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A EUCARISTIA

Se quisermos adquirir uma compreensão correcta do significado e importância da


Eucaristia ou Ceia do Senhor, devemos começar pelas referências escriturais
primárias:

Mateus 26: 26-29

Enquanto comiam, Jesus tomou pão e, abençoando-o, o partiu e o deu aos


discípulos, dizendo: Tomai, comei; isto é o meu corpo. E tomando o cálice, rendeu
graças e deu-lho, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue do pacto,
o qual é derramado por muitos para a remissão dos pecados. Mas digo-vos que
desde agora não mais beberei deste fruto da videira até aquele dia em que
convosco o beba novo, no reino de meu Pai.

Marcos 14: 22-25

Enquanto comiam, Jesus tomou pão e, abençoando-o, o partiu e deu-lho, dizendo:


Tomai; isto é o meu corpo. E tomando o cálice, rendeu graças e deu-lho; e todos
beberam dele. E disse-lhes: Isto é o meu sangue do pacto, que por muitos é
derramado. Em verdade vos digo que não beberei mais do fruto da videira, até
aquele dia em que o beber, novo, no reino de Deus.

Lucas 22: 14-20

E, chegada a hora, pôs-se Jesus à mesa, e com ele os apóstolos. E disse-lhes:


Desejei ardentemente comer convosco esta páscoa, antes de padecer; porque vos
digo que não comerei mais dela até que se cumpra no reino de Deus. Depois tomou
um cálice, e tendo dado graças, disse: Tomai-o, e reparti-o entre vós, porque vos
digo que desde agora não mais beberei do fruto da videira, até que venha o reino
de Deus. E tomando pão, e havendo dado graças, partiu-o e deu-lho, dizendo: Isto
é o meu corpo que por vós é dado; fazei isto em memória de mim.
Semelhantemente, depois da ceia, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o novo
pacto em meu sangue, que é derramado por vós.

1 Coríntios 11: 23-34

Porque eu recebi do Senhor o ensino que também vos transmiti: que o Senhor
Jesus, na noite em que foi traído, tomou pão; e, havendo dado graças, o partiu e
disse: Tomai, comei. Isto é o meu corpo que por vós é partido; fazei isto em
memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice,
dizendo: Este cálice é o novo pacto no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o
beberdes, em memória de mim. Todas as vezes que comerdes este pão e beberdes
este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha. De modo que qualquer
que coma este pão e beba este cálice do Senhor indignamente, será culpado do
corpo e do sangue do Senhor. Portanto, examine-se cada um a si mesmo, e assim
coma do pão e beba do cálice. Porque o que come e bebe, não discernindo o corpo,
juízo come e bebe para si. Por isso há entre vós muitos fracos e doentes, e muitos
que dormem. Mas se nos examinássemos bem a nós mesmos, não seríamos
julgados. Mas sendo julgados, somos disciplinados pelo Senhor, para que não
sejamos condenados com o mundo. Assim que, meus irmãos, quando vos reunais
para comer, esperai uns pelos outros. Se alguém tem fome, coma em sua casa,
para que não vos reunais para juízo. As demais coisas as porei em ordem quando
chegar.
Dos relatos dos Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) sabemos que, no
contexto de uma ceia pascal, Jesus tomou pão, deu graças a Deus, o partiu e o deu
aos seus discípulos dizendo "Isto é o meu corpo." Também agradeceu pelo cálice de
vinho, e lhes mandou beber. Mateus e Marcos nos informam que o Senhor disse
"Isto é o meu sangue do pacto..."

Os católicos romanos crêem que as palavras de Cristo devem tomar-se num sentido
completamente literal, ou seja, que Jesus verdadeiramente transformou o pão e o
vinho em Seu corpo e Seu sangue, Sua alma e Sua divindade.

Os principais argumentos a favor desta opinião são:

1. O próprio texto, ou seja, as palavras da instituição.

2. As circunstâncias: Cristo não haveria de ser ambíguo nem de extraviar os seus


discípulos nesta solene instância.

3. As consequências práticas derivadas por Paulo a partir das palavras da


instituição (1 Cor 11:27ss).

4. O fracasso dos argumentos contra uma interpretação literal. Embora em algumas


passagens o verbo "ser" tenha um sentido figurativo, nestes casos isso é evidente
(por exemplo, "o campo é o mundo", Mateus 13:38).

[Ludwig Ott, Manual de Teología Dogmática, 6th Ed, pp. 557s].

A estes argumentos pode responder-se, por ordem:

1. Os próprios textos têm várias indicações que mostram que não deve interpretar-
se como uma transubstanciação literal do pão e do vinho na carne e no sangue do
Senhor. Quando, segundo Lucas, o Senhor disse "Isto é o meu corpo que por vós é
dado. Fazei isto em memória de Mim", a crucificação não havia ocorrido ainda, e
portanto Jesus estava a referir-se a um acontecimento ainda futuro. O mesmo é
verdade acerca do vinho, uma vez que o Senhor disse que o seu sangue haveria de
ser derramado (ou seja, não havia sido derramado ainda durante a última ceia).
Alguém também se poderia perguntar como é que o sangue haveria de ser
literalmente bebido e literalmente derramado, ao mesmo tempo e no mesmo
sentido. Também segundo o relato de Marcos (seguido também por Mateus), Jesus
lhes deu a beber do cálice enquanto Ele mesmo se absteve de beber então do que
chamou, naturalmente, "o fruto da videira". Destas palavras do próprio Senhor
sabemos que o vinho continuava sendo vinho, e não se havia tornado sangue como
o afirma a doutrina romana. Finalmente, segundo o relato de Lucas, em vez de
dizer-se que o vinho é o sangue do Senhor, Jesus diz que o cálice é "o Novo Pacto
em meu sangue". Obviamente o cálice não é o Novo Pacto, mas o representa; de
igual modo o vinho não é o sangue, mas o representa.

2. O mero facto de os discípulos terem comido o pão e terem bebido o vinho sem
protesto nem objecção é em si mesmo um poderoso indicador de que não
entenderam literalmente as palavras do Senhor. Beber sangue estava
absolutamente proibido para um judeu, e os Apóstolos levavam a sério a Lei (cf.
Actos 10:9-16 e 15:19-29). Certamente Jesus saberia melhor do que qualquer
teólogo se os seus discípulos necessitavam de maior explicação acerca de um acto
que, por sua própria natureza, tinha obviamente de ser tomado em sentido não
literal.
3. As consequências práticas derivadas por Paulo certamente não exigem um
entendimento literal das palavras da instituição da Eucaristia. É um facto que, para
o Senhor, as questões espirituais eram de importância primária; Jesus ensinou que
o ódio não era melhor do que o homicídio, e a luxúria não era menos do que o
adultério. Portanto, não há dificuldade alguma em admitir que podem derivar-se
consequências graves de participar indignamente da Eucaristia sem necessidade de
supor a transformação física do pão e do vinho na carne e no sangue de Jesus.

4. Jesus disse: "Eu sou a porta das ovelhas"; "Eu sou o caminho", "Eu sou a videira
verdadeira", "Eu sou o alfa e o ómega". Sem dúvida que todas estas são
evidentemente imagens. Não deveria ser menos evidente que o chamado a
participar da carne e do sangue de Jesus é uma imagem de uma realidade
espiritual e não deve de ser entendido em sentido grosseiro. Quem não entendeu
isso? Os pagãos que criam que os cristãos praticavam o canibalismo.

Os escritores cristãos primitivos, como Inácio de Antioquia, Justino Mártir e Ireneu


de Lyon falaram da Eucaristia numa linguagem que é compatível com a crença
numa presença física, mas que, dada a sua forma habitual de expressar-se, de
modo algum a exige.

No terceiro século da nossa era, Tertuliano, Hipólito e Cipriano avançaram na


mesma direcção. Tertuliano aludiu ao pão como uma figura do corpo. Contudo,
Cipriano pensava também a Eucaristia como um sacrifício, embora espiritual e
incruento, oferecido pela Igreja como Corpo de Cristo e identificada com o seu
Senhor. Gregório de Nissa, Cirilo e João Crisóstomo, e em particular Ambrósio de
Milão (339-397) se inclinaram para uma presença física real, ou seja algum tipo de
transformação verdadeira dos elementos, pão e vinho, na carne e no sangue de
Cristo. Estes desenvolvimentos formaram a base da doutrina católica actual, que
exige um sacerdócio especial para realizar o sacrifício.

Entretanto, outros mestres entenderam a Eucaristia num sentido mais espiritual;


por exemplo, Orígenes, Basílio e Gregório de Nazianzo. O pão e o vinho eram para
eles símbolos de uma realidade espiritual que estava verdadeiramente presente de
modo misterioso. Na mesma linha, Agostinho de Hipona (354- 430) "enfatizou a
distinção entre o símbolo e a coisa significada, as realidades visíveis e invisíveis,
sendo as últimas apreensíveis somente pela fé." [International Standard Bible
Encyclopedia 3:167]. As opiniões de Agostinho foram elaboradas por Ratramnus no
século IX. Contudo, gradualmente esta interpretação perdeu a batalha numa igreja
crescentemente ritualista, e quando no século XI Berengário de Tours a reformulou,
os seus ensinamentos foram condenados pela Igreja de Roma.

Um par de séculos antes, Pascasius Radbertus havia formulado a doutrina da


transubstanciação, a qual foi sancionada pelo IV Concílio de Latrão de 1215. Pouco
depois Tomás de Aquino proveu uma base filosófica baseada em distinções
aristotélicas entre substância e acidentes. O assunto foi definitivamente
estabelecido para a Igreja de Roma no Concílio de Trento:

"Can. 1. Se alguém negar que no santíssimo sacramento da Eucaristia se contém


verdadeira, real e substancialmente o corpo e o sangue, juntamente com a alma e
a divindade, de nosso Senhor Jesus Cristo e, portanto, Cristo inteiro; mas disser
que só está nele como em sinal e figura ou por sua eficácia, seja anátema." (Cânon
1; Sessão XIII de 11 de Outubro de 1551; Denzinger 883)

Os Reformadores do século XVI adoptaram diferentes pontos de vista acerca da


Eucaristia, que se afastavam em medida variável do dogma romanista.
Actualmente há quatro enunciações principais acerca da natureza da Eucaristia:

1. Conceito católico romano: Transubstanciação. Segundo esta crença, pelas


palavras da consagração pronunciadas pelo sacerdote, o pão e o vinho se
transformam na carne e no sangue de Jesus (a doutrina católica estabelece, além
disso, que Cristo está inteiramente presente em cada uma das espécies). Sustentar
esta doutrina exige crer que cada vez que se celebra uma missa se produzem dois
milagres. O primeiro é que as palavras da consagração operam a suposta
transformação; e o segundo, não menos surpreendente, é que produzida a
transformação da substância os atributos externos ("acidentes", aparências: cor,
consistência, sabor, cheiro) permanecem absolutamente imutáveis. É interessante
que, por exemplo, Ambrósio ensinasse a presença real (física) baseado noutros
milagres realizados por Jesus, como a transformação da água em vinho em Caná
da Galileia. Contudo, todos os milagres realizados por Jesus e pelos Apóstolos
tiveram resultados imediatos e evidentes. Em Caná, as pessoas provaram vinho
que tinha a cor de vinho, cheirava como vinho e sabia como vinho. Ninguém
tomaria seriamente um suposto milagre sem consequências perceptíveis. Além
disso, a transubstanciação implica um novo sacrifício, incruento e subordinado ao
sacrifício da cruz, mas sempre sacrifício, oficiado por um sacerdote como
representante da Igreja, repetido inumeráveis vezes quando Hebreus estabelece
claramente que o efeito do único sacrifício de Cristo é perdurável e não requer nem
admite repetição. Finalmente, a crença na transubstanciação leva à conclusão
lógica de que os elementos consagrados se tornam em objectos de adoração, um
costume que não tem absolutamente nenhuma base no Novo Testamento.

2. Conceito luterano: Consubstanciação. Martinho Lutero modificou a doutrina


romanista e rejeitou enfaticamente a adoração dos elementos consagrados.
Contudo, na sua opinião o corpo e o sangue de Cristo estavam verdadeiramente
presentes em, com e sob a forma do pão e do vinho durante a celebração do
sacramento, de novo com base numa interpretação muito literal das palavras de
Jesus.

3. Conceito calvinista: Calvino ensinou que Cristo está verdadeiramente presente


na Eucaristia, mas de maneira espiritual – em oposição a uma presença física - e
que portanto o pão e o vinho são fontes de poder e santidade para aqueles que
participam dignamente deles.

4. Conceito simbólico. Embora às vezes associado ao nome do reformador Ulrico


Zwinglio, na verdade este teólogo não negou uma presença espiritual, ainda que a
tenha baseado na fé daqueles que partilham a Eucaristia. Algumas Igrejas
evangélicas sustentam que o pão e o vinho são exclusivamente símbolos.

Pessoalmente inclino-me para o ponto de vista calvinista, não somente pelas


palavras da instituição do próprio Senhor, mas pelo ensino de Paulo acerca das
consequências de participar negligentemente da Eucaristia (1 Coríntios 11:23-34).
Na minha opinião, estas palavras devem levar-se muito seriamente e indicam que
Jesus está verdadeiramente presente, embora em sentido espiritual.

Finalmente, ofereço algumas reflexões sobre o significado da Eucaristia.

1. Gratidão pela libertação. Como na páscoa do Antigo Pacto, a acção de graças


(eucaristia) pela libertação do pecado é um dos aspectos mais importantes na Ceia
do Senhor.
2. Expressão de fé. Paulo afirma que cada vez que celebramos a Eucaristia estamos
proclamando a morte expiatória do Senhor, e devemos continuar fazendo-o até à
sua segunda vinda em glória e majestade.

3. Comunhão com Deus. Quando recebemos o pão e o vinho é-nos concedida


participação nos dons de Deus. A comunhão com Deus é portanto um aspecto
importante.

4. Comunhão uns com os outros. A Eucaristia foi desde o princípio um acto


comunitário e uma expressão de fraternidade cristã. Portanto, quando a
partilhamos expressamos a nossa fé comum e amor uns aos outros.

O resultado de tudo isto é o fortalecimento espiritual das nossas vidas tanto como
crentes individuais como no nosso carácter de membros do Corpo de Cristo.

Fernando D. Saraví

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