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OS MUTIRÕES CARCERÁRIOS E A CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO1

Gerivaldo Alves Neiva 2

I - Introdução. a) Cadeia Velha. b) Min. Peluso: crime do Estado contra o


cidadão. c) Flagrante e responsabilidade do Juiz, segundo o CNJ. II -
População carcerária mundial. III - Crescimento da população carcerária
no Brasil - 2000 a 2009. IV - Presos nos Estados por cada 100 mil
habitantes. V - Presos provisórios. VI - Escolaridade da população
carcerária brasileira. VII - Presos por tipo de delito praticado. VIII - A
faixa etária da população carcerária. IX - As ações do Conselho Nacional
de Justiça. a) O CNJ e as decisões dos Juízes de primeiro grau. b) Os
Mutirões Carcerários. X - Desfazendo Mitos. XI - Conclusão. Anexos.

O objetivo do presente trabalho é abordar criticamente o programa de “Mutirões


Carcerários” do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em face da profunda crise do sistema
prisional brasileiro. Esta visão crítica não significa, necessariamente, deixar de reconhecer que
através desse programa milhares de presos já foram libertados e outros milhares tiveram
deferidos benefícios relacionados ao cumprimento da pena. O mesmo não se pode dizer, no
entanto, com relação ao sistema penitenciário brasileiro, que a cada dia viola mais
escancaradamente ainda os direitos humanos e garantias fundamentais dos presos.

Para aprofundamento do tema, assim me parece conveniente, precisamos conhecer,


primeiramente, o perfil da população carcerária brasileira no que diz respeito à sua evolução
histórica, escolaridade, faixa etária, tipos de delitos cometidos etc. A partir daí, então, penso ser
possível suscitar, por fim, algumas hipóteses acerca do problema proposto.

As informações estatísticas utilizadas neste estudo são disponibilizadas, semestralmente,


pelo Ministério da Justiça em seu site na Internet.

I - Introdução

Gostaria de iniciar esta provocação relatando, brevemente, três situações emblemáticas


sobre o sistema prisional brasileiro: (i) a história da Cadeia Velha do Rio de Janeiro colonial, (ii)
a entrevista concedida pelo Ministro Cezar Peluso, em Salvador, reconhecendo a falência do
sistema prisional Brasileiro e (iii) a prisão em flagrante e a responsabilidade do Juiz na garantia

1
Contribuição ao V Simpósio Crítico de Ciências Penais – Sistema Punitivo: entre obscenidades e resistências,
promovido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Criminais (GEPeC), em Goiânia-Go, de 13 a 15 de maio de 2010.
2
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça da Bahia
2

do cumprimento de preceito fundamental do preso, (art. 5º, XLVIII), segundo o entendimento do


CNJ.

Então, vamos lá.

a) A Cadeia Velha

Em estudo publicado na Revista História Viva, a historiadora Cynthia Campelo


Rodrigues levantou importantes informações sobre a Cadeia Velha, uma típica prisão do período
colonial, no Rio de Janeiro. A prisão teria sido construída no início do século XVII e funcionava
no mesmo prédio da Câmara Municipal, como era costume na época, tornando-se uma das
maiores e mais importantes prisões do Brasil Colonial.3

Assim, qualquer um que infringisse as leis da colônia podia parar na Cadeia Velha. Por
conseguinte, lá se amontoavam todos os tipos de criminosos, incluindo escravos fugidos,
prostitutas, delinqüentes comuns e até mesmo os envolvidos na Inconfidência Mineira foram
presos na Cadeia Velha. Significa dizer, portanto, que não havia qualquer tipo de relação entre o
crime e o castigo ou mesmo a idéia de proporcionalidade da pena e, muito menos, qualquer
possibilidade de recuperação social dos detentos.

A situação da Cadeia Velha se agravou a tal ponto que em 1764, o Conde da Cunha, Vice
Rei do Brasil, escreveu ao Rei de Portugal, D. José I, nos seguintes termos: “A Cadeia desta
cidade é tão pequena, que com grande aperto e incômodo dos presos só poderá recolher até
cento e cinquenta; e porque presentemente tem duzentos e cinquenta e três, se faz preciso que ou
se acrescente a Casa da Prisão (o que custará mais de trinta mil cruzados) ou se não prendam
os que delinquirem aqui em diante por não haver onde se recolham.”

Consta da correspondência oficial que a Cadeia foi reformada em 1767, mas no início do
século seguinte, o viajante inglês John Luccok fez o seguinte relato da dita prisão: “Um edifício
forte e pesado, ao redor do qual tudo é imundície e dentro do qual tudo é repugnante. O
primeiro dos cômodos é barricado de maneira muito semelhante às nossa jaulas de animais
ferozes, e dentro dele vagueiam os presos de modo muito semelhante a eles e com acomodações
não muito superiores”.

Além disso, a corrupção era prática comum na Cadeia Velha. Consta em processos da
época que os carcereiros confiscavam boa parte daquilo que a Santa Casa de Misericórdia
destinava aos detentos, vez que muitos eram escravos “esquecidos” na prisão pelos senhores,

3
RODRIGUES, Cynthia Campelo. A Bastilha brasileira. Revista História Viva, São Paulo, ano VI, n. 76. p. 66-71. Fev. 2010.
3

sendo socorridos pela Santa Casa ou obtinham permissão para pedirem esmolas, presos a uma
corrente, na frente da prisão, podendo chegar até o meio da rua. Na verdade, a legislação
portuguesa da época dispensava o governo da alimentação dos presos, incumbência que cabia à
família, amigos ou instituições de caridade.

Como não podia deixar de ser, a violência contra os presos era algo absolutamente
comum na época. Em processo envolvendo um carcereiro consta o depoimento de um detento
relatando a morte de um negro chamado Vicente: “... e praticar tanto em veras e tanto como
homem bárbaro que estando na prisão dos Pardos, um por nome Vicente, sem levante ou
maldade punível lhe mandou dar uma roda de pau, que até o deixar quase morto, e assim mesmo
o meteu no segredo, de onde o tirou, passados alguns dias, e o mandou para a Enxovia da
Guiné, com ordem ao Juiz José Desidério para não deixar chegar a grade. E logo o preso
Vicente depois foi removido para a dita Enxovia da Guiné, com tal recomendação do carcereiro,
logo também entrou a agonizar e por isso o juiz mandou fazendo levar, chegado que ele foi a
Enfermaria, morreu sem confissão ou sacramento”.

Segundo a historiadora Cynthia Campelo Rodrigues, a única instituição que os presos


podiam recorrer era a Santa Casa de Misericórdia, que se dedicava a obras de caridade, fornecia
pão aos detentos, supria a prisão de enfermeiros e remédios e tinha à disposição dos condenados
um grupo de advogados responsáveis pelas apelações necessárias para tentar livrar os réus da
cadeia ou aliviar as penas. Apesar disso, muitos detentos morriam na prisão sem qualquer
assistência, vitimados por maus tratos e as mais variadas doenças.

A Cadeia Velha foi desativada após a chegada da Família Real ao Rio de Janeiro, em
1808, e finalmente demolida no início do século XX. Em seu lugar, foi construído o atual Palácio
Tiradentes, sede da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, em homenagem aos inconfidentes
mineiros4 que lá estiveram presos no final do Século XVIII.

b) Ministro Cézar Peluso: “o tratamento dispensado aos detentos no Brasil é um


crime do Estado contra o cidadão”.

A afirmação foi feita em entrevista coletiva no Centro de Convenções de Salvador, onde


se realizava o 12º Congresso da ONU sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal. Disse ainda

4
De todos os presos que passaram pela Cadeia Velha, os inconfidentes foram os mais famosos. Dentre eles, o alferes que se
tornou historicamente conhecido como Tiradentes. De acordo com as Ordenações Filipinas, vigentes à época, a pena de morte se
dividia em ―natural cruel‖ e ―natural atroz‖. No primeiro caso, o corpo do condenado podia ser cortado, enterrado vivo, rompido,
quebrado arrastado, esquartejado, queimado ou esmagado. No segundo caso, o condenado tinha os bens confiscados, podia ser
esquartejado depois de morto. Tiradentes, no entanto, foi condenado a outro tipo de morte previsto no Direito Português: ―a
morte natural para sempre.‖ Essa pena proibia o sepultamento do corpo do condenado, que deveria ser esquartejado e as partes
expostas até a decomposição completa.
4

o Ministro Presidente do STF: “É uma deficiência que beira, em certas situações, a falência
total. Há casos específicos que têm sido ultimamente ventilados, até pela própria imprensa, que
envergonham o país. Eu não quero citar particularmente, mas há casos de tratamento
vergonhoso, em que na verdade o que se faz ao preso é um crime do Estado contra o cidadão.” 5

Esta é a visão, portanto do Ministro Presidente da mais alta corte de justiça do Brasil: o
Supremo Tribunal Federal, o Tribunal guardião da Constituição Federal.

c) A responsabilidade do Juiz ao examinar prisão em flagrante. O caso da


aposentadoria compulsória da Juíza Clarice Maria de Andrade.

Eis a ementa:

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR N° 0000788-29.2009.2.00.0000


Rel. CONSELHEIRO FELIPE LOCKE CAVALCANTI
Requerente: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
Requerida: Juíza CLARICE MARIA DE ANDRADE
Assunto: ATUAÇÃO FUNCIONAL DE MAGISTRADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARÁ

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARÁ.


INFRAÇÕES AOS DEVERES FUNCIONAIS DA MAGISTRATURA. CONFIGURAÇÃO.
I – O Juiz de Direito ao examinar o auto de prisão em flagrante delito torna-se responsável pela prisão
levada a efeito bem como pela regularidade do encarceramento do preso.
II – Impossibilidade de manutenção de presa do sexo feminino em carceragem única ocupada por detentos
do sexo masculino.
III – Descumprimento do preceito fundamental contido no artigo 5º, inciso XLVIII, da Constituição
Federal.
IV – Utilização de documento ideologicamente falso com fim de justificar a grave omissão perpetrada.
V – Infringência ao artigo, 35, incisos I e III, da LOMAN.
VI – Procedência do Procedimento com a aplicação da pena de aposentadoria compulsória, com proventos
proporcionais ao tempo de serviço, de acordo com os artigos 28 e 42, V, todos da Lei Complementar nº 35,
de 14.03.79.

Grifei a expressão: “O Juiz de Direito ao examinar o auto de prisão em flagrante delito


torna-se responsável pela prisão levada a efeito bem como pela regularidade do
encarceramento do preso”.

A Ementa é clara e não precisa de comentários: O Juiz que homologa prisão em flagrante
torna-se responsável pelo preso e o descumprimento de preceitos fundamentais previstos na
Constituição Federal importa em violação à Lei Orgânica da Magistratura (Loman) e aplicação
de pena de aposentadoria compulsória. No caso específico, entendeu o eminente Conselheiro do
CNJ que a Juíza descumpriu o preceito fundamental do artigo 5º, XLVIII, ou seja, “a pena será
cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do
apenado”.

5
In < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=124315 > acesso em 10.05.2010
5

Para que não paire dúvidas, importante transcrever o dispositivo do “acórdão” que
aposentou compulsoriamente a Juíza:

Diante de todos estes fatos e relatos não é possível deixar de reconhecer que a magistrada,
violou seus deveres funcionais, deixou de observar sua obrigação de garantidora da não
violação dos direitos e garantias fundamentais da menor Lidiany e assim, em conclusão,
tenho por suficientemente provadas as imputações relacionadas na Portaria inaugural.
(grifei).
Em face do exposto, julgo procedentes as imputações formuladas no presente
procedimento administrativo disciplinar para aplicar a Juíza CLARICE MARIA DE
ANDRADE, como incursa no artigo, 35, incisos I e III, da Lei Complementar nº 35, de
14 de março de 1979 (LOMAN), a pena de aposentadoria compulsória, com proventos
proporcionais ao tempo de serviço, de acordo com os artigos 28 e 42, inciso V, ambos da
já mencionada Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979, e o artigo 5º da
Resolução nº 30, de 07 de março de 2007, deste Conselho Nacional de Justiça.
(Art. 35- São deveres do Magistrado: I Cumprir e fazer cumprir, com
independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício; III
- determinar as providências necessárias para que os atos processuais se realizem
nos prazos legais;)

São estes, portanto, os três casos que devem nos inspirar neste diálogo sobre as
obscenidades e resistências frente ao sistema punitivo brasileiro: (i) a longa história de violação
aos Direitos Humanos no sistema prisional brasileiro, (ii) a constatação desse fato pela mais alta
autoridade judiciária brasileira e, por fim, (iii) o entendimento do CNJ de que o Juiz, ao decidir
pela manutenção da prisão decorrente do flagrante, é responsável pela prisão e condições do
encarceramento.

Dito isto, entendo de fundamental importância um rápido relato acerca das estatísticas de
outros países referente à população carcerária e a relação de pessoas presas por cada 100 mil
habitantes.

II - População carcerária mundial

De acordo com estudo do International Centre for Prisions Studies, do King’s College
London, existia no mundo, em dezembro de 2008, cerca de 9,8 milhões de pessoas presas.

Os EUA, disparadamente, detém a maior população carcerária do mundo com 2,29


milhões de presos. Este fato é explicado pelas políticas da “tolerância zero”, da “lei e da
ordem”, da privatização do sistema penitenciário etc, que transformaram os Estados Unidos em
verdadeiro Estado Penal.

Com efeito os EUA possuem em torno de 5% da população mundial e mais de 25% da


população carcerária do mundo. É como se quase dois terços (65%) da população do Uruguai
estivesse presa nos EUA.
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A relação de presos por habitante também tem os EUA em primeiro lugar com 756 presos
por cada 100 mil habitantes, depois a Rússia com 629 presos por cada 100 mil habitantes. Depois
Ruanda com 604 presos por cada 100 mil habitantes. Vejamos mais alguns países:

População Carcerária Mundial (alguns países)


País Total de Presos Por 100 mil hab.
EUA 2.293.157 756
Rússia 891.738 629
Ruanda 58.598 604
Chile 51.244 305
Brasil 440.013 227
Espanha 73.687 160
Argentina 60.621 154
Inglaterra 83.392 153
Canadá 38.348 116
Portugal 11.017 104
França 59.655 96
Itália 55.057 92
Alemanha 73.203 89
Suíça 5.715 76
Suécia 6.770 74
Finlândia 3.370 64
Japão 81.255 63
Dinamarca 3.448 63
Índia 373.271 33
Fonte: International Centre for Prisions Studies, do King’s College London

Na Europa ocidental, a média é de 95 presos por 100 mil habitantes, na América do Sul a
média é de 154. No Caribe, a média é de 324,5 presos por 100 mil habitantes. Não ouso
apresentar qualquer justificativa para o caso da Índia em face da complexidade das relações
sociais naquele país.

Nas estatísticas divulgadas recentemente pelo CNJ, o índice brasileiro em 2009 seria de
229 presos por cada grupo de 100 mil habitantes. Será que nosso destino é aproximar-se da
média dos EUA (756) ou da Europa Ocidental (95)?

Eis, por fim, um breve comparativo do crescimento da população carcerária no Brasil e


EUA, de 1981 a 2007.

Comparativo Brasil - EUA


Ano EUA Ano Brasil
1981 369.000 1985 39.609
1991 824.000 1990 90.000
2007 2.319.000 2007 422.509
Fonte: Wacquant, Loic. Punir os pobres. Ed. Revan. Dados do MJ Brasil

Os detalhes sobre o caso brasileiro, conforme adiantado no início deste trabalho, estão
contidos no Sistema de Informações Penitenciárias – Infopen, do Ministério da Justiça.

É o que veremos adiante.


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III - Crescimento da população carcerária no Brasil – 2000 a 2009

Segundo a estatística no Sistema de Informações Penitenciárias - Infopen, órgão


vinculado ao Ministério da Justiça, a população carcerária no Brasil era de 232.755 no ano de
2000 e de 473.626 em dezembro de 2009, ou seja, um crescimento de mais de 100% em uma
década.

O que se acentua de extrema gravidade neste quadro é que o déficit no sistema brasileiro
é de 139.266. Só em São Paulo, por exemplo, segundo a estatística do Infopen, o déficit é de
52.741 vagas. Isto significa dizer que os atuais presídios estão com população muito acima da
capacidade e, muito provável, também neste aspecto, em conflito com os Direitos Humanos mais
básicos.

Vejamos a evolução do crescimento da população carcerária no Brasil de 2000 a 2009,


segundo o Infopen.

Brasil – 2000/2009
Ano Total de presos
2000 232.755
2001 233.859
2002 239.345
2003 308.304
2004 336.358
2005 361.402
2006 401.236
2007 422.590
2008 451.429
2009 473.626
Fonte: Infopen - Ministério da Justiça

É evidente que a compreensão plena desse fenômeno somente se dará com a compreensão do
processo histórico vivido pelo País durante este período, bem como com a percepção do que
ocorreu nos campos da economia, política e do jurídico nesta década.

No Brasil, impossível não lembrar, vivemos sob a égide da Constituição Federal de 1988,
mas de outro lado com uma avalanche de normas punitivas e agravantes de penas para crimes já
tipificados em outras leis.

IV – Presos nos Estados por cada 100 mil habitantes.

O Brasil é uma vastidão de contradições e o sistema penitenciário retrata também essas


contradições entre os Estados com relação ao percentual de presos por cada 100 mil habitantes.

Vejamos.
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Brasil – Presos por cada 100 mil habitantes - Estados


Estado Presos % p/100 mil hab.
Acre 69.132 495,71
Rondônia 6.986 464,52
Mato Grosso do Sul 10.844 459,39
São Paulo 163.915 396,08
Roraima 1.659 393,60
Paraná 37.440 350,36
Distrito Federal 8.231 315,74
Espírito Santo 10.366 300,46
Amapá 1.812 289,18
Rio Grande do Sul 28.750 263,42
Pernambuco 21.041 238,82
Minas Gerais 46.447 231,84
Paraíba 8.524 226,10
Santa Catarina 13.340 218,02
Goiás 11.118 187,60
Rio de Janeiro 26.651 166,46
Sergipe 3.130 154,98
Ceará 13.035 152,50
Tocantins 1.935 149,76
Pará 10.289 138,46
Rio Grande do Norte 4.162 132,65
Bahia 14.289 97,62
Piauí 2.591 82,38
Maranhão 5.222 82,01
Alagoas 2.379 75,38
Fonte: Infopen – Ministério da Justiça

Como se vê, os Estados do Nordeste Brasileiro (AL, MA, PI e BA) tem média abaixo de
100 presos por cada 100 mil habitantes, ou seja, indicadores dos países mais desenvolvidos da
Europa Ocidental. Evidente que este indicador dos Estados Nordestinos não significa que
alcançaram o nível de países da Europa em termos de Política Criminal. Empiricamente,
podemos dizer que os indicadores refletem, na verdade, a deficiência do sistema de segurança
pública e do Poder Judiciário desses Estados.

Sendo verdadeira esta reflexão, podemos então concluir que o percentual brasileiro de
presos por cada 100 mil habitantes seria bem superior aos 229 informados pelo CNJ caso
houvesse uma uniformização no funcionamento do sistema policial e judicial, tomando-se por
base os Estados do Sul e Sudeste do Brasil.

V - Presos provisórios

O Supremo Tribunal Federal tem decidido, reiteradamente, que a pena não pode ser
cumprida antecipadamente em respeito ao princípio constitucional da presunção da inocência.
Nas prisões do Brasil, no entanto, em dezembro de 2009, encontram-se na condição de presos
provisórios, cerca de 143.941 homens e 8.671 mulheres, totalizando 156.612 pessoas detidas
provisoriamente.
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Vejamos, também, a evolução deste quadro no período compreendido entre 2000 a 2009:

Brasil – Presos provisórios – 2000 a 2009


Ano Homens Mulheres Total
2000 35.606 2.125 37.731
2001 34.076 1.804 35.880
2002 33.745 2.051 35.796
2003 * 64.849 2.700 67.549
2004 78.592 8.174 86.766
2005 98.222 3.894 102.116
2006 107.968 4.170 112.138
2007 122.334 5.228 127.562
2008 132.404 6.535 138.939
2009 143.941 8.671 156.612
Fonte: Infopen – Ministério da Justiça
* Somente a partir de 2003 o Infopen disponibiliza os dados por Estados. Neste ano, o Estado de São Paulo informou a existência de 23.812 presos provisórios de um total de 67.549.

O primeiro dado importante a observar neste quadro é o crescimento de 37.731 presos


provisórios em 2000 para 156.612 presos provisórios em 2009. De outro lado, com relação às
mulheres, o crescimento foi de 2.125 em 2000 para 8.671 presas em regime provisório em
dezembro de 2009. Portanto, um crescimento significativamente inferior ao crescimento de
prisões provisórias de homens. O que explica esta diferença?

Definitivo, de outro lado, é a existência de 156.612 presos, representando mais de um


terço (33,06%) dos encarcerados, na condição de provisórios e aguardando julgamento em
delegacias e carceragens, ou seja, cumprindo, antecipadamente, a pena que, porventura, seriam
condenados.

VI - Escolaridade da população carcerária brasileira

Com relação ao grau de escolaridade, nenhuma surpresa. A grande maioria dos presos
tem baixíssima escolaridade enquanto uma parcela ínfima teve acesso ao ensino superior.

Brasil - Grau de escolaridade da população carcerária


Escolaridade Homens Mulheres Total %
Analfabeto 25.015 1.076 26.091 6,25
Alfabetizado 46.801 2.720 49.521 11,87
Fund. incompleto 168.113 10.427 178.540 42,83
Fund. completo 63.465 3.916 67.381 16,16
Médio incompleto 41.179 2.925 44.104 10,58
Médio completo 28.283 2.734 31.017 7,44
Superior incompleto 2.524 418 2.942 0,70
Superior completo 1.478 237 1.715 0,411
Acima do superior 52 8 60 0,014
Não informado 15.230 245 15.475 3,71
Fonte: Infopen – Ministério da Justiça

Vê- se no quadro acima o que já era de se esperar: 77,11% dos presos tem grau de
escolaridade até o fundamental e apenas 1,12% tem escolaridade referente a superior incompleto
ou completo. O que se sabe ainda, considerando que são presos necessariamente com idade
10

superior a 18 anos, é que apenas o ensino fundamental não qualifica nenhum deles para qualquer
atividade profissional, seja dentro ou fora do sistema penitenciário.

É verdade que esta proporção não corresponde, exatamente, ao retrato da escolaridade da


população brasileira. De outro lado, pode demonstrar que crimes são cometidos em maior
quantidade por pessoas de pouca escolaridade, tornando a recíproca verdadeira, ou seja, pessoas
de bom nível de escolaridade cometem poucos delitos.

VII – Presos por tipo de delito praticado

Para atender aos objetivos deste estudo, reduzimos as categorias de delitos cometidos
apenas em relação aos crimes contra a pessoa, contra o patrimônio e decorrentes de tráfico de
entorpecentes. Ressalte-se, todavia, que no Relatório do Sistema Infopen estão informados
também as categorias de crimes contra a “paz pública”, contra a “fé pública”, contra a
“administração pública”, “praticados por particular contra a administração pública” e, por
fim, crimes relacionados à legislação específica, incluído o ECA, Lei Maria da Penha, Tortura,
Meio ambiente, Desarmamento e Entorpecentes.

Presos por principais categorias de delito


Delitos Homens Mulheres Total %
Contra a pessoa 51.004 1.581 52.585 12,60
Contra o patrimônio 212.198 5.564 217.762 52,17
Contra os costumes 17.625 160 17.785 4,26
Entorpecentes 78.725 12.312 91.037 21,81
Fonte: Infopen – Ministério da Justiça

Vê-se aqui que mais da metade dos presos cometeram crimes contra o patrimônio, ou
seja, contra bens disponíveis. Somando-se os crimes contra o patrimônio com os crimes
relacionados ao tráfico, portanto, teríamos o percentual de 73,98% dos crimes, ou seja, quase três
quartos. De outro lado, somando-se os crimes contra a vida com os crimes contra os costumes,
teríamos um percentual de apenas 16,86%.

Significa dizer, consequentemente, que uma política criminal de descriminalização do


uso de entorpecentes ao lado de uma nova concepção de punição para os crimes contra o
patrimônio, a realidade do sistema seria outra.

Uma última observação com relação a este quadro diz respeito ao percentual de crimes
relacionados ao tráfico de entorpecentes praticados por mulheres. O Infopen não oferece mais
detalhes sobre este percentual, mas o que se sabe empiricamente é que boa parte dessas mulheres
são flagradas ao tentarem introduzir drogas nos presídios a pedido de seus companheiros que lá
se encontram. Muitas vezes, portanto, são primárias e de bons antecedentes, mas terminam
condenados e presas pelo crime de tráfico.
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VIII – A faixa etária da população carcerária

Outro dado importante para compreender a realidade do sistema prisional brasileiro e,


principalmente, para se conhecer o perfil da população carcerária diz respeito à faixa etária dos
presos.

População carcerária por faixa etária


Faixa etária Homens Mulheres Total
18 a 24 anos 122.592 6.507 129.099
25 a 29 anos 103.124 5.881 109.005
30 a 34 anos 68.693 4.319 73.012
35 a 45 anos 58.191 4.647 62.838
45 a 60 anos 22.050 2.075 24.125
Fonte Infopen – Ministério da Justiça

Vê-se aqui outro quadro desalentador: 311.116 presos contam com menos de 35 anos de
idade e este número representa 74,5% do total dos presos. Isto significa, portanto, que quase três
quartos dos presos são pessoas em plena idade produtiva, ou seja, entre 18 e 35 anos de idade.

Uma rápida conclusão, portanto, indica que 77% da população carcerária brasileira tem
grau de escolaridade até o ensino fundamental, 74,5% estão na faixa etária de 18 a 35 anos de
idade e 73,98% cometeram crime contra o patrimônio ou por tráfico de entorpecente.

É hora de nos perguntar, portanto, o que se tem realizado e proposto pelo Poder Judiciário
brasileiro em face desta realidade. Neste sentido, nos limites deste trabalho, abordaremos
algumas tentativas isoladas de magistrados brasileiros e ações institucionais promovidas do CNJ.

É o que veremos a seguir.

IX – As ações do Conselho Nacional de Justiça

Durante a realização dos Mutirões Carcerários, os juízes envolvidos no trabalho tem


divulgado e denunciado a existência de sérios problemas nas Delegacias e Penitenciárias do
Brasil. Antes de deixar a presidência do CNJ, o Ministro Gilmar Mendes escreveu artigo par ao
Jornal O Estado São Paulo criticando severamente o sistema prisional brasileiro.

Segundo Ministro, o sistema sofre de superlotação, algumas varas de execução penal não
contam com estrutura mínima de funcionamento, existe um déficit de 167 mil vagas no sistema
prisional, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos, cumprimento de penas provisórias
que ultrapassam o teto legal para o delito que cometeram e um flagrante paradoxo: “milhares de
réus encontram-se soltos, sem perspectiva de julgamento, ao tempo em que outros tantos se
acham ilegalmente encarcerados, com excesso de prazo na prisão cautelar ou no cumprimento
da pena.” (Anexo).
12

De outro lado, as decisões do CNJ e de outros Tribunais brasileiros, em que pese o


reconhecimento da crise que se instalou no sistema, não são de acolhimento às iniciativas de
juízes de primeiro grau que, corajosamente, fazem valer as garantias fundamentais inseridas na
Constituição de 1988.

Vamos observar, portanto, as ações do CNJ com relação às iniciativas dos juízes de
primeiro grau e, em seguida, os números dos Mutirões Carcerários.

a) O CNJ e as decisões dos Juízes de primeiro grau

Em 27 de maio de 2009, o tribunal de Justiça de Minas Gerais aposentou


compulsoriamente o Juiz de Direito Livingsthon José Machado, após ter recusado remoção
compulsória, pelo fato de ter libertado, em 2005, 59 presos que cumpriam penas ilegalmente em
delegacias superlotadas na comarca de Contagem (MG).

Segundo o relato do Juiz, em um Distrito Policial de Contagem, em quatro celas, cada


uma com capacidade para 4 presos, havia 148, dos quais 39 esperavam transferência para a
penitenciária havia quatro anos. Em outro, em razão do excesso de presos, o delegado pôs uma
grade no corredor, que virou uma cela com 28 presos.

O CNJ, à unanimidade de seus Conselheiros, indeferiu o pedido de Revisão do Ato


Administrativo (PCA nº 2007.10.00.001082-1), requerido pela Associação Nacional dos
Magistrados Estaduais (ANAMAGES) em favor do magistrado

A entrevista que o Juiz de Direito Livingsthon José Machado concedeu ao Jornal Folha
de São Paulo, (Anexo), é um marco da luta da magistratura brasileira em defesa da Constituição
de 1988.

Em outra oportunidade, o CNJ, acolhendo voto do Conselheiro Jorge Maurique, também


deixou de acolher decisão do Juiz da Execução Penal de Tupã (SP) que proferiu decisão
impedindo diretores das penitenciárias de Pacaembu e Lucélia e do Centro de Progressão de
Pacaembu de receberem mais presos, em face da superlotação das unidades.

Antes do CNJ, a decisão do Juiz havia sido revogada pela Corregedoria Geral da Justiça
do TJSP e a questão foi levada ao CNJ através de Procedimento de Controle Administrativo
(2008.10.00.000239-7) requerido pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, pela
Comissão de Direitos Humanos da seccional de Tupã (SP) da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) e pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.

Em seu voto, o relator registrou que o problema de fundo deste procedimento "concerne
13

à incapacidade do Estado em gerir de modo adequado a execução penal". E levantou uma série
de razões sociológicas para explicar "os motivos pelos quais dificilmente políticas de execução
penal pautam de modo prioritário as agendas dos governos. A origem do problema, contudo,
não se encontra somente em motins, rebeliões e violações sistemáticas de direitos humanos; ela
remonta à própria noção de estrutura da sociedade, seus fins e métodos de controle social".

De acordo com o Conselheiro Jorge Maurique, a grave situação enfrentada pelas casas
prisionais de São Paulo é comum em todo o País e no mundo. Ao sugerir a criação da Comissão,
o conselheiro alertou para a gravidade da crise: "O problema, portanto, é macro, sistêmico,
mundial e complexo, não apenas restrito aos estabelecimentos prisionais do caso em tela e, à
toda evidência, não sendo resolúvel por meio de medidas isoladas, sejam adotadas por
magistrado, em sua atividade fiscalizatória e correcional da execução penal, seja por parte
deste Conselho, em seu papel de controlador dos referidos atos. Para um problema de tamanha
grandeza, faz-se mister soluções igualmente complexas e tomadas com suporte de um número
maior de pessoas e instituições. Se há algo de errado com o sistema, é necessário que este
sistema seja alterado; o que não se pode permitir é que este mesmo sistema seja subvertido em
sua ordem, sob pena de que seja instaurada uma situação de desordem, de antidemocracia e de
supressão do diálogo institucional. Em resumo, incorre-se no risco de se inviabilizar o próprio
sistema prisional, por pior que seja seu modelo atual, ainda mais por que praticamente não há
no Brasil estabelecimento carcerário que não tenha excedido seus limites. É infelizmente a triste
realidade que se atesta diariamente nos noticiários nacionais e nas atividades correcionais
judiciais." 6

Conclui-se, portanto, que não são aceitas pela cúpula do Poder Judiciário iniciativas
isoladas da magistratura brasileira o enfrentamento da questão, tendo como fundamento o
respeito às garantias fundamentais e aos Direitos Humanos dos presos.

A seguir, ainda nos limites deste trabalho, analisaremos o programa “Mutirões


Carcerários” promovido pelo CNJ, com apoio de outros órgãos do Poder, em penitenciárias de
todo o Brasil. Sem esquecer, todavia, que o CNJ também desenvolve o programa “Começar de
Novo”, destinado aos presos libertados através das ações dos Mutirões Carcerários, e a
modernização e aparelhamento das Varas de Execução Penal.

6
In < http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3915:conselho-cria-grupo-para-analisar-situa-
dos-presos-e-execus-de-pena-no-pa&catid=1:notas&Itemid=675 > acesso em 10.05.2010
14

b) Os Mutirões Carcerários

Em agosto de 2008, o CNJ coordenou o primeiro mutirão carcerário, no Rio de Janeiro,


em conjunto com o Tribunal de Justiça daquele Estado, e já esteve presente em quase todos os
Estados Brasileiros. Segundo o CNJ, em síntese, “o propósito é fazer um relato do
funcionamento do sistema de justiça criminal, revisar as prisões, implantar o Projeto Começar
de Novo e, ao final, no relatório dos trabalhos, são feitas proposições destinadas aos órgãos que
compõem o sistema de justiça criminal, visando ao seu aperfeiçoamento.”7

O Relatório atualizado em 06.05.2010, publicado no site do CNJ8, informa que já foram


analisados 124.585 processos, concedidos 21.736 benefícios de liberdade e 36.345 outros tipos
de benefícios. A porcentagem de liberdade por processos é de 17%.

A estatística por Estado aponta os seguintes indicadores:

Sistema de Mutirão Carcerário


Estado Proc. Analisados Benefício de liberdade Outros benefícios
Alagoas 1.848 458 502
Amazonas 3.323 555 865
Amapá 1.461 49 285
Bahia 9.830 2.648 3.936
Ceará 9.272 2.553 3.842
Espírito Santo 9.122 858 1.345
Goiás 22.202 2.484 4.042
Maranhão 4.881 1.244 2.059
Mato Grosso do Sul 9.416 1.595 3.027
Mato Grosso 2.122 392 941
Pará 1.742 435 435
Paraíba 6.738 970 2.222
Pernambuco 9.767 1.940 2.729
Piauí 1.366 461 493
Paraná 16.084 1.458 2.568
Rio de Janeiro 6.247 1.730 3.914
Rio Grande do Norte 88 2 59
Roraima 1.906 315 538
Santa Catarina 696 39 159
Sergipe 4.181 1.292 1.707
Tocantins 2.293 258 677
Total 124.585 21.736 36.345
Fonte: Estatística do CNJ

Os dados publicados pelo CNJ não permitem uma análise mais detalhada sobre o perfil
dos presos beneficiados. Assim, por exemplo, não sabemos quais os delitos que cometeram, qual
a escolaridade, a que pena foram condenados, quanto tempo de pena já tinham cumprido e,
finalmente, o futuro deles após a liberdade.9

7
In < http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10311&Itemid=1123 > acesso em 10.05.2010
8
In < http://www.cnj.jus.br/mutirao_carcerario/index.wsp> acesso em 10.05.2010
9
O caso do detento Gildeon Ribeiro dos Santos, noticiado no site do CNJ, é emblemático: ―Depois de passar quase 18 anos preso
em uma penitenciária de São Luis (MA), Gildeon Ribeiro dos Santos, 34 anos, vai finalmente poder rever sua família, neste
sábado (6/3), em Imperatriz (MA), cidade que fica a 530 km da capital, no sudoeste maranhense. Ao ganhar liberdade
15

Empiricamente, no entanto, como base na experiência de quem atua na área de execução


penal, talvez seja possível afirmar que os presos beneficiados, certamente, não possuíam
advogados constituídos e nem eram assistidos por Defensores Públicos de forma mais atenta, vez
que houve necessidade da intervenção do CNJ para que tivessem reconhecido um benefício
legal.

Os Relatórios dos mutirões publicados pelo CNJ apontam a existência de quadros


deprimentes nas penitenciárias do país, inclusive a existência de presos em “containeres”,
detentos com doenças contagiosas, prisões com quantidade de detentos superior à capacidade,
esgotos a céu aberto etc. Enfim, os mutirões do CNJ serviram para conceder a liberdade e outros
benefícios a milhares de presos, mas serviram também, e principalmente, para mostrar à
sociedade o quadro de horrores que é o sistema penitenciário brasileiro.

As liberdades e benefícios concedidos, no entanto, com base no que foi divulgado, não
tem relação com a falta de estrutura das penitenciárias e violação das garantias fundamentais dos
presos, mas apenas a aspectos processuais.

Não custa lembrar que no Brasil Colônia, aos presos da Cadeia Velha, a Santa Casa de
Misericórdia socorria com enfermeiros, remédios, comida e advogados. Não há registro, no
entanto, que os misericordiosos padres da Santa Casa de Misericórdia tivessem promovido
algum protesto com relação à própria Cadeia Velha ou à violação dos direitos mais básicos dos
detentos.

X – Desfazendo mitos

Segundo Loïc Wacquant, três mitos amplamente divulgados pelo governo e imprensa,
dominam o debate contemporâneo sobre a violência criminal nos EUA. O primeiro pretende que
a política penal no país peca por uma condescendência perene; o segundo afirma que a repressão
é uma política bem sucedida, ao passo que o Estado se revela congenitamente impotente no
domínio social, salvo quando adota a mesma atitude punitiva; o terceiro sustenta que o
encarceramento se torna, no final das contas, por seu efeito neutralizante, menos caro do que o
somatório dos crimes que evita.10

condicional nesta sexta-feira (5/3), depois de ter seu processo analisado pelo mutirão carcerário do CNJ, Gildeon recebeu a
passagem para voltar a sua cidade, roupa e um auxílio em dinheiro para alimentação, fruto de uma parceria entre o Conselho, a
prefeitura de São Luís, o Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), e o governo do estado. "Vão me colocar no ônibus e quando
eu chegar lá, minha mãe estará me esperando. Se não fosse isso, não sei como voltaria para casa, teria que pedir carona, ou
ajuda para alguém", disse.
In < http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10200:libertados-pelo-mutirao-no-ma-recebem-
apoio-para-voltar-para-casa&catid=1:notas&Itemid=675 > acesso em 10.05.2010
10
Wacquant, Loïc. Punir os Pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
16

O caso do Brasil não é diferente. É forte o sentimento com relação à condescendência da


legislação brasileira e é grande a aceitação, pela opinião pública, da implantação da pena de
morte na legislação penal brasileira. Ao lado disso, as penas alternativas não são levadas muito a
sério e, não raro, tornam-se motivo de chacota. No mais, mesmo para boa parte da magistratura
brasileira, a solução é o encarceramento e aplicação de penas cada vez maiores para os
delinquentes comuns.

Os números apresentados neste estudo, porém, destronam estes mitos ao demonstrar que
o nível de encarceramento, em comparação com países desenvolvidos da Europa Ocidental, é
muito alto no Brasil; que a população carcerária cresceu assustadoramente na última década e,
mesmo assim, a criminalidade apenas cresceu e ganhou novos contornos no mesmo período.

Além disso, os números apresentados neste estudo demonstram claramente que a


população carcerária brasileira é composta basicamente pela população pobre e excluída, que
mal sabe desenhar o nome, que cometeu crimes contra o patrimônio e por envolvimento com o
tráfico de entorpecentes.

Por fim, os mutirões carcerários promovidos pelo CNJ, ao anunciar a libertação de mais
de 20 mil presos por excesso no cumprimento da pena, demonstram claramente que não há
condescendência do sistema para quem é pobre e desamparado de boa defesa. Com efeito, a
estatística disponibilizada pelo CNJ não informa detalhes sobre os detentos beneficiados pelos
mutirões carcerários, mas não é difícil supor que se trata de delinquantes comuns, analfabetos e
desamparados de defesa.

XI – Conclusão

E assim, entre obscenidades e resistências, não podemos dizer que concluímos


definitivamente o presente estudo, pois não sabemos ainda os detalhes acerca da população
carcerária beneficiada pelos mutirões carcerários promovidos pelo CNJ.

De outro lado, podemos afirmar que o problema da superlotação dos presídios brasileiros
é antigo e histórico, desde os tempos da Cadeia Velha, bem como é antiga a política de maus
tratos, abandono e violação dos direitos dos presos. Séculos se passaram, mais crimes foram
tipificados, mais penas agravadas e, por lógica, a população carcerária só aumentou a cada ano,
principalmente na última década. Sem dúvidas é o Estado do Bem Estar dando lugar ao Estado
Penal.
17

Os presos, guardadas as devidas proporções, são os mesmos do Brasil Colônia. Antes,


prendiam-se escravos, prostitutas e malandros de todas as espécies. Hoje, prende-se jovens
pobres, analfabetos, no auge da idade produtiva, pela prática de crimes contra o patrimônio e
tráfico de drogas, em grande parte.

Além disso, é interessante observar que as mais altas autoridades judiciárias brasileiras
denunciam o caos do sistema penitenciário brasileiro, mas os Tribunais e CNJ não acolhem as
iniciativas dos juízes de primeiro grau em defesa da Constituição e no cumprimento dos Direitos
Humanos dos Presos. Ao contrário, são promovidos mutirões carcerários para libertar presos
pobres, sem defesa, com direito à liberdade assegurado em Lei, apenas em razão de falhas
processuais na execução da pena, mas sem tocar na grande ferida que é o próprio sistema
penitenciário, violador das garantias fundamentais de toda a população carcerária.

O perfil da população carcerária brasileira, por fim, destrói os mitos da eficiência da


pena, aumento da repressão e condescendência do sistema. Não passam, portanto, de
obscenidades justificadoras da grande obscenidade que é o sistema penitenciário brasileiro.

Resistindo e relembrando as atrocidades da Cadeia Velha; o discurso do Ministro Peluso


reconhecendo a falência do sistema; o reconhecimento do Juiz, pelo CNJ, como “garantidor da
não violação dos direitos e garantias fundamentais” e as estatísticas dos mutirões carcerários do
CNJ, a discussão que agora propomos é a seguinte:

a) Até quando vamos continuar aceitando o atual sistema prisional fundamentado apenas na
justificativa de que, por enquanto, não temos nada melhor?

b) Até quando seremos cúmplices de constantes violações aos Direitos Humanos na medida
em que continuamos, a cada dia, condenando réus a regime fechado em penitenciárias
superlotadas, ou seja, o Estado-Juiz cometendo crimes contra o cidadão, conforme
discursou o Ministro Peluso?

c) Até quando aceitaremos passivamente o descaso e abandono da Constituição e da LEP


quando da execução da pena?

d) Até que ponto os Mutirões Constitucionais estão apenas aliviando a tensão em


penitenciárias superlotadas, que em breve estarão à espera de novos condenados, mas
coma mesma estrutura de antes?

e) Por fim, qual o papel do Direito e das Ciências Penais na superação desse quadro de
horrores?
18

Enfim, este é o debate para o qual convido a todos os “artesãos” do Direito e defensores
dos Direitos Humanos a enfrentar e, por consequência, promover um verdadeiro “mutirão
constitucional” que também tivesse olhos para as violações dos Direitos Humanos, além das
violações do Processo Penal, contribuindo, efetivamente, para a construção da democracia e
fortalecimento do Estado Democrático de Direito.

Muito obrigado a todos pela atenção.


19

Anexo I

Mutirões carcerários, uma aula de Brasil


O Estado de São Paulo, Sexta, 23 de Abril de 2010

Gilmar Mendes, Presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ

Comecemos pelo óbvio: preso é gente. E gente precisa de alimento, educação e trabalho. No
Brasil, porém, a realidade às vezes consegue revogar até axiomas. Aqui, os presídios não são
casas correcionais socializadoras, mas depósitos de seres humanos que, lá chegando, se
transformam em coisas - pelo menos aos olhos apáticos da maioria - e como tal são amiúde
tratados.
Essa constatação vem sendo escancarada diariamente ao País, desde que o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) pôs em execução o Programa dos Mutirões Carcerários.
As deficiências são de toda ordem: desde a já conhecida superpopulação, a exigir investimentos
muito mais consistentes na estrutura carcerária, até o lixo acumulado e a infestação por ratos,
cuja solução é de simplicidade absoluta. No âmbito do sistema de justiça, faltam técnicos e
estrutura mínima de funcionamento em algumas varas de execuções penais. Enquanto
escasseiam defensores, sobram processos aguardando instrução, num quadro em que o excesso
de prazo passa a ser a regra.
De fato, os mutirões carcerários constataram um inadmissível déficit de mais de 167 mil vagas
no sistema prisional - que hoje mantém mais de 473 mil pessoas e cresce em média 7,11% ao
ano. Esse número é ainda mais grave se considerados os milhares de mandados de prisão que
ainda não foram cumpridos. Sem dúvida, o total gasto pela União no ano passado para
construção de presídios é insuficiente e não atinge sequer 3% dos recursos essenciais para a
criação dessas vagas.
A ineficiência sistêmica é mais flagrante no paradoxo de que milhares de réus encontram-se
soltos, sem perspectiva de julgamento, ao tempo em que outros tantos se acham ilegalmente
encarcerados, com excesso de prazo na prisão cautelar ou no cumprimento da pena. E o mais
aviltante: muitos presidiários cumprem, provisoriamente, penas que ultrapassam o teto legal
fixado para o delito que cometeram.
É para reverter tais ignomínias que o CNJ trabalha.
Em um ano e meio de trabalho e após examinados mais de 111 mil processos, foram concedidos
cerca de 34 mil benefícios previstos na Lei de Execução Penal, entre os quais mais de 20,7 mil
liberdades. Em outras palavras, por dia, 36 pessoas indevidamente encarceradas reouveram o
vital direito à liberdade. Quanto à racionalização dos gastos - decisiva num sistema carcerário em
que a superlotação é a regra -, os mutirões resultaram na realocação de vagas equivalentes à
capacidade de 40 presídios médios. Não é pouco, mas há muito ainda por fazer.
A Lei de Execuções Penais determina que os condenados trabalhem ou tenham acesso ao ensino
fundamental. Todavia, recente tese de doutorado defendida na Universidade Estadual do Rio de
Janeiro revela que, em 2008, a média de presos sem trabalho gira em torno de 76% e apenas
17,3% estudam. Também de acordo com a pesquisa, entre os detidos que trabalham, a
probabilidade de reincidência cai a 48%. Para os que estudam, reduz-se a 39%.
Ora, o alto índice de reincidência demonstra que o sistema prisional não atende ao seu principal
20

objetivo - recuperar, reabilitando ao convívio social, aqueles que tiveram a desventura de


infringir a lei.
Ainda que não resolvam, por si sós, a grave situação por que passa o sistema de justiça criminal,
os mutirões descortinaram, jogando luz sobre o incômodo quadro, uma realidade que a
população brasileira, em geral, e o Estado, em particular, preferiam ignorar, como se o problema
não existisse ou não lhes fosse pertinente.
Os explosivos indicadores da violência urbana, o aumento da criminalidade e da sensação de
insegurança demonstram às escâncaras que o problema se agrava a olhos vistos e precisa ser
resolvido com medidas pragmáticas e não paliativas, a exemplo das parcerias que o CNJ vem
fazendo com órgãos públicos e com a comunidade para viabilizar a capacitação profissional
necessária à reinserção dos presos na sociedade, além do acesso a serviços básicos como a
previdência e assistência social.
No abrangente conjunto de ações desenvolvidas pelo CNJ para viabilizar a efetiva reinserção de
egressos, destacam-se projetos como o Começar de Novo, a Advocacia Voluntária, o
Recambiamento de Presos e até a criação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do
Sistema Carcerário (Lei n.º 12.106/09), no âmbito do CNJ, verdadeiros legados estruturantes dos
mutirões carcerários, com frutos até mesmo no plano da justiça criminal. Não por outro motivo,
o 3.º Encontro Nacional do Judiciário, realizado no início do ano, elegeu o ano de 2010 o ano da
justiça criminal.
De fato, os mutirões nos dão uma aula de Brasil, cujas revelações ensinam que apenas um
esforço conjunto, sério e planejado pode virar essa página tão triste e calamitosa, tanto do ponto
de vista dos direitos humanos como da segurança pública. Daí a elaboração de ampla Estratégia
Nacional de Justiça e Segurança Pública, alicerçada em estreita colaboração entre os órgãos do
Judiciário, do Executivo e do Ministério Público, direcionada à superação dos problemas que,
além de empalidecerem a efetividade da lei, atrapalham o fortalecimento das instituições
democráticas no País.
Pressuposto dessa integração de ações é o reconhecimento da extensão do problema e da própria
responsabilidade de cada uma das instituições ligadas ao sistema carcerário. O momento é de
abandonar a postura da transferência de culpas para abraçar a da corresponsabilidade, com
planejamento e atuação articulados.
Por ação ou omissão, o tirano nessa história não pode ser mais o Estado brasileiro, cujo
crescimento econômico, em plena crise mundial, tem despertado admiração nos quatro cantos do
mundo. Passa da hora de o País alçar ao ranking exemplar da responsabilidade social,
garantindo, minimamente, proteção aos direitos fundamentais, sobretudo dos segmentos mais
vulneráveis da população.
Fonte: http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10750:presidente-
gilmar-mendes-mutiroes-carcerarios-uma-aula-de-brasil&catid=412:artigos&Itemid=1166
21

Anexo II

Entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo pelo Juiz Livingsthon José Machado

Qual era a situação carcerária quando o senhor assumiu a Vara de Execuções Criminais
em Contagem?
Livingsthon José Machado — À época [2005], havia seis unidades prisionais [em delegacias] e
uma prisão de segurança máxima. As seis delegacias tinham presídios em situação
irregular. Num distrito, em razão do excesso de presos, o delegado pôs uma grade no corredor,
que virou uma cela com 28 presos.

Por que o senhor determinou a primeira soltura de presos?


Machado — Naquele distrito, 16 presos cumpriam pena ilegalmente. Ordenei a transferência
deles depois que o Ministério Público pediu a interdição do presídio. Como foi vencido o prazo e
não houve a transferência, expedi 16 alvarás de soltura.O Estado, através da Procuradoria,
ajuizou um mandado de segurança, dizendo que a decisão contrariava o interesse público. O
desembargador Paulo César Dias deu a liminar e suspendeu a ordem de soltura. Duas semanas
depois, a situação em outro distrito era caótica. Em quatro celas, cada uma com capacidade para
4 presos, havia 148, dos quais 39 esperavam transferência para a penitenciária havia quatro anos.
Também expedi mandado de soltura para os 39. Novo mandado de segurança foi impetrado e
nova liminar foi dada.

Ficou caracterizado que houve desobediência sua?


Machado — A alegação foi que eu desobedeci reiteradamente a decisão do desembargador. Não
houve isso. No dia 22 de novembro de 2005, um juiz corregedor me avisou que eu seria afastado
no dia seguinte. Fui afastado sem possibilidade de defesa. Só fui intimado para responder a esse
processo em março do ano seguinte. Em setembro de 2007, a corte decidiu o meu afastamento.
Apesar de a lei dizer que juiz só pode ser afastado por decisão de dois terços, esse quórum não
foi alcançado. Só um desembargador examinou as provas. Votou pela minha absolvição.

Como o Ministério Público atuou no caso?


Machado — Nomeou uma comissão de dez promotores para apurar possíveis crimes que eu
teria praticado. Quando foi assassinado um promotor em Belo Horizonte, a Procuradoria
designou três promotores.

Qual foi a reação dos juízes de primeiro grau?


Machado — A associação dos magistrados fez uma nota depois do meu afastamento, dizendo
que era inadmissível aquela ingerência. Houve solidariedade de juízes de outros países.
Independentemente de chamar a atenção ou não, eu faria o que fiz. No país há um descaso com a
população carcerária. O que fiz foi cumprir o dispositivo constitucional de que a prisão ilegal
deve ser relaxada.

Como o senhor recorreu das decisões?


Machado — Assim que o tribunal decidiu me afastar, recorri em mandado de segurança aqui no
tribunal. Foi denegado. Contra essa decisão, impetrei um recurso ordinário que tramita no
Superior Tribunal de Justiça. Publicada a decisão do tribunal daqui, entrei com recurso no
Conselho Nacional de Justiça em 10 de outubro de 2007. Ficou um ano e meio sem o então
22

corregedor despachar. Foi distribuído ao relator Paulo Lobo, que, após alguns meses, disse que
não conhecia da revisão [não seria o caso de julgar], porque eu já havia ajuizado recurso
ordinário no STJ. Eram coisas diferentes. No CNJ, alego que não houve desobediência. No STJ,
contesto a decisão do tribunal. Contra essa denegação do CNJ, há um mandado de segurança no
Supremo Tribunal Federal, cujo relator é o ministro Menezes Direito, que indeferiu a liminar.
Agora, o tribunal em Minas abriu processo para minha aposentadoria compulsória.

Por que o senhor não aceitou a remoção para uma vara cível?
Machado — Há recursos a serem decididos. Se eu assumisse, estaria aceitando a punição.

O governo do Estado alega que acelerou a construção e a melhoria de presídios. É


verdade?
Machado — Aqui, em Contagem, as unidades prisionais deixaram de existir em 2007.Hoje, só
existe a penitenciária. De certa forma, foi um dos efeitos da ação. Não tem mais preso condenado
em delegacia aguardando vaga na penitenciária. Foi criado um centro de internação provisória.
Mas, num distrito investigado pela CPI do Sistema Carcerário, viram que a situação continuava
grave.

Quando o senhor decidiu que iria deixar a Magistratura?


Machado — Quando vi a Constituição sendo rasgada.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2009-mai-27/juiz-mandou-soltar-presos-contagem-deixar-
magistratura

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