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Junior Maia1

“Não mais se castiga direta e publicamente o corpo. E o


valor máximo em jogo passa a ser a liberdade. É a ela que se visa com
a punição, ou seja, retira-se e devolve-se liberdade à pessoa. O cárcere
cumpre essa função de forma exemplar. Mas pode-se pensar, também,
como a escola, eliminando aos poucos a palmatória, faz a substituição
por um conjunto de práticas em que a punição é exatamente a restrição
ao movimento e à comunicação com os demais. O efeito é físico, mas
o princípio é a reeducação da alma”.

Marlene Guirado
Psicóloga, psicanalista e analista institucional

Tem sido perceptível a tentativa de professores, consultores educacionais e estudiosos

lançarem esforços em pesquisas que pretendam investigar as atitudes de indisciplina vivenciadas no

âmbito escolar, em especial, nas salas de aula. Mesmo assim, ainda não se tem um consensual

conceito teórico acerca da indisciplina. Isto porque, além da complexidade

(psicológica/antropológico-cultural) do tema, não se pode contar com um número suficiente de

pesquisas (Rego, 1996).

Desta maneira, o conceito de indisciplina, não é estático, uniforme, nem tão pouco,

universal. Estando relacionado com valores que variam ao longo da história, entre diferentes culturas e

numa mesma sociedade.

Reportando à língua portuguesa, encontram-se no Aurélio, variadas definições para esta

mesma palavra, que analisadas separadamente, possibilitam inúmeras conclusões. Tais definições

1
É professor na Fundação Visconde de Cairu e nos cursos de formação de professores em serviço oferecidos pela
Universidade do Estado da Bahia. Na pós-graduação medeia informações sobre formação de professores, currículo e
intersubjetividades na FVC, ABEC, FSBA, UNIFACS e UNESI. Estuda Narrativas do Professorado.
apresentam-se como: “todo ato ou dito contrário à disciplina que leva à desordem, à desobediência, à

rebelião”. Já o termo disciplina, seria “o regime de ordem imposta ou simplesmente consentida, que

convém ao funcionamento regular de uma organização; relações de subordinação do aluno ao

mestre; submissão a um regulamento”.

Encaminhando este tema, especificamente, para o âmbito educacional, percebe-se que

este fenômeno relaciona-se com o momento histórico em que a instituição de ensino vivencia e com

os objetivos que ela pretende atingir. Assim, a instituição-escola, vem assumindo diferenciadas

posições, no que tange ao fenômeno da indisciplina, de acordo com as pedagogias adotadas (liberal,

tradicional, comportamentalista, construtivista, critica, das diferenças, dentre outras.) ao longo de sua

historicidade.

Tendo como análise as posições definidas frente às abordagens de ensino, perceberemos

que no ensino tradicional ou conservado2, a disciplina é o meio mais eficaz para assegurar a

aprendizagem. Isto porque, partia-se do pressuposto de que a inteligência era a faculdade de

acumular/armazenar informações. Portanto, o aluno “disciplinado” era aquele que obedecia ao

professor e “comportava-se” de acordo com as regras previamente elaboradas por uma conjuntura

escolar, tudo isto favorecido por uma relação pedagógica vertical, onde o professor detém o poder

maior na relação estabelecida com o aluno.

Contudo, o aluno que por algum motivo desrespeitasse estas regras, receberia o título de

“aluno indisciplinado” e cumpriria os “castigos” pedagogicamente legitimados (Mizukami, 1986),

sejam eles expressos pelas surras com palmatórias, pelo ajoelhar em grãos de milhos, puxões de

orelhas, bélicos, dentre tantos outros, numa instituição escolar que concebia a educação como o

produto, possibilitado pela transmissão de idéias selecionadas e organizadas logicamente, a fim de

alcançar uma disciplina “intelectual”.

Na abordagem comportamentalista, advoga-se que o comportamento é moldado a partir

da estimulação externa, sendo a escola considerada como uma agência educacional que deverá adotar

forma peculiar de “controle”, de acordo com os comportamentos que pretende instalar e manter. Desta

forma, os comportamentos desejados serão instalados e mantidos por elogios, notas, prêmios,

2
Termo ambíguo que engloba variados sentidos e significados.
reconhecimento, etc., sendo, estes comportamentos, produto do meio e relativo a ele. (Mizukami,

1986)

Aqui, a indisciplina, ainda é percebida como transgressão de regras, portanto, os

mecanismos de controle da mesma, apresentam-se na tentativa de mudar o comportamento, não

havendo interesse maior. As práticas de “castigos” se faziam através da negação de atividade de

recreativa; deixando o aluno de costas para os colegas e com o rosto direcionado à parede, além de

expô-los as vaias; sendo estes exemplos, as tentativas “psicologizantes” de mudanças de hábitos,

tendo o aluno disciplinado aquele que é solidário, participante e respeitador das regras do grupo.

Por sua vez, a abordagem humanista, vem centrando todos os enfoques no aluno,

sujeito da aprendizagem, numa perspectiva de desenvolvimento da personalidade, em seus processos

de construção e organização da realidade. Assim, a indisciplina é vista como o resultado de uma

conduta social, não apenas escolar. Portanto, a educação é compreendida em seu sentido amplo,

educando o homem, sujeito histórico e não apenas, a pessoa em situação escolar. É o elemento que

mais diferencia as concepções comportamentalistas e humanistas.

No caso de ações de indisciplina na sala de aula, a ação propiciada para o controle

disciplinar é o aconselhamento na tentativa de que o aluno tome consciência dos limites da vida

grupal, não havendo uma punição. Esta abordagem, ainda é questionada sob a justificativa de que a

obra de C. Rogers não fora realizada para a educação em si, mas para a terapia. (Mizukami, 1986)

Já na abordagem cognitivista, onde o conhecimento é produto das interações

estabelecidas entre sujeito e objeto, não se enfatizando, no processo, nem o professor nem o aluno,

mas as trocas experienciadas por estes, a indisciplina é percebida como decorrência do

desenvolvimento do juízo de moral do aluno.

Para isto, Jean Piaget, biólogo suíço, em sua obra “O juízo de moral na criança”,

publicada originalmente em 1932, estabelece que “toda moral consiste num sistema de regras, e a

essência de toda moralidade de ser procurada no respeito que o sujeito adquire por essas regras”

(Piaget, 1994, p.34). Assim, o epistemólogo, apresenta um caminho psicogenético no

desenvolvimento do juízo de moral em três fases: anomia, heteronomia e autonomia.

O sufixo nomia vem do grego nomos que significa regras. Assim sendo, anomia referi-

se a um estado de ausência de regras; heteronomia é o estado onde o sujeito percebe a existência de


regras e que sua fonte é variada, ou seja, estas são determinadas por outros sujeitos; a autonomia,

ultima fase, significa que o sujeito já sabe da existência de regras para viver em sociedade, mas a fonte

dessas regras está nele próprio.

Desta maneira, é de fundamental importância a relação entre moralidade e indisciplina

no ambiente escolar. Isto porque, mesmo a moralidade estando relacionadas às regras, nem todas as

regras têm vínculos com a moral. É fato, que em algumas escolas existem regras que não se fundam

nos princípios de igualdade e justiça, tornando-se imoral e, qualquer tipo de transgressão seria

possibilidade de autonomia.

Portanto, nesta abordagem, umas das primeiras características de controle disciplinar,

observadas nas salas de aula, são os combinados, instrumento de negociação e estabelecimento de

regras coletivas, a fim de equilibrar as relações dentro da escola e garantir a aprendizagem.

Na abordagem sócio-cultural, as interações são marcadas por uma horizontalidade

pedagógica, não havendo, assim, imposição e conscientização dos sujeitos envolvidos no processo,

acredita ser nas trocas que a consciência ingênua será transformada (Freire, 1981). A indisciplina,

então, é transformada pelo diálogo, oportunizando a cooperação, união, organização e solução de

problemas (Mizukami, 1986). Nesta abordagem, a instituição-escola, é percebida como parte da

sociedade e que para compreendê-la é necessário entender a teia das relações sociais vivenciadas fora

deste ambiente.

A indisciplina seria a possibilidade de reestruturação das regras previamente elaboradas

pela conjuntura escolar, sendo percebida como a possibilidade de ousar a pedido “da voz e da vez”, no

espaço instituído com local de aprendizagens. Não defendendo a indisciplina anômica ou

heteronômica, mas a indisciplina pensada e vivenciada no discurso do oprimido contra o opressor, do

aluno contra o professor e deste último contra o diretor, do diretor contra o seu superior, e de todos

contra o possível sistema de padronização e exclusão.

Não preparada para experienciar esta abordagem, as instituições utilizam a punição

como mecanismo de controle disciplinar, retornando-se assim, aos modelos de padronização

instituídos no ensino tradicional, mesmo com um discurso contemporâneo. A presença de punições

corporal e psicológica se configura subterfúgios para manter a disciplina, como instrumento

metodológico de retorno a disciplinarização.


A partir da idéia de disciplinar pela coação, Michel Foucault (1986), analisa, dentre

outros, o poder na disciplina. E acrescenta que o poder disciplinar necessitaria do estabelecimento de

mecanismos constantes de controle e vigilância.

Como, em Foucault (1986), a disciplina para ser mantida, necessariamente, exige a

demarcação limitada de um local, local este ocupado por sujeitos à disciplinar, poder-se-ia usufruir de

três modalidades de vigilância, sendo elas, a vigilância hierarquizada, as sanções normatizadoras e os

exames. Na vigilância hierarquizada, o poder é outorgado a um indivíduo que garantiria o controle

“comportamental” continuado; no caso das escolas seriam os diretores, inspetores de área,

coordenadores e professores.

As sanções normatizadoras, referem-se as “micro-penalidades”, tendo como objetivo

corrigir comportamentos leves como atraso, interrupções, desalinhamentos nas filas, ausências,

insolências, sujeiras, atitudes “incorretas”, além de castigos leves, privações e pequenas humilhações

para aqueles que não cumprirem o regulamento. Em nossas escolas, e no estudo de sua história, é

ainda perceptível estes indicadores no Regimento Escolar.

E por fim, os exames, que servem de controle normatizante, uma vigilância que permite

quantificar, qualificar, classificar e punir. Esta proposta confunde-se, em parte, com as concepções de

avaliação construídas por muitos dos profissionais de ensino, ainda no início do século XXI, para

punir, nunca para possibilitar uma ação (in) formativa.

Foi nesta tentativa de disciplinarizar que no século XVIII, se começou a definir as

formas de separação dos indivíduos, no ambiente limitado escolar, através de fileiras de carteiras nas

salas, de filas nos corredores, no pátio, isto porque, facilitariam os controles de vigilâncias.

Para Foucault (1986:131), este controle serve para:

anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos


indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de
antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração. Importa estabelecer as presenças
e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações
úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada
um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimentos,
portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço político.

Assim, o corpo é o fim para o disciplinador, ele é manipulável, treinado, disciplinado,

portanto, o valor da disciplina está na capacidade de adestrar a pessoa humana. Levando esta
funcionalidade para as salas de aula, ela se justificaria a medida que os alunos aprendessem a levantar

as mãos antes de falar, a levantar-se antes do diretor ou visitante adentrar a sala, permanecer em suas

carteiras, respeitar o sinal para usar o sanitário, dentre tantos outros exemplos que além de controle

comportamental torna-se instrumento de punição em sala de aula.

Outra relevante contribuição da obra de Foucault (1986) está no princípio da não-

ociosidade, pois é de fundamental importância não perder o “tempo” da/para escola. Percebe-se que as

Unidades de Ensino, refletem em muito esta idéia com os horários para estudar, brincar, lanchar, sair,

visitar...espirrar, milimetricamente calculados. Portanto, as escolas vêm se apresentando como

instituições que pretendem padronizar o ator social, falsificando o discurso de fomentar em seus

educandos o exercício da cidadania, servindo de espaços de conflitos, falta de estímulos para

significativas aprendizagens e resistências.

Neste contexto, Foucault (1996) afirma que em todo ambiente onde se estabelece uma

relação de poder, existirá a possibilidade de resistência. E acrescenta que “jamais somos

aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação e segundo uma

estratégia precisa” (1986:241). Contudo, são estas práticas legitimadas em sala de aula, por

professores, que em sua grande maioria desconhecem a complexidade do fato, de seus atos, repetindo

as práticas por eles vivenciadas.

Portanto, é imperioso nos tempos de crise das identidades escolares e de reafirmação

das idéias em torno da compreensão de territorialidade em ser jovem, em ser professor, em ser gestor,

etc., que os atores constituintes/constituídos nos ambientes de aprendizagem reflitam, a partir das suas

posições enquanto sujeitos sociais, sobre os contatos estabelecidos.

Estudar a indisciplina escolar, a partir dos mecanismos de controle disciplinar

experienciados pelo professor, nos processos de mediação pedagógica, requer uma análise acerca da

sociedade nas quais estes atores e atrizes sociais estão inseridos, e em especial, o processo de

formação destes, enquanto personagens ativos/passivos na dialética de transformação/construção de

conhecimentos. Requer compreender que lugares se colocam, se percebem.

Esta temática é uma proposta de estudo inesgotável, de dualidades conceituais, de

implicações psicológicas sérias, portanto, em hipótese alguma, aqui esgotada.


REFERÊNCIA

AQUINO, Júlio Groppa. Indisciplina na escola: alternativas e práticas. São Paulo: Summus, 1996.

_____________________(Org.) Confronto na sala de aula. Uma leitura institucional da relação


professor-aluno. São Paulo: Summus, 1996.

ARAUJO, U.F. Moralidade e indisciplina: uma leitura possível a partir do referencial piagetiano.
IN: AQUINO, Júlio Groppa. (Org.) Confronto na sala de aula. Uma leitura institucional da relação
professor-aluno. São Paulo: Summus, 1996.

FOUCALT, M. Vigiar e punir. 4ª ed. Petrópoles: Vozes, 1986.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 9ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

PIAGET, J. O juízo moral na criança (E. Lenardon, Trad.). São Paulo, SP: Summus, 1994.

MIZUKAMI, M.G.N. Ensino: as abordagens no processo. São Paulo: EPU, 1986.

REGO, Tereza Cristina. VygotsKy, uma perspectiva histórico-cultural da educação. Petrópoles:


Vozes,1994.

____________________ A indisciplina e o processo educativo: uma análise na perspectiva


Vygotskyana. IN: AQUINO, Júlio Groppa. (Org.) Confronto na sala de aula. Uma leitura
institucional da relação professor-aluno. São Paulo: Summus, 1996.

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