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EXCELENTISSIMA SENHORA MINISTRA PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Distribuigio com URGEN Medida Cautelar solicitada em periodo. de recesso {art.’ 10, caput e § 38, Lei n. 9/868/1999). © GOVERNADOR DO DISTRITO FEDERAL vem perante esse Egrégio Supremo Tribunal Federal, com base nos artigos 102, I, "a", e 103, V, da Constitui¢ao da Republica, ajuizar a presente AGAO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido de medida cautelar, contra os temos do Decreto Legislativo n. 2.146, de 2017 (DODF de 10/07/2017), que sustou os efeitos do Decreto n® 38,293, de 2017, regulamentador da Lei n® 2.615, de 2000, responsavel por determinar sangées ds prdticas discriminatérias em razao da orienta¢do sexual das pessoas no ambito do Distrito Federal. Conforme seré demonstrado nos tépicos a seguir, o Decreto Legislativo atacado nulificou o poder regulamentar do Chefe do Poder Executivo distrital para o caso em aprego (art. 84, IV, CF), impedindo o exercicio de sua La competéncia constitucional sem que houvesse uma razdo justificdvel para tanto (art. 49, V, CF). Por se tratar de ato normativo atentatério a direito e garantia fundamental (arts. 32, IV, e 5%, caput, CF), requer que a apreciagio da medida cautelar pleiteada seja feita inaudita altera parte, com a URGENCIA que 0 caso requer, como forma de evitar a perpetuagdo de grave lesdo 4 ordem constitucional, a coletividade e aos individuos diretamente atingidos pela norma atacada (art. 10, caput e § 3°, Lei n. 9/868/1999). 1. DA ADMISSIBILIDADE DA PRESENTE AAO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Preliminarmente, cabe discorrer acerca da admissibilidade da acao direta de inconstitucionalidade ora proposta. Para tanto, serao considerados os elementos que tornam a presente demanda constitucionalmente viavel. Em primeiro lugar, 0 Governador do Distrito Federal é dotado de legitimidade ativa, prevista expressamente no texto da Constituigao da Repiiblica (art. 103, V, CF). A despeito de nao ser titular da chamada legitimaco universal, que o autorizaria a ingressar com agées do controle abstrato de constitucionalidade em quaisquer circunstancias sem a necessidade de justificativas prévias (pertinéncia temética, repercusséo do ato, etc}, no presente caso esta justificado 0 seu interesse processual objetivo, na medida em que 0 ato normativo impugnado - qual seja, decreto legislativo distrital que susta os efeitos de decreto regulamentar do préprio Poder Executivo - atenta diretamente contra a independéncia deste Poder, representando assim, conforme se demonstraré oportunamente, grave violagdo a cldusula da separagdo de Poderes (art. 22, CF). Em segundo lugar, a acdo direta de inconstitucionalidade proposta constitui instrumento adequado para o tipo de ato normative impugnado. ‘Tratando-se de decreto legislativo editado pela Camara Legislativa do Distrito Federal no exercicio da competéncia equivalente 4 do artigo 49, V, da Constituigao Federal - sustar as ats normativos do Poder Executive que exorbitem do poder regulamentar - e enquadrando-se, referido ato, entre os atos normativos primdrios encartados no processo legislativo (art. 59, VI, CF), 6 inequivoco o cabimento da presente ago, voltada que é ao questionamento de atos normativos primarios de abrangéncia federal ou regional posteriores ao parametro de controle violado. Quanto a esse requisito especifico e sua relagio com 0 objeto de controle, é certo que a jurisprudéncia dessa Corte Constitucional, ao levar em conta 0 cardter diplice das competéncias legislativas do Distrito Federal (art. 32, § 12, CR), estabelece uma disting4o entre (a) leis e atos normativos distritais editados no exercicio de competéncia estadual e (b) leis e atos normativos distritais editados no exercicio de competéncia municipal, para concluir' que apenas os primeiros podem ser objeto de ago direta de inconstitucionalidade (art. 102, 1, "a", CF) (v. ADI 611), enquanto os segundos somente seriam controlaveis por meio de argui¢o de descumprimento de preceito fundamental (art! 12, pardgrafo tinico, I, Lei 9.882/1999), No presente caso, 0 decreto legislative impugnado foi editado no exercicio de competéncia hibrida, visto que "promover o bem de todos, ‘sem preconceitos de origem, raga, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminagdo” (art. 3°, IV, CF), bem como garantir a “inviolabilidade do direito @ igualdade" (art. 5%, caput, CF) constituem objetivos fundamentais de toda a Repiiblica Federativa do Brasil e nao apenas de uma categoria de entes federativos em particular. Por isso que os diplomas normativos em jogo na presente agao direta (lei regulamentada, decreto regulamentar e decreto legislative de sustacao), na medida em que relacionados com a coibiga0 do preconceito de género, que & também uma forma de discriminagao (art. 38, 1V, CF), bem como com a protegao da inviolabilidade do direito A igualdade (art. 52, caput, CF), inserem-se_na comy é tanto de Estados como de Munich é iio edo préprio Distrito Federal, "para zelar pela guarda da Constituicao" (art. 23, LCF): Art. 23. £ competéncia comm ds Unido, dos Estados, do Distrite Federal ¢ dos Municipios: # i 3 I - gelar pela guarda da Constituicao, das leis ¢ das instituicses democréticas @ conservar o patriménio pablico; Desse modo, tratando-se o combate ao preconceito e a toda forma de discriminasao, bem como a inviolabilidade do direito a igualdade, de matérias franqueadas a todos os entes federativos indistintamente, mostra-se improprio afirmar que o decreto legislativo ora atacado tenha sido editado no exercicio desta ou daquela modalidade das competéncias distritais, sendo mais adequado reconhecer - até mesmo para viabilizar tecnicamente a protegdo dos direitos e garantias fundamentais subjacentes - que se esta diante de arcabougo juridico dotado de natureza hibrida e, portanto, nem estadual, nem municipal exclusivamente. : Em consequéncia disso, 0 ato normativo em apreco submete-se invariavelmente ao controle por meio de aco direta de inconstitucionalidade, tal como assegurado pela pacifica jurisprudéncia desse Supremo Tribunal Federal, a saber: “A natureza hibrida do Distrito Federal nao afasta a conpeténcla desta Corte para exercer 0 controle concentrado de normas que tratam sobre a organizacéo de pessoal, pois nesta seara 6 impossivel distinguir se sua patureza 6 municipal ou estadual" (ADI 3341, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, STF, Pleno, julg. em 29/05/2014). Por fim, no que diz respeito ao parametro de controle a ser invacado, a Constitui¢io de 1988 veicula expressamente uma série de preceitos com os quais 0 ato normativo impugnado apresenta-se incompativel, dois dos quais ja mencionados acima e os demais a serem declinados oportunamente a seguir. 2, REQUISITO DE ADMISSIBILIDADE ESPECIFICO: DO CABIMENTO DE AGOES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE EM FACE DE DECRETOS LEGISLATIVOS Considerando as peculiariedades do fenémeno jurfdico em causa na presente acdo direta, mostra-se oportuno discorrer acerca do cabimento desta agio contra decreto legislativo que tenha por objeto sustar os efeitos de decreto executivo regulamentador de lei (art. 49, V, CF). 2.1. Decretos legislativos como atos normativos primarios © ato normativo ora impugnado inclui-se na categoria dos atos normativos primérios regulados pela Constituigdo de 1988 e, nesse sentido, submete-se ao controle abstrato de constitucionalidade. Sobre a sua insergao na categoria dos atos normativos primarios, ensinam Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco: "R edigdo de atos normatives primarios, que instituem Gireitos e criam obrigacoes, € fungao tipica do Poder Legislativo, © art. 59 da Constituicéo Federal listal os instrumentos normativos compreendides na requlacio que o onstituinte desenvolve nos dispositivos seguintes. Cogita da Emenda a Constituigao, das leis conplementares, des leis ordinarias, das leis delegades, das medidas provisérias, dos decretos legislatives e das resolugdes. © constituinte parcimonioso ao dispor sobre © decreto legislative e a resolugéc. Seguen ambos, salvo disposigdo em contrério, a norma geral da aprovacéo por maioria simples, ficando © seu procedimento a cargo dos mentos sso regimentos internos do Legislativo. Bsses instr izados para reqular matérias da competéncia exclusiva do Congresso Nacional ou de suse Casas ¢ n&o se submetém a sangao ou veto do Presidente da Repiblica" (Curso, de Direito Constitucional, 10.ed. S40 Paulo: Saraiva, 2015, Pp. 904). No mesmo sentido, consta do Manual de Redagdo da Presidéncia da Repiiblica que os “Decretos Legislativos so atos destinados a regular matérias de competéncia exclusiva do Congreso Nacional (Constituigao, art. 49) que tenham efeitos externos a ele” (Manual de Redagdo da Presidéncia da Reptiblica, 2.ed. Brasilia: PR, 2002, item 15). Assim, entre as matérias préprias dos decretos legislativos, esté a possibilidade de sustago dos atos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar. Nesse sentido, dispde a Constituigao de 1988: i mart. 49. 6 da competéncia exclusiva do Congresso Nacional: : [eed Vv = sustar os atos normativos do Poder Sxec exorbitem do poder regulamentar [. Tal diretriz, como nao poderia deixar de ser, é de observancia obrigatoria para Estados, Municipios e Distrito Federal, na medida em que, conforme a consolidada jurispridéncia desse Supremo Tribunal Federal, “As regras basicas do processo legislative federal sao de absor¢do compulséria pelos Estados-membros em tudo aquilo gue diga respeito [...] a0 principio fundamental de independéncia © harmonia dos poderes, como delineado na Constituigao da Repéblica” (ADI 276, Rel. Min. Sepilveda Pertence, Tribunal Pleno, julg. em 13.11.1997). A propésito, ha precedente especifico dessa Corte reconhecendo tal prerrogativa, dentro das mesmas balizas constitucionais, as Assembleias Legislativas dos Estados e, consequentemente, & CAmara Legislativa do Distrito Federal (ADIMC 748, Rel. Min. Celso de Mello, STF, Pleno, julg. em 01/07/1992). Diante disso, quando da edigao de decretos legislativos voltados a sustar atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar, seja no Ambito da Unido, seja na esfera das demais unidades federativas, tem-se, inequivocamente, atos normativos de carater primario; sujeitos, portanto, ao controle abstrato de constitucionalidade por via de ago direta perante o Supremo Tribunal Federal. 2.2, Decretos legislativos e ofensa frontal ou direta d Constituigiio Em razo de suas peculiaridades, a inconstitucionalidade dos decretos legislatives voltados a sustar atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar envolve uma cadeia complexa de normas ¢ de apreciagoes. Assim, a constatago da inconstitucionalidade de um decreto legislativo dessa natureza passa pelas seguintes etapas: {a) De um lado, analisar a lei regulamentada, a fim de extrair o seu contetido normativo; (b) Por outro lado, analisar 0 decreto que supostamente teria exorbitado do poder regulamentar, a fim de extrair 0 seu contetido normativo; (©) Depois disso, confrontar 0 conteiido desse decreto com o da respectiva lei regulamentada, para verificar se houve exorbitancia por parte daquele; (d) Constatar, se for o caso, a exorbitdncia do conteiido normativo desse decreto em relagdo aos limites da lei regulamentada; (©) E, por fim, concluir pelo acerto ou desacerto do decreto legislativo conforme tenha ele se mostrado adequado ou inadequado na suspensdo do ato normativo tido como exorbitante. Em outras palavras, 0 que se quer saber é se o decreto legislative que sustou decreto do Poder Executive por suposta exorbitancia do poder regulamentar est4 correto ou incorreto. Estando ele correto, valida é esse suspensdo. Se, todavia, a exorbiténcia do decreto executivo nao existe, incorreta é a sua suspensdo, devendo tomar-se por invalido (inconstitucional) 0 respectivo decreto legislativo editado com base no artigo 49, V, da Constituigao Federal. L~ <= A despeito dessa complexa cadeia de normas e apreciacées, eventual \constitucionalidade de decreto legislative que erroneamente tenha considerado um determinado decreto do Poder Executivo exorbitante dos limites do poder regulamentar enquadra-se no conceito de inconstitucionalidade direta_ou frontal e, portanto, pode ser objeto de apreciagao em sede de agdo direta de inconstitucionalidade. Nao fosse assim, decretos legislativos editados com a pretensa finalidade de sustar atos normativos exorbitantes do poder regulamentar mas que na verdade visam a interferir na competéncia regulamentar do Chefe do Poder Executivo jamais poderiam ser objeto de controle abstrato de constitucionalidade e, em consequéncia, ficariam sem um eficaz mecanismo de controle da sua legitimidade. Por essa razdo, 0 Supremo Tribunal Federal aceita apreciar a inconstitucionalidade desses decretos legislativos, vindo a declarar a sua inconstitucionalidade em caso de constataco da sua ilegitimidade. Foi 0 que ocorreu, por exemplo, na apreciagao da ADIMC 748: "AGRO DIRETA DE INCONSTITUCTONALIDADE - ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO RIO GRANDE DO SUL - DECRETO LEGISLATIVO - CONTEUDO NORMATIVO - SUSPENSAO DA EFICACIA DE ATO EMANADO DO GOVERNADOR D0 i ATIVIDADE REGULAMENTAR DO PODER EXECUTIVO (CF, ART. 49, ¥) SSTBILIDADE DE FISCALIZAGKO NORMATIVA ABSTRATA - ACAO ESTADUAL DE ENSINO - CALENDARIO TADO. «- CONTROLE PARLAMENTAR DA, DIRETA CONHECIDA. FI SOLAR ROTATIVO - PREVISAO NO PLANO PLURIANUAL - ALEGADA ENOBSERVANCIA DO POSTULADO DA SEPARACAO DE PODERES - EXERCICIO DE FUNCAO REGULAMENTAR PELO EKECUTIVO - 1 RELEVANCIA GUREDICA 00 TEMA - MEDIDA CAUTELAR DEFERID: ~ © CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCTONALIDADE TEM OBJETO PROPRIO. INCIDE EXCLUSIVAMENTE SOBRE ATOS ESTATI PROVIDOS DE DENSIDADE NORMATIVA. A NOCKO DE ATO NORMATIVO, PARA CALTZACAO DA CONSTITUCIONALIDADE EM TESE, REQUER, ALEM DE SUA AUTONOMIA JuRtDICA, A ITO PE FIS CONSTATACAO DO SEU COEFICIENTE DE GENERALIDADE ABSTRATA, BEM ASSIM DE SUA INPESSOALTOADE. = © DECRETO LEGISLATIVO, EDITADO COM FUNDAMENTO NO ART. 49, V, DA CONSTITUIGAO FEDERAL, NAO SE DESVESTS \Dos ATRIBUIOS TIPIFICADORES DA NORMATIVIDADE PELO ATO. DE LIMITAR-SE, MATERIALMENTE, A SUSPENSAO DE EFICACIA DE ATO oRTUNDO pO PODER EXECUTIVO. TAMBEM REALIZA FUNCAO NORMATIVA © ATO ESTATAL QUE EXCLUI, EXTINGUE OU SUSPENDE A VALIDADE OU A EFICACIA DE UMA OUTRA NORMA JURDICA, A EFICAGIA DERROGATORTA OU INIBITORIA DAS CONSEQUENCIAS JURIDICAS DOS ATOS ESTATAIS CONSTITUI UM DOS MOMENTOS CONCRETIZADORES DO PROCESO NORMATIVO. A SUPRESSAO DA EFICACIA DE UMA REGRA DE DIREITO POSSUI FORGA NORMATIVA EQUIPARAVEL A DOS PRECETTOS JURIDICOS QUE INOVAM, DE FORMA POSITIVA, © ORDENAMENTO ESTATAL, EIS QUE A DELTBERAGRO PARLAMENTAR DE SUSPENSAO DOS EFEITOS DE UM PRECEITO JuRIDICO INCORPORA, AINDA QUE EM SENTIDO INVERSO, A CARGA DE NORMATIVIDADE INERENTE AO ATO QUE LNB CONSTITUI 0 OBJETO. © EXAME DE CONSTITUCIONALIDADE DO _DECRETO. LEGISLATIVO QUE SUSPENDE A EFICACIA DE ATO D0 PODER EXECUTIVO IMPOR A ANALISE, ELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, DOS PRESSUPOSTOS IEGITMADORES DO EXERCECIO DESSA EXCEPCIONAL COMPETENCIA © DEFERTDA. «A—=sANSTZTUIGRO PARUAMENTAR. CARE A CORTE SUPREMA, EM CONSEQUENCIA, VERIFICAR SE OS ATOS NORWATIVOS EMANADOS DO EXECUTIVO AJUSTAM-SE, OU NAO, AOS LIMITES DO PODER REGULAMENTAR OU AOS DA DELEGAGAO LEGISLATIVA. A FISCALIZAGAO ESTRITA DESSES PRESSUPOSTOS JUSTIFICA-SE COMO IMPOSIGKO DECORRENTE DA NECESSIDADE DE PRESERVAR, "HIC ET NUN", A INTEGRIDADE DO PRINCEPIO DA SEPARAGKO DE PODERES. = A PREVESKO DO CALENDARIO ROTATIVO BSCOLAR NA LET QUE INSTITOI O PLANO PLURIANUAL PARECE LEGITIMAR O EXERCICIO, © CHEE DO EKBCUTIVO, DO SEU PODER RAGULAMENTAR, TORNANDO POSSIVEL, DESS! MODO, A IMPLANTACAO DES. PROPOSTA PEDAGOGICA MEDIANT DECRETO. POSICAO DISS: DO RELATOR, CUJO ENTENDIMENTO PESSOAL, FICA RESSALVADO" (ADING 748, Rel. Min. Celso de Nello, STF, Pleno, julg. en 01/07/1992) - DENTE fo i Em outra oportunidade, desta feita envolvendo decreto legislativo editado pela Camara Legislativa do Distrito Federal na mesma circunstancia (ou seja, sustando ato do Poder Executive por exorbitancia da competéncia regulamentar), essa Corte Suprema houve por bem considerar valida apenas uma parte do decreto legislative, tendo como inconstitucional sua outra parte justamente por nao estarem presentes os pressupostos de edigao de decreto legislativo constantes do artigo 49, V, da Constituicao da Republica, preceito que é de observancia obrigatéria para todas as unidades federativas (ADI 1553, Rel. Min Marco Aurélio, STF, Plendrio, julg. em 13/05/2004). 3. DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO E SUA INADEQUACAO AOS REQUISITOS CONSTITUCIONAIS AUTORIZADORES DE SUA EDICAO ; 0 Decreto Legislativo n. 2.146, de 2017, ora impugnado, foi editado pela Camara Legislativa do Distrito Federal com 0 objetivo de sustar 0 Decreto n, 38.293, de 23 de junho de 2017. Referido diploma legislativo foi aprovado com 0 seguinte teor: 10 DECRETO LEGISLATIVO N° 2.146, DE 2017 (Autoria do Projeto: Deputados Delmasso, Julio Cesar, Bispo Renato Andrade e Outros) Susta os efeitos do Decreto n° 38.293, de 23 de junho de 2017, que regulamenta a Lei n° 2.615, de 26 de outubro de 2000, que determing sangbes as praticas discriminatérias em razdo da orientacdo sexual das pessoas ne Distrito Federal, @ 4 outras providéncias, Fago saber que a Camara Legisiativa do Distrito Federal aprovou e eu promuige 0 seguinte Decreto Legislativo: ‘Art. 1° Ficam sustados 0s efeitos do Decreto n® 38.293, 23 de junho de 2017. Art. 20 Este Decreto Legislativo entra em vigor na date de sua publicacdo. Brasilia, (3, de julho de 2017 r) en SOE VALLE Presidente Por outro lado, 0 Decreto n. 38.293, de 23 de junho de 2017, que regulamentou no Ambito do Distrito Federal a Lei n° 2.615, de 26 de outubro de 2000, responsavel por determinar sangdes ds prdticas discriminatérias em razdo da orientagdo sexual das pessoas no ambito do Distrito Federal, contava com a seguinte redacao: DECRETO N° 39.293, DR 23 DE JUNHO DE 2017 Regulamenta a Lei n° 2.615, de 26 de outubro de 2000, que determina sangses as préticas discriminatérias em razio da orieatacdo sexual das pessoas no Distrito Federal, 0 G& outras providéneias © GOVERNADOR DO DISTRITO FEDERAL, no uso das atribuiches que Ihe conferem os incisos VII e XXVI, do art. 100 da Lei Organica de Distrito Federal, DECRETA: Art. 1° Fica estabelecido procedimento para apuracto e aplicacso das sangdes previstas na Lei n° 2.615, de 26 de outubro de 2000, a qualquer pessoa fisica ou juridica e aos érgaos © entidades aa aduiniatracgo piiblica do Distrito Fedecel que, por seus agentes, empregaces, dirigentes, propaganda ou qualquer outro meio, promoverem, permitirem ou concorrerem para a discriminacio de pessoas om virtude de gua orientagio sexual, som prejuizo de outras de natuzeza civil on penal. — u Art. 2° Sdo ates de discriminacso aqueles praticadas contra a orientasao sexual da vitima, inclusive: T = constrangimento ou exposicge ao ridiculos TI = proibicke de ingresso ou permanénciar IIT ~ atendimento diferenciado ou selecionados IV - preterimento quando da ocupacao de instalagdes em hotéis ou similares, ou a imoosice de pagamento de mais de una unicades V ~ preterimente em aluguel ou aquisigto de iméveis para fins residenciais, comerciais ou de lazer; VE - preterimento em exsne, selecao ou entrevista para ingresso em enprego; VII = preterimento em relado a outros consumidores que se eacontzem em idéntice eituacdor VITT ~ adocao de ates de coacso, ameaca ou violencia. Art. 3° A pessoa juridica de dizeito privade que praticar ato provisto no azt. 2°, por meio de seu dirigente, empregado ou agente, no exercicle de suas atividades profissionais, fica sujeita as seguintes sanctes: T ~ advertencis: Ir ~ malta; III ~ suspensio do alvard de funcionamento por até 30 diasz IV = cassacao do alvara de funcionamento. § 1° A aplicacdo das penalidades deve ocorrer por meio de processo aduinistrativo, observados os principics da arpla defesa, do contraditéric © da proporcionalidade. § 2° 0 valor da malta deve ser observar o minino de RF $.320,50 e maximo de R$ 10.641,00. § 3° © valor da milta deve sex multiplicado por duas vezes en caso de reincidéacia e pode ser multiplicade por até cinco vezes, caso se verifique gue o valor seja inécuo em raz3o da capacidade econémice da pessoa Juridica. § 4° A aplicacdo das sancdes previstas nos incisos IT a IV implica a inabilitagae da pessoa juridica de direito privade em: T = contratos com o Distrite Federal; IT - acesso a créditos concedidos pelo Distrito Federal e suas instituigdes financeizas, ou a programas de incentivo ao dosenvolvinento por estes instituides ou mantidos; TIT ~ isenctes, remtssdes, anistias ou beneficios de natureza triburaria. 8 5° 0 prazo de inabilitacao ser4 de 12 meses contados da data de aplicacao da sangio. 5 6° A suspenséo do alvard de funcionanento deve ser aplicada no caso de infragao cometida apos 2 aplicacfo de multa por reincidéncia, © a cassacdo do alvaré dave ser aplicada apés a suspensao em razio de nove reincidéncia. Art. 4° A infregdo cometida por agente piblico do Distrito Fodoral sujeita o infrator as sangées disciplinares provistas om lei, apés regular processo administrative, nes terms da Lei Complementar n° 840, de 23 de dezembro de 2011. Art. 5° A Comissac Especial de Apuragdo - CEA fica instituida na Secretaria de Estado do Trabalho, Desenvolvimento Social, Malhezes, Igualdade Racial @ Direitos Humancs - SEDESTMIDH, com as atribuicoes de: 12 I~ roceber requerimento contra ate de discriminagao praticados em razao da orientacao sexual II = instruir 0 process adninistrativo; III ~ aplicar penalidades. § 1° Compete & CEA elaborar o seu regimento interno. § 2° As atividades na CEA sio consideradas fungio piblica xelevante néo remunerada Art. 6° A CBA ser integrada por um representante titular @ um suplente dos seguintes érgios: I~ Secretaria de Estado do Trabelho, Resenvolvimento Social, Mulheres, Tgualdade Racial ¢ Direitos Humanos; II ~ Secretaria de Estado da Casa Civil, Relagées Institucionais e Soctais: TIE ~ Secretaria de Estado de Justiga ¢ Cldadanias IV - Secretaria de Estado do Politicas para Criancas, Adolescentes @ Juventude; V = Secretaria de Estado da Seguranga Publica e da Paz Social. Peragreto ‘nico, A CEA serd coordenada pelo representante aa SEDESTMIDH. Art. 7° 0 processo administrativo seré iniciado na CBA, mediante requerimento: I~ da vitimay TI ~ do representante legal da vitima? III - de entidade de defesa dos direitos humanos. § 1° © processo administrative para apuracdo da infracdo deve) ser instaurado mediante requerinente por escrito, por meio fisico ou virtual, no quel conste dados pessoais de vitima, descricad do fato, nome cu elementos de identificacso do infrator, local onde ocorreu a infragao e rol de testerunhas, 5 2° 0 proceso pode ser sigiloso caso haja risco para a vitina, 8 3° © ccordenador da CEA ceve determinar a autuacao do requerimento © distribuir © proceso. i § 4° A CEA dove apresentar relatério circunstanciade no pzazo de 30 dias, propondo o arquivamento ou continuidade da instrucao. § 5° A pessca epontada como infratora deve sez notificada para aprasentar defesa escrita no prazo de 15 dias. 5 6° Se a pessoa apontada como infratora nao puder sex notificaca ou recusar-se a receber a notificacio, ests comunicagto deve ser feita por edital 2 ser afixado em lugar de acesso pUblico na SEDESTMIDH, pelo prazo minimo de 10 dias, © publicada no Diario Oficial de Distrito Federal. § 7° Rp6s © prazo para apresentacao da defesa escrita, es autos deven ser renetidos para decis&> da CEA por maloria de seus membros, cabende ac coordenador 0 voto de desempate. § 8°R cecissc deve ser fundamentada, contend relatério, dofinigte da conduta discriminatérie e @ dosimetcia da sencio. $ 9" A pessoa condenada pode apresentar recurso no prazo de 10 dias, apée a notificagae da decisio. § 10. © recurso, com efeito suspensivo, sera divigido a CEA, a qual © encaminharé para decisio fundamentada do Secretario de Botado da SEDESTHIDH. S 11, No caso de aplicagso de multa, a pessoe condenada deve ser notificada para pagar em 30 dias a 13 ee § 12. Caso @ multa nao seja paga, deve naver sua inscricdo em divida ativa. Art. 8° Devem ser observados 05 direitos fundamontais previstos na Constituigso Federal, inclusive aqueles dispostos nos incisos VI, VIII e TX do art. 5°. Act. 9° A. SEDESTMIDA pode celebrer acordos de cooperacto com entidades ptblicas ¢ privadas com o fim de facilitar o enceninhemento de dentincias. Art. 10. Deve ser encaminhada cépia dos autos ao Ministérte Pablico do Distrito Federal e Territérios ~ MPDFT, caso o éraze competente coaclua haver indicios de crime apés = conclusac do processo administrative Act. 11, Compete 4 SEDESTMIDH promover a divulgacdo deste Decreto Art. 12. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicagao. Brasilia, 23 de junho de 2017. 129° da Repiblica @ 58° de Brasilia RODRIGO ROLLEMBERG bstitui o public. Conforme ja registrado, os preceitos acima transcritos, objeto de sustaso pelo Decreto Legislativo n, 2.146, de 2017, ora impugnado, tinham como objeto a regulamentacao da Lei n. 2.615, de 26 de outubro de 2000, destinada a defiir sangées ds préticas discriminatérias em razdo da orientagao sexual das pessoas no ambito do Distrito Federal. Referido diploma legislativo conta com 0 seguinte teor: BI N° 2.615, DE 26 DE OUTUBRO DE 2000 ODF DE 10.11.2000 Determina sangées as priticas discriminatérias en rezdo da orientacgo sexual das pessoas. © Presidente da Camara Legislativa do Distrito Federal prowulga, nos terms do § 6° do art. 74 da Lei Organica do Distrito Federal, a seguinte Lei Complenentar, oriunda de Projete vetade pelo Governador do Distrito Federal e mantido pela Canara Yagislativa do Distrito Federal: art. i° A quelquer pessoa Fisica ou juridica @ aos érgaos © entidedes da acministragdo pablica do Distrito Federal que, por seus agentes, empregados, dirigentes, propaganda ou qualquer outro meio, promoveren, permitiren ou concorreren pare a discriminagdo ce pessoas en virtude de sue orientagac sexual serdo aplicadas as sanctes previstas nesta Lei, sem prejuico de outras do natuxoza eavia ou onal. Art. 2° Para os efeitos desta Lei edo ates de discriminagao impor as pessoas, do qualquer orientacao sexual, @ om taco cesta, entre outras, as seguintes situagies: 14 I= constrangimento ou exposigde ©=— a0.—Sridiculo; II - — proibicgo, © de._—=—singresso. ou _—permannciay TIT = atendimento —diferenciado ou splecionado; IV - preterimento quando da ocupagio de instalagses em hotéis ou similares, ou a imposicdo de pagamento Ge mais de una unidede: V - preterimento em aluguel ou aquisigio de iméveis para fins residenciais, conerciais ow ae lazer: VI ~ preterimento em exane, selecdo ou entrevista para ingresso en enprego: VII = preterimento em relacdo a outros consumidores que se encontzem en identica situaga VIIT - adogio de ates de coacdo, aneaca ou violéncia. Art, 3° A infrag8o aos preceitos desta Lei por entidade privada sujeitara ° infrator as seguintes sancSes: 1 - advertencia: II ~ multa de $.000 2 10,000 UFIR, dobrada na reincidéntias HIT - suspensdo do Alvaré de Funcicnanento por trinta dise: Tv = cassacio = do._—=sAlvardé = de. Funclonamento. § 1° Fica a autoridade fiscalizadoza autorizada e elevar em! até cinco vezes © valor da multa cominada quando se verificar que, en. face da capacidade acontmica do estabelecimente, a pena de mlta reoultaré inécua, § 2° A aplicagio de qualquer das sencoes previstas nos incisos IT @ IV implicaré ne inabilitacto do infrator par I~ contzatos com 0 Governo do Distrito Federal: IT ~ acess @ créditos concedidos pelo Distrito Federal ¢ suas Inetituigdes financeizea, ov @ progrenas de incentivo 20 desenvaivinento por estes Anetitusdes au mantitios; IIT ~ isengSes, remisstes, anistias ou quaisquer beneficios de natuzeze eeibutarta 5 3° em qualquer caso, © prazo de inabilitacdo seré de doze meses Saaipediea -H-Haa-Htt ames trast tectimeaet i ttias Hasire! § 4° A suspensio de Alvara de funcionamento seré aplicada no caso de infragio conetida apés a aplicacso de multa por reincidéncla e 2 cassagio do Alvaré, apse 0 prazo de suspensio, por ocorzéncia ae nova reincidéncia. Art. 4° A infcagto des disposigses desta Lei por érgaed ou entidades da adsinistragdo piblica do Distrito Federal ou por seus agentes implicara na aplicacao de sancées disciplinares previstes na legislagio a que estes estejan subnetiflos. Art. 5° 0 Poder Executive do Distrito Federal regulamentaré esta Lei no prazo de sessenta dias, observando obrigatorianente os seguintes aepecte: T ~ mecanisno de xecebinento de denlneias ou representacces fundadas nesta Teas a ~ formas = d= apuracdo © das denuncias: Ur = garantia de ampla_—defesa_ dos_—infratores. Pardgrafo inico. Até quo soja definido pelo Poder Exacutive o brgdo ao qual comperiré a aplicacda dos preceitos instituidos! por esta Lei, fice scb ¢ responsabilidade da Secretaria de Governp do Distrito Foderal a sua aplicagao, na forma do que dispde a Lei n® 236, de 20 de janeiro de 1992, com as alteractes introduzidas pela Lei n* 408, de 13 de janeiro de 1993, e modificagées posteriores. a 15 art, 6° Esta Lei entra em vigor na data da sua publicacto. Art. 7° Revogam-se as disposicées em contrario Brasilia, 31 de outubro de 2000 112° da Repiblica e 41° de Brasilia EDIMAR PIRINEUS 0 Decreto Legislative n. 2146/2017, voltado a sustar o Decreto n. 38.293/2017, regulamentador da Lei n. 2.615/2000, foi, portanto, editado com base na competéncia prevista no artigo 49, V, da Constitui 10 de Reptiblica, de observancia obrigatéria para todos os entes da Federa¢do, consistente na prerrogativa parlamentar de "sustar os atos normativos do Poder Executivo que exotbitem do poder regulamentar". i Logo, 0 decreto legislativo ora questionado baseou-se na suposta exorbitancia do decreto regulamentar em relacdo aos termos da lei por ele regulamentada. Nao obstante, 0 que se percebe a partir de uma simples leitura comiparativa é que o Decreto n. 38.293/2017, ao regulamentar a Lei n 2.615/2000, manteve-se nos estritos limites estabelecidos por esta, nao dando espaco, assim, a edi¢ao do Decreto Legislativo n. 2.146/2017, ora impugnado, por suposta exorbitancia de poder regulamentar advinda do Poder Executivo. Diante disso, ndo havendo causa suficiente para a referida sustacao, terferéncia da Camara Legislativa do Distrito Federal na prerrogativa constitu tem-se no presente caso verdadeira nalmente assegurada ao Chefe do Poder Executivo distrital para expedir decretos para o fiel cumprimento de leis (art. 84, 1V, CF). Disso se extrai que, em verdade, o escopo do ato normativo atacado no foi preservar a integridade da decisao legislativa do Parlamento, representada pela lei regulamentada, mas sim inviabilizar a adequada execuso deste diploma legal, cuja falta de regulamentagao j4 prejudica, por quase 17 anos, no ambito do Distrito Federal, a adequada protecdo da sociedade contra praticas discriminatérias baseadas na orientacdo sexual das pessoas. 16 Diante de tal cendrio, inevitavel concluir pela inconstitucionalidade - que, conforme sera visto, é tanto formal como material - do decreto legislative impugnado na presente agao direta. : 4. DA INCONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO LEGISLATIVO N. 2.146, DE 2017 4.1. Da Lei n, 2.615, de 2000, como instrumento de protegao ao direito 4 igualdade e de combate combate ao preconceito e a discriminacao A Lei n. 2.615, de 26 de outubro de 2000, resultou de projeto de iniciativa parlamentar apresentado Camara Legislativa do Distrito Federal nos dos de 1999, Subscrito pelos entdo Deputados Distritais Maninha, Lucia Carvalho, Chico Floresta e Rodrigo Rollemberg, este tltimo autor da presente aco, o projeto trazia em sua Justificagao uma série de elementos que a época jé demonstravam a necessidade de dedicar atengdo especial ao tema. Registrava-se, na Justificativa a referida proposi¢ao, que os atos de discriminagao em virtude da orientacdo sexual das pessoas ocorriam tanto em estabelecimentos piblicos como privados, sem que 0 Estado exercesse adequadamente, mesmo quando ciente das ocorréncias, 0 seu dever constitucional de protecao as vitimas. Aprovado o projeto e encaminhado 2 apreciaglo governmental, o entdo Governador do Distrito Federal vetou integralmente a proposigo por meio da Mensagem n, 192/2000-GAG. Rejeitado 0 veto, a Lei n. 2615/2000 veio a ser promulgada pela Presidéncia da Camara Legislativa, requerendo, desde entao, a expedigao de decreto para a sua fiel execugao, Apreciando-se os seus termos, percebe-se que a Lei em questo est destinada a pedir a discriminagao de pessoas em virtude de sua orientagao sexual. Para tanto, estabelece sangdes administrativas (sem prejuizo das penalidades civis e penais) voltadas tanto a pessoas fisicas como juridicas, estatais e nao estatais, que promoverem, permitirem ou concorrerem para a pratica de atos de discriminagao (art. 12). Ademais, na medida em que as formas de discriminagao poderh se apresentar de maneira variada ¢ imprevisivel, a Lei também especifica, de maneira ue no 'exaustiva, uma série de atos considerados discriminatérios, tais como 0 constrangimento ou a exposi¢éo ao ridiculo, a proibicéo de ingresso ou permanéncia em locais abertos ao pitblico, o atendimento diferenciado ou selecionado, a adocao de atos de coagao, ameaga ou violéncia (art. 2°) Estabelece ainda a Lei, de forma gradativa, um conjunto de sangdes baseadas no exercicio do poder de policia administrativa, que vio da adverténcia ao pagamento de multa, passando ainda pela possibilidade de suspensao de alvaré de funcionamento, quando for o caso (art. 3°). No tocante aos atos discriminatérios perpetrados por servidores piiblicos, a Lei em aprego faz remissao para o respectivo estatuto funcional, que deveérd prever sangées disciplinares aos responsdveis pelas praticas em questao (art! 4°). A esse propésito, a Lei Complementar n. 840, de 23 de dezembro de 2011 (Estatuto dos Servidores Piblicos distritais), prevé entre as infragdes aplicdveis aos Servidores distritais a seguinte hipétese: Das Infracées Médias Art. 191. S40 infragées médias do grupo T: (eed YI = diseriminar pessoa, no recinto da Zeparticéo, com a finalidade de expé-la_a situagio humilhante, vexatéria, angustiante ou constrangedora, em relacéo a nascimento, idade, etnia, raga, cor, sexo, estado civil, trabalho rural ou urbano, religiao, conviegées goliticas ou filoséficas, orientagao sexual, deficiéncia fisica, imunolégica, sensorial ou mental, por ter cumprido pena, ou por qualquer particularidade ou 1 condigéo. : A partir das notas centrais acima referidas, é possfvel concluir que a Lei n. 2.615/2000 representa um esforso tanto da sociedade como das instituiges politicas do Distrito Federal para combater 0 preconceito ¢ toda forma de discriminagao, bem como assegurar a inviolabilidade do direito a igualdade. 18 Nesse sentido, o diploma em questo tem um nftido papel concretizador da Constituicaéo de 1988, no que diz respeito as seguintes cldusulas constitucionai Art. 3° Constituen objetives fundamentais da Repiiblica Federative do Brasil: l IV - promover_o bem de todos, sem praconceitos de origem, raga, sexo, cor, idade @ quaisquer outras formas de discriminagéo. Art. 5° Todes séo iguais perante a lei, sem distincao de qualquer natureza, garantindo-se acs brasileiros e acs estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade| do la, A liberdade, & igualdade (...). ; direito a No tocante ao artigo 3°, IV, da Carta, defende a doutrina especializada que se trata de “um verdadeiro programa de acto e de legisligdo, devendo todas as atividades do Estado brasileiro (inclusive as politicas piblicas, ‘medidas legislativas e decisdes judiciais) se conformar formal e materialmente ao programa inscrito no texto constitucional’. Desse modo, a Lei n. 2.615/2000, cujo decreto regulamentar foi indevidamente sustado pelo ato normativo impugnado na presente ago direta, faz parte dos esforgos do Distrito Federal para realizar 0 objetivo constitucional constante do mencionado artigo 3°, IV, da Carta da Republica, © mesmo se pode dizer em relagao ao direito 4 iguatdade constante do artigo 5°, caput, da Constituigao. Segundo a doutrina, o direito igualdade, na condigao de direito subjetivo, apresenta uma feicdo tanto negativa (defensiva) como positiva (prestacional), que podem ser assim descritas: 1 Lenio Luiz Streck e Jose Luis Botzan de Morais, "Comentarios ao artigo 3, In: J. J. Gomes Canotilho et. al, Comentérias & Constituigdao do Brasil, Sao Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 149. 19 o— "Na condic& de direito subjetivo, o dizeito de igualdade 1 opera como fundamentos de posicées individuais ¢ mesmo coletivas que tem por objeto, na perspectiva negativa (defensiva), a proibicso de tratementos (encargos} em desacordo com as exigéncias da igualdade, ao passo que na perspectiva positiva ele opera como fundemento de direitos derivados a prestacdes, isto €, de igual acesso as prestagées [...], disponibilizados pelo Poder Piblico ou por entidades privadas na medida que vineuladas ao principio e direito de igualdade.? Levando em consideragéo a perspectiva positiva do dircito a igualdade, deve-se reconhecer a "exigéncia de medidas que afastem desigualdades de fato e promovam a sua compensagdo”, 0 que pode implicar “um dever de atuagiio estatal, seja na esfera normativa, seja na esfera fatica".* Na esfera normativa, é inequivoco 0 dever do Estado em relacdo ao direito a ndo discriminagao e a igualdade (arts. 3°, IV, e 5°, caput, CF). Nao basta que a Constitui¢ao proclame tal direito, como, de fato, textualmente o faz. £ necéssdrio também que as instancias governamentais competentes viabilizem o seu exercicio, implementando tanto por via normativa como concreta todas as providéncias necessérias possiveis para a melhor fruigao daquele direito. A esse propésito, afirma Paulo Gustavo Gonet Branco que: “Ha direitos fundanentais cujo objeto se esgota na satisfaggo pelo Estado de wma prestagso de natureza juridica. 0 objeto do direlto sera a normagZo pelo Estado do bem juri protegido como direito fundamental. assa prestacéo juridica pode consistir na emissdo de normas Juridicas penais ou de normas de organizacao e de procedinento™.t 2 Ingo Wolfgang Sarlet, Curso de direito constitucional, 3.e4., 0 Paulo: RT, 2014, p. 547, 3 Ingo Wolfgang Sarlet, Curso de diretto constitucional, 3.ed., Sao Paulo: RT, 2014, p. 547. ‘ Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de direito constitucional, 12.ed., Sao Paulo: Saraiva, 2017,p. 158. 20 Esse parece ser o caso da Lei n. 2.615/2000, que, com suas disposigdes, pode ser vista como um instrumento normativo de prote¢ao ao direito A igualdade e de combate ao preconceito e & discriminagao baseados na orientacao sexual das pessoas. Diante disso, a sustagao pura e simples do Decreto n. 38.293/2017, voltado a dar fiel execugdo aquele diploma legal, sustagdo essa feita sem justificativa constitucionalmente plausivel e sem que se substitua os seus termos por outros de igual ou maior estatura, viola frontalmente os artigos 32, IV, e 52, caput, da Constituigao da Republica, representando, igualmente, afronta ao principio constitucional geral de proibi¢ao de retrocesso em matériq de direitos fandamentais. 42. Da histérica omissdo na regulamentagdo da Lei de Combate a Discriminagdo em Razéio de Orientagio Social, no dmbito do Distrito Federal: 0 esgotamento das instancias politicas locais Quase 17 anos depois, ainda so fortes os setores contrarios & regulamentacdo da Lei n. 2.615/2000. Com efeito, desde a sua edi¢ao, referido diploma aguarda a expedigdo de um decreto governamental regulamentar que the dé fiel execugao no Ambito da Admii istracdo Publica distrital Em verdade, o Decreto n, 38.293/2017, impropriamente sustado pelo ato normativo aqui impugnado, nao constitui a primeira tentativa de tornar a aplicagao daquele diploma legislativo factivel/exequivel por parte dos agentes estatais responsdveis pelo exercicio do poder de policia em matéria de combate ao preconceito e & discriminagao em virtude da orientacao sexual das pessoas. Em 2011, a Comissdo de Defesa dos Direitos Humanos, Cidadania, Etica e Decoro Parlamentar - CDDHCEDP da Camara Legislativa do Distrito Federal aprovou a Indicagao n, 43 "(sugerindo] a Secretaria de Estado de Justiga, Cidadania e Direitos Humanos do , de autoria da Deputada Distrital Rejane Pitanga, Distrito Federal que [adotasse] as providéncias necessdrias para a regulamentagio da lei n? 2.615 de 26 de outubro de 2000". 21 < Em 2012, a mesma Comissio de Defesa dos Direitos Humanos da CAmiara Legislativa aprovou a Indicagao n. 6308, de autoria da Deputada Distrital Arlete Sampaio, desta feita "{sugerindo] ao Excelentissimo Governador do Distrito Federal 0 cumprimento do art. 5° da lei n® 2.615, de 2000, que determina sangées as priiicas discriminatorias em razio da orientagdo sexual das pessoas", ressaltando- se que o artigo 5° da Lei fala justamente do dever de regulamentagao a cargo do Chefe do Poder Executivo. ' Em 2013, 0 entdo Governador do Distrito Federal editou o Decreto n. 34,350, de 08 de maio daquele ano, com o escopo de "[regulamentar] a Lei n® 2.615, de 26 de outubro de 2000, que dispoe sobre sangdes as praticas discriminatorias em raziio da orientagdo sexual das pessoas no dmbito do Distrito Federal”. Nao obstante, no dia seguinte a mesma autoridade governamental editou outro decreto apenas revogando o primeiro e, com isso, frustrando a adequada execucdo da referida lei protetiva: DECRETO N° 34.351, DE 09 DE MAIO DE 2013. Revoga o Decreto n° 34.350, de 08 de maio de 2013, = da oatras providencias © GOVERNADOR 00 DISTRITO FEDERAL, no uso das atripuicdes que lhe confere o artigo 100, inciso VIT, da Lei Organica do Distrito Federal, DECRETA: Art. 1° Fica revogado © Decreto n° 34.350, de 08 de maio do 2013. Art. 2° Este Decreto entra em vigor na data de sua publicacao. silia, 09 de maio de 2013. 125° da Repiblica ¢ 54° de Brasilia ‘AGNELO QUEIROZ © tevto nae subs © orivinal publicade ne poor de 10/05/2015 p oF 1 ae ; i Recentemente, assistiu-se a mais outras trés graves investidas contra 0 combate a discriminagao em razdo da orientago sexual das pessoas, no Ambito do Distrito Federal: 22 Y Aprovagio do Decreto Legislative n. 2.146/2017 (DODF, de 10/07/2017), objeto da presente acao direta, 0 qual sustou os efeitos do Decreto n° 38.293/2017, regulamentador da Lei n® 2.615/2000; Y Apresentacio do Projeto de Decreto Legislativo n, 299/2017, de autoria dos Deputados Distritais Delmasso, Julio Cesar, Bispo Renato Andrade e outros, que "[s]usta os efeitos do Decreto n.° 38.292, de 23 de junho de 2017, que ‘Dispde sobre a criagdo, composisao, estruturagao e funcionamento do conselho distrital de promosao dos direitos humanos € cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais™ (ainda ndo apreciado definitivamente); Y Apresentacao do Projeto de Lei n. 1.654, de 2017, de autoria do Deputado Distrital Delmasso e outros, que "[r]evoga a Lei n? 2.615, de 26 de outubro de 2000, que Determina sangées As praticas discriminatérias em razdo da orientagio sexual das pessoas". Esta Gltima proposicao, simplesmente propde-se a revogar a Lei n. 2.615/2000, sem nada apresentar de forma substitutiva em matéria de combate a praticas discriminatérias em razdo da orientagao sexual das pessoas, contrariando, assim, 0 postulado da proibigo de retrocesso social em matéria de defesa de direitos fundamentais: PROUETO DE LET N, 1654/2017 (Do Senhor Deputade DELMASSO - PODEMOS/DF OUTROS) utbro da, Rovoga a Lei n. 2.615, de 26 de de 2000, que "Deternina sangé praticas| discrininatérias om ra: orientagdo sexual das pessoas". ‘A CAMARA LEGISLATIVA DO DISTRITO FEDERAL decreta: Art. 1° Fica revogada a Lei n. 2.615, de 26 de outubro de 2000 Art. 2° Bota Lei entra om vigor na data da sua publicagdo. Conforme observado, os movimentos contrérios & regulamentacao da Lei n. 2.615/2000 tém conseguido, até o momento, obstaculizar a completa a tc efetivaggo do sistema protetivo nela consagrado, sendo que a mais recente investida partiu da Camara Legislativa do Distrito Federal, com a aprovagdo do Decreto Logislativo n. 2.146/2017, objeto da presente agdo direta. 0 esgotamento das instancias politicas locais 6 tao marcante que, em 2016, 0 Ministério Pablico do Distrito Federal e Territérios ajuizou agdo civil piiblica, ainda pendente de apreciagdo, para cumprimento de obrigagao de fazer com|indenizagao por danos morais coletivos, requerendo ao Poder Judicidrio que a julgue procedente para, entre outras coisas, "declarar que a Lei Distrital n. 2.615/2000 independe de prévio decreto regulamentar para ser aplicada”. 4.3. Da edigao do Decreto n. 38.293/2017 e sua indevida sustagdo pelo Decreto Legislativo n. 2.146/2017 No contexto juridico-politico acima apresentado, 0 Decreto n. 38.293/2017 representa a mais bem sucedida tentativa de regulamentagao da Lei n. 2.615/2000. Com efeito, o Poder Executivo, cujo atual titular havia subscrito 0 projeto que deu origem A lei, encontra-se totalmente comprometido com a implementacao/efetivacdo de uma politica piiblica responsavel e permanente de promogao do combate & discriminagao em razao da orientagao sexual das pessoas no Ambito do Distrito Federal. Nao obstante, com a sustacdo do Decreto n. 38.293/2017 pelo Decreto Legislativo n. 2.146/2017, assiste-se a mais uma agressio a implementagéo e ao desenvolvimento da politica piblica subjacente a Lei n. 2.615/2000. Conforme se deduz do artigo 84, IV, da Constitui¢ao da Repablica, que € de observancia obrigatoria para todos os entes da Federacao, compete privativamente ao Chefe do Poder Executivo "sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execugdo” (art. 84, IV, CF). 0 exercicio de tal competéncia normativa regulamentar constitui um dos aspectos da independéncia do Poder Executivo perante o Poder Legislativo, ea harmonia entre esses dois Poderes depende inclusive da observancia dessa 24 divisdo de tarefas, cujos termos pressupdem a edigao de leis gerais e abstratas pelo Parlamento e a sua fiel execugdo mediante a expedicao de decretos regulamentares pelo Executivo (art. 22, CF). Por isso é que apenas excepcionalmente o Poder Legislativo esta autorizado a interferir no exercico da competéncia regulamentar do Poder Executivo, e desde que presentes os pressupostos constitucionais, com vistas a “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar" (art. 49, V, CF). Dessa forma, para que o Decreto Legislativo n. 2.146/2017 pudesse ser considerado legitimo do ponto de vista constitucional, 0 Decreto n. 38.293/2017, por ele sustado, teria que ter extrapolado os limites do poder regulamentar, o que, todavia, nao ocorreu no presente caso. Diante disso, sendo esse um ponto determinante da argumentaggo em favor da inconstitucionalidade do decreto legislativo ora impugnado, faz-se necessrio demonstrar que o decreto executivo por ele sustado manteve-se dentro dos limites da competéncia regulamentar conferida constitucionalmente ao Chefe do Poder Executivo, Conforme ja registrado acima, 0 Decreto n, 38.293/2017, indevidamente sustado pelo Decreto Legislativo n. 2.146/2017, teve por finalidade regulamentar a Lei n. 2615/2000. Nessa perspectiva, restringiu-se aos estritos termos do diploma regulamentado, limitando-se a reiterar a discipina constante do seu respective marco legal e a detalhar 0 modo como a sua aplicagao ocorreria internamente na Administracao Publica do Distrito Federal. Desse modo, desdobrando-se 0 contetido do decreto regulamentar em questo, tem-se que o mesmo tao somente: Y Definiu como seu escapa o estabelecimento de “procedimento para apuragdo e aplicagdo das sangdes previstas na Lei n. 2.615, de 26 de outubro de 2000" (art. 1°); Y Repitiu os tipos de discriminagéo combatidos (art. 2%) ¢ as mesmas penalidades (art. 3°) aplicadas pela Lei n. 2.615/2000, restringindo-se as Le a LZ

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