sido das mais simples, a se acreditar no comentério de José Maria Bello: Nao ha ago conjunta do governo, ¢ as suas primeiras reu- nides néo so sequer registradas. Somente més e meio depois de sua existéncia, € que se institui uma espécie de regime de gabinete, com reuniées coletivas, ¢ se nomeia um secretério para redigitlhes as atas...* ‘A impressio do autor citado pode ser facilmente corroborada pela leitura das atas do Governo Provis6rio, compilades por Dunshee de Abranches, *° Nelas, ainda que os debates nfo, sejam reproduzidos na integra, emerge com clareza a baixa institucionalizagéo do governo. ntemente as divergéncias entre os ministros, e destes com 0 Presidente, provocaram pedidos de rentincia, configurando uma inte- ragGo tensa e marcada pela chantagem, quando néo resultam em amea- gas de duelo, ‘A fluidez dos procedimentos de governo contrastava claramente com a magnitude de suas responsabilidades. A. consolidaco do..novo regime, ainda que alguns de seus prdceres propugnassem pela descen- tralizagio e diminuigdo das atribuigdes do governo, exigia o forta- Ieeiménto"d6 poder central, ao mesmo tempo executivo ¢ legisiativo. © problema pode ser colocad nos seguintes termos: como conciliar 4s atribuigdes altamente concentradas do governo com a possivel dis- persfo de iniciativas, dada 2 diversidade do ministério? O procedi- ‘mento adotado para erradicar esta ameaca foi o da\“responsabilidade coletiva””)que, segundo Campos Sales, tinha a seguinte explicagio: 35 . 08 ministros eo chefe do governo formavam, uma enti- —o Governé Piovisério — com responsébili- ria. ¢, portanto, com a co-participagdo no poder. * Em termos priticos, a crita deste modo: ++. em todos os atos de cardter legislative, nada deliberaria || qualquer secretério de estado sem expor de anteméo suas ‘| déias ou projetos em conselho, sendo os decretos respectivos aprovados, repelidos ou alterados, decidindo-se tudo por maio- ria de votos. # “responsabilidade coletiva” pode ser des- A cldusula se, por um lado, impés alguma unidade a equipe go- | vernamental, por outro fez com que decisbes especifias de.cada pasta | ficassem_passfveis.de. veto ou simples interferéncia por parte de qual- | quer ministro. Rui Barbosa, p. ex., embora sendo Ministro da Fazenda, teve papel decisivo na separagio entre Igreja ¢ Estado, na discussao sobre casamento civil e novo estattto dos cemitérios. Mesmo a pre- tendida unidade de desfgnios acabou por ser abalada, com o decreto sf 1890 que tratava da reforma financeira provocadora do Enci- Ihamento, A redagio do decreto coube a Rui Barbosa que, contando com 0 apoio do chefe do governo, péde aplicé-lo com a tardia de seus pares, notadamente de Campos Seles ¢ Demétrio Ribeiro. governativas foram nomeadas ¢ substituidas durante o primeiro ano | da Repiiblica, Nesse periodo, segundo dados fornecidos por Maria { do Carmo Campelo, * foi altissima a rotatividade dos cargos executi- | | vos estaduais. Para o perfodo, p. ex., 0 Rio Grande do Norte teve 10] administragées; Sergipe, 7; Pernambuco, 8; Minas Gerais, 13 ¢ Para- né, 11, Ainda que este escore no apresente grande discrepancia com | relagio aos niveis de sotatividade do Império, hé, contudo, grande | diferenga. A alta rotatividade imperial era cor de legitimidade dos governos, pois através dos presidentes de provin- | cias os partidos no poder controlavam 0 jogo ano da Reptblica, « legitimidade do governo sua origem revolucionétia ¢ os tinicos produtos provaveis das ragio de descontentes, © componente caético dos primeiros tempos da Repéblica teve, ainda, como ingrediente nada desprezivel, 0 comportamento do esta- 56 mento militar.** Presentes no governo através do Presidente ¢ dos Ministros Benjamin Constant , depois, Floriano Peixoto, além do Mi- nistro da Marinha, Eduardo Wandenkolk, os militares passam a viver uma inédita situacio de hiperpolitizacao. Egressos de um regime que thes confinava uma identidade estritamente profissional, passam a representar seu papel como dotado da misséo de realizar com pureza a verdadeira reptblica, Invariavelmente, essa busca da verdade se traduzia em petigGes a0 presidente no sentido de perpetuar a ditadura ¢ afastar da pol Tio dot “aunas’ De modo mais direto, 2 onda de intervens ‘céntral nas politicas estaduais contou com significativa ae ilitar, em postos oficiais e extra-ofi- cialmente através do(Club i Mia # nesse sentido o depoimento de Felisberto Freire: © Club Militar criou delegagées suas pelos Estados, onde se organizaram corpos semelhantes e dirigidos pela mesma orien- tagio e de onde safa a palavra do Exército sobre os fatos de maior importincia politica do Pats.‘ registro na retSrica oficial da importincia militar apareceu no decreto de reforma do ensino militar, elaborado jamin_Cons- tant, posttivista dissidente. O objetivo central é reconhecer a “mis allamente civilizadora, eminentements moral ¢ humanitétia que de futuro est destinada_ aos exércitos no continente sul soldado 6-apresentado como Ccidadéo armado”, “corporificagio da honra nacionsl”. Dada a sua posicéo na sociedade ¢ o seut destino, © militar “precisa de uma suculenta e bem dirigida educago cienti- fica”, capaz de garantir a “racional expanséo de sua inteligéncia”, As bases da iova educagéo sio edificantes: ‘Um ensino integral onde sejam respeitadas as relagdes de de- pendéncias das diferentes ciéncias gerais, de modo que 0 estu- do possa ser feito de acordo com as leis que tém seguido o espfrito humano em seu desenvolvimento, comegando na ma- temética e terminando na sociologia e na moral como ponto de converpéncia de todas as verdades, de todos os princfpios até entio adquiridos ¢ foco nico de luz capax de alumiar ¢ esclarecer 0 destino racional de todas as concepedes hhuma- nas. (© delitio civilizatério de Constant encontrou resisténcias até mes- mo entre seus. pares, tais como o General Jacques Ourique, deodorista 57 L i republicano, Para ele as escolas militares teriam se transformado de “estabelecimentos de fazer bons soldados em fébricas de doutores de | camarilha, mais aptos em seu doentio misticismo altruista, para as | concepedes abstratas de repiblicas platénicas do que a rude tarefa de comandar batalhdes em campanhas”. %7 (© suculento decreto emanado de Benjamin Constant teve como contraponto empirico um padrdo de interferéncia militar na politica que, moderadamente, pode ser chamado de destrutivo. # De fato, se © legado produtivo dos 10 primeiros anos da Reptiblica pode ser cit- cunscrito & elaboragio constitucional ¢ & feitura do pacto oligérquico da politica dos governadores, como enquadrar, nesses tempos iniciais, 4 atuagdo militar? Os registros histéricos conhecidos, nfo apresentam, nenhuma conspiragSo, quer dos monarquistas, quer do demos desen- cantado, que tena exigido dos militares o cumprimento dos papéis prescritos pelo decreto examinado. Tudo leva a orer que a interfe- if rénoia militar alimentowse de sua prpria turbuléncia. Segundo J. Hanner grande parte da energia militar foi dirigida contra motins mili- 7 tares, Quando no estavam a combater a si mesmos ou nfo s2_ocupa- vam em redigir peti¢Ses patridticas, desempenharam com competéncia ‘a prética de empastelamento de jornais de oposigio, como no ¢aso da Tribuna Liberal, yornal monarquista. x 4 ‘Moderando a parcialidade, pode-se acrescentar que se no varejo ‘© comportamento militar compésse de atitudes de politica negativa, como instituigéo, a despeito de bolsdes monarquistas na armada, de- sempenhou o importante papel de reduzir & prudente discrigdo. grupos ou atores politicos no muito afinados com os errdticos rumos da Repiblica. A base fisica deste verdadeiro poder dissuasério € e1 Basta acompanhar a evolugio dos efetivos do Exército: simi 2 sain auapno 1 q EFETIVOS DO EXERCITO (EM 1.000 HOMENS) | 1870 1880 1889 Gov. Provisério 23 15 13,5 24 (apud Hanner, June, ob. cit., p- 99) ‘Até 0 governo de Prudente de Moraes, conforme seré visto adian- te, a presenga disruptiva dos militares é.constante, caracterizando 0 padrio de desestabilizacio j4-apontado por José Murilo de Carvalho, 58 Piscine sem gue, no final, o estamento tenha sido capaz de eleborar « sinentai Jeto de controle @xelisivo do regime, que the pe col6Ga em pritica a Wo sonfiada exclisac dos “‘cesacas”, legldo de sexecrdveis~e déceis instrumentos das mais desenfreadas ambigdes interess 1s desejos de Constant é a sua {6 iniabalavel nd Facio- nai expansio da inteligéncie militar ficaram confinados em um circulo perverso: aqueles que se apresentaram como a solugdo das mazelas da Repéblica constituiram nos primeiros anos do novo regime um de seus prineipais problemas, : ‘© drama do Governo Provisétio, até este ponto, circunscreveu os seguintes problemas: a baixa institucional ismos de governo, a anarquia estadual_decorrente_dos impass fo _fe- deralista e, por fim, @ hiperpolitizasao das forgas_armadas. Paulo Mereadanté-percebea 0 periodo com olhios mais ordenados.™ Para ele 0 ano inaugural da Repiblica se caracterizou pelo conflito entre a “velha ética absoluta”, marca dos positivistas e do estamento militar, e'a “ética das responsabilidades”, do “‘liberalismo triumfante”, que pros- seguitia “adotando a flexibilidade, tética habitual a0 politico do tem- po da monarquia”. Neste confronto entre “legitimistas” ¢ “*positivis- tas”, 0s primeiros teriam saido ganhando, adotando como suas as posi- g6es de seus adversérios, como no caso da separagio entre Igreja e Estado. ‘A perspectiva de Mercadante corte 0 isco de fabricar a ordem a partir de um cenfrio que, aos olhos mortais, x6 revela confusio, Mas tem a seu favor o fato de que, sob a “hegemonia” dos “legaistas” ‘© Governo Provisério pode legar a0 futuro imediato algo que nfo foi puro delirio ou anarquia, Refiro-me explicitamente & convocacio da ‘Assembléia Constituinte ¢ A menos analisada elaboragio do primeiro regulamento eleitoral da Reptblica, feito por Cesério Alvim, recente- mente convertido & £€ republicans. ** A. despeito’ da colocacéo militar predominante, segundo 0 depoimento do pessimista Aristides Lobo, as primeiras proclamag6es do novo regime indicavam preoeupagdes com a necessidade de buscar respaldo na “soberania popular”. Nessa linha, 0 decreto de 19.11.1889. estabelece_nova_gu ficagdo cleitoral. Por ele eliminaise, as. restrigdes,censitérias do. ério, mas pi a exclusdo dos snalfabetos imposta pela Lei S: nova lei propicia um acréscimo do eleitorado, se levarmos em conia-o nimero de eleitores definido pela dltima reforma eleitoral do Impétio. Se a. meméria, contudo, sleangar_ o contingents eleitoral 372,-— em torno de 1.100.000 59 eleitores, ou 11% da populaséo — o decreto republicano € timido, Enquanto que com a Lei Saraiva o eleitorado passa 2 representar. cerca de 1% da populagdo, com a Reptblica, levando em conta as leigées presidenciais de 1894, o percentual alcanga 2%. No rumo da instituclonalizagfo, outro decreto, de 20.11.1889, marca eleigSes para a Constituinte, a se realizarem em 15.9.1890. © que no plano de algumas intengdes aparecia como légico —. consultar a opinidio pablica — no campo pritico oferecia grave difi- culdade: como_transformar a minoritéria_opinigo_republicana_em maioria? Diante do compromisso assumido em convocar e instalar uma Consfituinte, como evitar que ela seja controlada por *inimigos do” regims?, rétulo que abrigava todos os-inimigos do governo? (© pioblema comecou a.sér tratado pelo governo com a ,incum- béncia-dada-4o Ministro do Interior — Aristides Lobo — para pro- ceder ao alistamento eleitoral. Na reunigo do ministétio, em 14. 11890, a questi foi debatida, sobressaindo' a posigo defendida por Campos Sales.2® O Ministro da Justica-declarou a seus pares“que de, in‘cio havia pensado em, atribuir aos chefes ‘de partido a furtydo de alista; mento eleitoral, mas mudou de idéia diante da possibilidade desses chefes arregimentarem forgas hostis ao governo. O' mecanismo'deveria ser dotado dé rigido controle por parte do governo: “f mister, pois, z ang ¢ 0 governo interveiham diretamente Tas eig6es”. Colécando em termés praticos, o goverio deveria “Tembrar aos governidores dos Estados-a dissolugo das cdmaras municipais ¢ a nomeagio de intendentes”. O objetivordeclarado de: Campos Sales, que cogitou até em organizar circunscrigGes efeitorais com mais de um. Estado, era permitir que os “baluartes monarquistas Tossem sufocados por outros onde domine o elemento republicano”. * © tom da conduta do governo estava dado: a magia capaz de transformar o minotitério sentimento republicano em maioria eleitoral dependeria combinacao entre intervengao do poder piblico nas ele adequada Tegislagao éleltoral. ~ i ‘A primeira lei eleitoral da Repiblica — o Regulamento Alvim — foi decretada em 22.6. 1890, visando enquadrar a disputa leitoral para a Constituinte, Segundo José Maria dos Santos, ela contém dispositivos “edificantes”. Seguindo a tradie&@ moralizadora da legislago imperial, o regulamento presereve em seu art. 2.° uma 4 sétie de inclegibilidades: clérigos, governadores, chefes de policia, co- | ‘mandante de armas, comandante de corpos policiais, magistrados, fun- 60 ciondrios administrativos. Logo em seguida, no art. 42, determina que para o 1° “Congreso Nacional” nao vigorarfo algumas das incompa- fibilidades antes definidas, P. ex., as que se referem a governadores e funciondsios administrativos. © processo eleitoral ficaria subordinado, em suas partes mais relevantes, & responsabilidade dos intendentes municipais, nomeados pelos goversadores, nomeados” pelo governo central, que se autono- reou. Aos intendentes caberiam: a designagao dos locais para votacZo, ‘a composigéo das mesas e a apuragio final do pleito: ‘As questdes referentes aos trabalhos eleitorais serdo resolvidas péla maioria dos votos dos membros da mese. O presidente votard em primeiro lugar. $6 poderdo suscitar tais questoes € intervir na discussio os membros da mesa ¢ eleitores do res- pectivo distrito ou ségfo, consentindo a mesa. Nao serao admitidas disCussdes prolongadas. . . *§ © impacto do novo regulamento sobre 0 processo eleitoral pode ser avaliado por este comentério de Dunshee de Abranches: © regime eleitoral, baixado pelo Governo Provisério, levan- tara grande celeuma em todo o Pafs e provocara as iras as criticas acerbadas da imprensa de todos os matizes politicos. ‘A impopularidade dessa junta revolucionéria, chefiada por Deodoto, estendera-se aos governadores dos Estados, incum- bidos de fazerem figurar, como eleitos senadores e deputados, 15 candidatos designados nas listas que Ihes haviam sido reme- tidas pela ditadura, Houve mesmo, entre as novas unidades federativas, algumas em que apareceram sufragados para re- presentantes do povo nomes cuja existéncia até entéo todo o mundo ignorava. * ‘A composigéo da Constituinte, batizada pelo regulamento Alvim como “Congresso Constituinte”, segundo os analistas do periodo teria beirado a unanimidade, Mas, como naqueles tempos até mesmo a unanimidade era confusa, a vit6ria eleitoral esmagadora do governo no’ significou a eleigo de um corpo legislativo-constituinte décil. Para Faoro, somente foram eleitos republicanos: “os antigos, histé- ticos, novos, anteriores de poucos dias 20 15 de novembro ¢ 05 que vieram depois, os. adesistas”. * Todos eles teriam em comum a apro- 61 vagio prévia de seus nomes pelos governadores e, em sltima andlise, el6 ministério. Mas, os corpos representatives sio imprevisivels, pois «| até mesmo pessimistas incotrigiveis como Faoro e José Matia dos Santos acabam por admitir a presenca de “‘vultos nota da vasta bestialogia que teria marcado a primeira eleigao republicana. Jé nas seges preparatdrias da Constituinte, instalada a 15.4 que uma simples duelidade de poderes. ® Na verdade, a arena politica passa a ser composta por dois campos, cada qual marcado por graves tensdes: © Govern fi a propria inconsisténcia e a anar- quia estadual, e a Constituinte, inteiramente fragmentada ¢ carente de faccées politicas com identidades minimamente. estéveis. Muito em- bora 0 governo tenha tido o controle ‘mento da assembléia eleita. Na escolha da mesa que presidiu os traba- Thos constituintes, p. ex., a ago organizada do governo parece ter sido nula, Os representantes ficaram divididos entre a_vitoriosa can- didatura de Prudente de Moraes — indicado pela facgao politica mais consistente — e a de Saldanha Marinho, ligado a hist6rica propa- ganda republicana. O formalismo da escolha da mesa diretora foi crucial para garantir Constituinte condigdes minimas de operaciona- lidade politica. Os “cat mais importantes, Presidente, Vice_e pri- meito Seoretério, foram ooupados por Sao Paulo, Bahia e Minas Gerais, ‘respectivamente, e que representavam, as maiores bancadas. ** ‘A primeira questo politica que parece ter comovido a Assembléia ‘A questao era controversa, pois 0 Gove rrovis uma revolugSo, concentrava, até entio, em suas maos, todos os pode- res executives ¢ legislativos. O decreto de convocacéo da Assembiéi : contribtiiu para evitar divides. Limitou-se a convo- '890°8 “1.2 Congreso Nacional dos representantes do povo brasileiro”, que teria poderes espectats, dados pelo éleiiorado para “julgar a Constituigo”. % Esta expressto se refere’ao projeto de Constituigo publicado com o decreto, em 22.6.1890.%* A Asser bléia eleita era, entio, prédiga de nomes: Assembléia Constituiite, na retGrica triunfante e apresssada dos primieiros dias, Congreso Nacio- nal, segundo o prudente Rui Barbosa e Congreso Constituinte, nos termos do regulamento Alvim. 62 ", a despeito | 1890, se estabelece uma situacdo mais tensa € confusa do | proceso eleitoral, isto niio | implicou em influéncia decisiva sobre quest6es relativas ao funciona ©, por extensio, de seu 1 Felago a0, Poder Executive. | , emanado de ‘A esta confusio nominal actescentou-se © conflito de_soberania tom o Poder Executivo. Varios constituintes chegaram a propor 0 exami de todas af decisdes, até ento tomadas pelo governo, para aprovagdo ot veto. * Tal como nos idos de 1823, se estabeleceu 0 conflito entre fontes distintas de soberania. Nos dois momentos, um corpo de repr ies da ago 6 Obrigado a interagir com um outro poder cujas bases de legitimidade ou sio por demais abstratas ou desagradavelmente concretas. Apesar da proliferacio dilatada de die- chele, a prudéicia acabou por se est ibléia: os poderes de Deodoro ficariam Timites do sonho jé estavam dados. Ou melhor, havia quem quisesse reduzit a taxaConities a0 minimo, Nesse sentido, foram os cuidados do préprio governo que, em 3, 12.1889, nomeou uma comis- sfo_somposta por 5 juristas para elaborar um projeto de Constitul Sintoma de conliiacla dos novos mandaiéios, a comiseio de 5 mem bros elaborou 3 projetos, corrigidas postetiormente por Rui Barbosa, que como se sabe foi Ministro da Fazenda. © esse o projeto que © governo apresenta & Assembléi , que em seguida forma uma comis- so com 21 constituintes, 1 representante por estado, para aprecié-lo. do de Forgas dentro da Assembléia, sua fragmentagio e-a presenga de um padrio_aleatério de clivagens, tudo leva a erer queen a moldura inicial dada pelo projeto oficial, os trabalhos, na melhor das hipéteses, seriam extremamente lentos. No entanto, em cerca de trés meses, o Pais tinha Constituicao, sem ter partidos, sem saber quem eram seus representantes ¢ com. sérias dividas a respeito da teal existéncia de governo. Tentando captar alguma ordem no processo de elaboragdo cons- titucfonal pode-se dizer que o tema da organizagio federalista ocupou ‘0 lugar central nos debates. A partir dele derivaram temas correlatos, tais como: ‘ago de rendas entre Unido ¢ Estados, organi- zagio do Direito ¢ dah st fu ‘efpios, A presenca de partidérios da centralizacéo ¢ de um regime ditatorial foi rarefeita, a despeito de numerosa bancada militar (1/4 da assembléia) © de alguns positivisias porta-voues do” Apostol ‘que entre outres questdes se destacaram por propor a al diplomas e a proibigio do direito de voto ionérios publicos, civis e mililares. Tsto ei uma “aisenbleia gados do governo, bacharéis e militares. Correndo 0 risco de emprestar grandiosidade excessiva ao que se passou, pode-se afirmar que o embate principal na Constituinte colocou frente a frente duas correntes doutrinérias: o hiperfederalismo € 0 federalismo domesticada. A preocupacao do projeto elaborado por Rui Barbosa foi a de enquadrar com algum realismo a demanda federalista. Como notou Agenor de Roure, o projeto visava a “apertar talecer os lagos de unio, em vex de relaxé-los raquecé-los, representantes de uma nagao Gnica se reuniam para? conceder autonomia as suas partes componentes”.% Partidério da descentralizacio administrativa, desde os tempos da monarquia, Rui Barbosa passa agora a identificar na “superexcitaglo mérbida” © no “apetite desvairado e doentio” dos ultrafederalistas, a porta de en- | trada do Brasil na barbdrie caudilhesea composta de uma hobbesiana competi¢go de potentados locais. Sua proposta que, superficialmente pode ser tachada de macaqueamento de instituigdes alienfgenas, pro- curou enfrentar o principal dilema produzido pela aventura republi- : idade politica sem o apelo a tradicao | instituefonal brasileira? Como fazer tabula rasa do passado, sem que 0 ritmo da inven¢do politica exceda os ritmos da sociedade? A posigao de Rui, e talvez do Governo Provisério, ficou a meio caminho entre © delirante construtivismo dos positivistas ¢ 0 espontanelemo dos hiperfederalistas. ‘As demandas hiperfederalistas apareceram de modo fragmentado, no sendo sistematizadas em um projeto constitucional homogéneo, Eis algumas de suas propostas: proibi¢do da existéncia de um exército nacional permanente, direito dos estados a possuirem martinha de guerra, plurslidade do Direito e da Magistratura, ampla liberdade de emissio por parte dos Estados, entre outras.*" Propostas que aparen- temente derivaram da maxima: “os Estados eram a realidade, a Unio, a fiagdo”. ° © contraponto foi dado pelo projeto oficial, 20 defender, entre outros pontos, a propriedade da Unigo-sobre terras devolutas, sua preponderincia em casos de competéncia cumulativa, seu controle . | sobre a maior parte das fontes de receita e seu direito de mobilizar a forga paiblica dos Estados em casos previstos. Todos esses pontos foram derrotados. Em pelo menos uma questio o projeto governamental foi mais ortodoxamente federalista do que os ultras, Trata-se de organizacao dos Municipios. * Segundo Rui Barbosa, a autonomia federativa deve- ria infiltrar-se plenamente no corpo social a ponto de atingir os mut cfpios. No comentério de Roure, “para garantir a autonomia muni pal, Rui Barbosa, fez restrigdes & liberdade de ago dos Estados, como para garantir a autonomia dos estados, havia posto freio A agéo da Unio”. # Nos arts. 67 € 68 do projeto, a autonomia dos Munic(pios fica garantida, “em tudo quanto respeita ao seu peculiar interesse”. #1 Exigese a eletividade da administragdo local, concedendo plenos direi- tos politicos aos estrangeiros residents, ‘A maioria da Constituinte percebe esses artigos como, dialetica- mente, restritivos da autonomia dos Estados. A emenda vitoriosa, transformada em preceito constitucional, acabou por dar plena liber- dade aos estados “para se organizarem como melhor julgassem conve- niente aos seus peculiares interesses”. * Na Constituicao promulgeda, o tit, IIT é 0 mais curto, apenas um artigo sem pardgrafos, caputs ou incisos. Trata do Municipio de modo extremamente econdmico, de modo que citélo se toma vidvel: Os Estados orgonizar-se-fo de forma que fique assegurada a autonomia dos Municipios, em, tudo quanto respeite a0 seu peculiar interesse. # Como notou Faoro, a Constituinte'entregou os Municfpios & domi- nagéo dos Estados, pois pela concisdo ¢ vaguidade do art. 68 ficava aberta a possibilidade de nomeagdo de intendentes, por parte dos governadores. Ser4 exagero atribuir a este item da Constituigso 0 posterior desempenbo do sistema oligérquico que, embora federalista, apoiou-se em grande parte sobre o controle politico ¢ eleitoral dos governadores sobre poderes locais. ## Mas ndo resta diivida de que os constituintes de 1891 nfo legaram ao quadro institucional brasileiro 4 possibilidade de um desempenko altemnativo do sisteme politico, © projeto oficial © o texto final da Constituiggo apresentaram também pontos em comum, que afinal representaram inovagSes na his ‘6ria institucional brasileira. Este € o caso da adogéo do presiden mo, que fortalecia em termos politicos o Poder Executivo, fazendoo emanar da vontade geral, a0 contrério da tradigo do Império que o definiu como criagio do Poder Moderador, praticamente incriado. Outra novidade relevante foi a indissolubilidade do Poder Legislativo que, a partir dé 1891, passou a contar com um amplo leque de prerro- Sativas, incluindo, entre outras, o controle total sobre o orcamento federal, a possibilidade de criar bancus deemisséo, o direito de 65 _federal. * pendéncias entre Executivo e Legislativo, ficou, com a carta de 1891, 4 legislar sobre a organizago das Forgas Armadas, a oriagdo de émpre.| 08 piblicos federais e, 0 que & crucial, o direito exclusivo de verificar'| plicana, consolidada a partir do Governo de Campos Sales, depended em grande parte de uma tradugdo mais tangivel do que estabeleceu ‘2 Constituigo. No mais, como Hobbes, procurou operar nos silén- dios dale. e ‘So esses os principais ingredientes da Repiblica constitucional: opsio federalista, com presidencialismo; atribuigdes dilatadas do Legis- Iativo, imprecisio nas relagdes politicas entre Unio e estados; maior concentragio de tributos nos estados ¢ asfixia politica dos municfpios._ ‘As Forgas Armadas foram declaradas obedientes, “dentro dos limites da lei”, dotadas, portanto, da prerrogativa de interpretar e decidir e reconhecer os poderes de seus membros. “6 Esta tltima atribui exclusiva implicava 0 completo controle do Poder Legislativo sobre fa sua renovagio. Segundo depoimentos de cronistas das duas casas | legislativas, # os dois principais momentos do Congresso eram os da\| abertura dos triénios, na Camara, com o estabelecimento dos meca.| nismos de vetificagio de poderes e as votagdes anuais do orgamento|| ‘As novidades maiores so, pois, o fortalecimento simultineo dos | poderes Legislativo e Executivo, que terdo fontes independentes de | legitimidade, O que pelo marco institucional do Império foi regulado. See - iéncia. a : le i pole havi ‘ “ie animig|| (© que mudou no Brasil constitucional? ©) Generalissimo Deodoro ‘modo hierquico, pois havia un poder superior expaz de divimie |, [O-gue tudou-no Brash const ee visita de enorme contingente militer. Fora isso, a ano xepublicano foi acrescida. de. um_novo.tipo de oi Poder Executivoagora dotado de limites legais, embora des das atribuigG&e fniciais, e um Poder Legislativo quase unanimemente de oposig&o. Na verdade, agravowrse 0 quadro de anar- iia. Ent jaueiz6 de 1891" todos os ministros do governo Deodoro pediram demissio, entre eles alguns que também eram constituintes, ‘A partir daf, as relagGes entre o Executivo e 0 Legislativo foram de total excludéncia, no amenisadas sequer pela eleigo congressual de Deodoto da Fonseca, a 24.2.1891. © novo ministétio, organizado pelo Bardo de Laicena, velho monarquista da provincia de Pernam- buco e cuja'tinica credencial parece ter sido a de ser amigo do Presi- dente, compunha-se, segundo quase totalidade da crénica, de nulidades. ‘A alteragio no governo procedeu-se nos moldes presidencialistas, sem que 0 Legislativo opinasse de modo oficial com relagdo 2 nova composigfio do ministério. O que causou grave crise politica foi a Iniciativa do “gabinete Lucena” de intervir na organizago legal dos estados. B 0 que conta Maria do Carmo Campelo de Souza: Sob os conselhos do Bardo de Lucena... iniciaram-se as re- viravoltas das politicas estaduais. Os componentes do grupo oposicionista, por ocasido da eleicdo constitucional de Deo- doro, foram afastados da cépula politica em seus estados ou ‘entio mantidos na mesma situagio de ostracismo. aberto 20 acaso, As relagGes entre Executivo e Legislativo, no desem: penho da ordem republicana, tero sua estabilidade derivada nia da Constituigéo, mas de um pacto nfo escrito. A énfase dos analist sobre a opgio presidencialista, assumida em 1891, por vezes oblit © papel concedido ao Poder Legislative: suas 35 atribuigdes pratt | camente esgotam as possibilidades de intervengao de um poder titucional sobre a totalidade do arranjo institucional. Constitucionalistas como Agenor de Roure, Carlos Maximiliano’ ¢ Felisberto Freire, ” concordam entre si 20 apontar um dos aspectos | mais vagos do texto constitucional, ¢ cuja imprecisio 6 proporciona & sua importincia, Tratase do art. 6.2, que dispunha sobre a inter ‘vengdo federal nos estados. Por ele a intervengio s6 poderia ocorrer | caso solicitada pelos governos estaduais, para garantir a “ordem ¢ @ | estabilidade”. Outros casos passiveis de intervengao ou sio vagos ou improvéveis: repelir invastes, manter a “forma republicana federativa’” garantir o cumprimento de sentengas federais. O artigo, “obra de. imprevidéncia e de insinceridade, vago, abstrato, quase lundtico”, segundo Agenor de Roure, era virtualmente inaplicdvel enquanto néo | fosse regulamentado. Durante o governo de Prudente de Moraes este foi o principal problema nas relagdes entre Executivo © Legislativo, ‘A Constituigdo republicana de 1891 certamente foi incapaz de, ou apenas nao quis, definir com preciso um pacto politico suficients ‘para instituir 0$ novos limites da comunidade politica © suas relagGet internas. Mas, esse jufzo negativo, embora nao incorreto, ¢ injusto. ‘As opgdes assumidas em 1891 foram fundamentais para configurat os impasses que a Republica teria que processar. A estabilidade rept Na.medida em que a composigdo do Congresso era a mesma da Assembléia Constituinte, a maioria passou a ser composta por depu- 66 67 tados e senadores & margem-do.poder em seus Estados. O cenétig, | apresentava, portanto, completa dissociacdo efitre bancadas estaduais.| ¢ estrutura de poder nos Estados, o que de acordo com as regras VF | gentes configurava uma dramética situagéo para o Legislative. No- | regime adotado, as eleigdes para o Congresso dependiam da estrutura | de poder nos Estados, sendo extremamente improvavel a vitéria de® candidatos de oposigao. 7 ‘Com minotia no Congresso, caso-tinico na histéria republicana, 0: Governo Deodoro cai, em novermbro de 1891, apés tentative de im, | plantar uma ditadura, com a distoluséo do Legislative. Alguns ana > fistas tentaram atribuir ao Presidente algum designio racional: com: o fechamento do Congreso, Decdoro inicfaria ampla reforma da Cons: tituigdo, incluindo a unidade da Magistratura, a redugdo pela metade da Camara com representagio idéntica por estado. A atitude do gene: raltssimo diante do parlamento acabou por eproximar a maiores 4 mais disciplinadas bancadas, notadamente as de Minas Gerais ¢; Sao Paulo. . Com a queda de Deodoro, a Reptiblica conservou intactos os seus impasees, mas adquitiu seu primelro enigma: Floriano Peixoto. Su.) pondo que o perfil psicol6gico dos atores é importante componente das, crises, vale incorporar nesta reflexio os depoimentos e impressies de, Deodoro e de J. M. Bello, sobre Florieno. : Pera José Maria Bello, Floriano “reproduzia, no etavismo das; suas origens étnicas, 0 caudilho catacteristico da América espanhola, fo cauditho talvez da mais pura subespécie, taciturno, reservado, des, ‘denhoso das pompas exteriores, amando o poder como uma forma de; projecso da propria personalidade, ndo evitando antewvioléncias que. julgasse necessétias, indo, possivelmente, até a crueldade, mas, 20.) ‘cabo, cuidadoso de certos formalismos legais © burocraticos”.° | Diante das crises, sett potencial enigmético parecia dilatarse. Por; ‘ocasio da decadéncia final do Governo Deodoro, 0 Bardo de Lucena, sugere ao Presidente buscar apoio em seu vice Floriano Peixoto. A: recusa de Deodoro foi manifestada nos seguintes termos: vats Nao vé; voc# no conhece Floriano; no direi que seja um covatde porque seria fazerthe uma injustiga; mas ele 6 ho- mem dotado de uma natureza toda passiva, e se tem a coragem * coletiva... nao tem porém a individual, e fique certo de que, se ele se compenetrar da necessidade que temos do seu apoio, se atirard abertamente nos bragos da oposigao. .. t A investidura de Floriano Peixoto como Presidente da Repiblica aparece pata as facgdes civis mais consistentes como solugio tempo- réria a0 conflito entre Deodoro e o Congreso. No entanto, a solugo acabou por introduzir mais incerteza no jogo politico. Imediatamente apés a sua jsse, todos os governos estaduais foram depostos, com a excegio do Pard. Os substitutos, por sua vez, dissolveram as assem- biéias € 0s tribunais judiciérios. Essa alteragio nao premiou automa- ticamente as facgdes que se opuseram a Deodoro. O processo de inter vengéo foi andrquico, a partir de uma série de movimentos militares, alguns sem conexio com facsées politicas locais. : Como notou Rui Barbosa havia diferenga entre o padrao politico de Deodoro ¢o de Foriano: o primero foi una ditadura,apolada na “fraqueza dos governos locais” para dissolver o Congresso, o segundo, também uma ditadura, apotada no Congresso para dissolver os gover- nos locais. Apesar do apoio das bancadas de_Séo. Paulo,.Minas Gerais ¢ o Granidé do Sul, as relagdes do governo com a nacao cram de extrema anarquia. A durabilidade do governo Floriano, paradoxal- mente, derivou do fato de que foi obrigado a enfrentar’ as maiores ameagas 2 viabilidade do regime, até entio: a Revolugio Federalista no Rio Grande do Sul, e a Revolta da Armada, ambas em 1893. A ) cca meifore do inimigo extemo,.na caso apresentada como amea- /\J2h.4 monarguista, permitiu-uma unio, minima entre-as-facges.do_exér. (= 8.0 spe ein Ys ppago pelo “consolidador”, como se sabe, foi a relutante aceitapio. de 24 sleigdes presidenciais para 1894, ae ___O legado dos primeiros anos entrépicos apresenta alto grau de incerteza, A indefinigéo dos procedimentos de governo somaramse @ “anarquia estadual” e um padro tenso de relagdes entre 0 Governo © Congreso. Ao contrério do Modelo Imperial, a intervengio do Executivo nos estados € seu controle sobre 0 processo eleitoral nfo tiveram como resultado a formagio de atores coletivos dotados de alguma identidade politica mais permanente. O padrdo de clivagem decorrente foi errético, opondo facgdes segundo miiltiplos ctitérios: militares x civis; militares jacobinos x legelistas; exército x marinha; federalistas x hiperfederalistas. Isso além dos conflitos que opunham— facgdes que nem sequer tiveram tempo de possuir um nome. Na guerra de todos contra todos, os Leviathans militares fracassaram, ¢ a partir de 1894 o Pais passa a viver sob dominio formal das elites civis. © Iegado dos governos militares deixou em aberto 0 espectro de | questdes suscitadas quando da queda do Império: quem faz. parte da dos paulistas em torno. do.goyerno. O prego” *\ «> comunidade politica, como serdo as relagdes entre polis ¢ demos, entre © poder central ¢ 03 estados © como se organizardo os partidos e se definirdo as identidades polttices. NOTAS 1, Para uma histéria do periodo v. Edgar Cerone, A Repitblica Velha, ifel, 1974; José Maria Bello, Histéria da Repiblica, 1889-1902, » Civilizago Brasileira; a obra coletiva A Década Republicana, Brasflia, UnB, 1986 © Maria do Carmo Campelo de Souza, “O Processo Poli ‘ico Partidério na primeira Repdblica”, in Boris Fausto (org) Brasil em Perspectiva, Sio Paulo, Difel, 1974. José’ Maria dos Santos, A Politica Geral do Brasil, So Paulo, J. Magalhies, 1950; Sert6rio de Castro, A Repuiblica que a Revolugdo Destruiu, Rio, Freitas Bastos, 1952; Evaristo de Moraes, Da Monarquia para a Repiblied, Rio, Athena ed,, 9/d, e R. Magalhies Jr, Deodoro — a Espada contra 0 Império, Sao Paulo, Cia. Editora Nacional, 1957. 2, V, Jou Mutilo de Carvalho, A Construso da Ordem, Rio de anciro, ‘Campus, 1580. 3. V, José Maria Bello, ob. cit, p. 8. 4. A Sntogra do decreto pode ser encontrada em Edgar Carone, A Pri= meira Repiiblica, St Paulo, Difel, 1974. 5. V. Edgar Carone, 1974; José Maria Bello, ob. cit; Paulo Mercadante, Civis ¢ Militares: a Etica ¢ 0 Compromisso, Rio de Janeiro, Zaher, 1978, © Raymundo Faore, Os Donos do Poder, Porto Alegre, ed. Globo, 1975. 6. V. Francisco Iglesias, Politica Econémica do Governo Provincial (2835.1889), Rio de Janeiro, INL, 1958, e Sérgio Buarque de Hollanda, Histéria Geral da Clyilizagao Brasileira, t. Tl, v. 7, Do Império a Repiblica, Séo Paulo, Difel, 1972. 7. Sérgio Buarque de Hollanda, ob. cit, p. 9. 8. V. Simon Schwartzman, Sto Paulo € 9 Estado Nacional, S80 Paulo, Difel, 1975, pp. 106-109. 9. V. José Maria Bello, ob. cit, p. 91. 10. V. Dunshee de Abranches, Atas e Atas do Governo Provisério, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1907. 11. V. Dunshee de Abranches, ob. cit,, Ata do dis 2.1.1890. 12. Idem. V. especialmente a Introdusio. 43. V, Maria do Carmo Campelo de Souza, ob. cit, p. 175. 14. Sobre o comportamento dos militares no periodo, ver Edmundo ‘Campos, Em Busea de Identidade: o Exército ¢ a Politica na Sociedade Brasi- leira, Rio de Janeiro, Forense, 1976; José Murilo de Carvalho, “Forgas armadas na primeira RepGblica: 0 poder desestabilizador”, in Boris Fausto (org). HGCB, t. IIL, v. 2 1977; June Hannee, Relagdes entre Civis e Militares no Brasil, 1889-1898, Sto Paulo, Pioneira, 1975. v. tb. Eduardo Prado, Fatos da Dita- dura Militar no Brasil, Lisboa, 1890, e José Maria dos Santos, A Politica Geral do Brasil, So Paulo, J. Magalhes, 1930. 45. Apud June Hanner, ob. cit, p. 50. 70 i d 16. As citagies sobre 0 decreto elaborado por Benjamin Constant encon tramse em Eduardo Prado, ob. ci 17. Apud Jane Harner, ob. cit 18. Sobre 0 “padrdo desestabilizador” que caracterizou © comportamento do Bxfrelg no pevodo,v. Jud Marilo do Caralbo, 197. autor desta pega literéria ¢ 0 General Jacques Ourique, apud june Hannees ob cep. 86 20. Paulo Mercadante, ob. ft, p. 121. 21. Para uma avaliagso do Regulamento Alvim, v. José Maria dos Santos, Bernardino de Campos e 0 Partido Republicano Paulista, Rio de Janeiro, Joos Olymio, 1860, pp, 185 © 186. 'V. Dunshee de Abranches, ob. cit, Ata do dia 14.1.1890. 5. idem. 24. José Maria dos Santos, 1960, pp. 185 ¢ 186. 25. Deereto Alvim, apud José Maria dos Santos, pp. 185 © 186. 26. V. Dunshee de Abranches, O Golpe de Estado: Atas e Atas do Governo Lucena, Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 1954, p. 38. 21, V. Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, Porto Alegre, ed. Globo, 1975, v. 25/624. 28, Para uma cobertura completa da dindmica da Constituinte de 1891, vy. Agenor de Roure, A Constituinte Republicana, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1918, 2 vols. 29. V, Edgar Carone, ob. cit, pp. 3035, 30. V. Agenor de Roure, ob. cit, pp. 5 e 6. 31, A integra do projeto de Ruy Barbosa pode ser encontrada em Milton Barcelos, Evolupdo Constitucional do Brasil, Rio de Janeiro, Imprensa Nacio- nal, 1933, pp. 299-522. 32. ‘Agenor de Roure, ob. cit, p. 10. + 33. José Maria Bello, ob. cit, p. 101. 34, Agenor de Roure, ob. cit, pp. 5-65, 35. A integra da emenda do Apostolado Positivista sobre as inelegibilt- dades, encontrase em Agenor de Roure, ob. cit. pp. 542 € 543. 36. V. Agenor de Roure, ob. eit, p. 51. eft, pp. 625 © 626. 40. V. Agenor de Roure, ob. cit, p. 51. 41. V. Milton Barcelos, ob. elt. pp. 513 ¢ 314. 42, V, Agenor de Roure, ob. cit, pp. 51 © 52, 43. V. Milton Barcelos, ob. cit. p. 337. 44. 0 controle das méquinas estaduais sobre os poderes locais é uma das caracteristicas mais fortes do “compromisso coronelista”, segundo a elés- sica andlise de Vitor Nunes Leal, em Coronelismo, Enxada e Voio, Sio Paulo, Aifa-Omege, 1975, 45. Idem, pp. 327 © 529. 46. V. 0 excelente livro de José Vieira, A Cadela Vetha: Memdria da Camara de Deputados, 1909, Brasilia, Senado’ Federal/FCRB, 1980. 1 | | | i 47. Roure, ob. cit; Carlos Maximiliano, Comentérios & Constinuigio Brasileira, Rio*de Janeiro, Jacintho Ribeiro dos Santos editor, 1918, e Felis- berto Freite, Histéria Constitucional da Republica dos Estados Unidos do Brasil, Brasia, ed. da UnB, 1983, 1+ ed., 184. 448. A presetigio constitucional de 1891, sobre o papel das Forgas Arma- das foi inovadora, A este respeito 0 Império foi mais interessante: 0 art. 147 rezava: “A Forga militar 6 essenciaimente obediente; jamais se poderé reunir sem que Ihe seja ordenado pela autoridade legftima”. V. “Constituigfo de 1824”, in Milton Bareelos, ob. cit, p. 264. 49. Maria do Carmo Campelo de Souza, ob. cit, p. 172. 50, José Maria Bello, ob. cit., p. 126. 51. Idem, p. 131. 52. Thidem, p. 154, 72 A colméia oligérquica (1894-1898) “©... every part was full of vice, yet the whole was a paradise...” “Fraud, luxury and pride must live, While we the benefits receive...” MANDEVILLE, The Grumbling Hive. ‘Avos cinco anos de idade, a Repdblica nfo havia ainda depu- rado o sentido de aventura que presidiu a sua fundagio. Se, por acaso, coube as inescrutdveis leis da Histéria o advento do novo regime, essas entidades imateriais escrevem de modo cifrado. Se elas impuseram co Brasil a Reptiblica, devem ter algum paren- tesco com a entropia, pois nada nos cinco anos iniciais do novo regime revela a existéncia de um proceso de criagao institucional portador de algum designio inequtvoco e ordenado, ‘Ao completar cinco anos, a Repiblica no apresentava nenhuma remota garantia a respeito de sua viabilidade future. Sous protago- nistas no possufam ainda os atributos criados pela crénica posterior. Consolidadores, pacificadores, histéricos e tantos outros rétulos soam como identidades duvidosamente apropriadas para atores que, de fato, se encontravam mergulhados em um momento politico voldtil. Seus problemas e suas apostas eram impotentes para eliminar a sensagio de fugacidade, Os governos de Deodoro da Fonseca ¢ de Floriano Peixoto, assolados pela instabilidade e pela auséncia de rotinas ins- titucionais,.caracterizaram-se por um absurdo padrdo de entropia auto- sustentada, A cada procedimento ou ago empreendida visando a dotar © sistema de poder de maior governabilidade, sobressafam novos con- flitos © maior anarquia. 3 Fechado o ciclo’militar, com 0 término do governo Flotiano Pei- xoto, a experiéncia republicana nfo havia gerado respostas as questées institucionais deixadas em aberto com a queda do Império. Perma. neciam sob a sombra da incerteza as trés varidveis cruciais para a so- brevivéncia do regime: os critérios de geracao de atores politicos cole- tivos; as relagées entre poder central e poderes regionais e os procedi- mentos de interagao entre Executivo e Legislativo, Pode-se ponderat que a incerteza com relagdo a esses pontos é recorrente nos chamados momentos de transigo, O singular neste caso € 0 fato de que ela nfo foi aplacada pelo ingresso da repdblica brasileira na ordem constitucio- nal. Ao contrdrio, a incerteza sobrevive A Carta de 1891 e, em certo sentido, é ampliada, pois a definigo de mecanismos constitucionais no implica obrigatoriamente a cas, que dependem menos de Dircito Constitucional do que de arran- jog informais. Ao instituir um sistema politico baseado no presiden- cialismo, na autonomia dos Estados e no alargamento das prerrogativas do Legislativo, a Constituigdo de 1891 certamente inovou, tendo em vista a tradigao imperial. Mas, a acomodagao entre esses aspectos, no sendo matéria constitucional, dependeu do desempenho dos-atores poli- ticos e de sua capacidade de gerar um pacto nfo escrito, A construcao deste pacto, otimizada no governo Campos Sales, por sua vez, tinha ‘como condigio necessétia a erradicacio da incerteza na resposta a0 que defini como as trés variveis cruciais, Antes de examinar a construgdo do pacto oligérquico, conduzida por Campos Sales em seu governo (1888-1902), este capitulo trataré do drama politico do governo Prudente de Moraes (1894-1898), Com ‘a progressiva retraggo dos militares, esse quatriénio apresenta uma nova feigdo da anarquia. Os protagonistas sfo em primeiro plano as elites civis, no cixo executivo-legislativo-poderes estaduais, Ainda que a anélise do periodo seja impotente para eliminar a ‘impressfo de espanto diante da posterior sobrevivéncia da Reptblica, é legitimo supor que durante 0 governo Prudente de Moraes emergiam 08 pro- blemas reais para a institucionalizago republicana, © que ameagava © novo regime nio era sebastianismo monarquista ou florianista, a firia plebéia da Rua do Ouvidor ou os “monarquistas” de Canudos, ‘mas sim a sua no institucionalizago e a nfio definigao das regras de constituigao da polis. A anarquia dos governos militares pode-se atri- buir, em parte, paternidade de fatores exdgenos: revoltas da armada, revolugaio federalista no Rio Grande do Sul e diversos motins que a 4 iéncia de férmulas politicas pactfi- . cr6nica nao batizou. No governo Prudente, conforme seré demons- trado, a anarquia foi predominantemente endégena. No ano de 1893, sitimo do governo de Floriano Peixoto, a Re- publica, sem identidade definida, enfrentou seus meiores desafios: segunda revolta da Armada e a revoluglo federalista no Rio Grande do Sul. © bloqueio do porto da capital, as ameagas de separatismo gaticho e o temor de revanche monarquista exponenciaram ao méximo a ingovernabilidade republicena e tornaram Floriano Peixoto um enig- ma mais agraddvel. Lideradas pela bancada congressual ¢ pelo governo paulistas, as principais forgas politicas estaduais, como as de Minas Gerais ¢ Bahia, passam a apolar o governo federal. © governo de Sio Paulo, chefiado por Bernardino de Campos, oferece ao mesmo tempo suporie politico no Congreso e ajuda militar, através da forga pdblica estadual, mobilizada contra os federalistas gatichos. Floriano era o mal menor, ¢ diante da sua fraqueza momentinea, os republicanos civis trocaram o apoio presente pela futura posse do governo. O ini- migo extermo pode produzir aquilo que a dindmica interna da Repé- blica foi incapaz de gerar: a harmonia entre Executivo e Legislativo, ‘A aproximacio entre 0 governo de Floriano Peixoto e as elites civis apresentou importante inovagio na curta histéria republican, Trata-se da organizagio em 1893 do primeiro partido politico, de caré- ter nacional, apés a dissolucéo dos partidos mondrquicos. Passados quatro anos de entropia republicana, os novos tempos pareciam enca- ‘tminhar de modo pratico uma das varidveis cruciais para a instituciona- lizagSo do regime: 4 definigfo dos critérios e dos procedimentos de geraco de atores politicos coletivos, fora das erraticas combinagdes parlamentares e conspirat6rias. Em julho de 1893, sob a lideranga de Francisco Glicério, republicano histérico paulista, fundou-se o Partido Republicano Federal, em retmio que contou com a presenga de 68 senadores ¢ deputados. Sua composigso era 2 mais eclética possivel, incluindo republicanos histéricos, ex-monarquistas, liberais modera- dos, conservadores ‘do velho estilo, federalistas, centralizadores, flo- tianistas exaltados, jacobinos intransigentes, positivistas, presidencia- listas, cat6licos ultramontanos, livres pensadores, parlamentaristas ¢, até mesino, simpatizantes da revolta da Armada.1 Na expresséo de Belisétio Tévora, o PRF era “uma catedral aberta a todos os credos”. lider do partido, Francisco Glicério, contribuia decisivamente para tal ecletismo.* Apesar de ser florianista ¢ centralizador, era um dos principais chefes locais do mais importante segmento oligérquico do Pats, o Partido Republicano Paulisia (PRP). Sob sua direclo, 0 15 Partido Republicano Federal (PRF) passou a controlar a totalidade das bancadas estaduais no congresso, 0 que Ihe valeu o titulo de “general das 21 brigadas”. O partido, aberto a “todos quantos quise- rem concorrer para a consolidagio das instituigdes.republi tinha como principal ponto programatico a sustentago ¢ a defesa da ‘Constituigo ¢ a luta pela “verdade do regime que ela criou”.* A va- riedade das adesdes dificilmente pode ser explicada pela “ideologia” do partido. Tratando-se dé um partido de apoio 20 governo, a adesio generalizada, como notou Alcindo Guanabara, foi motivada pelo “‘inte- resse da conservagio do poder e da influéncia nos Estados”. * Ou seja, do ponto-de-vista das bancadas a afiliagio ao partido aparece como recurso relevante para a consolidagdo de esquemas locais de poder, até entéo ameacados por politicas intervencionistas. Do ponto-dewista macropolitico 0 PRF visava a resolver duas questdes: criar um grupo parlamentar majoritério para sustentar 0 | ‘governo e, mais importante, preparar as eleicSes gerais de 1894, onde seriam escothidos o Presidente da Reptiblica, 1/3 do Senado ca | ‘Camara dos Deputados. Diante desses dois desafios o PRF foi extre- ‘mamente bem sucedido. O apoio parlamentar dado a Floriano foi total, porém conectado com o encaminhamento de sua sucesso, de modo ue as propaladas intengdes continuistas do Presidente nfo encontra- ram eco nem mesino entre fandticos florianistas. Nas eleigGes de 1894, 0 PRF conquistou a presidéncia, 0 tergo do Senado ¢ a totalidade da Camara. Prudente de Moraes foi eleito com cerca de 290,000 votos, em uma populagio total em torno de 15,000.00. Os indices de absten¢o foram dilatedos na propria capital, Para um eleitorado potencial de cerca de 110.000 pessoas, Votaram em 1894, 7.857 eleitores. * Mas isto néo configurava problema algum. Os principais problemas da Repiblica se resumiam na esfera ddas relagses da polis com 0, governo. A unanimidade na Cémara era sparente. Na nova legislatura, a se iniciar em maio de 1895, 0 PRF possufa pelo menos trés facgSes: os radicais, “fandticos de Floriano” e vencedotes das revoltas ocorridas no governo anterior; os “‘reaclonérios”, inimigos dos jacobinos floria- nistas ¢ os “moderados”. A identidade partidéria comum era, pois, incapaz de conferir a0 Legislativo maior previsibilidade. © governo Prudente ora aparece como continuador de Flotiano, atraindo a ira dos “‘reaciondrios”, ora como civilista, traindo, segundo os radicais jaco- binos, os ideais da Repsblica. Como seré visto adiante, o maior pro- 16 anas”, blema do novo governo serd lidar com o partido que o elegeu e, por extensio, com 0 proprio Legislativo. 7 (© Iegado de Floriano Peixoto foi prédigo em focos de oposi¢ao do novo governo. Exército, funcionalismo piblico e governadores serio seus profagonistas, Com a revolta da Armada, foi grande, no Exéreito, o néimero de promogées que contemplaram oficiais florianistas radi- cais, que ascendem & ciipula militar. No servigo piiblico, por,pressio de partidatios civis, Floriano Peixoto estendeu consideravelmente 0 empreguismo. Nos estados, parte considerdvel dos cargos executivos encontravam-se em méos de florianistas. ‘As primeiras agdes do novo govetno incidem sobre esta heranga. Varios jacobinos so desempregados, com a demisséo em massa de funcionétios piblicos contratados pelo antigo regime. Os critétios de racionalidade administrativa so colocados como principals, embora os cortes, seletivamente, incidam sobre florianistas. Até mesmo Raul Pompéia perdeu seu emprego na Biblioteca Nacional. Com relaco aos militares a politica’do governo civil visava o seu afastamento da cena politica.* Os procedimentos adotados com- binaram cooptagao de oficiais graduados com punigSo a focos de rebeldia, além da intengio de reduzir os efetivos militares. Duas sema- nas apés 2 posse, o governo yeta o aumento dos quadros militares, dissolve 0s “batalhSes patristicos” compostos por radicais florianistas, exonera oficiais que ocupavam cargos civis ¢ transfere vitios oficiais suspeitos para guarnigGes distantes, Os efeitos dessas medidas sto ‘imediatos ¢ duradouros. Durante praticamente todo 0 tempo em que duro, o governo Prudente foi combatido nas ruas do centro da capital. ‘A Rua do Ouvidor e o Largo de Sao Francisco, territérios livres dos jacobinos, foram um constante foco de protesto, quase nunca pactfico. * Em tais protestos manifestava-se 0 jacobinismo carioca, de difusa base popular contando com o apoio de oficiais de baixa patente ¢ de ‘um espantoso elenco de “dradores”. A proliferagéo de tribunos da plebe era sintoma de uma forma de exercicio da politica avessa 20s formalistmos liberais e disposta a ago direta. O repert6rio de diatribes ¢ demandas era vasto: odiava-se os portugueses, os politicos em geral ¢ 05 monarquistas em particular, protestava-se contra a alta dos alu- gusis e do custo dos alimentos e, sobretudo, cultuava-se Floriano, Com sua morte, em 29.6.1895, Floriano transforma-se no simbolo da pureza republicana e em uma espécie de medida padréo para avaliar os rumos da Repdblica. Diante da anistia concedida por Pru- 7 dente de Moraes aos federalistas gatichos, a reago dos jacobinos flo. rianistas pode ser aferida pelo comentério do deputado Coelho Lisboa: Nao se pode comparar o soldado que se fez 0 salvador da: Repdblica; o sol que ilumina 0 corago da mocidade brasi: leira e inspira a0 PRF a politica generosa, conciliadora, may sobretudo republicana, que hé de firmar a Repdblica no’ Brasil, com o pirilampo que vagueia nos corredores do palécig do Catete!. Para executar a politica de retragio militar, Prudente de Moraes coloca no Ministério da Guerra um paulista antiflorianista, o marecha Bittencourt. Sob seu comando, seguindo orientagio do governo, pro cedew-se a tentativa de desmonte do aparato militar, através da. pro- gressiva redugfo de efetivos de terra, A cada ano, propunha-se 2! redugdo dos quadros: em 1897, planejou-se reduzir o niimero de praca de 28.000 para 22.000. !* Por outro Indo, como demonstrou Edmundo Campos, #0 governo promoveu uma politica de cooptagio, visando oficiais graduados, premiandoos com promogées na medida em que se abstinham da politica ¢ da obsessio conspiratéria. O peso-do Mic nistério da Guerra na despesa global do governo atingiu seus niveis mais baixos, desde a proclamacGo, A leitura do quadro reproduzido a seguir permite identificar a politica de contengio militar de Prudente, petfeito contraponto da politica militar do marechal Floriano, As tens6es entre o governo civil’e os militares, sobretudo oficiais de baixa patente ¢ cadetes das escolas militares, foram agravadas com | a restaurago da liberdade de imprensa. Fechada, semiclandestina e ameagada de empastelamento, durante o governo Floriano, a imprensa oposicionista passa a divulgar atrocidades cometidas por oficiais lega- Tistas durante as revolugdes de 1895, A dentincia mais notétia atinge | a0 coronel Moreira César, enviado por Floriano para pacificar Santa ; Catarina, durante a Revolugio Federaliste. Esse florianista fanstico, positivista extremado, patrocinou verdadeiro banho de sangue na cidade | de Desterro, fuzilando sumariamente participantes do movimento liga- | dos as elites locais. A humilhaséo maior viria a seguir, com o novo | batismo da cidade: Florianépolis, No Congresso, 0 governo sofre oposigao do niicleo florianista do PRF. As relag6es entre Executivo e Legislativo, nos trés primeiros anos do mandato de Prudente foram mediadss pela lideranga de Francisco Glicério, Na verdade, elas comportavam o conflito entre duas ten- 78 ' 4 DESPESAS DO MINISTERIO DA GUERRA (@ DA DESPESA TOTAL DO GOVERNO} 18 28 8 10 ae RES cimsriomunn — scosono omy emupae (Apud, Edmundo Campos, ob. cit, p. 52) : Ministério da Agricultura, Indstria © Comércio, Diretoria do servi de Exulin, Ronape da Uo doa Estados T6221915 (Ro de Janeiro: Tipografia Nacional, 1914). déncia: : por um lado 0 Congresso, controlado pelo PRF ¢ pela sgenaidade dos florianistas, tentava, attavés de Glicério con- frolar o Executivo, limitando suas ages, por outro, o Presidente Duscava escapat do controle do Legislativo, tentando obter maior poder sobre a politica e a administracao dos estados. a ‘Exemplo das limitagSes que o Congreso impunha a0 Exectivo pode ser enconirado na paralsia do governo com relagéo a decides de politica financeia. A heranga dos governos militares era de desor dem financeira © de deficits crescents, agravados pela queda dos prosos intenacionais do café. As altemativas de saneamento imagin das pelos minstos da fezenda, Rodrigues Alves e Bemardino pos, inclufam decisdes substantivas que demandavam amplo suporte 79 politico-parlamentar, tais como: cobranga em ouro de parte dos direitos alfandegérios, imposto de renda, ampliago dos impostos de consumo , principalmente, a alienagGo de alguns prdprios nacionais, a comegar pela Estrada de Ferro Central do Brasil. ‘ Essas alternatiyas visavam ; 4 superar a verdadeira prisio tributéria da Unido. Restrita & arreca- ago dos impostos sobre as importagGes, ela se via diante do seguinte dilema: deixando as importagSes livres, aumentava sua arrecadagio, mas fazia crescer as necessidades de ouro; restringindo-as, para evitar evasio de divisas, diminufa suas préprias rendas. No Congreso, 0° ‘governo niio encontrou base estével para a implementacao dessas ou” de quaisquer outras politicas alternativas, Diante disso, prevalesce- » ram as solugdes de praxe: 0 governo realizou dois empréstimos — ‘um, interno, de 60.000 contos e outro, externo, de £ 1.000.000. A aso de Prudente com relacio aos estados visou a regulamen- tagéo do art. 6° da Constitui¢ao, que dispunha sobre intervencio federal. O objetivo parece ter sido duplo: assegurar, pela ameaga de | intervengao, a lealdade de governos estaduais nostalgicos e, por exten- so, de suas bancadas no Congreso. Em seu livro sobre o governo: Campos Sales, Alcindo Guanabara, florianista e inimigo de Prudente § de Moraes, caracteriza o intervencionismo do primeiro presidente civil .' como a principal marca de seu mandato, Exageros & parte, a acusago daquele autor encontra suporte nas primeiras mensagens de abertura do Congreso feitas pelo Presidente. * Ambas, em 1895 e 1896, insis- tem na necessidade de regulamentar o diteito de intervengao. Na pri meira, o Presidente diz 2os congressistas que é “urgente que regula- menteis os preceitos do art. 62° no s6 quanto a interpretagéo clara do texto constitucional como estabelecendo 0 meio pratico da inter- | ‘vengio federal nos casos em que ela é permitida”. No ano seguinte, a solicitagio € reforgada, acrescida de consideragées doutrinérias: a regu- - Jamentago “contribuird eficazmente para o funcionamento seguro do regime federativo”. A nova doutrina foi exposta, dialeticamente, pelo deputado Paulino de Souza Tr,; “As federagdes nao podem existir ‘sem a intervengao”. Por um aspecto, a solicitagdo de Prudente de Moraes era absurda, pols para o Congresso a possibilidade de dotar © Executivo de “meios préprios” para a intervengio configurava-se como atitude suicida, ado 0 controle que os governos locais exerciam sobre o processo elei- toral. No entanto ela pode ser vista como razoével, pois buscava resol- ver um dos problemas cruciais para a institucionalizagdo do novo regime; 0 equilfbrio politico entre o poder central ¢ os poderes regio- nais. O procedimento adotado foi ineficaz, pois atribuiu A preciséo de tum dispositive constitucional o poder de criar demiurgicamente a su- ordinacdo dos poderes estaduais a0 Presidente. O equilibrio seré conseguido, como sera visto, no governo Campos Sales, sem alteragbes constitucionais e, mesmo, sem debates parlamentares. Diante do caos do govetno Prudente, havia os “republicanos alheios”, nas palavras de Alcindo Guanabara. Tal era 0 caso do Presi- dente do Estado de Sao Paulo, Campos Sales, que permaneceu dis- tante tanto da organizagdo do PRF quanto da polarizagao entre governo oposigao. A neutralidade de Campos Sales era singular. Para ele, 0 governo Prudente era um mal menor diante de qualquer coisa que inspirasse desordem. Representativa de sua posigao, foi esta carta, dirigida @ Bernardino de Campos, em agosto de 1896: ‘A nossa politica carece de firmeza e orientagio clara, e isso vai-nos enfraquecendo e perturbando a nossa marcha. Os elementos agitadores, que se aninham em nosso seio, com- prometem-nos, pois que, 2 sombra de nossa condescendénci ‘Yao acarretando a nossa responsabilidade na sua ago, fran- camente e calculadamente anarquisadora. Isto nos enfraque- ce, porque nos desacredita, apresentando-nos como incapazes para o governo, Os iltimos sucessos, se nfo produziram desastres, deverdo servirnos de adverténcia. Esté claro que ndo podemos dirigir o elemento agitador ¢ nem devemos pre- sumir que ele chegue a subordinarse a nossa dire. Ao contrario, os exaltados que nos vio levando & reboque nas ‘suas arruagas, meetings de indignagdo etc. Eles arranjam as crises e nés aguentamos as responsabilidades delas. Penso que | temos a escolher: ou os declaramos adversérios e Ihes damos ‘combate decisivo, ou renunciamos a aspiraggo de formar um partido conservador, ordelro, governamental ¢ orgtinico. Fi- ‘cando nisso que af est, que é a anarquia, no meio da qual os rnossos homens se vo perdendo como incapazes, € a descon-_ fianga que se forma em tomo de nés. Este 0 elemento perverso em todas as democracias. (...) Basta de Cémaras agitadoras. Precisamos governar bem. (...) Todos conhe- cem a minha indole conservadora, que. uns por erro de apre- ciago, outros por espfrito de hostilidade, qualificam injus- tamente de autoritétio. *7 - 81 Os dois primeiros anos de governo apresentaram, pois, grande paralisia do Executivo, acuado pelos ecos da Rua do Ouvidor; pelo | pprotesto militar ¢ pela anarquia congressual. No Legislativo, a aguer- rida minoria florianista, cortejada pelo lider Glicério, ofuscava a “ex- pectativa medrosa dos partidérios do Presidente”. As bases de apoio do governo eram sobtetudo as Bancadas de Séo Paulo, Bahia, Maranhio ¢ Pernambuco. Os mineires nfo tomavam partido. A opo- sigdo florianista ultrapassava 0 Congresso © as ruas, encontrando no vice-presidente Manuel Vitorino importante aliado. *° A contribui¢éo deste politico ao caos do governo Prudente foi dilatada. Em novembro- de 1896 o Presidente adoece e 6 obrigado a licenciarse. © vice-presi- dente néo se limitou a cumprir formalidades: muda o ministério e busca aproximago com os florianistas. Contando com a morte do titular, ou com a coneretizaggo de um golpe, Manuel Vitorino ponti- 4 ficou: ““torna-se indispensével um governo alicergado em bases dura- 4 douras — um governo realmente capaz de éxecutar um programa”. * interregno se estende até marco de 1897, e coincide com o periodo de maior desgaste do Presidente. Segundo José Maria Bello, Prudente teria experimentado “a maior impopularidade de rua que, talvez, jé tivesse conhecido qualquer homem de governo no Brasil”. Assim como 0 acaso, a mé sorte desempenha importante papel na dinémica dos conflitos. A data escolhida pelo Presidente para reas- { sumir seu mandato e dispensar a heterodoxa lealdade de seu vice foi, justamente o dia 7.3.1897, no qual chegaram a capital noticias do massacre da tetceira expedi¢ao militar enviada para destruir o arraial de Canudos, no sertio baiano. # Os jaguncos vingaram os catarinenses: entre os massacrados estava 0 comandante da expedigo, coronel Mo- reira César. Antonio Conselheito e Moreira César, afastados por séculos de evolugao positiva da humanidade, foram protagonistas de um drama de proporgées absurdas, com resultado invertido, segundo a’ I6gica positivista. Conselheiro, monarquista e mistico, encarnava o que havia de mais tipico no estado teolgico de evolugao da humsnidade. Mo- reira César, verdadeira versio tropical do sdbio positivo comteano, a desvendar leis sociais e a sonhar com uma ordem matematizada e sem conflitos, A uni-los, a mesma ética de convicgdo: a certeza de que eram portadores, cada um a seu modo, das necessidades do tempo. A uni-los, © mesmo destino: derrotados pot uma Repiblica de bacharéis, avessos a mateméticas e convicgtes. ** © massacre da terceira expediclio a Canudos causou, antes de tudo, perplexidade: como pode “ume forga irregular que se dizia 82 armada de carabinas indteis e que se imaginava composta de insigni- ficante mimero de fanéticos, vencer tropas regulares, armadas e muni- ciadas devidamente, matando trezentos ¢ tantos homens numa batalha em que, depois de petder, segundo 2 parte oficial, dois mil homens, ainda pode pér em fuga um grupo, pelo menos de outros trezentos soldados?”.# A tinica explicagao plaustvel era a de cumplicidade dos monarquistas. Nesse sentido advertia o jornal o Estado de Sao Paulo: Que o Presidente da Reptiblica nao se iluda sobre o sentido da agitacio latente em grande parte do territério brasileiro e apenas na Bahia, em armas. Trata-se da restaura¢do; conspi- rae, forma-se o exército imperialista. Nas ruas do Rio de Janeiro, 0 protesto jacobino foi extremo: “No Ltrgo de Sao Francisco de Paula formou-se logo um grande cortejo voriferado que partiu pelas ruas a pedir morte imediata para todos os inimigos da Repdblica”.* Por dois dias ocorreram os acon- tecimentos habituais, quando se tratava de protesto jacobino. Dois jomnais foram empastelados — a Gazeta da Tarde ¢ 0 Liberdade — seu proprietécio, o monarquista Gentil de Castro foi trucidado por um grupo de majores ¢ tenentes do Exército. .O clima predominante pode ser captado por esta passagem de Sertério de Castro: A rua do Ouvidor valia por um desvio das caatingas (...) © homem do sertio, encourado e bruto, tinha parceiros por- ventura mais perigosos. Tal era, com efeito,.a natureza da psicose que acusou naqueles dias sinistros e turvos de marco. a multidao que atacava jornais, destruia tipografies e redagdes e carregava os destrogos desses assaltos como troféus de uma -vitria legitimamente ganha, para amontodlos no Largo de So Francisco (...) Como se néo bastassem os danos mate- riais e 0 fogo purificador, na civilizagéo da capital tomava-se necessatio sangue. *5 © climax da tensio ocorre em maio de 1897, com a revolta dos cadetes da escola militar, vencida por Prudente, com 0 apoio do Mi- nistro da Guerra, Marechal Bittencourt. O Jevante, minimo, se consi- derada sua extensio objetiva, se converte em ponto de inflexio do rocesso politico. Apés a expulso de alunos rebeldes ¢ prisio de oficiais envolvidos, 0 governo articula bem sucedida manobra parla mentar.%° © deputado baiano J. J. Seabra, perseguido no governo 85 Floriano, propés a nomeagio pela Cémara de uma comissio parla. mentar com a finalidade de congratular o Presidente pela el guarda da ordem e prestigio da Republica civil”, A provocagio era cvidente e, como se néo bastasse, Seabra faz a proposta em seu nome dizendo-se surpreso diante do silencio do, até entio, lider da maiori Francisco Glicério. A manobra era clara; através dela Prudente procu. ava livrarse da tutela do PRF e demonstrar a deslealdade do “General das 21 brigadas”, O requerimento de Seabra foi derrotado, mas foi capaz de provocar a cisio definitiva do primeiro partido nacional for: mado durante a Reptblica. Os desdobramentos foram fundamentais: alegando ter votado pela aprovagio do requerimento e, portanto, tendo: sido derrotado, o Presidente da Camara, o deputado baiano Artur Rios,’ renuncia. Quatro dias depois, configura-se a armadilha. Francisco’ Glicétio; deserdado pelo governo, concorre a presidéncia da Cémara @ € derrotado pelo antigo presidente. Em uma mesma manobra, Pru: dente havia conseguido cindir definitivamente o PRF ¢ transformer Glicério em Ider da minoria. A derrota da facsfo jacobina no Congreso marca o inicio politico | do governo Prudente de Moraes, combinando caracteristicas que se mostratéo duradouras na Repéblica oligérquica. A manobra parla- mentar bem sucedida no se deveu apenas a trugues regimentais ou artimanhas de plenério. Para reafizé-la o Presidente buscou uma arti- culaglo direta com os Estados, notadamente Séo Paulo, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, que representavam as maiores bancadas. Contou ainda com a diserigéo dos republicanos gatichos, recém saldos de uma guerra civil que Ihes acenou com a possibilidade de intervengao federal e conscientes do papel representado pelas tropas federais e pela ajuda ' paulista na vit6ria sobre os federalistas. ‘ Os termos da solicitago de apoio aos estados nfo poderiam ser mais claros, Em mensagem ao presidente de Séo Paulo, Campos Sales, Prudente afirmava: “Representagéo Sio Paulo precisa escolher entre - © governo com a ordem ¢ Glicério com a anarquia militar”. *" O que © se verificou foi a quebra da estrutura pattidéria de intermediago. Ao | implodir 0 PRF, o Presidente s6 reconhece os chefes estaduais. O PRF | © 0 Legislativo so elementos de anarquia se no se subordinam 20s | poderes estaduais em direta conexio com o poder central. Conseguido © © apoio 0. Presidente pode manifestar fnimo desatiador: A policia esté preparada — para dar uma sova em regra — « na primeira oportunidade que essa canalha oferecer. g ‘A dltima tentativa feita pela oposico para veticer Prudente de Moraes manifestou-se de forma inédita na histéria brasileira: a tentativa.de sssassinato do Presidente. * No dia 5.11.1897, apés receber dois batalhes, no Arsenal de Guerra, chegados da campanha de Canudos, co Presidente foi atacado por um anspegada do Exército, Marcelino Bispo. *” Mas naquela época até os regicidas eram confusos. Prudente escapa ileso, sendo ferido de morte o Ministro da Guerra, marechal Machado Bittencourt. O efeito imediato do atentado ¢ a completa reversdo do quadro politico. Como notou José Maria Bello, foi “enorme fa consternagio na capital e em todo o Pais (...) o Brasil ndo estava habituado a resolver os seus dissidios politicos pelo assassinio”. Do ponto-

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