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NO MEU MUNDO

Joice S. A. Atique
Disse ao sol para que se adiantasse.
Ele não me ouviu.
Disse aos anos de minha vida: "Pulem alguns dias".
Eles continuaram a contar cada segundo.
E esta é a história que foi contada no meu mundo:
1Como Começou

Esta história se passa no meu mundo; cuja entrada no início não tinha trancas.
Coisas de toda e qualquer natureza recebiam minha imediata permissão para entrar e lá se
alojar, ou simplesmente partir e cair no esquecimento. Isto antes de eu conseguir distinguir
o bem do mal, ou mesmo de saber que tais coisas existiam.
Nesta época eu seguia o vento, sem nunca saber para onde ele ia. Ele era o meu guia
e minha desculpa. Ele é que sobrava, eu apenas seguia. Ele espalhava meus segredos,
assumia os meus erros, queimava o meu rosto e me ninava em seu balanço. E eu era fiel ao
meu ditador, só queria passar toda a minha vida acomodada nos braços do doce vento.
Em uma destas voltas eu vi um Homem. Ele estava do lado de fora apenas me
observando. O seu olhar não era nem de inspecionista, nem de curioso. Em seu rosto havia
apenas a expressão serena dos que traçam planos possíveis. Ficava olhando, mas não
entrava, e também não se afastava.
Logo o vento me levou para longe do Homem. E eu já me esquecia Dele quando,
entre as muitas coisas que eram por mim ouvidas e vistas, um dia entrou em meu mundo
informações sobre aquele Ser. Passei então a assimilar a sua figura com a história da estrela
que anunciou um nascimento, uma cruz, alguém preso a ela e um nome: Jesus. “Ele
desejava entrar”, era o que muitos diziam.
Olhei bem para Ele. Já ouvira falar de Seus poderes especiais. No seu currículo Ele
tinha a criação do mundo, curas milagrosas e controle sobre o vento e o mar. Talvez fosse
um tipo de gênio da lâmpada! Desejei que pudesse tê-lo sempre a vista, que ele estivesse ao
meu alcance para quando eu quisesse realizar os meus desejos. E além do mais, eu
simpatizava com Ele. O Seu rosto era agradável, algo confortante radiava daquela face.
Estava certa então de que parecia um bom negócio ter Jesus.
Presumi que para Ele entrar no meu mundo era uma necessidade e a razão de sua
existência. Fui ao limite da fina cerca que envolvia o meu mundo, e, com os braços
apoiados nela, olhei para o visitante.
Ele parecia tão desprotegido e abandonado lá fora, será que tinha fome? Sentia
sede? Passava frio? Chorava? Resolvi então atender as Suas preces: “Vem, eu deixo você
entrar.”
Revoltante foi a minha surpresa quando ele disse que não podia! Fiquei chocada.
Olhei-o com desprezo.Virei de costas e saí andando.
“Como assim não pode?” Rodeava minha vida há anos, eu sabia que ele queria.
Todo mundo me garantiu que era só pedir, e ele veio me dizer que não podia? Resolvi
ignora-lo, esquecer. Afinal algo que nunca tive não poderia me fazer falta.
Mas dia seguinte o seu olhar me inquietava. Apesar de querer eu não podia expulsa-
lo, estava fora dos meus limites! Também não conseguia esquecer Sua presença e voltar a
viver normalmente sabendo que Seus olhos estavam o tempo todo sobre mim. Ouvira dizer
que ele também tinha o poder de ler pensamentos, o que poderia ser mais assustador do que
esta hipótese?
Com voz arrogante e olhar superior me aproximei novamente e, tentando fazer com
que soasse mais como uma curiosidade do que como um pedido, eu fiz outra pergunta:
-Por que não pode entrar?
-Porque está cheio.
Novamente a resposta me espantou, mas desta vez também me desarmou. Fiquei
olhando para Sua face esperando uma explicação. Ele apenas se sentou no chão e com as
mãos descompromissadas começou a mexer na grama que estava ao Seu redor. Não parecia
disposto a continuar o assunto. Olhou para o céu e encostou as costas no solo usando um
dos braços para apoiar a cabeça.
Já estava desistindo de compreender e determinada a virar de costas novamente
quando Ele levantou a mão que estava livre e, com volume e tom mais baixo que o natural,
disse:
- Olhe ao redor e veja.
Hesitei por alguns segundos. Cheio? Havia coisas e mais coisas entrando a todo o
momento e elas nunca reclamavam do espaço. Virei de frente para o meu mundo e pela
primeira vez percebi: tinha o mesmo aspecto de um quarto de brinquedos, mas este
definitivamente tinha brinquedos demais. Estava uma bagunça, cheguei a sentir vergonha
de tê-lO convidado. Como eu poderia querer que alguém tão importante como Jesus
entrasse no meu coração se não dava nem para andar nele?
Não olhei para traz, não fiz mais perguntas. Comecei a andar pelos corredores do meu
mundo observando o que se encontrava pelo caminho. Pensei que talvez fosse necessário
me livrar de alguns daqueles objetos, mas afastei logo a idéia da minha cabeça, apesar de a
maioria não ser útil, a verdade é que eu gostava deles.
Resolvi que a solução era procurar um lugar onde pudesse esconder tudo aquilo,
para que nada ficasse no meio do caminho; nada ficaria aos olhos, nada incomodaria o
Homem. Construí armários; vários, imensos, com gavetas e mais gavetas, com espaço para
guardar quantos brinquedos eu quisesse. E então guardei tudo.
Quando terminei o trabalho a diferença era sensível, as pessoas que por ali passavam
não viam o interior dos armários; apenas se admiravam e me parabenizavam pela
arrumação.
Senti certa tranqüilidade. "Esta vendo? Não preciso Dele!". Todos ao meu redor
estavam satisfeitos, assim como eu estava. De nada teria que me livrar se soubesse
esconder.
Aquela aparência de ‘tudo certo por aqui’ era um escudo que guardava a minha
mente dos olhos Dele, assim eu ficava imaginando que apesar de não termos muito contato
Ele estava satisfeito comigo.
Então fui me acomodando; algo grande demais para as gavetas eu deixava no chão,
armários cheios derramavam coisas pelo caminho, caprichos que eu gostava de ter a vista
ficavam expostos. E foi assim que em um tempo surpreendentemente curto o meu quarto
voltou a ser uma bagunça, desta vez muito maior do que antes! E eu não sabia o porquê,
mas se antes a bagunça nem me incomodava, agora ela me atormentava.
Fiz mais alguns esforços para arrumá-lo, mas não consegui. Desanimava-me a certeza
de que a força necessária para mantê-lo em ordem era maior do que eu poderia agüentar. O
escudo que protegia a minha mente foi trocado por uma angustia constante, e me esforcei
para fugir da presença do Homem.
Chegou o dia em que o calor do desespero derreteu aquela montanha de brinquedos e
a transformou em um mar furioso. Quis abrir a porta do meu mundo e deixar tudo aquilo
escoar para fora da minha vida, mas era tarde. As nuvens escuras haviam escondido o sol,
eu não conseguia ver a porta, e mesmo se conseguisse, nadar naquela água agitada era
impossível.
Os trovões ficavam mais fortes, e as ondas maiores. Uma onda gigante me puxou
para o fundo com violência, eu tentava voltar à superfície, mas a água fazia o caminho
contrário e por mais que batesse as pernas e puxasse a água com os braços, eu mal
conseguia sair do lugar. Minha força estava acabando, mas o medo do fim me fazia lutar.
Quando finalmente consegui colocar as mãos para fora da água e estava prestes a ter um
pouco de ar outra onda me submergiu. E eu me entreguei. Relaxei os meus braços, desisti
de bater as pernas, rolei junto com a água, fechei os olhos e esperei. Então tudo ficou
calmo. Teria acabado? Eu Teria morrido? Mas... era ar que estava entrando em mim?
Despertei em desespero, eu estava novamente na superfície, viva e respirando. Mas a
tempestade continuava.
-Socorro! Estou me afogando e não há ninguém que possa me ajudar!
Não sabia bem para quem estava gritando. Não tinha esperanças de que realmente
existisse algo que pudesse me resgatar. Talvez o instinto de sobrevivência me fizesse pedir
por socorro. Mas contrariando as minhas expectativas, houve uma resposta:
-Eu posso. Eu posso te ajudar – era o Homem.
Por um momento acreditei, mas então me lembrei de como o nosso relacionamento
era superficial. A gente não se falava há tanto tempo... tanto tempo.
-Mas você não quer entrar em um coração cheio, e a verdade é que de maneira
nenhuma, mesmo que eu use todo o tempo de minha vida, nunca conseguirei coloca-lo em
ordem.
-Nunca pedi para que você arrumasse o seu mundo.
-Mas como então? Você não quer entrar nele sujo e também não quer que eu limpe?
-Você só tem que pedir.
Meu olhar era confuso, sinceramente nenhuma idéia que soasse como aquela já havia
passado pela minha cabeça.
-Pedir o que?
-Para Eu limpar.
‘Não!’
-Não! Limpar meu mundo para mim? Não! Não pode! É a minha sujeira, o Sr não tem
nada a ver com isso! Não pode fazer um trabalho que é meu! Eu fiz e é meu dever limpar!
Por um momento Sua voz se silenciou, pude ouvir o eco das minhas palavras
insensatas se misturar com os trovões que cobriam a minha vida.
-Mas você sabe que não pode.
‘Sim, eu sabia.’
-Sim, eu sei.
-Você tem uma escolha, aceita a minha ajuda ou espera a onda que vai levá-la para
sempre. Mas saiba que quando não puder mais mexer seus lábios para pedir a minha ajuda
Eu não farei mais nada.
-O Sr não merece passar por isso.
-Mas Eu quero.
-Por quê?
-Porque um dia eu também tive que escolher, ou ficava no céu ao lado dos anjos e
assistia você se afogar hoje, ou vinha para a terra e me afogava no seu lugar.
Senti meu coração parar, ou melhor, era como se ele tivesse acabado de bater pela
primeira vez. Finalmente entendi o significado das palavras: "olhe ao redor e veja". Agora
eu podia ver.
- A história da cruz...
Ele acenou positivamente com a cabeça.
-Salve-me.
E então ele entrou.
2 A Caminhada

Senti uma felicidade sincera que realmente não lembrava de já ter experimentado.
Meu andar parecia mais leve, as pequenas coisas tinham finalmente um sentido, a luz do sol
com certeza brilhava mais forte e até nos dias chuvosos algo dentro de mim parecia sorrir.
-Como pode ser isso? - perguntei maravilhada
-Venha, vou te mostrar.
Andando ao meu lado ele foi me guiando, sem dizer nada, mas com gestos gentis de
carinho que facilmente responderiam as mais astutas perguntas que um homem seria capaz
de formular. Distraída não percebi que a medida que andávamos o solo ficava cada vez
mais macio, até que se transformou em uma terra fofa e muito vermelha.
-O que é isso?
A minha curiosidade não parecia afetá-lO, ele apenas sorriu e levantou os olhos, foi
então que vi um extenso e abundante riu que passava pelo centro do que agora parecia mais
um campo do que um quarto.
-O que...?
Não tive tempo de perguntar, ele já tinha saído correndo em direção a uma porção de
terra perto da água que parecia ter sido remexida.Corri também, e quando ele olhava para
trás mostrava alegria e sorria para mim, mas, diferente de antes, agora era um sorriso
brincalhão com o mesmo olhar animado que vemos em uma criança que quer contar um
segredo. Ele parecia um garoto. Não podia ser a mesma pessoa, não se parecia com aquele
homem calmo de olhares doces que a pouco andava ao meu lado, naquele dia conheci um
outro Jesus, e pensei que talvez nunca vivesse o suficiente para conhecer todos os que
existiam.
-Olhe!
Ele parou em frente ao lugar para onde tinha corrido e agora eu podia ver que
algumas plantas pequeninas estavam crescendo no local. O Garoto se ajoelhou, passou a
mão com ternura e dedicação em uma das mais delicadas e olhou para mim.
-Olhe o que eu plantei para você!
Seus olhos sensíveis pareciam me suplicar algo, mas tudo o que consegui fazer foi
ajoelhar e chorar. Compreendi que Ele não estava ali apenas para retirar o que não gostava,
mas que se empenharia em transformar o deserto em um lugar que O agradasse.
Passávamos os dias na margem do rio. E eu tive a oportunidade de conhecer o Senhor.
Este me explicou com palavras sábias e eloqüentes o que eram e como eu poderia cultivar
as plantas que continuavam a ser semeadas. Falou-me sobre a alegria plena e sobre o amor,
da sabedoria e do temor a Deus, da paz e da fé...estas plantinhas cresciam mas eram muito
sensíveis e delicadas, precisavam de atenção e trabalho constantes, havia sempre um
galhinho a podar e necessitavam de muita água e adubo, que existiam com fartura mas que
muitas vezes aquele Senhor tinha que puxar minha orelha para que eu não deixasse de
colocar por pura preguiça.
Apesar da grande quantidade de trabalho que tínhamos pela frente, e do Professor
sempre exigente, havia tempo.
Havia tempo para me divertir me deliciando com as águas do rio que parecia não
cansar de me refrescar, brincando entre as plantas e colhendo seus frutos, aproveitando a
luz do sol e percebendo que a noite sempre trazia estrelas.
Também havia tempo para saborear o carinho e a compreensão do meu Senhor, na
verdade ele respondia as minhas perguntas apenas com sorrisos, olhares e gestos que não
traziam a resposta que eu tanto esperava, mas que de alguma forma ao invés de me
confundirem me envolviam em paz! Aquele Homem parecia só ter amor a me oferecer não
importava o que eu tinha a dizer, e eu me lembrava destas palavras "permanecem a fé a
esperança e o amor, porém o maior destes é o amor", e quanto mais andávamos juntos mais
eu dependia e necessitava de sua companhia.
3 A Caverna

Em uma manhã chuvosa o vento frio e as nuvens no céu me fizeram ter vontade de
dormir mais um pouco, e eu não fui cuidar das plantas, deixei de ouvir as palavras de
sabedoria e não procurei Aquele que me transmitia paz. Dizia que assim que a chuva
parasse tudo voltaria ao normal e eu reencontraria meu Amigo. Mas como ela parecia
determinada a reinar ainda por um longo período fiquei embaixo do cobertor e aquele
esconderijo era tudo o que eu via.
Passaram-se dias, meses...e eu me acostumei com aquela caverna e cheguei mesmo a
duvidar que existisse algo além dos limites da minha cama. O jardim, o Rio... estava tudo
distante, tão perto da simples imaginação, Deus parecia irreal...
Percebi pelo som que a tempestade havia parado, "talvez eu devesse sair", mas não
tinha coragem, aquele havia virado o meu mundo, e eu me agarrava firmemente a cada uma
daquelas pedras úmidas e dolorosas que constituíam a minha nova casa. "O rosto de
decepção de Jesus se visse para que havia morrido..." não, não suportava a idéia de encarar
Aquele que já fora meu salvador...não agüentaria Suas acusações...
Até que não consegui dormir. Faltava ar, havia um cheiro naquele lugar, estava
apodrecendo aos poucos, e eu lá dentro sentia uma solidão que parecia determinada a
roubar minha alma. O desespero se apossou da minha mente, lembrei de uma promessa que
Alguém havia feito "talvez fosse verdade, talvez Ele realmente exista, talvez seja para
sempre..." levantei decidida a refazer a aliança com a única rocha na qual realmente fazia
sentido apoiar a minha vida... iria voltar ao Jardim e encontra-lo.
Procurei uma saída, não havia, hesitei "não posso pedir que ele entre aqui, não posso
suportar que me veja assim...", insisti em continuar procurando a saída sozinha, comecei a
perder a esperança, aquelas pedras menores e cheias de ressentimentos voltavam a parecer
um bom refúgio para uma alma cansada, mas eu sabia que elas nunca me tirariam dali,
ajoelhei e gritei:
-Pai!
Foi apenas o que eu disse. E ele veio, de braços abertos correndo ao meu encontro, me
abraçou, me beijou, minhas lágrimas molhavam seu sorriso.
-Estava esperando você chamar.
Meus olhos indagavam como Ele conseguira entrar no meu esconderijo.E então
reconheci.
Não conseguia parar de chorar, naquela caverna que fedia amor-próprio, toda escura
por causa das nuvens de insatisfação, com um ar de ingratidão sufocante, era naquilo que o
meu jardim havia se transformado, e agora, aquele era o meu mundo.
Um pensamento me afligiu, todo aquele tempo Ele estava lá, minha vida se tornou
algo desagradável e doloroso para o Seu Ser, mas ele não a abandonou. Revivendo seus
momentos na cruz ele parecia sempre disposto a sacrificar-se, mais uma vez minha
existência lhe trazia dor, mais Ele não desistiu, nunca o faria.
Seus olhos tocaram os meus, senti vergonha, meu corpo ficou pequeno demais para o
meu coração! Coloquei minha cabeça aos Seus pés e tentei pensar em uma maneira de me
redimir, mas tudo o que conseguia fazer era pedir perdão. E ele ouvia de tal maneira que eu
sabia que na verdade esquecia de cada ofensa no mesmo momento em que eu as
confessava.
Levantei os olhos, o homem me fitava com o carinho e a atenção característicos. Senti
Seu perfume suave com alegria, finalmente podia respirar...
Aprendida a lição. Quando a noite se aproximava, antes que eu mergulhasse em
dúvida e medo, Ele me ensinava a olhar por dentro da dor e então eu podia ver todas
aquelas estrelas que o céu noturno era capaz de trazer, sabendo que sempre haveria luz o
suficiente para dar o próximo passo.
4 A Chave

Quando andamos com um ser de grandeza infinitamente superior a nossa, devemos


estar sempre preparados para aprender mais. Eu, confesso, não estava preparada quando em
um dia aparentemente normal o grande Professor, com a mesma voz áspera que, imagino
eu, deve ter usado para dizer aos laodicéios que sentia vontade de vomitá-los, olhou firme
nos meus olhos e perguntou:
-Até quando manterá seu coração fechado para mim?
Não conseguia responder, sinceramente nem sabia ao que ele se referia.
-Até quando vou bater à porta e você vai fingir que não ouve?
-Não entendo...
Ele me pegou pelo braço e me levou para longe do rio, bem distante das flores, onde o
chão não era tão macio e os raios de sol não alcançavam, deixando o ambiente muito frio e
escuro. Não tinha lembranças daquele lugar, nem sequer fazia idéia de que havia lugares
tão longínquos dentro do meu ser, e eu que pensava já conhecer-me por inteiro...
-É aqui- disse Ele sem mudar o tom.
Paramos enfrente a uma fechadura, devido a pouca luz e a grande extensão eu não
conseguia enxergar a grossa porta de madeira por inteira.
-O que há aqui dentro? – perguntei com cautela
-A parte da sua vida que você me proibiu de modificar.
Senti-me ofendida. Eu o proibi? Tinha dado minha vida a Ele, toda ela, no dia em que
O deixei entrar. Por um momento me senti um pouco atordoada, mas depois levantei a
cabeça.
-Está enganado Senhor, não há uma só parte do meu ser que respire sem sua
permissão - respondi com firmeza.
-Então como explica a porta? Porque a construiu?E o fato de ela estar trancada?
Porque não me deu a chave?
-Nunca vi esta porta antes. E não sei de chave nenhuma. Se o Sr me dissesse onde esta
se encontra eu iria buscá-la e a entregaria à Sua vontade agora mesmo.
Fitou firmemente meus olhos como garantia de que acreditava em minha promessa. E
depois olhou para a minha mão esquerda.
E lá estava ela. Pior, havia uma marca funda na minha pele que apresentava
exatamente o formato da chave, mostrando que eu a segurara, e com força, por muito
tempo.
Empalideci. Como nunca havia percebido aquele objeto enferrujado antes? Seria
possível? Afastei-me da porta, o medo das surpresas que ela poderia trazer minaram minha
coragem de abri-la....virei de costas fugindo do olhar Dele, e, adiando o cumprimento da
promessa, corri de volta ao jardim.
Foram dias tristes aqueles. Nem nublados, nem escuros, nem frios, nem tempestuosos;
apenas tristes. As flores estavam lá, mas o perfume doce não se espalhava pelo ar, o sol
brilhava, mas seus raios não esquentavam minha face e a água do rio continuava correndo
límpida, mas o seu som não soava tão convidativo quanto antes.
Sentei-me em um balanço na minha árvore da alegria. Ela havia crescido bastante
com todo o apoio, amor e carinho com que Jesus a regava todos os dias. Passei a observar a
árvo...- quer dizer - planta da sabedoria. Indagava se um dia poderia prender um balanço
em seus galhos. Agora a idéia além de inviável parecia até um tanto quanto engraçada, pois
ela não tinha nem a minha altura, seu tronco era fino e seus galhos... bom, talvez fosse
melhor chamar de gravetos.
Ela havia crescido, mas não tanto quanto poderia. Qual era seu adubo mesmo? Ah..."a
sabedoria é o temor a Deus"...Algumas palavras que eu não sabia aonde tinha escutado,
vinham a minha mente: "você teme a Deus quando, uma vez conhecendo Sua vontade, a
cumpre!"
Parei de divagar. Sabia exatamente o que deveria fazer. Conhecia a Sua vontade para
aquele momento.
Corri de volta para a porta e não fiquei tão surpresa quando vi que Ele ainda estava lá.
Olhei para a chave e para a fechadura...minha mão tremia. Foi então que o Homem passou
o braço ao redor do meu pescoço e eu entendi, mais uma vez não era preciso ter medo... Ele
estava ao meu lado. Abri a porta.
Fileiras e fileiras de armários cada um com dezenas de gavetas. Mais uma vez senti
vontade de deixar tudo como estava. Fitei meu Pai, bebi coragem de seus olhos e comecei a
abrir uma por uma.
No primeiro armário cada gaveta apresentava o nome de pessoas que eu conhecia.
Algumas estavam empoeiradas e pareciam não serem abertas há muitos anos, e outras
tinham uma aparência mais desgastada, pareciam ser usadas com mais freqüência. Resolvi
começar por estas. Abri uma que pertencia a um dos nomes mais íntimos da minha vida,
dentro haviam fichas, algumas já amareladas outras mais novas, peguei algumas e comecei
a ler. Não acreditava no que estava vendo. Abri outras gavetas.
Eu só precisava dar uma pequena olhada em cada ficha para saber do que se tratava,
cada uma daquelas memórias ainda fervia dolorosamente dentro do meu ser. Eu tinha
guardado ali, longe, eu pensava, dos olhos de Deus, cada uma das ofensas mais dolorosas,
cada falha que me prejudicou, cada situação que me magoou, cada ferida e o nome
completo do agressor.
"Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos
devedores" desejei nunca ter pronunciado esta oração! Hipócrita! Deus não guarda
nenhuma caixinha com meus pecados embaixo da cama para poder ficar pensando nos
10.000 motivos que ele tem para me odiar e assim poder se justificar quando tiver vontade
de jogar um raio na minha cabeça (principalmente porque ele teria que arranjar uma
caixinha bem grande)
De repente comecei a lembrar, as áreas que neguei a Jesus logo que ele chegou, o
muro que fui construindo aos poucos para proteger o meu tesouro particular da Sua
intervenção, as coisas que fui guardando naquele local pensando esconder Dele e a chave
que resolvi ignorar com a mesma intensidade que a guardava. Tudo aquilo ficou claro em
minha memória.
Corri para os outros armários. Um estava cheio de brinquedos antigos que alegravam
meu coração, e que não eram proibidos pelo Salvador, mas eu sabia que, uma vez
subjugados a Ele, o Sr teria o direito de tirá-los quando quisesse. O medo da perda de bens
tão bonitos, coloridos e brilhantes me fez afastar essa parte da minha vida dos olhos de
Deus e, agora eu podia ver, desta maneira eu me poupei de muitas bênçãos.
Outro trazia pedras de apoio que eu havia usado nos meus momentos de "caverna",
era um escape, se Deus me abandonasse lá estavam elas, e ao invés de agarrar uma corda
firme e nadar para a margem do rio violento, eu me seguraria a toras de madeira expostas a
mesma correnteza que eu. Talvez ali estivesse a explicação do porque que a minha árvore
da fé parecia não "ir pra frente".
O título de um armário em especial chamou a minha atenção: "Sonhos e Planos". Os
ensinamentos do Mestre faziam sentido agora: não há nada de errado em sonhar ou planejar
desde que, como Davi, saibamos aceitar um "não" divino, por melhores e mais bem
intencionadas que as nossas idéias sejam. Mas naquela área eu não parecia ser exatamente
"segundo o coração de Deus".
O conteúdo daquelas fichas não estava em discussão, eram coisas que não podiam
faltar, das quais eu não estava disposta a abrir mão, com as quais os planos do Sr teriam que
se conciliar. O problema é que Jesus não se sacrificou para me dividir com seja lá o que for,
ele quer direitos autorais exclusivos da história da minha vida, e não aceita co-autores.
5 Um momento de descanso

Resolvi ter um momento de descanso. Eu compensaria trabalhando mais nos


armários no dia seguinte...
Saí para passear no meu mundo, e então percebi as rosas. Como eram lindas! A cada
elogio que eu recebia, a cada qualidade que era reconhecida a minha alma ganhava uma
rosa. Geralmente elas perfumavam o ambiente por algum tempo e logo eram esquecidas. E
isto me incomodou, cheguei a conclusão de que as rosas deveriam ser vistas!
Dia seguinte resolvi adiar mais um pouco o meu trabalho nos armários. Reservei
aquele tempo para construir uma linda sala de entrada no meu mundo! No meio dela
coloquei uma mesa com um enorme vaso, e dentro dele todas as rosas que eu recebia!
Meus amigos vinham me visitar, e vendo a beleza do lugar que eu havia construído
me davam mais rosas. Comecei a evitar que eles se aprofundassem mais no meu mundo,
pois assim poderiam acreditar que tudo era tão perfeito como aquela sala!
As visitas (e as rosas) começaram a ser tão freqüentes que eu não tinha mais tempo
para os armários, adiava sempre o trabalho para o ‘amanhã’. Se isto me incomodava? Bom,
o tempo todo. Mas as rosas eram tão lindas!
Quando Jesus batia na porta do meu novo lugar preferido eu saia para conversar
com Ele. Não queria que ele entrasse, de repente ele poderia reclamar da decoração e ficar
dando palpite, era melhor não arriscar.
Comecei a arrumar mais a minha sala. Coloquei quadros, tapetes, um lustre lindo,
um sofá confortável. Tudo para receber mais rosas! E sempre funcionava!
Até que eu comecei a sentir um cheiro estranho. E não demorou para as pessoas
perceberem também. Eu sabia de onde vinha, mas não queria admitir: as rosas estavam
apodrecendo.
Entrei em desespero! Não queria me livrar delas, mas tinha medo de que os
admiradores parassem de me visitar ao sentirem como a minha sala fedia! De perfume de
elogios justos e frescos a minha sala passou a exalar o aroma de um orgulho podre!
Bem que eu tentei esconder as rosas debaixo do tapete, atrás dos quadros e entre as
almofadas. Mas não teve jeito, os meus visitantes sempre sentiam o fedor e algumas vezes
viam alguma rosa podre!
Parar de receber rosas foi a minha primeira desilusão! Com o tempo as pessoas
começaram a entrar na sala para comentar sobre o mau cheiro. Diziam que seria melhor se
eu esquecesse as rosas e saísse logo daquela sala.
Foi aí que eu decidi trancar a porta. Sentei-me no sofá com todas as minhas rosas
podres bem apertadas entre os meus braços. Os espinhos me machucavam, o cheiro me
dava ânsia, mas eu não podia largá-las!
Quando Jesus batia, eu falava com ele lá de dentro. Não queria me levantar. Fazia
promessas de que no dia seguinte eu voltaria para trabalhar nos armários, ás vezes eu até
acreditava nas minhas palavras, mas elas nunca se cumpriam.
Anos se passaram, e eu continuei sozinha na minha sala bonita, sentada no meu sofá
confortável e agarrada as minhas rosas podres.
Até que a indignação do Todo-Poderoso começou a fazer a terra tremer. E as
enormes rachaduras que apareceram na minha sala não paravam de anunciar:
“Abominável é ao Senhor todo arrogante de coração, é evidente que não ficará
impune!”.
Ah! Estas vozes não se calavam! Continuavam me avisando! Mas eu não queria
ouvir! Por que elas não me deixavam em paz?
A minha casa poderia cair a qualquer momento, estava em ruínas. Os quadros
estavam quebrados no chão, o lustre estava trincado, até o vaso havia se partido. Era uma
questão de tempo até que eu fosse enterrada pelo meu próprio santuário.
Jesus bateu novamente. Eu fiquei em silencio. Insistiu. Finalmente respondi:
- Eu confesso que pequei, mas não sei como parar. Eu desisto de fazer novas
promessas, pois sei que não vou cumprir. Eu quero largar as rosas, mas não sei como.
- A sua casa, que você construiu sozinha para o seu próprio louvor, está caindo. Saia
imediatamente!
- Mas e as rosas? Como eu faço para largá-las? Já tentei tantas vezes... não quero
fracassar outra vez.
- Os seus planos podem fracassar, mas os meus não. Faça isto da minha maneira e
não tem como dar errado.
A esperança voltou a bater em meu coração. Será? Mas depois de todos estes anos...
- O meu jeito é este: abra a porta e coloque todas as rosas aos meus pés.
- O que o Senhor quer com rosas podres?
- As rosas são louvores, quando são dadas a qualquer criatura elas apodrecem,
pois isto é abominável ao Todo-Poderoso! Mas quando são colocadas aos pés de
Deus elas se transformam, e têm um aroma agradável. Você é uma criatura,
estas rosas não foram feitas para você, mas sim para Mim.
Era o caminho, era a resposta! Fiquei um pouco sentada, tomando coragem.
Levantei com as minhas rosas abri a porta e logo me joguei aos pés de Cristo, colocando
todas as rosas a sua frente.
- São tuas, todas elas, sempre foram, eu as guardei para mim, e por isto estão
mortas. Que de hoje em diante toda rosa que eu receber seja colocada imediatamente aos
seus pés, para que eu não acabe me apegando a elas.
Levantei os olhos e fiquei surpresa ao ver que as rosas estavam com vida
novamente, vermelhas como nunca foram. Agora elas estavam com a pessoa certa!
Imediatamente nós voltamos ao trabalho nos armários.
Investi todo o tempo que me havia sobrado para fazer a vontade de Deus naqueles
armários. Assim nunca mais tive um ‘momento de descanso’ para roubar louvores de Deus.
E o meu santuário foi completamente destruído.
5 O Fim

Quando finalmente voltei ao jardim, não porque já estivesse tudo arrumado, mas
porque eu sabia que já “era a hora”, achei que havia se passado mais tempo do que eu
imaginara. As árvores da fé, da paz, da longaminidade, do amor e da sabedoria haviam
crescido, continuavam modestas, mas a diferença era sensível e me alegrava.
O Jardim estava superabundando alegria, eu tinha uma sensação parecida com a de
quando convidei o Homem para entrar, e talvez por isso mesmo naquele dia o Professor
decidiu falar sobre o primeiro amor.
Essa paz que existia no ar, essa confiança de que Ele sabia o caminho, a falta do
nervosismo que geralmente é sentido em um momento de transição, tudo isso fora
reforçado quando os armários foram desocupados, as fichas queimadas e os muros
derrubados.
Ouço vozes...é Ele!
O cheiro de orvalho, a voz rouca como uma brisa e o rosto afirmativo; três
características q fizeram parte de todos os dias da minha vida, e que só existiam em um
homem. Ele andava calmamente com os pés descalços no tapete fofo de grama verde
enquanto dedilhava os lírios que se inclinavam ao seu caminhar. Logo atrás, dois anjos de
brilho espetacular que sem cessar, ás vezes cantando, ás vezes proclamando poesias,
louvavam a Deus com uma voz que nenhum instrumento humano ou pássaro da terra já
conseguira imitar. Nas mãos deste homem reluzia um objeto dourado...era outra chave.
O meu Salvador me segurou pela mão e, como de costume, andou ao meu lado. Eu
não tive medo, e o pouco de ansiedade que havia em meu coração se dissipou quando os
Seus olhos tocaram os meus. Chegamos à outra porta, mas esta irradiava luz e ouvia-se
música do seu interior. Ele colocou a chave na fechadura de ouro e virou...
A porta se abriu, eu olhei para o seu interior, e, sem desviar mais os olhos e com
passos decididos entrei, e atrás de mim a porta se fechou para sempre.

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