Você está na página 1de 351

Tempos Assexuados

Eles não precisavam mudar de sexo. Precisavam

mudar de vida.

Lá, naquelas cordilheiras onde o amor havia


morrido, ele percebia, através dos olhos
fluorescentes de Olívia, que sua resposta seria não.
No entanto, alisando seus cabelos alaranjados,
ainda belos perante o assobio dos melros tristonhos,
ela disse sim.

Sim, eu vou ao enterro.

Eles não se amavam. Eram apenas amigos, isto


é, sujeitos que haviam sido dispensados pelo casal
morto, fora do tempo. Se bem que, ali, deitados na
planície ladeada por estranhos gansos nada dóceis,
viam a miríade de estrelas que se formava na
imensa abóbada da noite; teto este conhecido como
céu. E, embasbacados pela neblina magistral que
surgia, resolveram trocar carinhos meigos,
inocentes, sem uma gota de maldade. Para o
homem perto dos trinta, o cabelo já caindo e a
barba sempre rala, a existência, com sua doce e
ácida fragrância, estava sepultada. Como, pois,
seria sua vida? Afinal de contas, pensando bem, a
mulher que sempre amou havia fenecido, tornando-
se brumas e cinzas frágeis além do espaço. Mesmo
assim, erguendo-se da simpática relva do fim do
mundo, ainda sentia-se capaz de admirar a brisa
que acertava seu rosto, em cheio, envolvendo o
ambiente com um enternecimento abrupto, difícil
de explicar. Olívia, todavia, franzia a testa para seu
amigo perdido. Não, não era capaz de compreender
a pacífica face de Heitor. Com efeito, então,
deixou-o falando sozinho, talvez com o vento
suave. Sendo assim, foi na casinha mais próxima,
um velho alpendre inabitado. Chegando lá,
resoluta, encontrou um regador de plantas
acobreado, marcado com uma infantil inscrição de
lápis de cera azul-celeste: ‘’No war’’. Ao ler as
palavras em inglês, teve vontade de acender um
cigarro, pois, envolta na penumbra da paisagem
sublime, sentia o toque de Heleno, seu amado
adormecido. Seja como for, para matar o tempo,
logo passou a regar a densa grama. E, enquanto
fazia seu serviço, observava o rio e seus afluentes,
a bela corrente de águas límpidas que corria
tenramente naquele bosque de ninguém. Enquanto
isso, com lágrimas nos olhos, Heitor fugia de um
ganso selvagem que, sobressaltado, tentava, a todo
custo, abocanhar os braços do pobre rapaz.

Quando Olívia voltou, no entanto, um tiro ecoou


pelo céu já sem lua. O ganso, em toda sua alvura e
magnificência, debatia-se no Verde, agonizando,
fechando os olhos oblíquos, poeticamente
arredondados. Nesse momento, talvez irrisório,
Heitor pensou no corpinho delgado de Carla. À luz
mortificante que se aproximava, toda mórbida, o
homem cerrou a vista. Olívia, que também se sentia
turva diante do falecimento da ave, parecia duvidar
da sanidade do seu companheiro. Hora de voltar
pra casa.
Onde você arranjou esse revólver? – perguntou
Olívia, em tom áspero.

Heitor meneou a cabeça três vezes, pôs o braço


direito para trás e, por fim, arremessou a arma para
bem longe. Em seguida, sempre esbanjando um
sorriso cínico, fez o conhecido gesto de silêncio.
Dessa forma, com o dedo indicador tampando seus
lábios trêmulos, mostrava para si mesmo o tamanho
da sua dor, do seu luto sincero pela perca da
paixão. Ambos, então, fizeram um pacto de dez
minutos em silêncio. Por isso, em algum lugar
distante e remoto, se é que isso existe, Heleno e
Carla conseguiam absorver o desespero daquela
mudez insidiosa, da linha tênue que separava, sem
sucesso, os amores terrenos dos contatos
espirituais.

Mas é melhor explicarmos as coisas com calma.


Olívia era atriz, porém de uma fala só. Fizera cinco
filmes e, em todos, fazia a mesma personagem que,
para variar, sempre falava assim: Não ter a pessoa
que ama ao seu lado. Isso, sim, é viver! Além
disso, para que possamos entender sua postura
independente, o fato é que começara a trabalhar
desde cedo. Seus comerciais e pontinhas como
figurante em grandes telenovelas, o que não é
pouca coisa, fazia dela, na melhor das
denominações, a provedora da família. Em todo
caso, eis o cerne da narrativa: Conhecera Heleno
numa academia de ginástica. Ele, franzino e de
olhar empertigado, penava para levantar os
halteres. Com o corpo tremendo, portanto, nem
ousava fitar a linda Olívia: olhos perolados, boca
carnuda e úmida, barriguinha tanquinho e, pelo que
demonstrava através de seus traços sérios, uma
possível universitária das barricadas estudantis.

Foi então que, num dia aparentemente comum,


onde a beleza das nuvens dançantes e o diluir das
horas de melancolia eram extremamente notórios,
Heleno mandou fechar a academia para os dois,
Olívia e ele. Embora os proprietários relutassem
bravamente, acabaram aquiescendo. Mas a moça
não apareceu, deixando o mancebo sozinho, nu e
recitando Camões, Rimbaud e Wordsworth. Dentro
daquele recinto fechado, nada aromático, Heleno,
taciturno e amargurado, prostrou-se de maneira
teatral. Primeiro: não antes de se concentrar, foi
descendo as mãozinhas sulcadas, lentamente,
abarcando toda a atmosfera; depois, sem forçar a
respiração já ofegante, começou a inclinar os
joelhos, disformes como um relógio paralisado.
‘’Ah, essa mulher ainda vai ser minha’’, pensava
debilmente. No dia seguinte, dormindo no aparelho
que malha bunda, o poeta da academia foi
surpreendido por uma série de fotografias tiradas,
ao que pôde vislumbrar, por um de seus melhores
amigos: o esdrúxulo Heitor Boamorte.

Uma vez que não tinha forças para brigar,


Heleno limitou-se a vestir sua simples roupa: calça
jeans, blusa social com um belo colarinho e um
sapatênis moderninho. Ao ver o portentoso calçado
de seu camarada, Heitor perguntou solenemente:

Você poderia me emprestar seu sapato?


O outro fingiu não ouvir, bebendo seu isotônico.
Mas como Heitor continuava insistindo, histérico,
acabou cedendo. Seu timbre, porém, foi seco feito
um campo em estado de desertificação.

Eles não são meus. São dos americanos.

Heitor, que mascava seus chicletes contra o vício


do fumo, preferiu se calar porque, diante daquela
cara macilenta, inóspita, sabia que nada poderia ser
mais importante que o desconforto vívido habitado
nas esferas oculares de seu parceiro. Afinal, em
meio ao fogo cruzado da amizade, ele saboreava
sua vitória íntima, isto é, a conquista por ter
fotografado um homem pelado, visto sob um
ângulo ignominioso. Com efeito, então, publicaria
essas fotos na internet, causando assim, a
humilhação do soberbo Heleno Soares. Anos mais
tarde, na festa de formatura de Carla (Licenciatura
plena em história), os dois brigariam no meio da
valsa, mesmo na hora que a melodia de Schubert
enchia o ambiente com uma placidez trivial,
absolutamente encantadora, sendo que, nesse
mesmo dia, sob uma famigerada chuva de aplausos
honestos, a jovem Carla deixou claro para todos os
presentes que, sem dúvida, só amava um homem:
Heleno Soares. Desesperado, Heitor abandonou o
salão de festividades, cambaleante, indo em direção
de si mesmo, da sua redenção perdida. E, nas frias
ruas do seu bairro infame, deparou com uma triste e
impávida cena: Olívia chorava desconsoladamente,
levantando os terríveis braços finos para um
horizonte ainda mais violento. Pois, para falar a
verdade, a beleza de Olívia era onírica, uma coisa
abstrata que sugamos de suas pálpebras maquiadas,
de suas pernas orgulhosamente protuberantes, do
sorrisinho forçado perante o incrível poder que a
natureza fornecia sobre seu rosto impoluto, sem
marcas ou sinais determinantes. Fosse como fosse,
ainda residiam alguns problemas pendentes,
algumas confissões necessárias. Mas quem seria o
primeiro a sair do calabouço? Da segura prisão que
os protegia de seus próprios medos, dos
sentimentos que embalavam seus tumultuosos
sonos antes de seus olhinhos fecharem-se como
suntuosas cortinas de um teatro shakespeariano?
Sim, eles precisavam abrir seus corações aviltados,
despedaçados pela atribulada foice do amor não
correspondido. Por isso, como as mulheres são
mais corajosas diante da gadanha que perfura os
âmagos ressentidos, Olívia foi a primeira a falar.

Nós perdemos. Passaremos o resto de nossos


dias sozinhos, distantes dos nossos verdadeiros
amores que, aqui, nessa rua onde as crianças não
cantam, sepultamos sem clemência ou cortejo
fúnebre.

Heitor amava o lirismo de Olívia. Por ela,


indubitavelmente, seria capaz de qualquer coisa.
Pena que ele só tinha olhos para a pacata Carla. De
todo modo, apenas permitiu, apesar das pontadas
excruciantes no peito, que suas próximas palavras
fossem reconfortantes, e disse eminentemente:

Nós não passamos de servos de uma indústria


soporífera, de um labirinto da morte. Bem,
querendo ou não, é impossível fugir desse ciclo
vicioso. Em suma, independente da porta que você
abrir, seja metálica ou de madeira trabalhada,
sempre haverá outra passagem, maior, mais
preparada para nossas dificuldades e aflições. No
final das contas, portanto, iremos encontrar
alguém. Isso, minha amiga, não é vida, mas
negócios.

Talvez as palavras acima não tenham sido tão


reconfortantes como a pequena bolota de luz
diáfana que passou por eles, imperial e mística,
iluminando o então cantinho onde estavam, pelo
menos nos últimos cinco minutos, acobertados por
sombras, desilusões, vultos malévolos. Mesmo
assim, na aurora seguinte, enquanto bebiam uma
garrafa de gim num quiosque imoral, foram
avisados, por intermédio de Roberto ou Fábio, da
notícia fatídica: Heleno e Carla, enfim, estavam
noivos. Era como se, após essa funesta descoberta,
que, verdade seja dita, ocorreria mais cedo ou mais
tarde, o gim tivesse virado, ou melhor, se
metamorfoseado num copo de xarope contra tosses
e problemas de garganta. Heitor, sempre com um
doce na boca ressecada, pensou no banheiro da
faculdade.

Olívia lia Nietzsche quando, no toalete da


faculdade, despreocupados com questões morais,
Carla e Heleno faziam amor pela primeira vez. E
Heitor? Bom, este recitava, em plena prisão de
ventre, e no compartimento contíguo aos gemidos
alheios, uma miscelânea de sonetos desconhecidos,
os chamados versos marginais. Contudo, quando
acabara de terminar a página 24, percebeu, para seu
estupor, que os grunhidos amorosos eram
familiares. De fato, as vozes estridentes bradando
uma coletânea de palavrões, entre outros
impropérios vocábulos, pertenciam e, ele estava
corretíssimo, ao maldito Heleno e a belíssima
Carla. Mas, de toda forma, isso não deveria ferir
sua quintessência. Assim, ficando em pé em cima
do vaso sanitário, Heitor conseguiu, apesar do
rubor inevitável, observar os desajeitados gestos
dos amantes que, esbaforidos, mostravam a penúria
que era aquele ato sexual. Aliás, por que somos tão
estranhos na hora do amor? Essa incógnita dançava
um formoso tango na consciência de Heitor, pois,
inebriado e absorto, ele prestava atenção no
tremelique de Heleno, nas maças coradas de sua
silhueta sepulcral, no brilho imortal que nascia nos
olhos de Carla. Ah, ela tentava fazer tudo com um
grande zelo, à francesa, brincando com o complexo
órgão genital do seu homem frágil, tenro, perdido
num tempo que só fazia sentido ali. Tudo isso,
mesmo sendo fatos soltos, fez o outro sentir inveja,
desprezo, aspereza. Heitor era apenas um jovem
que não se formaria em profissão alguma, um
bêbado sangrento das boemias cadavéricas, um
grande pateta que não tinha Lar. Na verdade,
morava no casarão de Roberto Burger, vencedor da
maior das loterias. Burger tinha medo de mulheres,
ratos, brinquedinhos movidos à pilha. De noite,
imerso no estopim dos seus anseios mais
recônditos, saía adoidado pelo jardim de violetas e
rosas negras onde, esperando por ele, o dedo em
riste e um sorriso resinado, estava a materialização
de um ilustre personagem da mitologia grega.
Exatamente! Toda noite, sem falta, Roberto
participava de um estranho ritual. Talvez ele visse
alguma coisa, pois corria feito uma presa que, em
vão, buscava escapar dos dentes do predador. E o
Minotauro, sisudo, somente balançava seus chifres
naquele ar primaveril, repleto de segredos
perigosos, desses que guardam o baluarte da
existência. Sendo desse jeito, entretanto, a criatura
mitológica abrangia todo o espaço com seus
movimentos líricos, sinuosos, impactantes como o
choro descomunal do senhor Burger; lágrimas estas
que refletiam, para todos os públicos, a desgraça de
um homem só, conflituoso, vítima dos seus
próprios acertos, da velha vontade de ser sempre
metódico. Os seus erros? Esses não são dignos de
descrições; são desilusões amarrotadas em papeis
higiênicos, já manchados. Mas, por enquanto,
talvez meus queridos leitores devessem ficar mais
atentos, mais absortos no que o autor precisa dizer.
Certa vez, porém, Roberto enlouquecera mais que o
necessário, se é que podemos medir esse troço
conhecido como loucura, essa estranha força que
cinge o homem macambúzio de jeito! Enfim!
Resoluto e melindroso, o sujeito que via o olhar
brônzeo do Minotauro, disparou numa correria
perigosa, indo, nesse ritmo, na direção de uma
alameda enlameada onde, diziam os faladores desse
terceiro mundo, os embriagados e espectros
solitários faziam suas reuniões assíduas, envoltas
por espessas névoas e crepúsculos inomináveis. Por
isso, ao chegar nesse ponto crítico, além de
fantasioso, ele teve de encarar uma visão trágica
que, segundo diria anos depois, marcara a volta de
sua antiga lucidez. Bem, diante dele, meio zumbi,
estava Heitor, sorumbático, andando em
ziguezague pela aléia pessimamente iluminada por
postes quase caídos, que, mesmo assim, fizeram-no
cambalear cada vez mais rápido. E, embora
conservasse alguns resquícios de sua visível
jovialidade, dava para sentir, de longe, que algo
parecia errado com aquela vida amorfa, afundada
em entulhos e entulhos de decepções românticas,
romanescas e sociais. Afinal, quando seu corpo,
ossudo e lívido, desabaria, enfim, no malfadado
asfalto ocre, veio o apogeu do momento.
Evidentemente, este enredo necessita de um melhor
aprofundamento semântico; até porque, às vezes,
entre o cotidiano e a literatura, sabemos que existe
algo ainda maior, talvez uma partícula cujo nome,
toda vez que tentamos pronunciar, insiste em
bloquear nossos lábios, nossas efêmeras
devassidões intelectuais. Não obstante, deixemos a
estética de lado, ou seja, no seu flanco retangular,
relevante, porque, naturalmente, o flanco da
estética é diferente do posicionamento do senhor
Boamorte, que quase desmaiado, movia-se num
turbilhão incompreensível, indo para frente e para
trás. Dessa forma, a fim de resumirmos esse
incidente, dois carros surgiram na estrada. O
primeiro vinha do lado esquerdo; o outro,
obviamente na direção oposta, ainda buzinou um
conjunto de vezes, mas, graças ao seu pastoso
sangue, agora composto de álcool, Heitor
continuou imóvel, mergulhado em sua inércia
existencial; até que, embevecidos pelo torpor do
instante, os motoristas conseguiram frear,
assustados. Estes, para quem não sabe, eram os
comentados Fábio e Heleno. Assim, sob a chuva
imperial que caía do céu de chumbo, os donos dos
automóveis abandonaram o local, deixando o
bêbado ali, ainda chorando, com as mãos cobertas
por grossas crostas sobre a cabeça curvada,
inutilmente dolorida. Ao longe, estudando receitas
de tortas e propagandas nazistas, Olívia ruminava a
respeito da esquelética cintura de Heleno Soares.
Sim, ao invés de outras partes mais carnais ou
sexuais, era a cinturinha do amado que tirava seu
sono.

Apesar dessa esquisita constatação, nada parecia


lhe afetar a vontade de conversar abertamente com
Heitor. Pois, acima de tudo, este lhe devia uma
resposta sincera sobre algo primordial, uma coisa
talvez que, se não fosse esclarecida, poderia
arruinar a continuidade dos seus passos. Seja como
for, enquanto a resposta demorava, dedicava-se
exclusivamente ao seu novo hobby: pegar o
autógrafo de pessoas desconhecidas, sobretudo dos
indivíduos mais austeros, reservados em seus
mundos internos. E foi nessa empreitada que
conheceu seu ‘’amigo colorido’’. Na realidade,
como poderíamos esperar, ela atuara de forma
deliberada; aliás, a cena a seguir só será válida para
os aventureiros de espíritos rechonchudos, repletos
por uma doce e afável imaginação. Pensem, pois,
numa escada em caracol, marmórea, que
desemboca num quartinho escuro, interditado por
uma porta de vime. Se esse pensamento foi
possível, singelo como um aceno mágico num dia
de despedida, é bom saber que essa era a alcova do
fulano perseguido por Olívia Guerra. Guerra! Não
havia outro assunto discutido por ambos, salvo, é
claro, quando infiltravam, com os membros
tremendo, nas dimensões dos prazeres noturnos. E
então, o diálogo combinava com o ar sombrio do
quarto: rações para cães filhotes espalhadas pelo
piso amadeirado, lanternas bruxuleantes ligadas,
cheiro almiscarado e teias de aranha envolvendo
um cômodo repleto de literatura erótica, revistas de
aviões de caça e jogos de tabuleiro. Nada disso,
todavia, importava para Olívia; para ela, apenas o
toque cálido e fleumático do rapagão poderia
reacender suas labaredas perdidas, resididas num
ponto obtuso de suas entranhas às vésperas da
morte, do desfecho triunfal que a levaria para outra
paragem, para uma ilha de defuntos pútridos que
não pagam suas contas. Mas voltemos nossa
atenção para o rapaz do quarto. Este,
aparentemente um sujeito excêntrico, não gostara
tanto da complacência e beleza luzidia de Olívia.
Na verdade, apenas o erguer daquelas sobrancelhas
femininas despertavam algum tipo de atenção
especial; até porque, dentro do seu mundo fechado,
nada era mais diáfano que a solidão, esse encanto
cuja presença apavorante, senão fulminante, lança
qualquer cidadão, preparado ou não, no meio de um
fogaréu profano onde, sem votos glorificantes ou
echarpes elegantes, os homens se encontram
consigo mesmos, sobressaltados, presos numa
masmorra claustrofóbica, sabiamente arquitetada
pelo mal que é, desde os primórdios da
humanidade, ser um pedaço de carne fétida e
desprovida de quintessência. Seu nome? Como os
outros chamavam o dono da escada em caracol?
Baptista dos Anjos.

Dos anjos se suicidava todo dia. Exatamente!


Sempre, antes das seis da tarde, ele matava mais
um de seus personagens diários. Por exemplo: certo
dia, quando sua personalidade Hollywoodiana
deixara de funcionar, acabou criando um boneco de
pano, sombrio, costurado por suas próprias mãos.
Então, indo ao encontro das árvores majestosas,
filhas de uma distante mata espessa, se atreveu,
apesar do nítido rubor, em amarrar o boneco num
galho alto, quase quebrado. E, com uma solenidade
macabra, representava, com plena naturalidade, o
terrível enforcamento do seu outro eu que,
verdadeiramente, já não era lírico, debochado,
habilidoso na arte de sorrir perante os descasos
políticos, os terrorismos cotidianos de uma guerra
particular, repleta por sangues inocentes e pueris,
das almas que, por conta da miséria anunciada, só
existem nas burocracias da história, nos vácuos das
carcomidas certidões de nascimento. Sendo que até
isso, de fato, nem sempre é verídico, pois,
agasalhados com seus uniformes do analfabetismo
da sensibilidade, os carrascos continuam fuzilando
seus mártires, ou seja, todos os infelizes que
tentam, mesmo sem êxito, construir um fantástico
mundo literário para seus descendentes estáticos,
talvez munidos pelo rancor direcionado aos seus
vizinhos sedentos por vingança, pela retaliação das
bombas e estereótipos lançados sobre suas cabeças
vulgares, além de habitadas por piolhos graves,
velhos sugadores duma aurora chamada existir.
Baptista pensava na terra prometida por seus
ancestrais, nas imagens que conhecia por
intermédio dos livros: sebes, montanhas rochosas,
depressões constantes, pastos e manguezais
pálidos, janelas que se chamavam arco-íris, fontes
abundantes de água cristalina, risinhos de crianças
espertas, porta dos fundos que dava para um riacho
doce, ponto dos encontros secretos, dos namoros e
separações de uma vida inteira. Ah, como ele
gostaria de correr em meio aos capins esplêndidos
do seu bosque imaginário. Lá, nesse cantinho feito
de criaturas mágicas e açúcares refinados, também
habitaria a mulher ideal; o fato é que esta vinha,
sorrateira, com um balde cheio de mantas sujas, e
sorria rapidamente, levando com ela a brevidade do
senhor daquelas terras onde o café nascia, onde,
enregelados e confiantes, os pequenos criadores de
porcos e corcéis multicoloridos, ficavam, atrás da
embaçada fresta do banheirinho improvisado,
observando a nudez da empregada robusta, ou
melhor, contemplando-a em sua fragilidade
orvalhada, que recendia a lavanda e alcaçuz.
Contudo, como as utopias geralmente são feridas
pela brutalidade do segundo iminente, Dos Anjos
voltou para os firmes seios de Olívia, agarrando-os
como se, a partir daquele toque frugal, pudesse
segurar todos os continentes e contradições sociais.
Sem dúvida, por sua vez, Olívia buscava
compreender a vicejante indiferença que pairava
nos olhos de Baptista: melífluos, soberbos e
inquisidores. Fazendo isso nos últimos cinco dias,
descobrira a hecatombe: o dito-cujo era o assassino
dos arranjos de flores. Quem era, pois, este homem
singular? A verdade é que ele mandava todos os
dias, sem margens para erro, um buquê de flores
para as mulheres que faziam parte de um grupo
anônimo, cuja única missão era salvá-las do
suicídio. Depois, quando a intimidade já estava
garantida, convidava-as para um encontro amoroso
no terraço de um prédio abandonado. Uma velha
senhora nórdica, de cabelos arroxeados e
fisionomia expressiva, fora sua primeira vítima; a
primeira coisa que o criminoso fizera foi marchar
como um soldado ensandecido para, em seguida,
num gesto arenoso, erguer os braços numa prece
encenada, perguntando:

Quem a senhora prefere? Hemingway? Goethe?


Virginia Woolf?

Gosto dos sofrimentos do Jovem Werther.

Após a resposta obtida, ainda que não estivesse


completamente satisfeito, Baptista levara a dona
das madeixas arroxeadas para uma fila indiana
onde, liderada por uma ninfeta trajada como uma
líder de torcida, magérrima, dava para salientar
que, infelizmente, tratava-se de uma aglomeração
de suicidas variados, cada um se matando conforme
seus escritores e leituras prediletas. Mesmo assim,
Dos Anjos não fora preso. Tinha influência
política. Entretanto, ao voltar para sua alcova
sombria, percebeu que Olívia, que havia passado
três dias no seu cubículo, deitada em sua cama
inflável, acabara sumindo estranhamente, deixando
um enigmático sabor de sândalo nos sedosos
lençóis, presentes de sua antiga amante: Alice
Vilas. Por isso, enquanto removia a sujeira do
carpete europeu com um velho aspirador de pó,
acabou remoendo algumas reminiscências sobre
Alice, a respeito do dia que ela partira, risonha,
cingida por uma felicidade insólita e, o que era
pior, com uma sensação de liberdade adquirida,
dessas que dizem sem reservas: Não posso ficar
com uma pessoa chorosa, cheia de demônios
internos. Apesar dessas palavras turvas, quase
assassinas, o pobre homem ainda conseguiu se
despedir. O timbre emitido por suas cordas vocais,
no entanto, parecia advindo de uma estadia no
inferno. Da sua voz, por assim dizer, saía uma
mistura de sons disformes, sinos aterradores,
batidas de ferros corrugados.

Você apareceu ali, radiante, sorrindo nas


fotografias que pude vislumbrar. Não, não precisei
encarar teus olhos orientais, cósmicos. Afinal, no
cantinho de minhas entranhas apaixonadas, pude
sonhar contigo nas manhãs plácidas, nos dias de
chuva intermitente. Seja como for, quem é você
que, sem falta, alimenta meu coração de luzes
diáfanas, perdidas no compasso dos teus braços
tenros e decisivos? E, diante dos teus lábios
sublimes, tremi de fúria e desejo, pois, pelo
contorno do seu corpo, acabei encontrando o
sentido das horas diluídas, dos votos secretos e
pactos noturnos. Onde, então, habitava teu cálido
espírito? Acho que sempre te vi em toda parte, isto
é, nas nuvens em arabescos, nas lacunas da alma
e, para encerrar, dentro de mim mesmo, embora,
sem saber, sempre estivemos juntos naquele
suntuoso lugar onde, de forma eterna, o tempo
guardou nossos anseios íntimos. Apesar de o
invólucro existencial nos sobressaltar nas
penumbras do pensamento... Saiba que eu ainda
espero tua face sobre meus líricos olhos.

Alice, que não parava de esfregar suas mãos,


talvez numa espécie de febre repentina, rebateu
com propriedade, de modo que se obrigou a recitar
um antigo texto de Baptista Dos Anjos; também
escrito para ela.

Sinto que nascemos juntos. Tudo bem, meu


alvorecer foi antes. Mas lembro das nossas
corridas pelas praias da cidade. Seu pai sempre
nos olhava. Aliás, você sempre foi mais forte que
eu. Desde pequenina, toda arteira, já tinha rosto
de mulher, sedução sem controle. Foi com Você
que aprendi a amar. É fato que de vez em quando
brigávamos por besteiras. Envelhecemos antes do
tempo. Cada passo seu também fazia parte de mim.
Como posso viver sem ti? Sem nossos caminhos
tortuosos? Desde sempre, amor meu,
compartilhamos lágrimas e sorrisos. Ufa!
Carregamos o abismo e nossas mais recônditas
confissões. Por que eu consigo te escutar tão
atentamente? E como você suporta minha grande
infantilidade? Talvez eu não seja capaz de
descrever sua leveza delirante. Ainda assim, a
verdade parece afirmar: passamos por muitos
perrengues! Mas, no fim, o amor sobrou. Quem
poderá nos deter?

Numa praça cheia de vendedores ambulantes,


crianças com animais e músicas de Mozart tocando
nos espíritos brutos dos velhos jogadores de Dama,
Carla ouvia atentamente os brados apaixonados de
Heitor.

Eu não posso mais te aturar!

Você me aturaria pelo resto da vida. O senhor


me ama.

Talvez eu te ame.
Talvez nada.

Penso na tua presença quando o sol nasce e


morre ou, para ser sincero, quando os ventos
celestes parecem ferir minha face. Mesmo assim,
apesar de tudo, tenho meu orgulho. Com isso,
portanto, gostaria de deixar bem claro minha
suscetibilidade perante os teus caprichos sensíveis,
afinal, desgostoso como estou, só preciso de um
alento: ser salvo.

E como eu posso te salvar?

Encosta teus lábios nos meus, aos poucos, e


assim, se tornando uma forma de elo que jamais se
desgrudará de mim, deixa a natureza te tornar
minha neste cenário banhado por raios fúlgidos.

A cena a seguir foi um tanto prosaica. Carla


apenas abandonou o local trovejante, direcionando
seus passinhos singulares para uma estrada
íngreme, longe de Boamorte. Ato contínuo, e com
olhos tristes, este ainda acenou humildemente; seus
braços pareciam uma bandeira desfraldada,
embora, bem ou mal, conservassem uma métrica
invejável. De seu olho esquerdo, porém,
começavam a cair prantos descomunais, imperiosos
como o descobrimento das Parcas, do fim que pode
ser etéreo para uns ou, para a maioria incontestável,
de um azeviche nervoso, imensamente trágico. Na
pracinha onde estava, agora ao som de granadas
inconscientes, vislumbrava a dança escocesa do
vencedor do Jogo de Damas. Instantes depois,
vítima de uma bala perdida, o aviador Licurgo
Vargas despencava no áspero chão de pedras e
vidros afiados. Morrera sem seus filhos, sem o
toque materno de sua sogra querida, sem o gosto da
sobremesa de avelã macia, sem a foto de seu
garotinho adotado, lindo e austero, que fugira após
a descoberta de seus laços sanguíneos: Heleno
Soares. Vamos aos fatos! Tinha tudo para ser uma
conversa diferente, despropositada. Licurgo até
havia levado sua garrafa de vodca. Mas não dá pra
entender certas coisas. No campo de futebol vazio,
o local do encontro, Heleno indagou sobre a outra
mulher de seu pai. Ofendido, o outro gesticulou
rapidamente, gaguejando de uma maneira
demasiada. Na verdade, havia um segredo
preocupante. E, leviandades à parte, ainda haveria
de ocorrer algum ápice violento. Foi o que
aconteceu ali, perto das samambaias e bichos
silvestres, num ambiente que causava uma
profunda sensação de asco aos protagonistas dessa
cena. Esta é minha outra mulher, exclamou o
aviador, sempre cuspindo um pouquinho da bebida
russa. Ela se chama Dorothy. Era apenas uma
cachorra, de raça siberiana, que, apesar dos dentes
perigosos, amamentava um casal de gatinhos
siameses. Qual o sentido dessa imagem? Por que
criaturas distintas conseguiam se adaptar? Neste
mesmo momento, um clarão desceu dos céus. De
longe, ainda que tristemente, deu pra ouvir o
impacto de um corpo caído. Pai e filho correram na
direção do incidente. Tratava-se, pois, da irmã mais
velha de Heleno; a pobrezinha viera, com um rolo
de macarrão na mão, para esbofetear os dois
homens que certamente iriam brigar. Em
compensação, na flacidez da menina morta, notava-
se um quê de felicidade; estava livre do
canibalismo humano, das orgias carnavalescas, do
matadouro vergonhoso, das humilhações familiares
do cotidiano. Agora seria estrela cadente, fotografia
no porta-retrato, pintura a óleo na moldura
preparada. Depois disso, em minutos mórbidos,
Licurgo deu um soco no estômago de Heleno. A
culpa é sua! Você matou sua irmã. Ah, como tenho
pena de um menino adotado. E o menino adotado
não disse nada. Debatia-se na grama fofa,
esquecida por todos. Sendo assim, só restava
mergulhar num horizonte seu, onde a realidade não
passava de um feio rosto com uma venda
enegrecida. E deixou-se navegar por um túnel
chamado solidão; algumas vozes clamavam por seu
nome, mas ele já não ouvia os dissabores da
consciência. Pois bem, andando sozinho no túnel
aterrador, ainda era capaz de sentir os ventos do
leste ferindo sua cara achatada, levando-o para a
direção de uma nada glorioso, enfeitado de balões
coloridos, vultos berrantes e moças com vestidos
largos, perolados ou ungidos com alguns toques
especiais: zinco, prata, magenta. Aqui e ali,
passarinhos voavam com graciosidade acima de sua
cabeça. Pensou em se deitar no asfalto, em
esquecer os impropérios que lhe sangravam os
sonhos futuros. Quimeras! Como poderia viver sem
elas? À fala vacilante de Vargas, aviador e pai
sucinto, Soares teve de despertar do túnel. Mas não
foi fácil. Até porque, debruçado num espaço
metafísico, nada convencional, ele sentia-se puxado
por um tipo de imã. Contudo, como o afago da paz
duradoura sempre explode, o jeito era voltar para a
vida real que, graças aos poderes da natureza, ainda
continha um belo pano de fundo: Sol e chuva se
misturavam, alegremente, formando assim, o
casamento da raposa. Aliás, já recuperado da
pancada injusta, Heleno deixou seu pai para trás,
solitário nas plantações de trigo, chorando pelos
fracassos frequentes, pela filhinha acertada por um
raio imperioso. Mais tarde, antes de se tornar o
campeão dos jogos das praças, o caquético aviador
ainda teria de ver a traição de sua esposa, o
falecimento precoce de Dorothy, a cadela, e, o que
doeria mais: os tais gatos siameses comendo a
carne desfalecida de sua ‘’mãe adotiva’’. O mundo
era cruel. Por trás da cortina do tempo, sim senhor,
seria preciso uma segunda chance. Por isso,
enquanto contava suas moedas de baixo valor, já
tinha certeza do que iria fazer: compraria roupas
novas para Camilo, um mendigo homossexual que
sempre o amara, sobretudo nas épocas natalinas ou
de pragmáticas reuniões dominicais de família,
cujo único objetivo era aumentar os recalques, a
desunião que nunca deixaria de ser preponderante
num lar assombrado, habitado pelos gritos da
menina morta e, como todos já sabem, pelas marcas
deixadas por Heleninho, ou seja, um livrinho de
rabiscos que ninguém ousava destruir, pois nele
moravam desenhos que representavam os
ancestrais da estirpe Vargas, orgulhosamente
fabricante dos denominados caçadores do ar.
Licurgo, por sua vez, nunca aprendera o macete
necessário para lançar mísseis com precisão. Isso
foi melhor para todos, esbravejava o anfitrião. Se
alguém questionasse suas toscas opiniões, inclusive
se fosse alguém de confiança, acabava sofrendo a
pior das consequências: ia direto para o ‘’campo de
concentração’’, uma fazenda cheia de trabalhadores
forçados, quase escravos, que nem recebiam
salários. Em suma: caso o comediante fosse da
família, coisa não muito rara, a sanção era mais
branda; bastava dar de comida ao gado; mas caso o
coitado não fizesse parte da máfia Vargas, é melhor
nem comentar. Fica pra depois. Um personagem
desta trama passará por isso.

Independente de seguir ou não um ritmo intenso


e sem lógica, o ponto a ser contemplado é o
seguinte: Dos Anjos preparava seu segundo
suicídio. Jogaria seu nome, escrito num papel
timbrado, dentro de um ataúde. Assim, segundo
ele, sua outra personalidade também morreria. Não
obstante, faltava um cúmplice; conheceu Heitor
num prostíbulo barato. Em pouco tempo, questão
de semanas, tentariam roubar o caixão de palha,
artesanal, local onde enterrariam Carla. As putas,
no entanto, nunca gostaram do desempregado
Boamorte. Claro, o sujeito até que era misterioso,
pois, pelos boatos que corriam, ele nunca tinha
feito sexo; polêmica esta que não lhe perturbava
porque, recurvado em si mesmo, aprendera a trocar
carícias encontradas nas poesias menos sóbrias, nos
boleros que ouvia sem efervescência. Quando tudo
acabava, em meio ao incenso de pétalas
afrodisíacas, entregava-se aos soluços
intermináveis, ao aprisionamento do seu eu em
chamas. Talvez esmorecesse ali. Se bem que,
misteriosamente, fora salvo por um louco que
vestia blusa de poliéster, calça xadrez e um
antiquado chapéu de feltro na cabeça encaracolada.
Nesse ínterim, portanto, conhecera uma nova forma
de espaço em branco: A vida como terraço. Esse
lugar é maravilhoso, disse Baptista, enquanto na
sua frente, andando no meio-fio, Heitor desafiava a
morte, sem receios, pulando no concreto rachado.

Todo lugar só é bom durante os primeiros vinte


minutos, asseverou Heitor Boamorte, em falsete.
Foi esse o intervalo que precisou para concluir,
no final das contas, que ele sempre fora uma vela
apagada. Porém, durante os tais vinte minutos, até
que Heitor conseguiu sentir uma inesperada
elevação em seu espírito que, até então, estava
estarrecido. Do temor que passava, portanto, tirava
uma estranha energia para viver. E, assim, foi
observando os objetos que figuravam ali: carteiras
vazias, ventiladores fragmentados, pedaços de
cadeiras envernizadas; além disso, seus diminutos
olhos também encaravam a paisagem surreal: luzes
edificantes que emanavam dos prédios distantes,
constelações, carros estacionados em vagas
proibidas, namoradinhos se amassando na
imensidão do momento. Enquanto isso, com uma
aparência abatida, Dos Anjos cortava o ar com seu
canivete suíço. Seus movimentos, desengonçados e
nervosos, traziam à tona o semblante mortificado
de quem só sabe existir nas trevas, nos pesadelos
infindáveis, que, mesmo com o tilintar dos anéis
prateados em seus dedos nodosos, não amainava de
jeito algum, pois, dentro de cada um de nós,
querendo ou não, parece residir uma cova buscando
o carinho que, certamente, só poderia ser de um
coveiro. E quem é este? A opulenta figura que lhe
negou, sinceramente, o sabor dos amores
impossíveis. Silêncio. Agora a paisagem era
bucólica, insossa como os tímidos gorjeios e
cantilenas das andorinhas. Ninguém ousava mexer
a boca; tanto que o lábio superior de Heitor não
cessava de tremer, tornando-o uma espécie de
marionete do tempo. Vamos ao cinema, sibilou
Baptista. O outro sequer falou; apenas
movimentara os belos cílios camponeses, de forma
mansa, deixando-se guiar por seu novo
companheiro. Cada movimento que este fazia, pra
falar a verdade, parecia obter em si, se assim
pudermos comentar, uma áurea negativa, uma rara
aptidão para o caos imediato e, com esse ‘’dom’’
misterioso, dedicava-se plenamente aos devaneios
intempestivos que tanto lhe afligiam. Tudo
começava numa terra batida: A vida como terraço.
Depois, numa senda árida coberta por pedregulhos
e esculturas de leopardos dourados, o tédio em
relação ao Eros, já genético, insistia em dizer que a
amplitude era uma persona imperscrutável, embora,
em seus sentimentos profundos, porém torpes, ele
conhecesse o sentido de sua angústia. Em todo
caso, poderemos tratar disso mais tarde, se bem
que, na época referida, Dos anjos só tinha certeza
de um detalhe: A humanidade possui somente uma
habilidade: Falar mal dos outros. Sim, era incrível
como sua mente lhe mostrava um complexo
patamar repleto de almas variadas. Haviam
mulçumanos preocupados com suas virgens
prometidas, católicos desiludidos por conta do
Limbo, isto é, a dimensão onde vão parar os fiéis
não batizados. Enfim, em todos os flancos
imagináveis possíveis, alguém xingava um
moleque que pedia esmolas, uma mãe que
abandonava, sem remorsos, o filho que acabara de
conceber, puro e lustroso, numa lata de lixo. Isso é
o retrato fidedigno da cidade inominável onde eles
viviam encolhidos, tentando, sendo em vão na
maioria das vezes, fugirem da dor que, lá no fundo,
só pertencia aos seus próprios questionamentos
infundados.

Vou lhe ferir na vegetação rasteira. Não, eu não


sou bom ou ruim, fogo ou mar. Se quiser, querida
princesa, pode me chamar de Insônia.

A oração acima fora recitada poeticamente pelo


vilão do filme. Era a única fala da película. O resto
do drama consistia numa sucessão de gestos
sufocados como a apreensão da esposa
sobressaltada que via, bem diante dos seus olhos
translúcidos, o ataque cardíaco do marido frustrado,
dono de uma fábrica de absorventes. Contudo,
apesar do toque asqueroso que envolvia esta parte,
nada se comparava ao absurdo que era, digamos
assim, a coleção de produtos vaginais do senhor
com problemas coronários.

Sem dúvida, ao que tudo indica, essa quebra foi


relevante. Heitor nem prestava atenção nas cenas;
pensava, no entanto, na tal vegetação rasteira, no
tal ponto onde a princesa seria ferida, o qual, talvez
encantador, guardasse o segredo desse romance
sem pé nem cabeça. E, estranhamente, um sujeito
de olhar côncavo, sentado ao lado esquerdo de sua
poltrona, sussurrou-o ao ouvido: Vamos arejar
novos ares. Frio, medo, desespero agudo. Estavam
na rua dos vagabundos, perto da igreja pichada com
sangue. Sem rodeios, o cara do cinema apontou,
com o dedo indicador tremeluzindo, na direção de
um casal de idosos, dizendo secamente: Quem eu
devo matar? O velhote de quimono escuro ou a
velhinha de avental branco e pantufas infantis?
Boamorte admirou a bravura do fulano, mas não
era capaz de cometer a barbaridade proposta. Com
efeito, até pensou em se oferecer como sacrifício;
mas sempre fora covarde, sempre vira o amor
passar insolentemente, pilheriando com sua
personificação de vela apagada. Na verdade, o
despertar já não tinha aquarela, salvo o esplendor
noturno, a inventada presença da mulher amada:
Carla. Será que perderia seu enterro? Será que
mataria algum dos anciãos? Quem lhe pusera na
encruzilhada do universo? Dormir era preciso. Ao
longe, interligados por algemas compradas num
Sex Shop, Fábio e Heleno passeavam tenramente,
causando sensação em mais uma insolúvel
intervenção; Olívia, ora absorta nas magnólias do
jardim da mansão do personagem Burger, ora
concentrada nas baforadas dos cigarros orgânicos,
nem desconfiava do que iria acontecer no mesmo
dia. A culpa foi da erva para o chá. Nós, os
mortais, somos burros de carga, sentenciou o
vendedor do anis. A mulher que não entendera
nada abandonou a bodega, tropeçando numa
tampinha de Sprite. A garrafa de água mineral, que
jamais esquecia, caíra na pista ainda não
pavimentada pela prefeitura. O relato a seguir
parece retirado dos sonhos. Naturalmente, a
garrafinha quebrou, ao meio, espalhando o líquido
por todos os lados. No entanto, por incrível que
pareça, a água começou a se movimentar, sozinha,
indo de encontro ao trânsito conturbado, apinhado
de péssimos motoristas. Assim, a água viva ia
percorrendo a estrada esburacada, não antes, é
claro, de se perder na infinidade de sujeiras
contidas na avenida. Seja como for, parou na
paragem burlesca onde, encarando Boamorte, o
cara do cinema, estupefato e cínico, considerava a
possibilidade plausível de assassinar o casal idoso.
Bem, por um mero acaso, apesar do contexto
sonhador que sustenta este relato, algo sobrenatural
ocorreu: pisando na pequena poça formada pela
água mineral de Olívia, o algoz dos velhinhos
acabou caindo para, com um baque ensurdecedor,
representar magistralmente sua morte. Paz: foi isso
que Heitor sentiu, pois nada parecia seguir uma
rota comum. Mortes, mazelas, absurdos
comemorados, louros nunca colhidos. Por que nada
fazia parte desse município enfermo, presa de seus
próprios cidadãos desorientados? Vocês não
perceberam? Pois vislumbrem agora o preâmbulo
do declínio: O sapatênis de Heleno era dos
americanos; o canivete do esdrúxulo Dos Anjos
tratava-se de uma peça suíça; Oh! A bebida
compartilhada neste romance, amigos e amigas, foi
uma vodca! De fato, Heitor tinha diversos motivos
para afundar de vez em sua inseparável depressão.
Conclusão: O cara do cinema falecera. Havia
batido a cabeça com fúria no chão ladrilhado.
Embora essa morte tenha causado uma ponta de
alegria em seu coração, Boamorte resolveu, com o
desconforto de uma enxaqueca crônica, que não
iria, em hipótese alguma, esquecer aquele casal da
terceira idade, pois, refletido na suavidade da
senhora de avental, independente do significado
dessa descoberta, habitava uma convicção
surpreendente que parecia dizer: Algumas pessoas
podem ser felizes. Sim! Essa era a revelação
pungente que saltava das rugas daquela testa
bronzeada. Para morrer, pensava Heitor, é preciso
renunciar muita coisa. Mas ele não renunciaria;
iria, mesmo com a extinção do homem que lhe
obrigara a ser um psicopata, conhecer o senhor e
senhora Albuquerque. Depois disso, esqueceria de
si mesmo, regressando ao seu estado sem
clarividência, ao nível que não mudaria nunca.
Seria, pois, a desgastada vela apagada que,
indiferente a tudo, incluindo suspiros patológicos e
pedidos de socorro, desembarcaria num plano
fulminante tendo que decidir, graças ao delírio
imutável marcado em seu peito volumoso, quem
deveria juntar os pezinhos: o masculino ou o
feminino, a autoridade ou a compreensão. Já que a
glória antes sonhada por ele estava pulverizada,
entregar-se-ia, sangrando por dentro, ao suplício
irremediável dos dias aziagos.

Se for possível, e creio que assim o é, voltaremos


para Roberto Burger. Mais uma vez, o Minotauro
voltara. Ele tentava fugir, em vão, grunhindo
desesperadamente. Seus gestos, cada vez mais
espaçados, mostravam o pérfido toque da dor. Não,
aquilo não era loucura. Lembrava-se, então, dos
tempos de colégio; todos lhe humilhavam com
brincadeiras abomináveis. Quantos chicletes ele
teve de arrancar dos cabelos castanhos? Ah, o fato
é que sempre amava uma mulher diferente, seja alta
ou baixa, intelectual ou frívola. Até que, numa
manhã apaixonante, procurou Denise, mas ela
sumira. Como isso lhe tirava o sossego, porque
Denise nunca fora de faltar, procurou encontrá-la
na mitologia grega. Tudo que ansiava era ser
Hércules. Mas, ao despertar de suas graciosas
utopias, via-se fétido e nu, diante de um psiquiatra
de testículos enormes, pormenor este que lhe
deixava totalmente enregelado, constrangido por
ser um sujeito retalhado, há muito desesperado. E,
impulsionando-se numa viagem psicodélica,
abandonou sua casa, tornando-a uma extensão de si
mesmo. E o Minotauro? Este continuava em seu
encalço, sobretudo porque gostaria de entender o
que os ligava. Sendo assim, sempre acelerando o
passo, Roberto passava por sebes, torres
alabastrinas, mares bravios e céus multifacetados.
Uma menina risonha puxava-lhe a gravata azulada;
um menino franzino, de pele flácida, acendia um
conservado lampião. Por isso, à luz vacilante do
objeto, Burger pôde, apesar do rebuliço em suas
entranhas, contemplar os chifres da besta,
reluzentes, envoltos por insetos nojentos que não
cessavam de emitir barulhos mordazes. No dia
seguinte, ainda aparvalhado em detrimento ao
sonho que tivera, achou melhor não receber
ninguém. Nada de visitas. Enquanto seus
impropérios não fossem solucionados, portanto,
pouparia vergonhas desnecessárias, de modo que se
dedicaria na árdua incumbência de arranjar um
trabalho para Heitor. Tal tarefa, obviamente,
exigiria bons esforços porque, para se ter noção do
perigo, seu amigo nunca pegara no batente.
Roberto, agarrando-se às correias das conquistas
fugidias, dormira numa cadeira de balanço. Para
Olívia, que estudava a interpretação das quimeras,
nosso minotauro representava vários signos da
sociedade: superpopulação, imortalidade infantil,
segregações raciais, distribuição de renda,
relutância para mudar o que nunca vingou. Ou seja:
a criatura jamais lhe deixaria. Nem no presente.
Nem no porvir. Eu caminho por entre folhas
flutuantes que me acertam em cheio. Atrás de mim,
numa escuridão impalpável, o inimigo espreita e,
por mais força que eu faça, tenho de ser engolido
pelo corvo de bosta à minha direita. Então,
debaixo do meu nariz aquilino, acabo sentindo um
odor de parede recém-pintada. O copo que seguro
em minha mão, rachado, é de um cinza berrante,
desses que nos posicionam numa corrente que se
estende por oceanos e muralhas, outeiros com
limeiras e jardins suspensos. Se alguém bradar
minha nomenclatura, pois somos fórmulas e não
homens, juro que me fingirei de surdo. Tudo é uma
farsa! Eu sou a carne fria, gordurosa; o
Minotauro, em todo seu frescor, é a membrana que
pulsa em minha lividez, a efígie que orna e cinge
minhas escolhas frustradas. Assim disse Roberto
Burger. Morreria, anos depois, numa barraquinha
de praia. Tomando água de coco, meditativo,
pediria para se desintegrar. Ao ser cremado,
todavia, acabara cometendo um grande erro:
Boamorte e Soares venderiam suas cinzas para a
turma da cocaína. Hora do intervalo. Às vezes,
quando tudo que há é um ambiente fosco, o escritor
precisa se exilar em outras bandas. Ainda vivo,
Roberto se divertia com a introspecção de Heitor.

Todas as manhãs, antes de tomar café com


panquecas, Heitor Boamorte perdia um pênalti.
Explicação: no campo da mansarda de Burguer, ele
disputava, com o anfitrião do lar, que marcaria um
gol. Para ele, isso mudaria sua atitude perante os
desafios do existir. Quanto a Roberto, goleiro
experiente, sempre defendia as cobranças de seu
parceiro. Heitor sentia-se como o abatido Charlie
Brown, o patrão de Snoopy, criado pelo desenhista
americano Charles Schulz. Então, como que
inebriado por conta de tantos erros
incompreensíveis, decidiu organizar um
acampamento. Chamou todos os seus amigos,
inclusive Carla que, nessa ocasião, ainda estava
entre nós. Fora sua maior desonra. Desde que
começara a sorrir rispidamente para as borboletas e
o farfalhar adocicado de suas asas, começara a
perceber que nunca estaria livre dos espinhos, dos
arames farpados, do bafo quente dos diálogos
brutais. Nas ruas, desde sempre, mesclavam-se
contradições: a fragrância de feno fundia-se com o
augúrio provindo dos tiroteios. Mães aguardavam
seus filhos, mas estes estavam infiltrados em
gangues. De todo modo, estávamos no
acampamento. Nele, foram as pessoas de praxe. De
repente, talvez devido ao ulular dos lobos famintos,
Carla pediu, sem decoro nenhum, para dormir com
Heitor. Esse pedido, verdadeiramente inesperado,
inflamou as têmporas de Heleno. Mesmo assim,
não houve comentários maldosos; pelo contrário,
toda a massa ali presente, a não ser Heleno Soares,
aprovava a ideia. Com ânimo exaltado, todavia,
Heitor observou a floresta. Bem, levaria Carla, se
assim esta permitisse, para a cachoeira e,
molhando-a naquele manancial, cobriria seu
corpinho com beijinhos vorazes. Fariam amor para
sempre. Coitadinho! Quando iria amadurecer? Os
cajus caíam com cólera no areal, enquanto que,
deitados numa esteira porosa, levemente
perfumada, Carla e Heitor brincavam de piscar os
olhos. Quem perdesse, no entanto, deveria
responder um questionário. O homenzinho perdeu;
só pensava no calor fornecido pela mulher de
camisola estampada. Afinal de contas, com a
cabeça dela encostada em seu defeituoso ombro
esquerdo, ele se deleitava, feliz da vida, por notar
que havia ali um tipo de choque térmico, pois ele,
quem sabe por algum capricho, sempre fora gelado.
A moça, contudo, franzia o cenho. Estava
confabulando o que perguntaria. No fim,
comprimindo ainda mais seu seio à mostra, soltou o
verbo:

É verdade que você me ama? Que não consegue


viver sem mim?

Sim.

(risos)

Ele não suportou a confiante gargalhada de


Carla; despejou sua alma sobre ela. Eram lágrimas
em profusão, aterradoras, que davam para ouvir nas
outras cabanas, onde, presos pela tortura da
madrugada, os outros nem ousavam se levantar.
Soluçando, Boamorte repousou o rosto turvo no
busto saliente de Carlinha. Nunca mais pararia de
chorar. Entregava-se, portanto, ao fosso supremo.
Vozes abafadas gritavam em seus tímpanos, e ele ia
desabando num lago sulfuroso, cheio de serpentes
endiabradas. O mal é eterno, pensava. E o amor
não correspondido, em forma de mulher, acariciava
seus cabelos, cantava canções de ninar, esfregava
os seios agora expostos na testa intumescida do
rapaz. Era belo o mover das suas mãos, o olhar
distante e retumbante advindos de seu caráter
sólido, os traços e contornos e a maciez de sua pele.
Como alguém poderia não se apaixonar por essa
figura? De costas, agora ignorando o diabo
choroso, ela exibia uma tatuagem libertina: um
tribal negro, além de marcado por tonalidades
amarelas. Dias passariam que Heitor nem sairia de
casa. Até porque, imerso na sedução imortal de
Carla, só conseguia manter os olhos abrasados, em
megalomania constante. E, nessa cruel devastação
de si mesmo, iniciou umas dietas tresloucadas.
Apesar do corpo magro, da estrutura macilenta da
sua tez ou dos conselhos dados por Olívia Guerra, a
besteira já estava feita. Já não queria se alimentar.
Seu quarto, empoeirado e malcheiroso, esbanjava
uma porção de livros sem capa, vasos espatifados,
porcelanas aos pedaços, cerâmicas grifadas por
pincéis ignóbeis. Quem ele era? Em que ramagem
havia deixado seu coração? Nem para fugir de si
mesmo ou coisa que o valha ele servia. Sombras
habitavam seu âmago, apagando cada vez mais sua
essência de vela doentia. E, assim, o mesmo túnel
da solidão que, em outros tempos, perturbara
Heleno, agora tomava conta dele, desse
desempregado sem amores, tulipas, abraços
sinceros. Refletiu: Este túnel ainda aplacará
minhas dores. Grande balela. Continuaria, é preciso
esclarecer, correndo sem ninguém, tropeçando em
pedras roxas e sebáceas. Pena que não
deslumbraria, para sua redenção, a mulher sonhada
entrando na igreja, agarrada ao pai, a grinalda
resplandecendo milagrosamente como um alento
do destino. Depois da morte de Carla, porém, até
conheceu outras mulheres, sendo que, na verdade,
apenas para trocar figurinhas, confissões
aglutinadoras. Marcela, por exemplo, logo
reconheceu a identidade de Heitor.

Você é um ser assexuado!


O tilintar dessas palavras assombraram
Boamorte. Mas achou prudente permanecer
impassível. Alguns segundos mais tarde, ainda que
munido por uma vergonha profunda, chamou-a
para um motel. Na ocasião, Marcela usava um
suéter holandês, meias-calças com cores zebrais e
um cachecol violeta, enquanto, com seu calção
curto, de malha, o homem observava o tráfego de
bicicletas, motos e transeuntes apressados. O motel
ficava perto do chafariz enfeitado por monumentos
de leões atacados por serpentes; ponto turístico que
logo despertou o interesse de Marcela. Vamos tirar
uma foto, começou ela. Mas Heitor tinha medo de
fotografias, pois, segundo sua filosofia, a
imortalidade não pode ser adquirida assim, por
meio de coisas banais e irrisórias. Além do mais,
sempre que pousava, via-se obrigado a sorrir,
dissimulado. Se bem que, na maioria das vezes, já
nem era mais solicitado para o mundo das fotos,
das recordações guardadas com afeto. Aliás, tudo
que desejava era o esquecimento, o vazio do
oráculo, a cruz que o pregava na parede, as linhas
horizontais e diagonais amarrando o corpo duro. A
partir deste momento, o cordeirinho viraria
ampulheta, e, com a areia do tempo escorrendo por
entre eras e lendas, perderia sua localização no
espaço, nas roletas desse cassino chamado vida.
Sim! Como gostaria de viajar num mágico
Zeppelin, porque, dentro desse dirigível, aprazível
como nunca, veria pessoas embasbacadas,
abanando suas cartolas do século XVIII,
naturalmente espantadas com a máquina de guerra
que sobrevoava o ceuzinho azul-piscina que, em
gerações posteriores, teria uma nova estampa:
vermelho-desgraça, a coloração dos sangues
derramados nas trincheiras, nos fronts de batalha ou
nas brigas conjugais, familiares e pessoais de cada
espírito aturdido. Às vezes chorava como um
hipócrita, isto é, para que todos admirassem sua
devastação; e fizera isso muito bem. Em todo canto
que ia, contudo, era conhecido pela tristeza
exposta, pela ferida interna que lhe formava o
caráter, desolado, insolitamente impenetrável. A
priori, o sorriso murcho nos beiços, percorreu os
bairros dos judeus, mercadores, mulçumanos,
prostitutas, metrossexuais, feiticeiros, estrelas que
há milênios deixaram de luzir, embora, mesmo
abarrotados de intempéries, fossem menos
melodramáticos que Heitor Boamorte. A bola está
no centro; o atacante respira; Roberto Burger
posiciona-se entre as traves enferrujadas. Pausa. Lá
vai ‘’Heitorzinho’’... No travessão! Mais uma
penalidade máxima perdida. O cotidiano
continuaria igualzinho: cicuta, formicida, currículo
de um homem só. Adorável ou não, eis o que fez:
fora em busca da Família Albuquerque. Quem
mataria?

Tocou a campainha. O velho apareceu com uma


espingarda, para, passados alguns instantes,
questionar aridamente.

O que o senhor deseja?

Quero lhe conhecer. Sou uma personagem


retirada de uma ode épica.

Por que acreditaria numa merda dessas?


Perdi a mulher que amo. Belo roupão de
arminho!

Albuquerque bufou, atirou a espingarda numa


poltrona remendada e permitiu, desconhecendo
suas razões, que o ‘’o poeta errante’’ entrasse em
seu recinto. Heitor empalidecera com a
luminosidade da sala. Nela, posicionadas como se
fizessem parte de um dia de prova, havia cadeiras
de ferro em fileiras organizadas, estatuetas ocres de
artistas desconhecidos, pequenas colunas dispostas
ao redor da saleta. Havia também uma estante
amarrotada de livros raros, desses que dá até medo
tocar. O fato é que a mesa com cartas de um
baralho espanhol, localizada num ponto que
atrapalhava a mobilização dos visitantes, lembrava
a minguada estrutura de metal onde, utilizando
todos os métodos sexuais possíveis, Marcela
tentara, em vão, passar a noite com ele. Bem, o
leitor deve está aflito; Albuquerque queria mostrar
todo o aposento, principalmente, como ficou claro,
o dormitório que, ao primeiro contato, inflamava
quem quer que fosse: cama terna com dossel,
coleções de pedras betuminosas, pôsteres
comprometedores que traziam à tona imagens de
Drag Queens seminuas, em posições picantes. De
resto, debaixo do assoalho, existia um esconderijo,
quase um porão assombrado. Quando estava no tal
lugar secreto, Heitor, não contendo a curiosidade,
arriscou: Por acaso o senhor se interessa por
transformistas? Como o interrogado fazia-se de
mudo, a questão fora encerrada celeremente, de
modo que o melhor a fazer era dedicar-se aos
balaústres, as caixas de papelão e, sobretudo, no
que dizia respeito ao sem-fim de baratas voadoras.
Depois de uma funesta troca de olhares
desdenhosos, os homens passaram a dialogar com
mais desenvoltura. Heitor falava das vicissitudes do
tempo perdido, enquanto Albuquerque, por seu
turno, perorava sobre o porquê da não existência de
uma vizinhança; segundo ele, portanto, os
moradores do lado esquerdo haviam sido
brutalmente violentados por grupos de extermínio,
sendo que, para piorar a situação, os responsáveis
ainda estavam impunes por aí, dançando e rindo
com suas caras hirsutas, lavadas pela incompetente
justiça. Já os vizinhos do flanco direito, insuspeitos
pela tradição e pelo pomposo brasão familiar,
acabaram expulsos pela polícia, porque, de acordo
com algumas acusações, talvez vendessem drogas
ilícitas. Você quer cheirar pó, perguntou o velhote;
Não, respondeu Boamorte. Diante deles, como uma
furtiva aparição, estava a matrona e seu avental
branco; ela trazia uma bandeja com chá e
biscoitinhos salgados. Seu marido, que andava pra
lá e pra cá, começou a grunhir feito um bicho
nocivo, argumentando efusivamente que queria
canapés e café colombiano. Independente destas
queixas lastimosas, Margot, então amistosa,
mandou Albuquerque se retirar dali, e sua locução
verbal era tenebrosa. Começaram a discutir
calorosamente, embora, por alguma razão estranha,
pairasse um nimbo de alegria contida, esmaecida
pelas assíduas tempestades dos relacionamentos
conjugais. Quando o turbilhão de xingamentos
cessou, a mulher idosa acendeu um isqueiro, pisou
cinco vezes na madeira, ligou uma antepassada
vitrola, e, enlaçando seu par com veemência,
dançaram ao embalo das serenatas inesquecíveis.
Mas isso mudaria em seguida quando, torcendo o
tornozelo num velho baú carmesim, os segredos de
uma década de crimes seriam, enfim, revelados:
porte ilegal de armas. Isso, sim, era espantoso! Do
que estamos falando? Ah, não se faça de
desentendido. Metralhadoras, rifles, revólveres de
calibres distintos, cores provocantes e funções
específicas. Qual o significado disso? Será que
Heitor, realmente decidido, teria coragem
suficiente para matar alguém? Voltou para casa
como que desapontado por sua inutilidade, pela
inaptidão para os desafios imprescindíveis. Mais
uma vez, em menos de uma semana, olharia para o
espelho retangular, perscrutador, e depararia com a
silhueta de um desempregado, fracassado e
humilhado mancebo. Ademais, nas corridas diárias
que praticava, atravessando prados e parques
botânicos adornados por eucaliptos e margaridas
reluzentes, percebia, para o advento da derrota
irrefutável, como era difícil conquistar, por ínfimo
que fosse, digamos assim, um singelo galardão. E,
salvo alguns momentos prazerosos, que geralmente
ocorriam graças ao empenho de Olívia em fazê-lo
sorrir, ele se entregava aos anseios de seu mais
novo aliado: um anjo depressivo. Essa alegoria do
além, no entanto, não tinha asas enevoadas ou
auréolas celestiais; pelo contrário! Através das
acnes cobertas por pus e das mãos calejadas,
resumia-se a apatia do Arcanjo, alto e âmbar, com
uma malcuidada barbicha flamejante. Como o
místico ser ficava nu, algo despertava um vasto
interesse: o anjo era desfalcado de períneo. A
princípio, sem saber o que dizer, Boamorte agitou o
corpo como se, com esse movimento, pudesse
expulsar o triste anjinho. Então, mesmo
acompanhado por uma criatura nauseabunda, logo
tentou tirar proveito de algum jeito, ou seja,
cometendo delitos e afrontas graves, já que se
sentia tomado por uma força maior que,
indubitavelmente, seria a culpada em relação aos
dolos cometidos. Passou um dia na prisão;
suficiente para conhecer uma dor que ainda lhe
faltava: o encarceramento físico, pois em termos
gerais, se é que podemos considerar dessa forma, o
trágico rapaz já era perito nas dores poeticamente
internas.

Ainda não tínhamos elucidado este caso, mas,


seja como for, Dos Anjos tinha uma perna só.
Parece que havia perdido o membro inferior
canhoto lutando com um tubarão; pelo menos era o
que ele alegava constantemente, meio tímido,
pigarreando em intervalos curtos e assustadores.
Porém, talvez em detrimento de incongruências
naturais, a realidade fosse outra: alguém fizera isso
com ele ou, infelizmente, tratava-se de um dos seus
pavorosos rituais de suicídio. Em pouco tempo,
segundo os médicos, o pobre perneta estaria numa
boa, enveredando por tudo que é canto e,
doravante, contente pra burro com as muletas que
seriam, de agora em diante, suas damas favoritas. A
propósito, apesar de o costume ser uma coisa
nobre, Baptista teve de suportar o preconceito. Os
ônibus, por exemplo, não paravam quando ele,
corretíssimo, dava o sinal de praxe. Por isso, entre
choros descomunais e anedotas alheias, continuava,
arregalando os olhos globais, a narrar suas epopéias
pitorescas. Ninguém acreditava nele; mesmo assim,
sempre resoluto, ia subindo a escada em caracol,
marmórea, para encontrar mais uma mulher em seu
leito aromático. Das artes do amor, então, tirava o
esplendor que necessitava; e das artes suicidas, pra
variar, sugava o néctar que lhe levava, cada vez
mais, ao itinerário do tombo iminente, pois, ainda
que lhe restasse uma frondosa centelha de fogo-
fátuo nas trilhas douradas proeminentes de seus
sonhos, a máscara do presente não era abundante, e
sim, caso seja relevante explanar, corrupta e
implacável. Samara (a mulher estendida no leito)
permanecia com a boquinha entreaberta, o lábio
superior fremindo e os dedinhos percorrendo os
lençóis encardidos. Esse era o seu chamado para o
prazer, que, perguntem ao Baptista Dos Anjos,
nunca passava de um jogo efêmero, encarapuçado
pela plena convicção de que já não era bom em
nada, muito menos no ‘’coito’’ ou nas tarefas
domésticas. Ato contínuo Baptista passou a alugar
vários filmes antigos, desses estrelados por James
Dean, Marlon Brando, Ava Gardner, Frank Sinatra
e Carmen Miranda. Entretanto, no fundo do poço,
ele roia suas unhas, coçava o saco. Causava sua
própria cova, literalmente. Quem poderia lhe
mitigar o sofrimento? O Minotauro? Não! O anjo
triste? Negativo! Os acessórios desse romance que
nunca são nacionais? Nunca! Apenas o hálito
fulgurante e peremptório da... Que rufem os
tambores! Olívia, como sempre. Ela, contudo, não
voltaria mais, pois isso seria destrutivo para ambas
as partes, se bem que Dos Anjos, depois da perda
da perna, tinha de enfrentar seus temíveis
pesadelos. Sonhava com a morte, e esta
demonstrava suas mais variadas representações:
uma vasilha que cai e se despedaça, um afável
fechar de olhos, uma cortina teatral que desce
placidamente, um rechaço do amor, uma melodia
tocando incessantemente, um marido chifrado que,
no apogeu da desordem, invade o território do
inimigo, com uma pistola na mão, e mata-o. Para
que esses acontecimentos ficassem claros, o pobre
gajo conversava delicadamente com o Fim, não
antes de, por meio de gestos confusos, porém
reveladores, procurar explicar o que lhe tornava tão
ressabiado, sobretudo nas tardes agradáveis onde,
na companhia de uma ninfa qualquer, entregava-se
aos sabores incandescentes dos corpos em
expansão, da carne contra o espírito. Certa vez,
numa dessas transas incomparáveis, acabou pondo,
sem querer, fogo na casa; é que tinha a mania de
amar ao lado de inusitados potes de gasolina, e,
como adorava os riscos daquilo, começava a
acender fósforos, pular na cama feito um
menininho e dançar ao retinir das balas que batiam
em suas venezianas. O problema disso tudo ainda
estava por vir. Sonia, outra amante excêntrica,
sugeriu que faltava cerveja. Dos Anjos fora no
supermercado mais próximo, tremendo de frio e
mastigando salgadinhos oleosos, enquanto que ali,
mesmo na ruela pavimentada, alguns policiais
trocavam tiros com pichadores noturnos. Por que a
sociedade é assim? Essa indagação, por mais pueril
que possa parecer, esconde em si os principais
mistérios da vida, até porque, vendo-se obrigado a
distribuir o fardo de latinhas de Heineken entre a
polícia e os infratores menores de idade, Baptista
notava, ainda que com bastante relutância, como os
homens são pífios, máquinas de batalha que só
param em meio aos vícios e insignificâncias do
Ser! Choraria o resto da noite, agarrado ao pescoço
da inconformada Sonia, porque, sem dúvida
nenhuma, sob os afagos femininos, esqueceria o
estourar das armas, os goles de bebidas alcoólicas
geladas, o fogo-fátuo que se evaporava, o prazer
que ia desabando pelas serras e colinas do seu
coração espancado, cheio de retalhos irreparáveis.
Ora, o clima romântico fenecera. Sonia iria embora,
os cabelos revoltos e o sentimento abalado, apenas
pensando na ineficácia do parceiro mutilado ou,
apesar dos golpes frustrantes, nas azaléias do
formoso jardinzinho. Eis alguns dados adicionais:
Dos Anjos ficara sabendo do ‘’empacotamento’’ de
Fábio, velho amigo dos tempos de ginásio e que,
depois de exacerbadas críticas em relação aos
roteiros para programas matinais que escrevia,
terminara se transformando numa dessas figuras
febris, de opiniões duvidosas e obesidade mórbida.
Diziam: Tomou cianureto. Mas, cá entre nós, isto é
causa mortis pra literatura; no mundozinho real, de
fato, os assuntos fúnebres são apavorantes como
um político que promete, em tempo recorde,
milagres industriais e econômicos. Bom, Fábio,
quando criança, corria atrás dos amiguinhos
raquíticos, parando aqui e ali para respirar, e, à
medida que desistia de tudo, novas avalanches iam
caindo sobre ele, devassas e demasiadamente
potentes, turvando-lhe a graciosidade já perdida.
Quem, pois, não recorda o gargalhar jocoso de
Fábio, sua sincera felicidade perante os desafios
propostos? Agora, em todo caso, o coitado se
resumia num féretro inchado, quase desapropriado
para qualquer tipo de caixão; aliás, não haveria
guirlandas nem margaridas em sua lápide, pois, por
motivos diversos, tinha predileção aos cravos,
cactos, rosas espinhosas. Dos amigos que havia
conquistado, no entanto, poucos iriam ao seu
velório, de modo que teria um descanso completo,
isto é, sem vínculos materiais ou laços duradouros.
Mas chega de conjecturas! Baptista, tocando
violino com fúria, desatava numa desmesurada
agonia, buscando absorver a perda de Fábio. Na
ocasião, mal conseguindo manter a harmonia do
instrumento, devaneou pelos desertos que
percorrera com o amigo, pelas pensões onde
moraram no rés-do-chão, nos sótãos ou em
cômodos estreitíssimos, cheios de guinchos
esquisitos. Certa vez, numa celebração ao fogo,
agrupados ao redor de uma lareira, combinaram,
ainda que estivessem atemorizados, que passariam
a namorar garotas; eram jovens demais, e a
possibilidade de se engalfinharem com o sexo
oposto, por mais natural que fosse, e realmente o
era, talvez contivesse um tabu inquebrantável. Em
suma: eram homossexuais pela idade; não por
convicção. Com as mãozinhas alinhadas, apesar da
timidez, descobriam o coração do outro, a vasta
escuridão que tanto os unia ali, perto do crepitar,
mas, querendo ou não, distantes do conhecimento
supremo a respeito do poder que comanda os
vendavais, solstícios, suicídios coletivos, massacres
religiosos ou buscas no fundo do mar. Quando,
então, no furor do existencialismo mordido, seriam
capazes de sentir o baluarte do amor? Ah, Fábio
definhara! Antes de cair no ostracismo, ou em
outro buraco compressor, Dos Anjos ainda
dormiria com a prostituta envolvente, de postura
ereta e síndrome de Down, que, toda tarde salutar,
impreterivelmente, desaparecia num beco de
paredes caiadas. A bolsinha de crochê,
provavelmente abarrotada por batons coloridos,
laquês, colônias e outras bugigangas, também
despertava desejos moribundos. Fabinho, antes de
morrer, garantiu, a voz estridente como nunca: Há
um segredo na bolsa! Por que não descobri?Passei
a vida à toa.

E Heitor regressou ao lar dos Albuquerque.


Dessa vez, procurando evitar embates
desnecessários, foi numa hora auspiciosa, já que o
velho havia ido ao trabalho. Era o que ele desejava!
Dona Margot, enfim, poderia lhe contar sua
biografia. Assim, após o ‘’recolhimento dos
dados’’, maneira feia de comunicação, poderia
escolher quem, porventura, acabaria morrendo.
Margot, que passava o dia costurando em seu tear,
disse não gostar de Boamorte, porque ele era
frívolo e inconveniente, quase um terrorista.
Embora o rapaz se sentisse desajeitado com os
palavrórios nada amistosos da anfitriã, procurou,
como um aluno exemplar, somente perguntar o
básico. Levantando o braço nervosamente, se bem
que toscamente, parecia fervilhar um gesto que, em
toda sua complexidade, poderia sintetizar a história
do universo, independente da simplicidade que lhe
cinge. Panteras Negras, multidão hitlerista,
agradecimento aos deuses, tudo isso aconteceu
assim, singela e normalmente, num levantar braçal,
meio cômico, às vezes extremamente circunspecto.

Onde está seu marido, afinal?


Numa solenidade literária: o prêmio imaginário
de literatura. Se você quiser saber algo mais, por
favor, basta abrir a segunda gaveta do criado-
mudo.

Puxando a gaveta cautelosamente, como que


resignado, Heitor, atônito e curioso, puxou duas
folhas de cartolina, nas quais, escritas em letras de
forma, mesmo assim aos garranchos, continham
algumas explicações sobre a premiação comentada
por Margot Albuquerque.

O prêmio imaginário de Literatura começou


quando eu tinha oito anos. Lá, nas bibliotecas
gigantescas ou sebos incríveis, lia os autores que
mudaram minha sublime vivência. E, assim, por
essas épocas, comecei a ler livros que só existiam
apenas no meu cérebro, somente nas minhas
veneráveis memórias. Lembro, pois, que, num
momento crepuscular, conheci os versos de Luis
Visconti, poeta nascido em Gênova. De qualquer
forma, ele foi logo apontando a navalha na minha
direção, dizendo: ‘’Que o teu filete de sangue,
brônzeo e tenro, ressuscite minha alma turva,
devorada pelo tempo. Depois, quando já estava
inteiramente empapado de suor, Visconti explicou,
sob a balaustrada de mármore, a existência de
uma premiação literária para os escritores do
inconsciente. Ele, em todo caso, havia sido o
primeiro laureado. Com efeito, observando seus
olhos amenos, resolvi sugar seu maná intelectual.
Perguntei: Você poderia me dizer a lista completa
dos vencedores? Sem delongas, portanto, Luis
Visconti assentiu. Abdicado, retirou uma listinha
do bolso para, em seguida, ainda que de feitio
grosseiro, principiasse a listagem:

1950: Luis Visconti (Gênova, 11 de outubro de


1888 – Buenos Aires, 3 de novembro de 1951)
Agraciado por seus versos inflamados,
apaixonados e, doravante, repletos de desejos
humanos. Suicidou-se ao perder uma aposta no
boliche. Tomou arsênico.

1951: Victor Epaminondas (Atenas, 07 de maio


de 1895 – Genebra, 21 de setembro de 1962) Com
seus romances de cunho social e filosófico, esse
grego revolucionou a literatura européia. Teve,
então, como principais obras: A arca de Noé na
casa de Platão; Guias Socráticos para viagens
filosóficas; Diário do Epaminondas: Perdido no
meu eu. A tuberculose lhe tombou duas semanas
antes de seu casamento com Anita Torres.

1952: Consuelo Plata (Bilbao, 15 de março de


1898 -) Laureada por conta de contos opressivos,
mas muito criativos. Mergulhada em sua inovação
artística, criou histórias onde, intrínseca em seus
recursos psicológicos, não existia personagens
humanos. Principais obras: Contos do tempo;
Contos do tempo II; Quem trancou o portão
mágico; Folhetim Futurista; O pentagrama dos
loucos.

1953: Paul Cofee (Alabama, 06 de junho de


1853 – Nova York, 06 de junho de 1954).
Romancista, contista, poeta e dramaturgo, o norte-
americano Paul Cofee dedicou sua vida aos livros.
Desde menino, após o falecimento do tio, passou a
escrever com fervor. Destacou-se profundamente
no teatro. Suas principais peças foram: Mataram o
rei Lear de minha tia; Os assexuados; Apitos e
tomates; Alocuções para mudar o mundo.

1954: Nikolay Petrov (?). Talvez o escritor mais


misterioso dos anais da história. Provavelmente
nascido num vilarejo humilde, Petrov tornou-se
mundialmente conhecido por causa da magistral
coletânea: Seguindo Tolstoi. O catatau é dividido
em quatro tomos, sendo o derradeiro a obra-
prima. Sim, encerrado o quarto volume, Nikolay
desapareceu. Observação: o livro chamava-se
Longe de todos = perto de Tolstoi.

1955: Marie Nouveau (Lyon, 27 de fevereiro de


1900 -). Faxineira, cozinheira, lutadora de vale-
tudo, babá e professora, Nouveau teve como
diferencial o título de melhor escritora no ano de
1955. Suas principais obras: As faxinas do
Apocalipse; Lutando contra as brumas do destino;
Babá-aventureira; Os críticos que me matem.
Morreu, segundo laudos médicos, vítima de
solidão crônica.

1956: Julius Perón (Mexicano que recusou o


laurel). De repente, dois meses depois de ser
gratificado, o literato fora encontrado morto numa
asmática câmara. Seu rosto estava coberto por
haicais, versos infames.

1957: Orson Wilhelm (Port Louis, 09 de agosto


de 1885 – Leipzig, 30 de janeiro de 1961). É
considerado o maior poeta das Ilhas Maurício.
Passou a vida em vários cantos do globo. Seus
livros, todavia, são polêmicos e ácidos. Filho de
ciganos, desde cedo conviveu com o preconceito.
Principais Obras: O afeminado discreto e a
suástica escondida; Enterrem os escritores
publicados; Morte e vida: quando os santos
choram; A mulher sem silhueta; A escola fúnebre;
Ritual dos bonecos perdizes.

1958: Johan Johan (1882-1958). Agraciado por


conta de poemas satíricos, críticos e inovadores.
Discípulo de Visconti, Sombras e Frades, tentou se
suicidar por diversas vezes, pois, devido a
fracassos literários, não sabia como prosseguir.
Foi então que, em meados de um ano tempestuoso,
conheceu os grandes poetas da época. Assim, com
o primeiro livro publicado, cujo título: Os versos
do diabo íntimo! Ganhou inúmeros concursos e
estatuetas. E, participando das feiras literárias,
montou a Casa dos poemas marginais. Morreu
numa discussão de bar. O tema da briga? Qual a
melhor marca de salsichas.

1959: Angelina Spencer (1900-). Este verbete


contém erros ou informações infundadas. Caso
vocês saibam algo a respeito da austera Spencer,
incrementem esta página. Livros talvez publicados:
A insônia dos anjos; Por que não mataram os
dadaístas lá do bairro?

1960: A premiação foi dividida entre os


romancistas Sombras e Frades. Ambos
paquistaneses, rivais e de partidos políticos
opostos, eles criticavam, de forma pública, todos
os livros que o outro lançava. No dia da
premiação, um sábado gótico, Ernesto Frades
enfiou o punhal nas costas de Sombras. Este,
risonho e andrajoso, sucumbiu na hora. Sendo
assim, com os olhos marejados, Frades declarou
que, dali em diante, não haveria mais prêmios.

Frades foi o fundador do Troféu imaginário de


literatura?

Sim, confirmou o sôfrego Luis Visconti.

Bem, não estou compreendendo um pormenor:


Por que ele laureou seu grande inimigo, e, mais
ainda, era correto escolher a si mesmo como o
melhor escritor do ano?

Visconti desaparecera entre os volumes da


biblioteca babilônica.

Ali, isolado do véu físico, das coisas


preestabelecidas, eu fitei meus olhos. Sim, eles
apareciam para mim como se houvesse um espelho
místico. Mas minha face, pelo que pude notar,
estava fragmentada. Eu era Frades e Sombras.
Não, nunca eu fora o cavalheiro das leituras, o
colecionador das raridades do renomado Paul
Cofee.

Talvez, invadindo minha insanidade, eu fosse


todos os ensaístas, poetas, dramaturgos,
romancistas e contistas das estantes da, naquele
instante, faraônica Biblioteca.

Quem, então, venceria o próximo Prêmio


imaginário de literatura? Para isso ocorrer, oxalá
não demore demais, só faltava uma coisa:
assassinar o senil Ernesto Frades. Dentro dos
livros, em seus conteúdos infinitos, residiam os
armamentos necessários.

Ao terminar a leitura do texto, Boamorte franziu


as sobrancelhas, olhou para o espelhinho oval e,
despreguiçando-se rapidamente, disse num ímpeto
verdadeiramente abrupto.

Para mim, se é que a senhora se importa com


minha opinião, a questão é que tudo isso, de cabo
a rabo, é um conto. Bem, deixando de lado a
linguagem culta, creio que seu marido está lhe
enganando, melhor dizendo, lhe dando uma grande
rasteira. Mas, para falar a verdade, não suponho a
presença de outra mulher, sobretudo porque
Albuquerque, em pratos limpos, por assim dizer,
nada mais é que um transformista!

O abajur vitoriano, posicionado num pedestal


rudimentar, caíra no piso encharcado. Margot, que
segurava um lustroso cetro entre as mãos pesadas,
matutava silenciosa e comedida, sobre o assunto
abordado. Então, já sem pensar em costuras ou
clientes, abandonou a casa, deixando-a nas mãos de
Heitor. Sabia onde encontrar Albuquerque, e só
voltaria de lá, nem que fosse a última coisa que
fizesse, com este sendo puxado pela gola da
camisa. Como Boamorte, por sua vez, não
conseguia digerir os contratempos recentes, o
melhor a fazer era dormir como um sábio, já que
nem aproveitara a sesta. E, assim, carregado por
Hipnos, teve um estranho sonho: Kafka, ele
mesmo, apertava suas ancas com tenacidade para,
sempre fitando suas costas curvadas, mete-lhe um
chute no traseiro enquanto, com o corpo dolorido,
Heitor maldizia o autor que tanto lera. Ali, na
poltrona do transformista, tentava, em vão,
esquecer sua sexualidade. Talvez, quando se
sentisse melhor ou coisa análoga, fosse procurar
Olívia Guerra, para lhe pedir conselhos e sugestões,
levando em conta que sua amiga jamais deixara de
ser prudente. De modo que, ao encontrá-la
alquebrada, a julgar pela aparência de suas vestes
de brim, nem acreditou na frase proposta: Vire um
michê assexuado, ou seja, tendo como objetivo a
referida explicação: Você sairá com diversas
mulheres, mas, devido seu gênero sexual, elas é
que terão de convencê-lo ao que classificarei de,
perdoe-me a expressão, fazer a trepada que elas
buscam. Também entrarei nesse meio, se bem que
por supérflua curiosidade. Vamos ver quem
consegue ter a maior clientela? Claro, foi o que ele
respondeu, amuado, pensando em escritores
imaginários.
Negras, asiáticas, morenas, loiras, ruivas! Vastas
mulheres, com a libido fervendo, atiravam seus
sutiãs, calcinhas, camisolas e lingeries nos móveis
empoeirados da mansarda de Burger. Heitor estava
‘’trabalhando’’ no quartinho de hóspedes, estático,
pois ninguém conseguia amá-lo. Vanessa rasgara o
corpete, grasnira como uma selvagem, mas tudo
fora nulo. Na verdade, o pobre homem observava,
com atenção, se bem que ruborizado, o acervo de
vaginas, vulvas expostas. Havia para todos os
gostos! E, desbancando a moralidade, ainda
arraigada nos conceitos prévios, o fato é que eram
incontáveis os penteados existentes: Triângulo das
bermudas, Arco do triunfo, Cabo Horn, escovinha,
encrespado, raspados. Como, pois, ele conseguia
permanecer irredutível? Seriam os pensamentos
voltados exclusivamente para Carla? Partindo do
pressuposto que um amor é para sempre, talvez isso
tivesse uma réstia de sentido; por outro lado, ao
analisarmos os trâmites processuais desse caso com
parcimônia, quem sabe o maior impropério fosse à
aceitação da derrocada iminente de Boamorte. Este,
ferido e desolado, fixava, entre uma piscadela e
outra, o candelabro que figurava ali, numa mesinha
apinhada de tablóides baratos, desses que nunca
falam de utopias literárias, realismo mágico ou, até
mesmo, poesias surreais. E então, nu como pólen,
ele, no colchão com essência de água sanitária,
permitira algumas carícias calorosas, frugais, a fim
de despertá-lo de si mesmo, pois, vívido em seus
olhos caramelados, habitavam templos, mistérios,
estações de trens assustadores, crimes nas noites
mascaradas, genocídios em vielas lúgubres. Não,
ninguém parecia apto para lhe salvar do escuro, do
rolo compressor que chegava cada vez mais
próximo. Aturdido, virou-se para a janela
escancarada, e através desse gesto, descansou ao
estampido quimérico do voo rasante das aves de
rapina. Qualquer estrondo distinto, por mais alto
que fosse, e esse detalhe acontecia frequentemente,
jamais lhe afastaria das sonoras e deslumbrantes
divagações do momento. Selma, a pretendente da
vez, as mechas escarlates cobrindo-lhe os olhinhos,
dois botões de rosa ainda não florescidos,
abandonou o sujeito em transe, protestando: Não é
homem! Não é nada! Como os disparates da moça
seguiam a obviedade do mundo patriarcal que
vivemos, recurvados em nós mesmos, Heitor
Boamorte, sob um travesseiro puído, dedicou-se ao
ósculo, vulgo beijo, de Carla. Evidentemente, eles
nunca se beijaram; mesmo assim, das hortaliças
que percorreram na infância, ele buscava apalpar
alguma reminiscência, a mais ínfima que fosse, de
que porventura tivesse, ao menos por uma fagulha
passada, em minutinhos singulares, sentido o aroma
salino dos lábios da princesa morta.

Hora de transcorrer sobre falos. Afinal temos que


falar das atividades de Olívia. Mentiras. Não temos
tempo a perder detalhando sessenta partes íntimas
masculinas. Além disso, o verídico nessa narração
toda é apenas o disco que ela ouvia, absorta, no
sofá-cama esverdeado: um álbum com músicas de
Bach e Chopin. Dessa feita, parodiando com a cara
de Heitor, disse pomposamente: Peguei os homens
tristes, os sujeitinhos de corações partidos.
Primeiro, eles me perguntaram sobre o sentido
disso tudo, depois olharam para os móveis
imundos do meu quarto; eu não queria amá-los,
mas era inevitável, pois, bem diante dos meus
olhos, eu também sabia que, para ser feliz, o amor
tinha de ser compartilhado, e foi isso que fiz, uma
vez que meu corpo dói, clama por prazeres
soturnos. Além disso, meu pequeno amigo, tive de
me entregar aos brutos, aos valentes que bebiam
vinhos atrás de vinhos; e, assim, percebia que estes
não tinham silhuetas, tampouco máscaras
aprazíveis. Eram, por então dizer, tempos mortos,
talvez sem um porto seguro para sustentar. E eu
estava com febre, os músculos contraindo
depressa, o sangue correndo atrapalhadamente
por minhas veias grossas, tristes como essa
cidadela que só repousa. De modo que, nesse
instante, espero ser interrompida por você; afinal,
em suma, somos duas, e isso é doloroso, terríveis
bestas imersas no ergástulo da solidão.
Há um erro em seu relato, principiou Heitor.
Depois acrescentou: Você não ficou com ninguém.
Essas pessoas fazem parte da dor que lhe faz falar,
do tédio que lhe obriga a mentir. Não há
sinceridade em seus olhos, essas duas esferas tão
oblíquas e tão amargas; Você, assim como eu, se
esconde nas representações que nos são impostas
todos os dias. Antes, todavia, eu até admirava teu
escárnio, os erros que dividíamos por sermos tão
iguais, tão exclusivamente sofredores. A senhora
não sente o barulho de nossos espíritos rangendo?

Heitor, o que é que está acontecendo? Eu quis te


ajudar. Pelo visto, como na maioria das vezes,
você acabou anexado na mesma merda; a culpa é
sua! Encara a morte, levanta a cabeça e expurgue
o coração acre que bate em seu peito, entendeu?

Ele não entendia nada. Dobrando numa esquina


em trevas, atordoado, sumira repentinamente, tendo
como companhia ladrões, matronas gordas, folhas
secas espalhadas por todos os lados, cegos com
cães-guias. Só faltava chover. Choveu. Não
compreendia a humanidade, a discórdia
impenetrável.

Quando já não sabia o que fazer, deparou com


uma prostituta com Síndrome de Down, elegante e
radiosa, que rodava a bolsinha com extrema
perícia. Instantes depois, num flash fotográfico,
uma figura masculina surgiu, espancando a
‘’mulher da vida’’. Uma vez que Heitor era
indiferente, covarde do começo ao fim, decidiu-se
pela omissão, entrando em outro beco. Ao seu lado,
coladinho feito um fio de alma, o Anjo depressivo
o conduzia, na direção das enseadas dos desgostos
e embustes, o ponto onde, para morrer, bastava ter
vontade. E, foi com esse intuito, que ambos
pararam num bairrinho infecto, embora povoado
por fulanos com ares simpáticos, roupas
confortáveis e humor resplandecente. Seja com for,
ao vislumbrarem um imundo papelão estendido nas
pedras de uma pracinha deserta, logo se deitaram
ali, cientes que passariam dificuldades e fome,
medo e tristeza. Pois bem, antes de chegar a tal
enseada dos embustes, dormiram juntos ao
mendigo homossexual, que enrolado numa lona
circense, aparentemente corroborada de barro,
sonhava, na mais inefável placidez, com o pênis de
um escritor famoso, também liberal, que num
passado remoto, quando estava vivo, até teria
curiosidade em conhecer essa cidade
impronunciável, cuja única especialidade é julgar
os oprimidos, vangloriar os chamados fortes,
prender os inocentes em cárceres desumanos,
demasiadamente violentos. Às vezes, durante
vertigens sofridas, Heitor sentia o toque benévolo
dos dedinhos de Carla. Ah, haviam se conhecido na
escada rolante de um shopping movimentado; ele,
na ocasião, folheava uns versos de Neruda, indo ao
patamar de cima; ela, na ocasião, tomava sorvete de
baunilha, indo ao patamar de baixo. Os ditadores
dos continentes americanos, todos no mundo dos
mortos, acreditavam na união dos olhares jovens
que emanavam desejo latente, enquanto que,
magnatas europeus e oradores africanos,
igualmente inquilinos de Hades, consideravam,
unânime e melancolicamente, o seguinte pormenor:
Carla e Boamorte não se completavam. De fato,
levando em conta todo esse jogo labiríntico, O
arcanjo do semblante frustrado sibilava no
ouvidinho do seu, não há outra definição, mestre:
Eu não vou te largar aí, perto do cadafalso; vou,
então, salvá-lo de si mesmo. Alguma donzela lhe
dirá estas palavras, meu caro estrangeiro em suas
próprias terras? O pedinte despertou sobressaltado.
Disse secamente: Fora daqui! Caso contrário,
amiguinho insolente, eu não terei saída nenhuma,
a não ser, é claro, urinar sobre o papelão que você
dorme, marcando assim, meu território. Outra vez:
sozinho. Contornou, portanto, esdrúxulas ruas
sanguinolentas, repletas de guardas com cassetetes,
baionetas, pistolas, e adentrou numa modesta
livraria. De repente, do estabelecimento onde
estava, pôde ouvir a hecatombe vinda nos passos
dos cavalos. Era a cavalaria, em potente ataque
contra estudantes reivindicando seus direitos. Será
que não raciocinavam direito? Eles não tinham
chance, apesar do imenso cordão humano que
faziam. Por acaso quantos padeceriam? Os jornais
já preparavam notícias frescas, os cidadãos sem
horizontes já apontavam, ridículos, para os perfis
dos possíveis mortos, isto é, com a arma
denominada julgamento, todos comemoravam a
perca dos que lutam para, logo a seguir, como se
nada tivesse acontecido, brindarem em nome da
estupidez gloriosa dos estereótipos, do modelo
irreprimível, da educação que morre a cada suspiro.
Até quando Boamorte desfrutaria dessa sociedade
avessa ao novo, onde, entre defuntos e
anestesiados, só sobrava o poder na mão dos leigos,
ímpios e aproveitadores? Acuado no bloco dos
livros de filosofia transcendental, Boamorte, a
cabeça sempre baixa, gostaria de transcender,
afinal, diante do bradar das criancinhas pisoteadas,
um desvario irrefreável lhe provocava: vela
apagada, anjinho mórbido, pênalti perdido, paixão
enterrada, personalidade assexuada. Enfim, para
acalmar-se, brincou com um joguinho que
encontrou no ‘’pavilhão’’ filosófico.
Jogo dos dados ou veredas
insanas

Instruções: não leia em ordem. Faça o seguinte:


ande pelas casas como num joguinho de tabuleiro.
Bom, de acordo com o número que você tirar, tente
chegar até o fim, ou seja, obedecendo as regras, é
claro. Se há alguma exigência? Apenas os dados,
correto?

Casa 1 (bem-vindo ao jogo!); C2 ( lição de casa


concluída. Bônus: avance duas casas); C3 (dias de
terrorismo; faça algo pelo mundo); C4 (chegou
aqui! Releia seu livro favorito); C5 ( xingue alguém
sem pestanejar. Volte ao início...); C6 (quantas
pessoas tiveram hemorróida no século xx?);
C7( por favor: mande uma carta para o escritor com
a resposta do item anterior); C8 (o assassino lhe
observa. Espreite sua vidinha); C9 (Hesse é
laureado com o Nobel de literatura em 1946. E
você?); C10 (Você fuma? Olha a hemorróida! Nada
a ver. Avance três casas); C11 (urgente! A vida
após a morte foi sepultada); C12 (o assassino é seu
vizinho. Escreva o nome deste no papel e, depois,
coloque-o na geladeira); C13 (dragão que solta
labaredas pelas narinas; para escapar: agarre seu
amorzinho com veemência); C14 (aos críticos:
comecem a execrar minha obra); C15 (hora de
pagar pedágio. Só assim é possível avançar); C16
(poetas não lidos, presos injustamente. Onde está a
novidade?) ; C17 (último capítulo da novela:
mocinho com mocinha. Que droga!); C18 (mais
uma vez, em menos de cinco dias, sou submetido a
solidão); C19 (o carrasco age de forma sub-reptícia.
Levou facada? Volte quatro casas e tire a bunda do
sofá!); C20 (bulimia, hipocondria, depressão, novas
doenças: isso é sociedade); C21( O inferno existe
pra quem quer; não são belos os grãos de areia e a
degradação constante?); C22 (se olhe no espelho.
Caso sua silhueta não tiver um traço de
preocupação, marque um encontro comigo num
balneário draconiano); C23 (parada obrigatória.
Coma o que quiser para, em seguida, terminar o
labirinto); C24 (não sei o que escrever. É o
desespero); C25 (esse troço parece um manual de
auto-ajuda. Por que o sol não brilha do jeito que
queremos?); C26 (o jogador acaba de confrontar
seu parceiro(a) na cama com outro. O que fazer?);
C27 (debaixo do tapete, guardado numa sacola
plástica, está uma winchester 38); C28 (silêncio! A
criança pode despertar. Pensou em fazer o mal,
otário? Abandone a leitura); C29 (você está
desamparado novamente. Em todo caso, basta fritar
um ovo); C30 (dizem que não há caminho para teus
passos. Avance cinco casinhas); C31(cabaré ou
missa? Escolha sem pudor); C32(vida sem
homossexuais? Jamais!); C33 (pra onde vão nossos
sonhos? Que nos acalentem Wiliam Blake, Pessoa,
Oscar Wilde); C34 (Sim, talvez as relíquias de
quartzo ou esse jogo nada signifiquem. Nunca lhe
vi chorar... por quê?); C35 (vazio: regresse à
longínqua C2; nem sei o que há por lá) C36 (surge
o primeiro e derradeiro chefão. Como vencê-lo?);
C37 (talvez o mesmo amor que despencou dos
desfiladeiros rochosos possa reviver nos zéfiros que
sustentam cada anseio fuzilado); C38 (A tríplice
certeza do dia-a-dia: comer, cagar e dormir); C39
(enganei todos até aqui. Enviem, pois, um e-mail
pra mim); C40 (veredas da vida; veredas de
Tânatos! Quem fui antes de arpoar teu espírito no
meu?); C41(por quem vivemos? Perguntas e
contraceptivos bifurcam meu coração; quem
sufocou nossas paixonites pueris?); C42 (lembra
daquilo que não te deram? Muitos não receberam
postais este ano); C43 (nossos livros estão
manchados de sangue. Toda biografia deveria ser
publicada); C44 (Tudo desemboca onde, até então,
duvidamos. A velhice é um unicórnio que sabota
memórias); C45 (o fim é iminente. Que rostos
enfeitarão teu sórdido túmulo?); C46 (A existência
chega ao final envolta em brumas. Segue o axioma:
nascer, crescer, reproduzir, morrer ou,
desordenando o sistema, fazer o que bem lhe
chegar na veneta); C47(A forca nos encerra? Não,
pois teu odor fosforescente, em escalas fumegantes,
ainda habitará nas mais beatas madressilvas); C48
(momento antepenúltimo: aqui é o planalto dos que
ficaram para trás, estagnados. A estrela d’alva
confortará: paciência); C49 (você venceu!); C50
(?).

Heitor parou de jogar, notando que o galopar dos


cavalos havia, por fim, cessado. Agora só lhe
restava voltar à cíclica rotina. Mas, ao tentar
empurrar a porta de vidro, deparou-se com uma
abrupta fraqueza. Estava trancafiado. Pensou: O
que fazer quando as portas estão fechadas? Abrir
outra? Desenhar um novo mundo menos
moribundo? Mas isso significa redenção? Por
acaso... existe algodão doce no inferno? Vou ser
Voltaire amanhã?

Quando fecho os olhos, abismais, a figura que


vislumbro é a morte? A morte do tempo? Da
solidão aguda? Dos versos que escrevi com meu
sangue impetuoso? Ou tudo faz parte da gargalhada
de Deus? Sim, quem é o senhor onipresente?
Minhas dúvidas, todavia, são obras abstratas ou
humanas?
Quer dizer que, se lhe abandonasse nas nefastas
matas do apocalipse, seria um covarde imberbe?
Onde, pois, esteve minha vida, meu néctar
profundo que já não vinga? Abrirão algum portão
metálico, poético, para o poeta que esconde a face
com sua atroz mortalha? E, ainda por cima, haverá
justiça no julgamento final de uma criatura
agnóstica, voltada para dentro de si mesma, ou seja,
como se o resto fossem os ‘’outros’’ de Sartre?
Quem, então, segurará essas mãos asquerosas,
ungidas com o pus do diabo das encruzilhadas?

Talvez o suicídio seja o vale mais amplo? Ou o


amor vitalício é que nos salvará da discórdia, da
bancarrota anunciada? Devo me jogar na direção
do bacamarte que atira? Dessa flecha flamejante
que busca meu fétido fígado? Por que não nasci
com o poder dos antigos? Com as chagas que
saram todas as feridas incuráveis? Foi por plágio...
que me tornei apático? Foi por originalidade... que
me tornei sem bússola? Alguém se habilita a ser
feliz após meu cuspe sedento? Alguém irá me dizer
o sentido das continências militares?

Oh, o homem de peitos é a cruz de ponta-


cabeça? Qual a razão dessas incógnitas subjetivas,
enraizadas nos espíritos enjaulados? Amanhã,
quando despertar da dor de minha quintessência, os
outros reconheceram meus valores, os louros
patrióticos que colhi nos céus de outono? E sobre
essas coisas? Resta o pedido da pizza grande, não é
mesmo? Quais são os sabores dessa delícia?
Enxofre? Sanção? Prazer efêmero?

Não vai dizer que errei até aqui? Que minha


eloquência verbal parece detestável? Que o sonho
do Nobel sempre será uma fantasia pueril, obsessão
de um doido varrido, sem cacife?

Que nota, portanto, você me daria? Zero pela


coerência e coesão? Zero pela desorganização, pelo
desrespeito às margens? Hum... O ponto negativo
não cairia melhor em vocês, preconceituosos que se
matam pela supremacia do mais forte? Quem é
forte? O individual ou o coletivo?

Disse o anjo que sussurra ao meu lado:

Pode um ser aprisionado escapar da espada do


destino?

Se eu sei? Questão tenebrosa, não é?

Mas que me salve a literatura.

Depois dos delírios, a porta abrira finalmente. Lá


fora, onde antes havia clamores e revoltas, agora
pairava uma espécie de anestesia total: flores
mortas, panfletos espalhados, muretas grafitadas,
vidros e ferros usados como arma. Resoluto, talvez
pelo anseio candente de se esvair completamente,
Heitor prostrou-se no meio da ruazinha vazia e,
com a vista turva, procurou esquecer que a
esperança vinha ruindo, aos poucos, como uma
miragem num deserto que, aparentemente palpável,
vai despencando entre campos de tortura e
caminhos profanos. Embora acreditasse na
mudança, na transformação de sua pátria, não se
deixava enganar pelas falsas propagandas, pelas
promessas incrustadas de segundas intenções. Por
isso, apesar da vergonha que sentia, permitiu que
lágrimas escorressem, aos borbotões, banhando o
mesmo solo onde, há poucas horas, a violência
tinha tomado conta, sem salvo-conduto ou licença,
apenas passando por cima de gente macambúzia, já
fatigada em relação aos complexos de culpa, e,
sobretudo, no que diz respeito às surras simbólicas,
gratuitas. Então, quando se ergueu, evidentemente
perplexo, notou que os pombos tinham sumido; o
chafariz, por sua vez, nem espirrava água. Sendo
assim, sem Carla ou Olívia, quem sabe tomasse
juízo. Impossível! Cada soluço emitido lhe
sufocava. Onde estava o abismo mais próximo? Se
pudesse amainar o temporal de erros que era, há
muito estaria redivivo, constituindo família e laços.
Recordou-se, contudo, da despedida de seu melhor
amigo. Na época, ainda pirralho, se bem que
arteiro, lutara pela permanência de Juan. Mas este
foi embora para a Europa, investir no futuro e virar
doutor; enquanto Heitor ficaria ali perpetuamente,
sonhando com belas bailarinas do velho continente.
Tudo que queria, naquele momento transitório, era
abraçar Juan, desejar felicidades, solicitar que ele
envia-se polaróides das musas espanholas. Mas
essas atitudes são complexas, difíceis de fazer,
pois, por mais aterrador que possa parecer, é muito
mais cômodo engendrar planos maquiavélicos,
estratégias vingativas contra toda e qualquer alma
que nos seja indigesta. Juan partiu numa manhã
ricocheteada por informações de cunho suicida,
esbanjando o queixo levemente inclinado e um
sorriso largo que lhe acentuava o sinal de beleza.
Ora, esses pensamentos amarguravam Boamorte.
Afinal de contas, o impacto das perdas lhe
atormentavam como uma valsa executada
incessantemente num corredor da morte. Para sua
sorte, viu uma lanchonete aberta. Mas, antes de
entrar, acendeu um Marlboro, matutando sobre a
seguinte constatação: As pessoas vendem produtos,
mas também vendem vidas. E, de certa forma,
sentia-se vendido, cobaia de um consumo
compulsivo ou, como dizia Heleno Soares, um
ínfimo punhado de genes e bactérias que apenas
obedece ao desejo do impulso. Não obstante, já na
lanchonete, tomou suco de maça com abacaxi,
indiferente ao assalto à mão armada protagonizado
por um albino atarracado, a estrutura facial
semelhante a do filósofo Thomas Morus. Saiu da
espelunca. No caminho, perto do museu,
embevecido com o arco-íris, vislumbrou a garota
de programa segurando firmemente sua bolsa. O
que teria nela? Resolveu pensar em outras coisas
porque, desse jeito, aliviaria seus fantasmas. Pois
bem, acelerando o passo, chegou ao local almejado:
a casa de Olívia. Como eram íntimos, não viu
constrangimento algum em abrir o portão sem
bater, e essa convicção, banal e sem relevância,
acabou sendo fatal: Olívia se masturbava no sofá,
recitando, pelo menos aparentemente, umas
estrofes de Emily Dickinson. Ele, porém, nada
sentia. Logo começou a fixar o fato, ou melhor, os
detalhes do ‘’espetáculo’’: a minissaia vermelha
arriada até os joelhos pontudos, o clitóris
submetido ao toque por dedos trêmulos, a carne
que ia e vinha numa dança pagã, Olívia gemendo
como se, a partir daquele gozo, fôssemos todos
servos da sua, digamos assim, viagem astral. Ela,
pois, não parava. Frêmito! Heitor arrepiava-se,
nervoso, sempre concentrado nos cigarrinhos
escassos. Ao fundo, em um desses quartos para
visitas, ouvia-se o choro de um bebê. Era Baptista,
que decepcionado com o fracasso dos suicídios
diários, camuflava-se num ambiente distante do seu
lar insólito, aquele da escada em caracol,
marmórea, protegido por uma portinha de vime. Vá
cobrar seu pênalti, atalhou Olívia Guerra.
Boamorte foi. Roberto nem precisara defender. A
bola fora parar no jardim vizinho. O assexuado
estava só.
Eles precisavam mudar de sexo. Precisavam
mudar tudo. Ninguém consegue viver desprovido
de amor. Heleno e Carla estavam mortos. Heitor,
agora assexuado, agia como um garotinho pueril
que se esconde para chorar, afastado, longe dos
questionamentos alheios. No mais, as coisas eram
as mesmas: cidade sitiada, decepções frequentes.
Ainda, é bom dizer, existiam algumas estrelas pra
contar, alguns vilarejos, onde acomodados nas
areias prateadas poderiam, enfim, meditar. Não,
nem pensavam no amanhã, pois necessitavam
salvar suas peles. A tez de Olívia, de uma
tonalidade brilhante, era um dos poucos confortos
para ela, porque, quando saíam às ruas, de mãos
dadas, ela e Boamorte tinham de confrontar o ar
poluído, os pedestres estressados, os gritos internos
que provinham dos seres ressentidos. Quem
poderia verdejar prosperidade naqueles corações
desolados? Até quando se lançariam às
masturbações compulsórias ou, no caso do homem,
em continuar por aí, sendo tachado como uma
figura assexuada? Voltava o conceito da vela
apagada. Esperançosos, no entanto, regressaram ao
bosque do início desta história. Lá, nas planícies
ladeadas por gansos nada dóceis, apontavam para o
céu etéreo, e sorriam embasbacadamente para a
lacuna do instante, muito embora não estivessem
sozinhos; um casal de prováveis noivos, também
estendidos na relva, beijava-se voluptuosamente,
trocando apertos vorazes. E Heitor sentia a seiva
escorrendo-lhe pelo corpo disforme, rápida e
implacável, deixando-lhe possuído; olhou para os
lados, para se situar cautelosamente, e como nada
tinha nexo, nem mesmo a presença de Olívia, pôs-
se a contar o número de gansos, como num possível
transtorno obsessivo. Os noivos gargalhavam
hermeticamente. Um imponente copo-de-leite
florescera. Hora de voltar pra casa.

Demoramos! Mas é chegado o momento do


enterro duplo. O caixão de Carla, como foi dito
anteriormente, era empalhado, enquanto, por seu
turno, o esquife de Heleno possuía tons pastéis.
Bem ou mal, a questão a ser revisada é esta: qual a
causa mortis do casal? Até porque, pelo que consta,
nem a medicina explicou a tragédia. Bem, Carla
não fora embalsamada. Os familiares
desrespeitaram sua vontade. Ao contrário desta
maré, no entanto, Soares teve o desfecho sonhado.
Uma orquestra fora contratada, apesar das
reprimendas do sacerdote presunçoso, com voz de
papagaio, que atabalhoadamente ministrava o
evento, pois, sinceramente, nenhuma outra
classificação caberia melhor para descrever os
absurdos ali ocorridos. Camilo, o mendigo
homossexual, também estava presente, entoando
canções aparvalhadas, emitidas por um timbre que,
falando sério, não se encaixava nem com tenor ou
barítono. Ou seja: podemos considerar que o tempo
dera uma pausa em si mesmo, já que todos os
convidados (só entrava quem tivesse o convite), em
smokings e vestidos garbosos, pareciam fazer parte
de uma grandiosa conspiração. Em síntese:
somente Boamorte, Burger e Olívia exibiam
características perturbadoras. Primeiro: Heitor, todo
empapado de suor, mostrava-se sobrecarregado
devido à proximidade do anjo cabisbaixo. Além
disso, sendo acometido por náuseas intermitentes,
logo tonteou perante umas batidas de ferros
enrugados. Tudo fruto da sua imaginação, talvez.
Em segundo lugar, e não menos perturbado,
Roberto Burger corria pelo campo-santo,
esbaforido, naturalmente tentando escapar do
Minotauro; por fim, visando uma maior audiência,
deixamos, com as emoções palpitando, a histeria de
Olívia. Por isso, se me permitem o poder, a
jocosidade auspiciosa virá após a contagem
regressiva de cinco segundos. Vamos lá! Leitores
juntos: 5, 4, 3, 2, 1! Olivinha deu um safanão na
mãe do falecido. Ninguém interveio. Entrara uma
adolescente corpulenta, trajando uma indumentária
alabastrina; vestes estas que, indubitavelmente,
quebravam o protocolo. Pouco se importando com
isso, a garota chamou Heitor. Este, olhando de
soslaio para a figura que evocava seu nome,
primeiro se fingiu de desavisado, depois não houve
jeito: encaminhou-se rumo ao átimo que o mudaria
por inteiro.
Eu tenho o diário de morte da Carla, disse a
garota, e puxou o outro diante de si, fazendo-o
ficar pertinho dos seus lábios rosados.

O que você quer dizer, indagou o rapaz, não


antes de perscrutar o cemitério colossal.

Vamos por partes, rebateu a menina com roupa


alabastrina. A finada, que os deuses me perdoem,
bateu as botas porque quis. Tudo foi premeditado.
Aqui, nesse pequeno diário, ela desmoronou sua
alma, revelando assim, embora com uma paixão
delirante, os caminhos do enleio que, sem dúvida,
não lhe trouxe nada mais que sombras atemporais.
De todo modo, se o senhor consentir, e é nisso que
creio, essa dádiva será sua.

Por quê?

Há algo capaz de cerrar o amor?

Heitor Boamorte refletiu: vela apagada, um


lacrimejante ser angelical, gols impossíveis em
todo despertar. A mesma repetição de sempre. O
romantismo mostrava-se vago, isolado ao extremo.
Mesmo patético e desorientado pelas novidades,
aceitou o caderninho suicida de Carla. Seguiria,
pois, a mesma rota. Para ele, os motivos do trágico
fim da mulher amada deveriam ser descobertos.
Um homem-bomba explodiu nas proximidades do
ataúde de Heleno; houve feridos! Onde estamos,
cara pálida? A pergunta anterior, obviamente, trata-
se de um desses desabafos do autor. Aliás, devemos
analisar o que disse o jornal matutino: Francis (o
homem-bomba) seria um possível amante da
historiadora (morta) Carla Montero. Como
complemento, no rodapé do jornaleco, vinha uma
irrisória nota sobre o roubo sofrido por uma
prostituta com Síndrome de Down, talvez chamada
Alana. S., testemunha ocular do assalto, afirmou ter
visto um velho careca, narigudo e vestindo
quimono lilás. Albuquerque! Pensou Heitor,
próximo a um par de beija-flores, mas distante do
despertar da felicidade.
Alana era filha da Drag-queen Diana Darling.
Com a bolsa furtada, e nela continha segredos, já
não sabia o que fazer. Fora rechaçada do bordel
onde trabalhava por sua cafetina. Normalmente, até
poderia ganhar a vida nas sórdidas ruas. Mas
preferiu procurar alguma amiga que lhe propiciasse
moradia. Lembrou-se de Olívia, generosa
companheira das batalhas estudantis. Chorou. Não,
não se sentia forte o suficiente para buscar auxílio.
Conversaria, no entanto, com Camilo, o mendigo
homossexual. E se descobrissem o conteúdo da
bolsinha? Dentro dela, como um demônio preso
num frasco, havia sua ignomínia, o sentido oculto
da dor que, até então, era transmitida por sua,
possivelmente pelo momento vivido, agora lívida
cútis. Desgastada, resolveu tomar um café expresso
numa choupana vulgar. Depois, ainda moída, se
bem que com o ânimo renovado, acabou por
comprar um radinho à bateria. Ouvia tudo a
respeito da enigmática morte de Heleno e Carla,
para, no final dos relatos, sumir em algum fétido
beco, e chorar violentamente. Ao seu redor,
pregados por toda parte, havia cartazes políticos.
Tempos de eleição. Porém suas memórias
preferiam uma época remota. Quando pequena, e
não me perguntem a idade, ela ficava sentada numa
cadeirinha de balanço, deixando-se ser empurrada
por estranhos risonhos. Ah, como amava as
madrepérolas, o ulular dos cachorros abandonados,
a chaminé natalina coberta de cimento. Antes,
quando ainda freqüentava o consultório da
desnutrida fonoaudióloga, Alana se dava ao luxo
de, completamente desinibida, tirar a túnica na
frente da ‘’doutora’’, revelando um corpo não
amadurecido, porém em mutação maravilhosa.
Claro, não podemos esquecer os joguetes infantis
que ela, juntamente com Olívia e S., infames e
descomplicados, criava ali, nos vales cheios de
mangues e musgos, vitórias-régias e um vasto lago
para banhos purificantes. E então, sem qualquer
pudor aparente, lançavam-se na água fria, nus,
disputando provas de natação, as quais, certamente,
Alana nunca triunfou. Apesar da ironia esnobe do
sempre vencedor S., não tinha um dia sequer que
eles perdessem a alegria, salvo numa morna tarde
onde, ao chegarem à casa de Olívia, perceberam
que pairava uma estranha energia. A avó da
Olivinha, uma octogenária extravagante, bebia
demais. Fora encontrada desfalecida perto da TV;
assistia um documentário em homenagem à
ditadura, e, em suas proximidades, guardados em
caixotes de papelão, estava um manancial de
uísques caríssimos. Segundo Alana, os ‘’homens’’
não levaram logo esta velhota, pois iriam esperar o
término do filme militar. Então, como lhe deixaram
sozinha, S., embora beirasse quatorze anos, propôs
rispidamente:

Vamos beber. Faltam trinta e cinco minutos


para o fim desse troço. Se ouvirmos barulhos
suspeitos, portanto, não precisaremos nos
preocupar. O quartinho da Olivinha é logo ali, não
é?

Olívia aquiesceu. Abrindo a primeira de muitas


garrafas, S. deu um gole viril; Alana, o espírito
tremendo e uma dor lancinante pulsando no peito
esquerdo, um calombo em desenvolvimento, com
todo vigor, desejava evaporar por alguns instantes,
ao menos naquela hora perturbadora. Seus amigos
desrespeitavam o tempo, sobretudo o da velhinha
alcoólatra, que passara nas asas de um anjo
depressivo.

Agora é preciso revelar a porcentagem, isto é, a


chance que cada personagem possui para ser feliz.
Eis a comédia: Olívia (50%); Alana (47%); S.
(70%); Roberto Burger (32%); Senhor
Albuquerque (43%) Dona Margot (53,1%); Camilo
(7%); Mulheres que tentam seduzir o assexuado
(30%); personagens secundários (84%); Leitores
(92,5%); Heitor Boamorte (0,3%).

E, finalmente, voltamos para o porre


prenunciado. S. bebera como um condenado,
provocando de quando em quando. Olívia
apreciava cada gole, admirada, sem deixar
de‘’preparar’’ os rolinhos de maconha. Todos
fumavam e bebiam demasiadamente, sendo que
Alana, por exemplo, parecia mais agitada que
nunca. Mas o mal entra por qualquer fresta, e,
nesse mesmo tempo, o padrasto de Alana entrou de
maneira surdina no aposento, onde, embriagados e
perdidos, os meninos ingeriam um sem-fim de
uísques pesados. Na ocasião, entregue aos
desvarios da fúria incandescente, o padrasto não
hesitou, dando um tiro no peito do aéreo S. que,
subitamente, começou a se debater. Como estavam
imunes ao perigo, permitiram que o baleado
agonizasse. Até que, preocupados com o garoto, os
vizinhos levaram-lhe a um hospital público.
Enquanto o menino desfalecia, entretanto, a
administração do estabelecimento de saúde,
desumana, exigia algum documento oferecendo os
dados do rapaz. Não havia nada. Ele andava sem
documentos, pois estava apenas ‘’brincando’’ com
os colegas do bairro. O que poderiam fazer?
Abandoná-lo? Atirá-lo para os corvos da morte
certa? Por sorte, se assim pudermos considerar, um
médico franzino acabou tomando as rédeas,
sozinho, visivelmente despreocupado com as regras
hospitalares. A ética humana vinha em primeiro
lugar; depois, caso fosse necessário, pediria
demissão. Pois bem, a cirurgia fora um sucesso,
embora a bala tenha continuado alojada quase que
no coração do atingido. Já o padrasto de Olívia
mudou-se para o Caribe onde, trabalhando como
pescador, vivia com duas crianças raptadas na
maternidade; ambas portadoras do vírus HIV.
Independente destas questões latentes, nada nos
impede de voltar os olhos para o assexuado
Boamorte, nos entregando, em risos e choros
mesclados, conforme os densos movimentos desse
protagonista complicado. Ele, no entanto, estava
sob uma árvore de ramos abertos, encostado no
tronco quase ceifado por sombrios devastadores.
As folhas, úmidas e suaves, caíam sobre seu
semblante meditativo. Sim, era isso que fazia!
Meditava, pois, diante da natureza e seus
elementares. Nos seus olhos, verdadeiramente,
provinham sendas, pradarias e estradas banhadas
por ouro e mel. Iria, ao dormir no solo fértil, sonhar
com o sagrado masculino e feminino, com as
rochas e tabuletas repletas de inscrições
antológicas. Que maravilha era o encontro dos
ventos, o choque da água com o fogo do regozijo!
Se chorasse ou sorrisse placidamente, os
ensinamentos da vida árdua seriam os mesmos,
pois, inerente em seu âmago, Heitor tinha
conhecimento que somente ele poderia lhe destruir.
Com a individualidade aflorada, se bem que
inconscientemente, repousou no portentoso tronco,
e sentindo-se num divã psicanalítico, pôs-se a
associar fatos antigos, quase dimensionais, como o
derradeiro encontro que tivera com Carla. Certa
vez, não há como precisar a data, Carlinha puxou-
lhe pela blusa de seda, reluzente, incitando-o ao
seguinte disparate: ambos sentariam no meio da
avenida movimentada, um de costas para o outro, e
teriam uma conversa franca sobre relacionamentos
e afins. Sôfrego, Heitor assentiu por conta da
beleza daqueles olhos índigos, perscrutadores feito
um leitor de oráculos. Na verdade, o
atravessamento da pista, por si só, já tinha sido
complexo. Seja como for, chegaram ao ponto
desejado, de modo que Heitor Boamorte foi logo
dizendo:

Eu não te amo mais.

Você nunca me amou.

Por que a senhorita diz uma barbaridade


dessas? Morro todo dia quando estou sem você.

Como? Se não me ama mais?

Cuidado! Vai passar uma Kombi enorme.

Uma Kombi azul-petróleo quase batera no braço


direito da moça. Heitor Prosseguiu:

Bem, apenas acho que já não morreria por


ninguém.

Não seja mentiroso. Antes de qualquer coisa,


então, gostaria de dizer que nunca daríamos certo.
Olha, o tempo é que vai te explicar melhor.
(soluços).
Boamorte, em prantos, acariciava os cabelos de
Carla. Tudo que conseguiu regurgitar foi: Como é
belo este fusca moderno. O tal carro, numa
velocidade além da permitida naquele trecho,
acertou suas costelas. Renunciar ao amor não só
machuca egos, mas também fratura ossos. E, no
leito hospitalar, enquanto a enfermeira colocava
ataduras no paciente, este devaneava: Não agarre
minhas nádegas, por favor! Teu toque é mordaz.
Essa loucura nada mais era que uma alusão aos
assédios que ele sofria por Kafka em seus sonhos
insondáveis. Em seguida, com o rosto corado, Carla
perguntou se era bonita; o sonhador Heitor
rapidamente ressurgiu das cinzas, dizendo
apaixonadamente:

Você é bonita porque o tempo para com a


densidade de seus gestos. Cada olhar seu, triste ou
insano, parece dissipar as brumas ao meu redor.
Sim, a senhora é minha colheita, meu reduto, os
trigais que sonho incessantemente. Por isso, na
construção da tua boca linear, entrego-me aos
desígnios desse gosto salino, ao menos, é óbvio,
em meus pensamentos fragmentados. Tua beleza é
como uma mão que sempre nos levanta do caos,
generosa, prestes a nos ensinar a congregação dos
corpos celestes, a seleta união entre o homem-sol e
a mulher-lua. Será que jamais conhecerei tuas
fases românticas? Por ti, melindroso amor,
derrotaria os ciclopes, as turvações das conquistas
perdidas; o meu sangue, viscoso e ignominioso, vai
pulsando quando te encontra, conciliadora,
dançando entre silvados e heras belíssimas. Mais:
Você é bela como a crença em outras vidas, em
veredas do além-túmulo. Sabemos que, em diversas
ocasiões, suas atitudes são duvidosas, ácidas
perante os meus próximos passos. Mas eu me
entrego aos teus encantos, pois minha luz adoece
sem os versos luzidios que absorvo de ti. Sabe?
Ainda que me penetrem o espírito, que me façam
submergir num rio até o término do fôlego ou que
ofereçam minhas vísceras porque sou distinto, eu
estarei esperando o chamado da Dama das ondas,
daquela que nasceu, mesmo que não me ame, para
conduzir meus sentimentos patéticos. Agora, já que
me desmanchei sem remorsos, talvez eu volte a
delirar na mesma nau com Kafka, Anjo
sorumbático e enleios errantes. Somos uma chuva
de erros, e isso é bom porque, querendo ou não,
minhas saudações sazonais são todas em teu nome.
Resumindo: o poeta sempre se perdeu. Por ti. Pela
busca intermitente advinda da tua graça.

Carla, que sempre tinha um lenço guardado no


bolso, respirou profundamente, enxugando o suor
frio que descia do rosto. No mais, não disse
absolutamente nada e, abandonado o hospital, foi
caminhado tontamente pela rua de paralelepípedos,
sem deixar de matutar sobre a declaração poética
de Boamorte. O que faria? Já que não amava esse
homem, dormente e misterioso, como poderia
rechaçá-lo brutalmente? A vida, na verdade,
parecia cada vez mais um conjunto de pilares
desastrosos, quase desabados. Quando chegou o
momento da sesta, em casa, Carla vislumbrou, da
janela em vitrais, a alva lua crescente que tingia o
céu e a imagem resplandecente do Cruzeiro do Sul,
impávido como o assassino que estrangula sua
vítima numa paragem brumosa. Por um instante,
até imaginou que estivesse sonhado, mas, pelo
visto, as palavras proferidas pelo sujeitinho das
costelas quebradas eram francas e, acima de tudo,
envoltas por uma vontade vicejante de amar sem
ser amado, de carregar um fardo aziago,
confusamente desnecessário. Assim sendo, todos já
conhecem a continuação dessa empreitada: Carla
morreu. No final das contas, no entanto, ainda
podemos desvendar, ou ao menos tentar, a
incógnita que era a miragem sofrida por ela: Lanças
e obeliscos se misturavam com uma compilação de
vasos e cálices sagrados, enquanto que, escondido
num arado desconhecido, um ser de cabelos vastos
e encaracolados, segurando um bastão diamantino,
proferia frases celtas ou britânicas, se é que isso faz
sentido. Agora, pois, dedicaremos esta parte no que
diz respeito à outra coisa, ou seja, ao dia que, muito
depois dessas histórias sobre Carla, levaram Heitor
Boamorte ao front de batalha, ou melhor, na
direção de quem iria matar: Albuquerque ou
Margot. Naturalmente, escolheu a primeira opção.
Então, resoluto como nunca, marcou um encontro
com o velho, tendo como referência a boate de
strip-tease mais infecta da cidade. Lá, longes do
cotidiano habitual, conversaram sobre o que, enfim,
salvaria o mundo: Niilismo, filosofias kantianas ou
descrenças totais em tudo que existe, e, conforme a
música ambiente aumentava exponencialmente, os
dois bêbados cantavam como bardos
contemporâneos, piscando para as putas que
dançavam sensualmente, num cano erótico, isto é,
num legítimo signo fálico. A seguir, como numa
tragédia desmesurada, peço para todos os leitores,
senhoras ou senhores, que cerrem suas vistas.
Albuquerque fora assassinado! Por Heitor?
Provavelmente. Mas não tenhamos tanta certeza,
pois muitas são as reviravoltas da existência, bem
como da literatura universal. Ninguém falara nada.
O responsável saíra ileso. Depois, deparando-se
com uma encruzilhada, Boamorte cuspiu os
chicletes contra o vício do fumo, pegou um táxi e
partiu, com os olhos cintilando, para a mansão de
Roberto, embora, dentro do seu eu intumescido
ouvisse os potentes brados das Harpias que, sem
dúvida, remetiam a seguinte revelação: o que
fizera, sendo culpado ou não, fora errado. Seu
quinhão neste mundo mostrava-se perdido. Diante
do espelho perpendicular, a barbicha por fazer e a
pele flácida, sorriria cinicamente perante os
descasos da Justiça. A liberdade estava
comemorando férias quase eternas, enquanto o
povo, educado erroneamente, é que sofria as
atrozes consequências. Aliás, Heitor estava pálido,
cadavérico e com uma postura cada vez mais
curvada. Envelhecera cedo. Todos os dias, da
varanda protegida por grades de ferros, ele,
acompanhado pelo Arcanjo, seu fiel escudeiro,
assistia a triste implantação do toque de recolher.
Um tropel de cavalos e motos patrulhadas fazia a
escolta. Os tais patrulheiros, certa feita,
encontraram o cadáver de uma mãe que acabara de
amamentar seu pequeno rebento.
E a profissão do assexuado? Ora, nunca havia
ganhado tanta grana. Diversas mulheres tentavam
conquistá-lo na cama. Todas falhavam. O
sobressalto, entretanto, veio na personificação de
Olívia Guerra. O que ela queria ali, naquele antro
destinado para as moças responsáveis pelo sucesso
financeiro do rapaz que, até então, estava
arruinado? De qualquer modo, Olívia, com um
baby-doll verde-musgo, indagou tenramente:

Eu sou bonita?

Eis a pergunta que molda o mundo! Sem pressa,


contudo, ele desviou os olhos da delgada
constituição física da mulher lasciva. E, invadido
por uma filigrana de inspiração, disse em tom
marcial:

Teus olhos febris são meus rituais em fogueiras.


Não sabia que perco a força diante da tua pele
basta, retumbante como um bando de passarinhos
amorosos? Em você, na fragrância cabalística
deste corpo delgado, elevo-me numa dimensão
quimérica, adornada por afrescos clássicos e
sussurros em chamas profundas. Na certa, nunca
pensei que você fosse dona dos meus emplastos, o
cristal multicolorido capaz de me prostrar sem
escapatória. Ora, eu sinto náuseas rebuscadas ao
mais leve encostar da tua essência. Muitos,
indubitavelmente, caíram por ti ou, melhor ainda,
cavalgaram em seus cavalos alados nas nuvens
algodoadas para, com armaduras e guirlandas,
ervas e sabres, cultuarem a complacência
emanada por teus gestos. Bem, dá vontade de
coroá-la com uma tiara de uvas e cerejas frescas!
Em suma, você é linda feito fada nascida nas
espumas do mar. Com efeito, os faunos te veneram,
as sereias cessam seus cânticos quando, estalando
os dedos, a amazona diz ser o casulo partido, o
consolo dos solitários errantes, a voz que ilumina
nossas falhas grotescas. Até então, enfurnado em
meu naufrágio humano, no repetido conceito da
vela apagada, não atentava que, mesmo sem nada
a oferecer, você me incluiu em seu célere galope
para os rios de fantasias abundantes. (tosses).
Olha nos meus olhos, Olívia, e não me faça tocá-
la.

Ela encarou o homem sobressaltado. Andou


lentamente ao encontro de Heitor, não antes de
arriscar uma cálida dança do ventre. Assim, sempre
provocando, foi desamarrando os cadarços do tênis
encardido de Boamorte, puxando sua calça
desbotada e, fazendo isso, logo iniciou um ritual de
beijinhos frenéticos naquelas pernas cabeludas.
Além disso, não podemos deixar de lado sua nudez.
Os seios, médios e empinados, além de vermelhos,
apontavam para o assexuado indefenso, deixando-o
atordoado, sendo que, na realidade, até que
começava a sentir uma excitação irrefreável, pois,
envolvido pela luxúria de Olívia, encontrava-se
sem reação, embora a obstinação de não tocá-la se
mostrasse mais determinante, assim como a certeza
de que, verdadeiramente, deveria continuar
imaculado, esquivo das questões sexuais ou
amorosas. Pois, apesar da dificuldade que era viver
assim, ele precisava seguir um itinerário decente,
mesmo sendo martirizado por isso. Mas como
evitar o desejo? Afinal, yin ou yang, eis a imagem
depositada a sua frente: Olívia Guerra, em plena
natureza nua, revelava, no desenho do seu corpo
retilíneo, a pureza que ela representava ali, na pele
com L’oréal, na cinturinha fina e nos olhos sóbrios,
quase que arquetípicos. Paulatinamente, portanto, o
fogaréu da paixão aumentava. Ah, Olívia era como
os lírios do campo, como os segredos por trás do
portal feminino responsável pelo nascimento. Seus
braços, longos e em constante movimento,
continham, à primeira olhadela, uma áurea
colorida, uma espécie de proteção divina; as
pernas, por sua vez, eram grossas e libidinosas, se
bem que frágeis com o mais leve toque. Pérfidas,
desejavam ser acariciadas demoradamente, sendo
cingidas por mordidas e massagens deleitosas. Pois
bem, mas como descrever seus quadris, senão
classificando-os sem rubores? Até porque, para
começo de conversa, essa parte, íntima ou não, era
extremamente voluptuosa e carnuda, certamente
malhada durante horas e horas. Todavia, leitores
excitados, o mais hilário, se assim posso me
expressar, talvez se tratasse da pintinha posicionada
na nádega esquerda, logo abaixo de uma cicatriz
quase imperceptível em forma de W. Olívia não
suportava a ideia de ter que explicar o motivo
daquela marca. Provavelmente, pensava Heitor, ela
deve ter sido surrada quando criança ou, vai saber,
a cicatriz se tratava de um relacionamento
conturbado ou o fruto de uma simplória marca de
nascença. Ademais, devíamos pormenorizar a
vagina dessa mulher fatal: com um fiapo só de
cabelo, além da essência sabor canela, esta
genitália parecia um portão para distintas galáxias,
de modo que Boamorte penou muito para não
‘’atacá-la’’. Agora, com Olívia em cima dele, as
mãos macias lhe arrancando a camiseta regata, o
assexuado buscava, na curvatura em si mesmo,
ofuscar aquela beleza tentadora, e, concentrando-se
em materializações do passado, mais precisamente
nos momentos vividos com Carla Montero,
empurrou Olívia, que desabara violentamente na
cerâmica rachada. Como se sentiu humilha após a
queda, a mulher, em tom desdenhoso, satirizou o
corpo de Heitor:

Vou falar dos seus pés. Em primeiro lugar, eles


são cobertos por joanetes; em segundo lugar, e
não me faça repetir, só poderei afirmar que seus
joelhos parecem escamas, enquanto que tuas mãos,
áridas e frias, nem sabem conduzir uma mulher.
Veja, eu apenas queria lhe ajudar, mas você não
merece nada, a não ser, é claro, pena e desprezo.
Fomos, sim, bons amigos. Por outro lado, até que
você tem algumas vantagens, bem como a tristeza
exposta. Boa sorte! Não se esqueça de procurar
um urologista. Tchau.

O que é que ela queria dizer? Qual seria o


próximo espectro a perturbá-lo? Heitor baixou a
cabeça, olhou para a cueca rosa e, acendendo um
charuto imaginário, pôs-se a marejar os olhos
melancolicamente. Preciso ter mais amigos, disse
mentalmente. Olívia acabava de fechar a porta.
Depois, vestindo uma roupa social, decidiu que
necessitava de um emprego fixo. Indo ao encontro
das ruas, no entanto, não pôde mentir para si
mesmo: estava se destruindo aos poucos, sem
amizades, perdendo-se na imensidão tosca que era
a vida, a postura assexuada e a falta de
oportunidades. Durante o tempo que ficou
tamborilando a esmo pela cidade, nem se lembrou
que iria procurar trabalho porque, vendo a mesma
avenida onde, anos antes, havia sido atropelado por
um fusca moderno, chegou à conclusão a seguir:
Vou repetir o passado, a velha aventura de
outrora. Dessa vez, com certeza, acabarei me
ferrando. Sem Carla, terei de confabular comigo
mesmo. Que vozinha é essa, meiga e jovial,
aparentemente vinda do assobiar das avezinhas
safadas?

Era Baptista Dos Anjos.

Que novo suicídio meu amigo está tramando?

A pergunta acima, proferida por Heitor, quase


causou um desconforto. Baptista redarguiu:
Pelo menos renasço todo dia. E você? Porque se
condiciona a isso? Por acaso o senhor irá para o
meio da rua?

Se Dos anjos tinha descoberto seus planos,


Boamorte não encontrou outra saída, e ficou
estático. Perto dele, rangendo os dentes, O Anjo
abatido assobiava uma canção que trazia à tona
reflexões sobre o Holocausto, a inquisição e os
assassinatos sofridos por uma overdose de
inocentes que, sinceramente, apenas lutavam por
seus ideais, pelas crenças ou credos que deveriam
ser respeitados. De resto, Baptista dividiu a
Heineken que sorvia desesperadamente com Heitor,
que nada dizia. Apontando um facão para os
apreciadores da cerveja, surgiu a figura
desengonçada de um ladrão inexperiente. Este,
franzindo a testa, logo pediu as carteiras dos
assaltados. Mas tudo que ganhou foi o último gole
da Heineken. Salvos pela cevada, eles riram do
sistema que rege o existir, e dobrando na próxima
esquina, foram surpreendidos por um trio modista.
A banda era formada por uma vocalista com
vestimentas masculinas, um gaitista andrógino
(vestia-se que nem menininha) e, para finalizar, um
trompetista pintado de branco, os cabelos alisados
cheirando à química e as unhas negras, longas
como presas de gavião. O grupo fixou Boamorte.
Em seguida, a vocalista disse: Olívia vai fazer
vídeos adultos. Ao contrário do que seria evidente,
o rapaz abordado pouco se importou com o fato da
mocinha andrógina conhecer sua ex-amiga. Por
isso, motivado por forças ocultas, roubou o chapéu
de pano, ao estilo cowboy, e seguiu caminhando
como se nada tivesse ocorrido. No mesmo instante,
Roberto Burger apareceu, esdruxulamente,
engatinhando como um leopardo, já que estava
muito veloz. Confuso, Boamorte subiu nas costas
do companheiro de quatro e, batendo em seu
bumbum, incitava-o a seguir em frente. Claro, os
sujeitos lesados conseguiram alcançar os fugitivos.
Com o dinheiro devolvido, não houve briga. Pelo
contrário, passaram a se conhecer. Mais tarde, já na
bicicleta que ganharam de presente do Trompetista,
foram ao endereço onde, naquele momento, Olívia
tirava a roupa, em poses forçadas, só pra conquistar
uma fama efêmera. Na garupa, o assexuado
contava, errando na maioria das vezes, o tanto de
lojas que cada ruela tinha. A verdade é que a brisa
no rosto, os sorrisos dos curiosos, as paredes mal
pintadas dos comércios e as precárias luzes dos
postes, reverberavam seu espírito adormecido. E
uma vez que tudo parecia natural, algum
acontecimento teria que romper este clima ameno.
O estopim veio no questionamento por parte de
Roberto Burger. Pausa. Cadê o altivo Baptista Dos
Anjos? Ele achou melhor pegar um táxi. Porém,
voltando para a tragicomédia, eis o absurdo soltado
pelos lábios inchados daquele que vê Minotauros:

Eu sou feio?

Olha essas nuvens formadas pelo céu. Por que


você pensa em coisas vagas, nada relevantes? Não
vou dizer o seguinte: Roberto, você é bonito! Mas
sabe de uma coisa? Toda vez que sonho, e é bem
verdade que vivo muito neste outro mundo, eu
acabo te encontrando por lá, satisfeito, trajando
um manto celestial, claramente bordado por seres
fantásticos. Se os seus dias são lúgubres ou, na
pior das hipóteses, indiferentes demais, não se
preocupe com isso, pois, no fundo de suas
entranhas amortecidas, pequeno burguês, haverá
uma insólita semente buscando ser cuidada. Sobre
a feiura, então, talvez cada pessoa saiba o que é;
só sei que, ao atravessarmos esse trilho
enferrujado há nossa frente, acabaremos por
esquecer, nem que seja por míseros segundos, o
fato de vivermos encapsulados numa guerra sub-
reptícia, pintada de branco e usando os cegos
sociais como iscas para o consumo e matança
exacerbada. Por fim, agora que estamos do outro
lado, devíamos abandonar esta missão; Olívia é
adulta e, se pretender fazer ensaios eróticos, quem
somos nós para repreendê-la?E outra: Não seria
melhor esperar o trem passar? Desde que me
conheço como gente, nunca vi esse magnífico
transporte ferroviário.
Roberto estranhou o comportamento do amigo,
mas acabou perguntando passivamente:

E a Bike? O que faremos com ela?

Como assim? Nós vamos ver o trem, e não


embarcar nele.

Bem, eu gostaria de destruí-la. Se você permitir,


é claro. Estou pensando em voltar pra casa
andando, isto é, admirando cada paisagem.

Apesar de a bicicleta ser uma Caloi conservada,


Heitor percebeu que o importante era o fluxo da
vida, já que os produtos sempre morrem. E, assim,
inebriados por uma energia desatadora de nós,
começaram a quebrar o veículo de locomoção,
também chamado de Denise por Roberto Burger. A
propósito, já deitados na relvinha aparada,
esperavam, aflitos e confiantes, a chegada do trem,
que, sempre distante, nunca vinha. Burger, por fim,
desistira, deixando Boamorte sozinho. Cada minuto
perdido naquele local ermo era como uma estadia
no submundo dos mortos. Quando é que o tempo
passaria a ser um aliado seu, pensava Heitor,
intrigado com os caramujos e vaga-lumes que
passavam pelo gramado úmido e pegajoso. Em
seguida, teve de renunciar. Assim, enquanto andava
solitariamente, nas ruas e vielas perigosas,
lembrava-se das felicidades surrupiadas, dos
outonos que celebrava com Carla, e isso lhe
revirava o estômago. Onde estava Baptista Dos
Anjos? Será que havia conseguido encontrar o
estúdio onde, em posições picantes, Olivinha exibia
seu corpo? Em todo caso, ele sentia-se mais leve,
porque, para sua felicidade, um grande letreiro
luminoso dizia: Boteco dos intelectuais. Era um
ambiente que cheirava a mofo. Além disso, as
mesas, amadeiradas, eram de um carvalho precário.
Alguns pormenores, no entanto, pareciam
favoráveis: havia ali várias mulheres para um
homem só e, em termos musicais, tocavam um
aprazível rock, talvez dos anos 80. Sob uma tenda
separara, um barman musculoso preparava drinques
afrodisíacos. Heitor pediu um conhaque de
chocolate, duas doses de cachaça e meio copo de
vinho. Passou a noite dançando, caindo aqui e
acolá, enquanto os vândalos, atentos, lhe roubavam
seus poucos pertences. Inclusive, quando fora
peitado por um viciado em heroína, pensou ter
visto a personificação do Anjo sorumbático. Levou
um soco na têmpora direita. Sem reagir, ele
vomitou na pista de dança o resto do álcool que
tinha ingerido. Lá, nas cordilheiras onde o amor
fenecera, Olívia, então responsável pela escolha do
lugar, não via à hora de tirar o pulôver, a calça de
náilon e a calcinha acaju. Subitamente, portanto,
Boamorte se lembrou do diário de morte da Carla.
A partir de então, mesmo fatigado, iria seguir os
passos que levaram a perca de seu único amor. Fora
do Boteco dos intelectuais, foi logo surpreendido
pela prostituta com Síndrome de Down. Esta
parecia escorada num poste, entristecida, fungando
o nariz como uma criança desesperada. Embora a
ânsia de conversar com essa mulher se mostrasse
evidente, Heitor apenas passou direto por ela, uma
vez que pouco tinha a falar o que realmente valesse
o esforço. Poderia até ter perguntado sobre o
paradeiro da bolsa, mas resolveu continuar
silencioso, para não causar impressões precipitadas
a seu respeito.

O sangue pulsava. Esse vicejar, aparentemente


escarlate, modificava o suor escorrido naquela face
tensa. Que mistério é esse? Nós, os humanos,
aqueles que foram flagelados pelos dogmas,
chacinas, atentados inexplicáveis, além de uma
porção de guerras raciais, fomos apresentados aos
bosques encantados, cheios de fulgor. Era a neve
que nos enregelava perante o abismo. Sim,
percorremos labirintos, selvas habitadas por tigres
famintos. Seja como for, também choramos pela
desonra de nossas fraquezas, nossas amargas
covardias. E, nesse ínterim, conhecemos a pureza
das águas, a insustentável máscara conhecida como
personalidade. Dissimulados, até acreditamos
possuir o poder das correntezas, os segredos dos
mares bravios e das intermitências do sexo. Fomos,
pois, caçadores seletivos, meninos em busca do
lábio efervescente da menina com cachinhos
formosos. Mesmo assim, ainda falhamos no
carinho que nos clama, na casta paz que pede força.
E falamos de quê? Os ventos suaves entravam em
choque, e ninguém narrava o preenchimento
proporcionado por essa nova fragrância. Aliás, cada
movimento atrapalhado, meio trivial, poderia ser o
fim nada etéreo; em contrapartida, a carne queria
transcender, aos poucos, numa combinação
sagrada. Depois, veio o ulular do espírito
desgarrado, daquela potência violenta. Em outras
palavras, quem mitigaria o frêmito de um corpo
abrasado? Pois, em verdade proferida, muitos
procuraram essa misteriosa dádiva na ciência, nas
consultas aos bruxos e conselheiros espirituais.
Doravante, não vamos parar por aqui. Afinal, na
contemplação da natureza pungente, o jarro votivo
começava a ser habitado, inflamando a lança
prestes a se quebrar em pedacinhos múltiplos. No
decorrer dessa germinação, o homem tentava, em
vão, esconder o belo quadro pintado em sua própria
pele. Labaredas, estações do ano, colheitas
acompanhadas por druidas, tudo isso passava pela
mente do portador do grande segredo. Não, não
estamos perorando sobre o Eros, muito menos
sobre a morte vinda num tropel fantasmagórico!
Com o coração acelerado, quase em retalhos, quem
sabe o leitor descubra a chave dessa narração
desconexa. Que porra é essa, afinal? Bom, da
janela escancarada do alpendre, os gansos, somente
eles, conseguiam destrinchar a áurea de Olívia
Guerra. Todo esse relato é, na verdade, uma
explicação sobre a excitação sexual humana,
sobretudo no que tange ao prazer fosforescente
sentido pelo fotógrafo dos ensaios sensuais.

Olívia sorria como uma máquina


computadorizada. Dos Anjos, sem conseguir achar
o endereço procurado, nem se deu ao trabalho de
continuar esta busca. Vendo uma praça onde vários
alunos de uma escola estadual brincavam com
pequenos cata-ventos de papel, ele não pensou duas
vezes: sentou num baquinho rochoso, fechou as
pálpebras lentamente e iniciou suas habituais
projeções mentais que, como já devemos ter
assimilado, a não ser que sejamos maus alunos,
significavam novos planejamentos para um suicídio
diário. O astro-rei irradiava belíssimas luzes que
criavam sombras nos arvoredos, nos imponentes
coqueiros e na mística visão de Baptista.

Mas vamos focalizar o esquecimento. Heitor foi


atrás de um velho amigo. Este trabalhava numa
empresa gigantesca de telecomunicações. Era
ascensorista. Pois bem, a verdade é que Boamorte
ficou ali, subindo e descendo no elevador,
acompanhando Vitório, o ascensorista. E, puxando
assunto, o assexuado principiou sua filosofia em
termos da vontade que tinha de esquecer.

Como queria esquecer tudo: esta cidade, o vazio


que somos nós. Sinto o transcorrer do tempo
triturando meus ossos, e tenho medo dos anos
vindouros. Ah, os carrascos estão livres, mas não
sou pessimista. Quando sonho com Schopenhauer,
por exemplo, vejo-me lançado no cerne de eras e
tradições misteriosas. Bem, a mesa vazia, a
natureza morta, a carne com desejos ferventes. A
questão é que vimos bombas explodindo,
armamentos de destruição em massa sendo
arquitetados. De onde veio esse torpor? Em
compensação, não posso desvalorizar uma estirpe
que divide o pão, parcimoniosa, sonhando com
novos desenhos sublimes; só sei que ceifei o campo
de centeio, desperdicei o poder do azevinho e
entreguei-me ao desespero. Chorando, deixei o
sangue dos inocentes derramarem, se bem que
ansiava apenas ser o Senhor das lendas, o
legendário cavaleiro que descobre os segredos do
caldeirão mágico. Sendo assim, sempre em
caminhos tortuosos, talvez o melhor seja evaporar,
ou melhor, virar apenas um nome comum que, com
o ciclo sazonal, acabará por ser também
esquecido, pois, em termos gerais, o ostracismo até
possui uma essência mitológica. Na queda do meu
ser, pretendo destruir ampulhetas, bússolas,
pêndulos, relógios e cucos, porque essas coisas
são apenas marcadores insípidos. Porém, onde
menos esperamos, e já aviltados, é que nos
deparamos com certas belezas antes fugidias. Há
detalhes impossíveis de olvidar: o rosto da amada,
o poético ventre de nossa princesa flamejante.
Certa vez, quando estava embriagado consegui,
através do reflexo lunar, deslumbrar a presença de
Carla, toda ereta, dançando no compasso das
estrelas luzidias. Não raro, portanto, costumo
recordar essa reminiscência e, vestindo minha
mais bela blusa de linho, converso com a
fotografia dela, da mulher que sempre carregou
meu coração ensandecido. Enfim, para terminar,
lhe peço desculpas por encher seus ouvidos,
Vitório, e espero o esquecimento dos outros. Carla
me basta.

O ascensorista expulsou-o do elevador. Queria


ficar sozinho. Mais uma vez a solidão violentava
Heitor. Ao chegar à mansão do louco Burger,
essencialmente cansado, deitou-se no colchão
fedido, ligou o rádio portátil e surpreendeu-se, por
fim, com uma correspondência lacrada na mesinha-
de-cabeceira. Tratava-se, na verdade, de uma carta
suicida redigida por Baptista. Agora parecia oficial:
obliterara a própria vida imitando Hemingway.
Heitor procurou chorar, mas não foi capaz. Dormir,
provavelmente, era a opção mais plausível.
Paulatinamente, então, começou a fechar os olhos,
aos pouquinhos, sem tirar a imagem coruscante de
Dos Anjos do subconsciente. Sonhou com ele. Ia
descendo uma ladeira, e uma enorme pedra vinha
ao seu encalço. Como não era rápido o suficiente,
viu-se salvo por uma imensa mão que, puxando-lhe
de chofre, colocou-o sentado num menir. E assim o
diálogo fortuito, entre ele e Baptista dos Anjos, deu
continuidade ao momento utópico. Boamorte
estava encantado com as libélulas que ali
figuravam, de modo que passou a acompanhá-las
despreocupadamente, até o novo puxão da mesma
mãozorra.

Você quer entender a chave do suicídio?

Heitor não titubeou:

É claro.
Pois me esclareça o sentido dos abortos, das
guerras e das crianças abandonadas.

Reinou o silêncio; depois quebrado pela dúvida


de Baptista:

O que é, em palavras límpidas, um macho


assexuado?

Flanando pela floresta verdejante, o ambiente do


sonho, Heitor Boamorte parou diante de uma
bigorna onde, saltitantes e velozes, grilos
cintilantes pulavam ininterruptamente. Pensou:
Devo responder alguma coisa. Resumiu:

Alguém que não faz sexo.

Segundo o dicionário: ‘’Assexuado é o sujeito


sem vida sexual; diz-se que não possui órgãos
sexuais; reprodução feita sem cópula (assexual)’’.

O assunto morrera. Passaram a correr, um atrás


do outro, bem como jovens na fina flor da
puberdade. Um tiro ecoou pelo espaço. Debatendo-
se no Verde, agonizando, o ganso morria
tragicamente. A história se repetia. Baptista Dos
Anjos indagou:

Onde você arranjou esse revólver?

O sonhador despertou. Por estar ardendo em


febre, como que delirou, pois vozes imemoriais
atemorizavam sua consciência. Às vezes Boamorte
acendia incensos de cânfora e alfazema ao redor do
quarto para, graças aos seus poderes, trazer
tranquilidade e fluidos positivos. No mesmo dia,
apesar da desatenção que lhe envolvia, estranhou o
fato a seguir: a sunga que trajava estava
completamente inundada de esperma. Há tempos
isso não ocorria com ele. Iria procurar um
urologista. Enquanto tomava uma ducha quente,
ainda teve tempo de filosofar:

A dor encontrou conforto em meus olhos. Como


pude permitir tamanho adultério?

Como a mudança só ocorre no próximo passo


(mesmo isso sendo um clichê), Heitor adentrou
num labirinto da morte. Primeiro, vestindo uma
roupa comum, deixou o quartinho bagunçado e, nas
ruas do bairro infame, sob uma tenebrosa neblina,
foi passando pelas figuras mais humanas: casais
idosos, pedestres atrasados para o trabalho, crianças
chorando teatralmente. Enfim! Quanto mais
adentrava na Cidade inominável, mais perplexo
ficava com os homens brigando por comida ou,
ainda pior, com a falta de respeito dos motoristas
que, em plena irresponsabilidade, não respeitavam
o semáforo. Parou, então, na vitrine de uma loja
esportiva. Embevecido com o tênis europeu, logo
entrou no ambiente estranhamente almiscarado.
Não era este seu caminho. Depois, sem
compreender o friozinho que lhe acometia o
intestino, Boamorte, ainda pensando na mudança
que viria, precipitou-se numa estrada que dava para
um túnel solitário. Fora assaltado. Levaram seus
óculos de aros retangulares, e este furto, embora
pouco trágico, mesmo assim lhe ruborizava em
demasia. Agora devemos, caso seja possível, tentar
descobrir onde seus tímidos passinhos o levavam.
Ato contínuo, e nem tão contínuo assim, descansou
numa calçada aos rebocos, e pensou na agonia
residida em sua alma. Quem lhe salvaria de si
mesmo? Do outro lado da calçada, também
desconsolado, havia um jovem barbudo, os olhos
amendoados denotando amargura e ressentimento;
trajava uma blusa carmesim com a inscrição: ‘’Sou
assexuado’’. Heitor fora falar com ele. Andorinhas
cantavam devassamente, um carro espalhava óleo
pelo asfalto, Olívia abria as pernas veementemente
e novos métodos para destruir vidas continuavam
sendo testados por cientistas. Até aí, portanto, tudo
corriqueiro, naturalmente nos eixos. Infelizmente,
ao pressentir a intenção de Heitor Boamorte, o
outro rapaz correu desengonçadamente, levantou-se
de supetão e, atirando-se na pista com os olhos
ressentidos cerrados, acabou sendo atropelado por
um caminhão de cervejas que, por coincidência, era
dirigido por Martino Soares, irmão do finado
Heleno. Pormenores à parte, o inferno foi que
Martino não freou. Bocas escancaradas, brados
revoltosos, espíritos fragmentados. Essas foram as
reações deste acontecimento. Ainda assim, embora
Heitor sentisse uma fagulha de culpa, nada lhe
afastaria do objetivo traçado. Para onde iria? Algo
o direcionava ao coração da prostituta com
Síndrome de Down. Começava a gostar dela. No
entanto, como ficará claro a seguir, ele estava indo
para outras bandas, talvez para um final silencioso.
Apesar da velhice precoce, ponto este que lhe
sangrava por dentro, uma nova vontade aumentou a
dor imprudente: participaria de concursos literários,
se bem que, como sempre, já sentia o precipitado
medo antes da labuta. Mas suave era o momento, o
fato de ainda não ter chegado ao consultório
pútrido. Sim, Heitor ia, pela primeira vez na vida,
ser submetido às apalpadelas de um urologista.
Com os óculos roubados, contudo, talvez nem
decorasse o rosto do médico, e sem dúvida
desejava, em seu foro íntimo, que todos os
problemas apontados por Olívia naquela noite sem
gemidos prazerosos, fossem mentiras triviais,
dessas com o intuito de perturbar os pobres
hipocondríacos dos tempos atuais, bem como
Heitor Boamorte. Aliás, o urologista fora bastante
prático.

Deite-se na maca. Desça suas calças até os


joelhos.

Com luvas na mão, o Dr. François, em


movimentos tenros, tocou o sexo do paciente. Em
seguida, o olhar empertigado e a fisionomia
interrogativa, disse mecanicamente:

Você é sexualmente ativo?

Não.

Tem parceira fixa?

Não.

É homossexual?

Também não.

O que o senhor é?
No final das contas? Um assexuado; caso
contrário, alguém que perdeu o amor há tempos.

Bem, vou solicitar uns exames hormonais. Por


enquanto, esqueça certas besteiras. Ah, o senhor
toma algum medicamento ou antidepressivo?

Não mais.

Então procure uma pessoa importante, conte


tudo para ela e me deixe em paz. O problema está
em dois pontos: a visão e a próstata.

Heitor, que sorria da estupidez do urologista,


saiu do consultório ainda mais confuso. Lá fora, em
cima de um prédio gigantesco, um homem
ameaçava se jogar. Olívia terminava os ensaios
eróticos, graciosa, posando para a foto derradeira.
Enquanto isso, acompanhado por inúmeras latinhas
de Heineken, Baptista estudava poesias latinas. Se
algum dia eles deixassem de se ver, cada qual
morreria ao seu jeito. Por que diabos eram tão
sozinhos? Seria o casamento algo benéfico para tais
mudanças? Mudando de assunto, poderíamos
pensar em outras questões: como, pois, se virava
Margot? Ela desconfiava que, provavelmente,
Heitor sabia do paradeiro do Sr. Albuquerque, o
velho transformista incubado. Na manhã seguinte
os ‘’cidadãos’’ comentavam: mataram um velho,
atropelaram um garoto; sombras e sangues
permanecem à nossa espreita! Quando o ensaio
terminou, tendo como duração cerca de duas horas,
Olívia Guerra pediu caneta e papel. Ao contrário do
seu pedido, e esse detalhe foi duvidoso, trouxeram-
lhe um isqueiro cinza e um maço de cigarros fortes.
Como não reclamou (coisa rara segundo seu perfil),
ninguém disse mais nada. A mulher soltava
baforadas na forma de arcos e círculos bem feitos.
A redação que escreveria para Boamorte acabou
ficando ali, nas lembranças onde a fúria do corpo
sucumbira aos caprichos de uma fidelidade
assexuada. Por força curiosa, entretanto, vamos
perscrutar o texto mental dessa frustrada atriz:
Como deverei pensar em você, Heitor? Em
primeiro lugar, sei que tirei sua camiseta e,
ansiosa, untei vaselina em seu corpo intumescido.
E, dessa forma, fui acariciando seus mamilos,
quase femininos, inchados demais pro meu gosto.
Mas nada importa. Não, não importa o tamanho
do seu pênis, os receios sacramentados na alma ou
a voz que silencia durante o castigo iminente.
Queria que você fosse feliz, altivo como um
guerreiro que encontra um trecho que desemboca
numa vila deserta onde, durante anos incontáveis,
águas diáfanas brotam das rochas mais firmes.
Claro, entre sinceridades e hipocrisias, o reflexo
do rio é sua portentosa imagem. Você é um
córrego de defeitos evidentes: olhos mortos, pele
macilenta, carne em flacidez ambulante. Se te
amasse como mulher, certamente conservaria a
fleuma emanada por tua postura introspectiva.
Todos os versos dos poetas do presente ou porvir,
mesmo que não saibam disso, buscaram chegar a
ti, ao herói ao avesso, esse complexo homenzinho
de cabeça pra baixo. Embora tenha, como na
maioria das vezes, exagerado nestas palavras,
apenas gostaria de dizer que somos inerentes um
ao outro. Até porque, verdade seja dita, sempre
protestamos contra o sistema, contra os
preconceitos mundiais infiltrados em nossa
genética aparvalha. Sendo assim, quem você
tocou? O Amor que pulsa em seu peito foi
degolado, condenado à guilhotina? A penumbra,
sim senhor, aumenta cada vez mais, atribulando
minhas, quase sempre, erradas decisões. A vida é,
e soluço ao dizer, uma calça menor que nosso
número. Ou seja: só podemos entrar quando, antes
de tudo, ainda nos resta alguma força. Quero lhe
abraçar, beijar o que resta da tua existência. À
medida que mergulho em ondas passadas, eu me
perco nos afagos de Heleno, nas valsas que
dançávamos nos salões arrumados. Onde estará
sua Carla? Quando o tempo tornar seu aliado, não
se esqueça de mim, pois, uma vez interligados,
seremos infinitamente os mesmos. Meus braços,
com efeito, não esperam a hora de esbofeteá-lo.
Assim acabarei lhe perdoando. Bocas cingidas,
sexos conectados, mentes em sincronia abundante,
cheiros cadenciados sobre nossos travesseiros.
Queria oferecer minha sensualidade como fonte de
salvação, afinal, por vastos motivos, uma amiga
deve evitar o declínio daquele que padece sem
razão, mesmo estando perto dos tesouros da
percepção e da raiz corporal que clama por seu
imo adormecido. Pois estou certa que somos a
mesma ilha, a mesma Creta invadida, os mesmos
desenhos primitivos das antigas cavernas! A
humanidade, por sua vez, pede socorro, ajuda
imediata. Mas os mundos estão partidos, cada um
seguindo sua própria desordem. Quer saber?
Ainda lembro o cabelo de palha que adornava sua
cabeça; tais momentos são raros, pérolas do além.
‘’Aonde você vai, Heitor’’, todos perguntavam, e
você nos ignorava. Absorto em pontinhos
intangíveis, nenhum ruído o assustava. Era triste
lhe ver se auto-exilando! Quantos eram os teus
segredos? Escuta o meu chamado, o que diz
amavelmente: eu te amarei num recinto repleto de
pilastras seculares, e nos transformando em
pentagramas, intrínsecos somente na ruptura dos
medos, enfim seremos todos os mitos decifrados.

Olívia procuraria Boamorte. Teriam a conversa


definitiva.

Conversaram, semanas depois, largados nas


dunas refletidas pelo mar. Viam o pôr-do-sol,
magnífico, que irradiava toda a atmosfera praieira.
Havia muito a ser dito, e Olívia esperava vivenciar,
nem que fosse palavras ásperas, uma possível
sinceridade por parte de Heitor. Os dois, nesse
instante único, não trocavam olhares profundos,
pois tinham medo do desenrolar do diálogo. O
gorjear das avezinhas misturava-se aos mergulhos
dos meninos afoitos, cada vez mais imersos na
direção do fundo; algumas mães, histéricas,
começavam a gritar, e as ondas, agora maiores, iam
escondendo seus filhos desobedientes. Outras
pessoas, porém, não gostam de tomar banho nessas
águas verdes e salinas, bem como Heitor Boamorte,
que, para falar a verdade, somente pensava no que
ia dizer, se bem que o tempo se encarregaria dessa
árdua tarefa. E, de maneira repentina, o homem
segurou na mão da mulher. A primeira vez que isso
ocorreu, num baile escolar, ambos nem se
conheciam direito, mas já sentiam, entre um e outro
esfregar de mãos, que seriam bons amigos, embora
os poucos participantes daquela festa olhassem pra
eles com olhinhos enregelados, cheios de
comiseração. De fato, ainda que segurasse a
mãozinha de Olivinha com ternura, Heitor não
estava nada bem porque, em seu semblante
atordoado, os sinais da dor excruciante eram
límpidos, perfeitamente notáveis. Mais tarde,
quando obviamente não foram escolhidos os reis do
baile, todos os demais apontavam para a
maquiagem borrada de Olívia. Talvez se
esquecendo de si mesma, ela rasgou o vestidinho
acetinado, ficou seminua e, por fim, meteu um
estrondoso tapa na cara de Boamorte, perguntando:
Por que você não disse nada? Qual é o seu
problema? Ele não respondia, bufando sem receios.
Seja com for, voltemos para as dunas, para o
fantástico pôr-do-sol onde, ainda alisando os
dedinhos um do outro, os personagens agonizantes
admiravam os grãos de areia, os namoradinhos que
caminhavam saudavelmente pela beira da praia,
risonhos, unidos pela natureza em mutação. Mas
quando mudariam? Ali, diante deles, não pairava
apenas esses belos detalhes, como também
descasos evidentes. Para iniciar, por exemplo,
podemos comentar sobre fezes animais, lixos por
toda parte, poluição descarada, sendo que,
indiferente e amorfo, Heitor buscava entender o
interior de sua amiga, o aprisionamento onde ela se
trancafiara. Passaram a falar de política. Na
verdade, nem eram mais politicamente engajados
como antes; haviam, pois, perdido a fé na esquerda
e na direita, no vermelho-sangue ou no azul-anil.
Abruptamente, Olívia beijou o rosto do sujeito
amorfo, para ver se conseguia despertá-lo. Nada
como um beijinho voraz! Boamorte insinuou
repetir o gesto, mas ficou só na simulação. E o
choro encapsulado estourou. O que foi, perguntou
Olívia. Coisas minhas, respondeu ele, com voz
rancorosa e olhar imperioso. Para mudar o clima
pesado, um dos dois, não me pergunte quem, disse:
você já viu uma cáfila? O outro replicou: você já
viu duas almas distintas se mesclarem? Deliravam
sob o sol-poente, tendo como proteção os calores
que os uniam ali, nas dunas lilases e sinuosas. Entre
momentos risíveis e degradantes, ventanias
violentas e recitações poéticas, o casalzinho morria
com o crepúsculo vespertino, principiando assim,
não antes das reflexões habituais, a tão aguardada
conversa definitiva. O assexuado foi o primeiro a
falar:

Tudo mudou quando Carla se foi. Pedras,


brisas, sentimentos, nada ficou como antes. Venho
me fechando, permitindo que minha queda seja
rápida. O que podemos fazer, senão nos isolarmos
completamente? Ávido por amar demais, eu caí em
profundo desespero, sozinho nesse túnel chamado
solidão. Você sabe muito bem como já não entrego
meu corpo aos desejos ferozes. E, por isso, salvo
alguns equívocos, acredito que ainda tenho tempo,
mesmo sendo pouco. Para terminar, no entanto,
até pediria sua mão em casamento, mas nada
tenho a oferecer...

Olívia interpôs:

Case-se comigo. Sei que não teremos núpcias.


Assim, juntos pelo resto de nossas vidas, sem
dúvida aprenderemos muitas coisas; bom, cada um
terá seu espaço, sua necessária privacidade, se é
que você me entende. Pois bem, esqueça esse troço
de política e tristeza, pois falaremos de amor,
literatura, vinho regando nossos corpos. Em suma,
devemos nos casar no próximo mês. E continue
trabalhando com seus serviços assexuados; deixa
que eu pago nossas despesas, sobretudo porque
vivemos numa época moderna.

Os dois arrancaram um trevo de quatro folhas


que figurava ali, lindamente sobre as dunas, e, com
este símbolo, celebraram os novos laços
matrimoniais. Heitor, apesar de conhecer Olívia há
bastante tempo, não conhecia seus pais. Eis,
portanto, sua próxima missão desgostosa. Os pais
da moça não estavam em casa. Aproveitando a
ocasião, a mulher levou-o ao quarto mais próximo,
trancou a porta e esperou a revolta, que não veio.
Será que, após tantas páginas lidas, os leitores terão
o galardão de, extremamente satisfeitos,
vislumbrarem a primeira noite sexual do nosso
Boamorte? Grande engano. Naturalmente, ele
empurrou-a mais uma vez. Olívia explicou a
situação dos pais. Independente do que tentava
explicar, o fato é que Heitor prestava atenção nas
nuvens que apareciam da janelinha do quarto. Em
outras palavras, por que ele se preocuparia com
esse casamento? Decidido, levantou a noiva da
cerâmica e, beijando-a na cintura delgada, pediu
desculpas pela brusquidão de seus gestos. Lá fora,
na imensidão das ruas esburacadas, os velhinhos
conversavam sobre futebol, mulheres e carros
antigos. Entre estes senhores, quase que encolhido,
tinha um tal de Otacílio Fontes, um carequinha de
orelhas de abano que nunca saía sem pince-nez,
terno marrom e sapatos meticulosamente
engraxados. Esta figura, pra quem não sabe, era o
pai biológico de Olívia, há muito desaparecido.
Contudo, devemos analisar pormenorizadamente os
ventos da hora responsáveis pelo desvario de
Olivinha. Ela esbravejava como uma vilã
novelesca, sorrindo e chorando ao mesmo tempo,
enquanto Heitor Boamorte buscava consolá-la. Que
vidinha desgastada era esta? Subitamente, então,
acabou vendo o fantasmagórico Anjo depressivo, o
mesmo ser aureolado das apreensões do assexuado.
Talvez esse personagem fosse uma criação mental,
uma força abstrata ganhando vida.
Independentemente dessas características
assustadoras, o anjinho dava o ar de sua graça
como se, por acaso, tivesse saído do célebre quadro
Guernica, do pintor espanhol Pablo Picasso. Vocês
serão infelizes, dizia o corpo celeste. Indiferentes,
Heitor e Olívia Guerra começaram a dançar o
mesmo merengue do baile já comentado. A moça ia
tirando a roupa lentamente: salto alto, shortinho
jeans, jaqueta de couro. Mas não ficaria nua diante
do Arcanjo, afinal respeitava o noivo enciumado. O
que você quer, indagou Boamorte, já impaciente.
Como a criatura angelical não respondia,
resolveram ignorá-lo. De repente, portando a
mesma pistola utilizada pelo assexuado na morte
do ganso, S. surgiu, com expressão atemorizante,
ameaçando seriamente:

Heitor! Você matou a Carla! Eu sei de tudo!

Depois de tantas exclamações, cabe uma


ressalva: Ninguém amava a mulher morta como o
protagonista deste romance. Boamorte desabafou:

Por que mataria o corpo do meu corpo?


Durante anos a fio, perdido nas espeluncas mais
imundas, eu fui morrendo aos poucos, isto é, sem
ninguém notar. Queria, pois, ser esquecido, ou
lançado aos abutres, mas isso não muda nada. Em
tempos como os nossos, onde o efêmero domina
passos e desejos, só me resta levantar a cabeça e
prosseguir. Já não me importa o que sou, aliás,
apenas a lembrança de Carla é que me sustenta.
Todos os dias, sem falta, somos submetidos aos
calafrios, aos espancamentos dos carrascos
irrisórios, e apesar dessas rupturas, pequeno
acusador de merda, o senhor ainda nos considera
livres na medida do possível. Se atirar em mim,
por exemplo, vai te salvar ou trazer minha Carla
do submundo, por favor, fique à vontade. Mas
quando meu corpo estiver aí, inerme neste mórbido
lugar, saiba que já estarei com a mulherzinha que
‘’matei’’ por entre arestas coloridas, montanhas
mágicas e riozinhos esperando nossos sublimes
mergulhos. De qualquer maneira, ao vê-lo
tremeluzir assim, talvez devesse dizer a verdade:
Você fechou os olhos do velho transformista. Eu
sei!

S. vomitou sangue. Ao ver o misterioso Anjo


sorumbático, jogou-se da janela adornada por
cristais perfumados. Ele, que tinha 70% de chance
de ser feliz, claramente morrera na hora. Como
homenagem póstuma, contudo, daremos uma
voltinha por seu histórico: S. Fazia tudo que Alana
mandava, incluindo crimes e brincadeiras
duvidosas. Certa vez, também acompanhado pela
futura prostituta, ele roubou um livrinho de poemas
apaixonados. E, desse dia em diante, em todas as
tardes possíveis, Alana e S. brincavam desse novo
jogo lírico, de modo que, inspirados como nunca,
eles iam declamando suas paixões embutidas. A
dama sempre começava: Vou te beijar S., e
alimentarei teu prazer arguto, pois sou tua névoa,
teu ácido, tua insípida fosforescência. Quando
nossas quintessências se dissiparem, ainda terei
forças para, amando-te mais que antes, unir
nossos defeitos sem cores. Ora, vem a mim com teu
mastro, com tua fraqueza estampada. No final,
confusamente desesperada, cultuarei nossos
campinhos cultivados, a fauna e flora que me
apresentou teu amor de amêndoas e flores
infinitas. Você é meu jardim subterrâneo! Segundo
minhas utopias, carregaremos os archotes da
vitória, sedentos e contentes, além de donos dos
sonetos completos e das consagrações amorosas
praticadas em altares gregos. Sabe onde
estávamos antes do encontro edificante das nossas
sinergias? Amando-nos em imemoriáveis viagens
oníricas. Depois era a vez de S. que, suando aos
borbotões, dizia: Teus lábios são minhas esferas de
vida. Só tua presença é capaz de expulsar meus
demônios internos, as sombras ocultas que me
levam ao mal. Disforme, busquei sua forma nos
ribeirinhos, nas ostras e búzios que catava nos
mares de Poseidon, nas veredas cobertas por
musgos e sebes perigosas. Lutei, então, com
estrelas, cavalos-marinhos e espumas secretas. Ah,
como são portentosas tuas pernas de lua anciã! Se
fosse um cavalheiro andante também imitaria Dom
Quixote, porque por uma noite contigo, amor meu,
também enfrentaria moinhos, gigantes
imaginários. Aliás, foi em brenhas surreais e artes
esquecidas que te encontrei, toda formosa,
sambando com botos lendários e centauros
camuflados nas árvores. Bela era a cauda de
sereia, a perfeição contida na constituição da sua
pele esmaltada. A senhorita promete me amar
irremediavelmente? Essa pergunta foi respondida
naturalmente pelos seus crepusculares olhos de
pantera. Sim, o escudo foi partido, a Excalibur foi
cravejada no concreto indestrutível. Bom, talvez a
sociedade seja a mesma, mas, em tradições
recuperadas pelo coração, eu só me vejo refletido
em ti, na transmutação de nossos âmbares
corpinhos apaixonados. O que me diz do tempo,
dos nossos clãs mortos em guerra? Desde eras
remotas, pelo que posso observar, todos lutaram
em nosso nome, insaciáveis para juntar nossos
fragmentos. E, caso sejamos unos em alguma
aurora, aproveitarei o momento para coroá-la
deusa dos meus caminhos, rainha absoluta da
terra que deixei fenecer em minha mão selvagem.
Ou seja: nas miragens por um mundo melhor ou
na tulipa já sem brilho, sempre estarei beijando
você, minha eterna senhora dos lagos e
tempestades. E, depois, nos amaremos em ruínas
antigas, longe do corvo de Prometeu, mas perto da
Sabedoria de Palas Atena. Então, os íntimos
entrelaçados e a bancarrota superada, nós, os
amantes, saberemos nos apoiar sozinhos,
circundados por iluminados solstícios e
equinócios. Mas será que você vai me amar na
doença, no padecimento que chegará fulminante?
Sobre essas chagas preocupantes, nada tenho a
dizer. No entanto, a respeito dos meus sentimentos
mais recônditos, vejo-me obrigado a explicar que,
espiritualmente, jamais deixarei de te honrar com
labaredas românticas. Quando o fogo sucumbir, a
água diluir e nossos ferimentos latejarem, os
homens já estarão cumprindo seus protocolos de
paz. Agora, se a imaginação habitada em teu
ventre puder se rebelar, com certeza algum
Elementar plantará meu grão de mostarda dentro
da tua taça que transborda cheia de fragrâncias,
cada qual com uma teoria filosófica sobre a vida.
Até porque, ó Alana das fadas benevolentes, qual a
razão de tanto genocídio? Ainda assim, você me
promete uma coisa? No ceifar da minha trilha, ou
melhor, quando eu estiver mumificado numa tumba
qualquer, a senhora não irá me trocar por outro
poeta anônimo, não é? Claro, não devo me
preocupar com isso. No mais, tocarei harpa no
cume de um monte inalcançável, e dormirei no
embalo das tuas canções labirínticas. Em todo
caso, serei o pote necessitando do mel, a estrela
que caiu do céu sendo confundida com um
demônio e, assim, somente minha rainha poderá
me absolver, pois, revestida pela armadura da
justiça, ninguém ousaria desafiá-la, nem mesmo os
astros ou inquisidores valentões. Por isso, através
das pupilas faiscantes de Alana, é que me redimo
das atitudes imbecis, absolutamente
despropositadas. Concluindo: desafiei os temíveis
escorpiões, os ferros que tilintam medo, os templos
destruídos impunemente. Depois, quase triturado,
participei das marchas pelos direitos humanos, das
passeatas onde saíamos todos violentados por
bombas de efeito moral, sprays de pimenta e armas
de fogo. Nós, munidos com armas brancas, vidros,
chinelos e afins... Acabávamos sangrando
gratuitamente. E, quando a discórdia parecia ser
meu alento, você rasgou o véu de maia, rompeu o
fio de Ariadne e disse: sou a colheita que te
conceberá um sonho. Beija minha boca, salve o
instinto que há na tua vista. Começamos agora.
Tendo em vista que ainda temos muito a dizer,
precisamos salientar que, sem dúvida, nos resta
uma série de curiosidades: O que há na bolsa da
garota de programa com síndrome de Down? E
qual dos personagens foi trancafiado no
abominável ‘’campo de concentração’’ do já
falecido e ex-aviador de caça Licurgo Vargas?
Como podemos explicar a morte do transformista
Albuquerque? Utilizando uma expressão sem
graça, popularmente proferida nesta cidade
inominável, teremos de fazer como o coisa-ruim do
Jack, o estripador, ou seja, indo por partes. Tudo
bem! Manteremos uma ordem propícia para, dessa
maneira, não complicar a concentração dos leitores.
De acordo com a ordem estabelecida, devemos
começar com o mistério do conteúdo da bolsa, se
bem que, como já falamos, esta havia sido roubada
por algum mequetrefe desconhecido. Heitor, ao
voltar para a mansarda de Roberto Burger, logo
estranhou a súbita aparição de uma bolsa idêntica
ao objeto afanado. Perguntou para Roberto, e este o
ignorou vividamente. Graças ao desejo candente de
descobrir essa enigmática questão, Boamorte
tentava, em vão, pegar a bolsa de Burger, que,
naquele momento, estava guardada numa imensa
estante onde, evidentemente, nem o próprio dono
conseguia alcançá-la. E, deitando-se na caminha
com dossel, mais uma vez sonhou que estava
sentado num menir, meditativo, apreciando dois
búfalos disputando a mesma fêmea, de modo que o
maior deles acabava triunfando. Uma vez que não
tinha nada a perder, o sonhador se entregou ao
momento.

Então se aproximou do búfalo ferido, acariciando-


o nervosamente. Os pêlos do bicho estavam
eriçados. Prestes a chorar novamente, Heitor teve o
seguinte pensamento: eu sou o animal caído,
humilhado por ver seu amor fenecer nos braços de
outrem; o búfalo vencedor, por seu turno, tratava-se
da imagem de Heleno Soares, o homem amado por
Carla Montero. E então, vendo toda a cena
pitoresca, Baptista Dos Anjos, agora vestindo um
manto bege, disse magistralmente: Eu estou vivo.
Não conte pra ninguém, inclusive para Olívia,
afinal ela não suportaria tamanha pressão. Mais:
procure um emprego! Quando Heitor despertou, a
bolsinha estava no mesmo lugar. Em compensação,
em pouco menos de uma hora, Roberto iria sair.
Era a chance. O assexuado, que não gostava de
vizinhos, precisou quebrar algumas barreiras
internas, e perturbando a vizinhança, conseguiu
uma escada de madeira envernizada, dessas
utilizadas por quem pinta casas. Em seguida, foi
contando mentalmente: um, dois, três! Caíra com
tudo, quase fraturando a coluna. Passara a ser mais
que uma vela apagada; enquanto tivesse os mesmos
sonhos seria, na realidade, um bufalozinho
derrotado, amuado e que, em prantos lastimosos, a
fim de secar suas dores pesarosas, buscava, com o
espírito sossegado, compreender o porquê de o seu
existir ser dividido na suposta tríade: sem Carla,
sem saúde, sem sexo. Na cama do hospital,
entretanto, reviveu o primeiro beijo que dera na
vida, embora, para muitos maledicentes, ele sequer
havia beijado uma mulher. Como um legítimo anti-
herói, Boamorte beijara a pessoa errada: Fernanda.
Esclarecendo: ele queria sentir os lábios carnudos
da austera Elizabete, mas havia sido rechaçado
numa tardezinha com cheiro de hortelã. À duras
penas, viu-se surpreendido pela vontade abrasadora
que a, até então, desrespeitosa Fernanda, tinha de
ficar com ele, e, apesar dela ser a melhor amiga de
Elizabete, acabou cedendo aos impulsos
masculinos. Ficaram, pois, perto da piscina da
universidade, sob uma lona preta-pesadelo. Ela
colocava as mãos do rapaz nos seios fartos, em
rebuliço; ele, talvez sobressaltado, deixava-se
dominar pelas circunstâncias do instante. Pensava
em Elizabete. Anos depois, diante da mesma
Elizabete, ele teve que se explicar pesarosamente,
medindo as palavras com cautela. Bete iria se casar
com um advogado de um olho só. A conversa, na
verdade, durou pouco, cerca de vinte minutos
contados. Nesse tempo, Heleno e Carla ainda
estavam vivos, e moravam num bairro elegante.
Heitor, desde então, passou a fugir de si mesmo, ou
melhor, nos finais de semana, quando toda a cidade
se escondia devido ao toque de recolher, ele corria
pelas ruelas vazias, sem medo, indo ao encontro do
torpor inevitável; e, assim, ia atravessando as
praças, os parques onde, em manhãs agradáveis, os
namoradinhos se reuniam no gramado seco,
causador de comichões. Era, por assim dizer, o
momento de redenção por sua parte. Árvores
espalhavam suas folhas pelo ar, espíritos pediam
caronas aos caminhoneiros noturnos e profissionais
do sexo, atrevidas e vítimas do tempo, pareciam
nem existir, pois, nessa altura dos acontecimentos,
ainda que moribundo ao extremo, Boamorte sentia
que, maravilhosamente, o município era seu, e essa
convicção, apesar de egoísta, deixava-o, pelo
menos durante poucos segundos, satisfeito com
aquela solidão dilacerante, capaz de devorá-lo sem
clemência. Mas os holofotes sobre ele
manifestavam sensações aprazíveis, cujo
verdadeiro significado, se é que há algum sentido
nessa complexa narração, apenas este estranho
maratonista poderia revelar; os olhos translúcidos
iam fixando os postos de gasolina, os bares imorais,
os pontos onde os assassinos de aluguel cometiam
suas barbaridades. E, depois, vinha o ventinho
macio que, em forte concentração, levava, para o
rosto de Heitor, uma miscelânea de poeiras e lixos
acumulados. A fome aumentara. No bolso do
calção largo, espremido entre contas não pagadas,
figurava um pirulito de cereja, o qual, certamente,
seria sua única ‘’refeição’’. Mas antes de chupar o
doce, todavia, pôs-se a pensar numa noitinha
fugidia, quase engavetada nos porões da memória,
onde, na companhia de Carla, ambos começavam a
chupar o mesmo pirulito, cada qual lambendo sua
parte. Essa foi, sem dúvida nenhuma, a melhor
oportunidade que o assexuado teve para beijar a
menina dos seus sonhos. Durante um bom tempo,
continuaram chupando o doce, que parecia
intermitente, uma vez que o garoto já estava muito
impaciente, com certeza querendo alcançar aqueles
lábios salinos. De repente, quando o beijinho
parecia certo, Carla puxou o pirulito com
veemência, provocando-o: Você me ama! Não
consegue viver sem mim. Talvez ela tivesse razão,
pois o rapaz, com os olhos turvos, abraçava o
pescoço da moça, em tempo de enforcá-la. Como
não beijara a princesa flamejante, Heitor, se
pudesse reclamar com o autor, pediria que
voltássemos nossas atenções para sua fúnebre
marcha atlética. Agora, pois, corria
desesperadamente, ora acelerando o passo, ora
cambaleando feito um bêbado perdido; como
companhia, embora não muito agradável, tinha o
pio das corujas, sirenes policiais, outdoors
estranhamente impolutos e o detestável Anjo
cabisbaixo. Sem cigarros, e com o doce já
terminado, não sabia como iria continuar, levando
em conta que, em tempo recorde, conseguira
atravessar uma penca de portais; expressão
utilizada por ele para se referir às feias ruas do seu
lar impronunciável. O leitor, numa rede
confortável, deve pensar da seguinte forma:
Falávamos do mistério da bolsa. Infelizmente,
deixaremos isso para mais tarde, tendo em vista o
momento auspicioso que nos obriga, bem ou mal, a
perorar sobre Roberto Burger e, como reza a lenda,
a respeito de seus dias como ‘’funcionário’’ do
‘’campo de concentração’’ do ex-aviador de caça
Licurgo Vargas.

O campo de concentração era um sítio frondoso.


Licurgo fora exato como um professor de
matemática:

Você ficará responsável pela monitoração do


gado. Além disso, quando essa mocinha aí falhar,
o senhor deverá açoitá-la sem pena.

O patrão se referia a uma camponesa sedutora;


os seios pequeninos e a vozinha ranhosa. Esta era
uma espécie de faz-tudo do sítio.

Roberto, nas noites de lua cheia, sempre munido


por um chicote com três pontas, batia, embora
contra seus próprios princípios, nas marcadas
costas de Alice.

Como é seu nome, perguntou Burger, em tom


macabro.
Alice, respondeu a mulher, com secura.

E o carrasco se multiplicava. Ela não conseguia


ver somente um homem, mas uma legião deles.
Onde estavam? Porque precisava ser açoitada
assim, se não praticara nenhum crime?

Qual o seu nome?

Alice.

Eis a primeira chicotada.

Como você se chama?

Alice.

Eis a segunda chicotada.

Depois não houve papo. Roberto só teve que


sentenciar:

Vou ter que acabar contigo.

Alice morreu com um sorriso mavioso


estampado nos beiços. Se esta história é verdadeira,
nem o próprio Roberto poderia esclarecer, já que
após esse dia, sinceramente aterrador, passara a ver
Minotauros.

Esses relatos sobre o campo de concentração


ficaram uma merda, eu sei. Mas que fique clara a
impunidade de nossas terras, o desrespeito ao
trabalhador honesto, os absurdos violentos que
acometem, ainda hoje, os decentes cidadãos que só
querem leite, uma boa distribuição de renda e
políticas públicas. Sim, nós somos os responsáveis,
pois, como ficou bem claro, o carrasco não é um
só, mas uma legião de homens mascarados,
recurvados em suas indigestas derrotas.
Sobressaltados, fechamos os olhos para os braços
desfraldados que nos imploram liberdade. No
entanto, por pura omissão, criticarão esta narrativa
direta, sem esperança, que, no final das contas, só
sente a companhia das estrelas cadentes, do
imaginário popular e das mitologias arraigadas em
nosso sangue. Ufa! Nós somos nossa própria
Auschwitz-Birkenau. Por isso, mesmo revoltados,
não iremos julgar o sujeito perseguido por
Minotauros. O que faremos? Vamos velar pela
alma de Alice (antes que os falsos guerrilheiros
comecem a massacrar espíritos).

E Heitor foi ao antro onde Margot residia.


Resolveu ir correndo, traçando um paralelo entre
suas maratonas noturnas e essa corrida matinal.
Desta vez, porém, ele carregava uma placa com os
dizeres: ‘’No war’’. E, atento aos detalhes daquela
manhã, viu uma matrona ser roubada, mas não fez
nada, sobretudo porque se acostumara à covardia.
Enquanto corria avidamente, uma avalanche de
curiosos seguia seus passos, de modo que, pouco
depois, vários jornalistas já estavam em seu
encalço; Boamorte, em todo caso, ignorava todos,
inclusive as belas damas com roupas justas, já que
também nem pensava em si mesmo, pois tinha que
explicar o mistério da morte de Albuquerque, o
transformista. Sobre o teto de uma capela, sombrio
como o chefe de um primeiro emprego, estava uma
gárgula, os chifres longos e o semblante, pelo que
dava pra deduzir, extremamente macabro. Após
essa visão, o pobre corredor achou que estava
enlouquecendo, afinal, em sua mais perfeita auto-
avaliação, ele, envelhecido e taciturno, não
conseguia esquecer certos fatos como: fazia alguns
meses que vinha sendo ‘’escoltado’’ por um
personagem denominado Anjo ou Arcanjo
sorumbático. Seja como for, continuou a correr
com a placa erguida, até o instante onde, já sem
forças, acabou sendo surpreendido por um guarda
robusto. Tratava-se de um antigo pracinha peruano
amante de fotografias e violências generalizadas.
Preparado, o guardinha alcançou o maratonista, e
preparando o bastão para dar uma pancada na
retaguarda de Boamorte, logo mudou os planos,
levando em consideração que, por algum motivo,
conhecia aquele cara estranho. Então lhe puxou
pelo braço, de acordo com a brutalidade aprendida.
Heitor virou o rosto, puído, com a barba
demasiadamente suja. O pracinha, no entanto,
primeiro cuspiu, depois arrotou e, bancando o
espertinho, perguntou: Não está reconhecendo seu
tio, heitorzinho? Bom, o assexuado até notou
muitas semelhanças entre o policial e o tio
Bernardo, que não via há muito tempo, e que
provavelmente virara professor de filosofia. Assim,
antes de soltar Boamorte, o suposto tio Bernardo
ainda lhe desferiu um tapa violento na bochecha
direita, dizendo abruptamente: E aí... anda
trepando muito? O entrevistado emudeceu.
Voltando os olhos para a favela que teria de
atravessar, ao menos teve um alento: Estou perto.
Agora sentia o baque da retrospectiva geral: O que
sou? Vela apagada, búfalo derrotado, ampulheta
desfigurada, assexuado em busca de uma aventura
idílica, fulano quase sempre espancado, um exímio
perdedor de cobranças na marca do pênalti. De
longe, já na comunidade que iria trespassar, Heitor
avistou luzes bruxuleantes, estrondos de fogos de
artifício. Era dia de jogo da seleção nacional.
Churrasquinhos também eram vendidos, e os
moradores, uns assistindo televisão, outros ligados
no rádio, mostravam-se como que hipnotizados.
Aliás, o clima só foi quebrado quando, gritando
sonoramente, uma mulher das ruas proclamava o
escândalo: Venderam uma criança do outro lado
do mundo, trocaram mantimentos por garotinhos
num país subdesenvolvido. Quer saber? Somos
produtos! Depois ela começou a explicar o que era
um simulacro. Era doida. Mas tinha razão. Ao
passar pelo front, ileso, o assexuado também
descobriu como era grande seu preconceito, pois os
moradores da favela eram os únicos e verdadeiros
humanos que havia conhecido. Quando acendeu o
Marlboro, e fez isso com delicadeza, até sentiu
vontade de desistir, mas, pensando bem, prosseguiu
risonhamente, se bem que com saudades das
casinhas de taipa por onde tinha passado. Em
pouco mais de sete minutos, o antrinho da velha
Margot apareceu, bem cuidado, e enfeites natalinos
adornavam a casa, talvez habitada pelo fantasma de
Albuquerque. Tocou a campainha três vezes.
Margot surgiu, atrapalhada, com seu manjado
avental branco. Sua cara estava macilenta, e os
olhos, antes vívidos, agora pareciam murchos, isto
é, sem um pingo de brilho. Ainda assim, Heitor
permaneceu irredutível, pois não tinha ideia do que
ia dizer. De fato, o estado da viúva do transformista
era lamentável, quase inverossímil. Mas ela
mandou-o entrar, abrindo a porta amadeirada, e,
sorrindo ansiosamente, pediu para o rapaz acender
o lustre. Na sala de estar, confortavelmente
sentados num sofá de plumas, eles dialogaram
durante horas a fio. O assunto? Albuquerque!
Heitor, no entanto, foi logo detalhando os
acontecimentos daquela noite fatídica. Segundo ele,
e sua voz denotava confiança, o transformista havia
sido atingido pelas costas, sendo que, o autor do
assassinato, indubitavelmente, tratava-se de um
burguesinho conhecido como S. ou coisa que o
valha. Margot, que segurava a espingarda marrom
do marido assassinado, perguntava, em timbre
imponente, qual era o objetivo de Heitor, ou
melhor, qual o significado daquelas visitas
constantes. Antes da resposta esperada, contudo,
um forte clarão prorrompeu pela sala, de modo que,
no aposento contíguo, logo após o inusitado
lampejo, vários brados começaram a inundar o
ambiente. Sobressaltado, Boamorte procurou fixar
a atenção nos cômodos da casa: a cadeira de
balanço movendo-se sozinha, a escrivaninha
pichada, um guarda-roupa quase vazio com apenas
um sobretudo cinzento. Era triste a quantidade de
poeira e o tanto de baratas voadoras que residia ali,
nas paredes rebocadas. Talvez esta casa não fosse
limpa, pois, querendo ou não, podemos considerá-
la um chiqueiro humano. De qualquer modo, a
grande surpresa foi o fato de, apesar da raiva
sentida, Margot não quisesse vingança. Queria paz;
coisa esta que, por mais infeliz que possa parecer,
mostra-se cada vez mais difícil. Depois, procurando
mudar de assunto, a mulher do avental branco,
sempre com um sorriso diligente, mandou, com a
testa franzida e a espingarda em riste, que o
homenzinho casto começasse a falar sobre sua vida.
Como não havia outra opção disponível, Boamorte
abriu a boca, se bem que tremendo como se, por
acaso, estivesse em meio a uma entrevista de
emprego. Uma vez que Margot perguntava somente
banalidades, ele, estufando o peitoril saliente, disse
com firmeza: Vou me casar. Em outros termos,
estou perdido porque, assexuado como sou, nada
tenho a oferecer. A velha, que jogara a espingarda
no tapete floreado, contentou-se em ouvir tudo
atentamente, sem meter suas opiniões. Mas como o
ser humano é, antes de tudo, um autêntico
conselheiro da vida dos outros, ela acabou dizendo:
Vou lhe dizer o endereço de um velho amigo, mas,
por favor, seja respeitoso com ele, afinal, sem
dúvida nenhuma, só ele pode ajudá-lo. Bem,
quando será o casamento? Serei convidada, não é?
Heitor preferiu emudecer, dedicando-se à limpeza
dos óculos novos, agora com lentes de resina e aros
redondos, além de uma armação mais firme. E,
limpando-os com a blusinha de algodão, permitiu-
se chorar internamente, pois não conseguia
acreditar que, em épocas passadas, até pensara em
matar esta humilde senhora.

Helder era o amigo de Margot. Também


assexuado, bem como nosso protagonista Heitor
Boamorte, ele, um escultor frustrado fã de Rodin,
possuía uma magistral biblioteca. Com um acervo
impecável, não via o dia de encontrar alguém que
tivesse sua mesma sexualidade. Na verdade, até
transava. Mas estamos falando de livros, de
personagens da literatura que copulavam com este
atípico artista. E, com a chegada de Heitor, sentia-
se mais leve, prestes a entrar num orgasmo imortal.
Assim, trancados na biblioteca, ambos começaram
a fazer amor com a Lolita de Nabokov, Cleópatra,
Afrodite, Grúchenhka dos Irmãos Karamazov,
Branca de neve. Mas a orgia, em toda sua
magnitude, continha também, e de maneira livre, a
presença dos mais variados personagens
masculinos: Don Juan, Alexandre da Macedônia,
Gregor Samsa, Hamlet, entre outros. Helder e
Heitor gemiam ardorosamente, emitindo silvos
assustadores. Isso era, na verdade, algo insólito,
uma vez que, levando em conta um sem-fim de
gente esquisita, talvez só eles fizessem esse tipo de
coisa. Para entendermos estas atitudes, devemos
conhecer o terreno. A biblioteca labiríntica era
dividida numa infinidade de setores. Além disso,
como ficou claro assim que pisou no local, Heitor
percebeu que aquela Casa dos Livros recendia a
tabaco. Da janelinha quase escondida, Helder, com
asco, espiava os heterossexuais e homossexuais do
bairro, matutando: Idiotas! Não veem que o coito
literário é bem mais brioso que o sexo real? Em
seguida, quando já haviam gozado aos montes, os
dois pervertidos disputavam uma partida de xadrez.
Helder, que fora campeão estadual deste jogo,
ganhava facilmente; enquanto que, por sua vez,
Boamorte lembrava-se do pirulito compartilhado
com Carla, dos socos que trocara com Heleno após
uma discussão sobre Chernobyl e, por fim, das suas
frustradas participações em concursos literários.
Por que seu espírito ainda permanecia vivo? Até
porque, embora essa menção não tenha nada a ver,
o fato é que ele continuava correndo, sozinho, pelas
estradas cobertas de eucaliptos e cidreiras, e tendo
como meta, se assim podemos falar aos leitores e
leitoras, a imediata expurgação de sua alma, que
infelizmente não vinha. Quanto aos sonhos ou ao
casório iminente, resolveu deixar isso para depois.
Concentrava-se, pois, nesse púbere vício secreto: a
descoberta do prazer carnal por meio dos romances
universais. Então, para se despedir do ‘’Mestre
Helder’’, Heitor sugeriu um prazer final. O mestre
tirou uma flauta verde-limão do bolso, andou pelos
corredores da biblioteca e, parando numa fileira
dedicada aos poetas franceses, ordenou: faça amor
com este livro: As flores do mal, de Charles
Baudelaire. Levando a obra para um cantinho
afastado, o assexuado abriu o zíper, com
dificuldades, sendo observado pela criatura alada e
depressiva que, ao ver o êxtase do rapaz, decidiu
deixá-lo sossegado; As flores do mal era um livro
delirante, desses que fazem o leitor queimar por
dentro. Heitor gozou como nunca; Helder, que lia
A divina Comédia, também gozou. Mas como o
gozo precede a desonra, alguém, quem sabe um
personagem já exposto neste romance, pareceu
adentrar no local assim, de supetão, sem dúvida
ambicionando participar daquele seleto bacanal.
Paulatinamente, o mestre e o discípulo tentavam,
debalde, largar os livros que lhes conferiam prazer.
Perto deles, a pele pintada e os olhos inquisidores,
estava ela. Quem?

Olívia Guerra. Ela, que não queria perder tempo,


indagou brutalmente:

Você está transando com livros?

Sim. Há algo melhor?

Olivinha franziu o cenho; depois, segurando o


pranto, ainda conseguiu soçobrar:

Vamos pra casa.

No caminho, de mãos dadas, Olívia perguntava


sobre os pais de Heitor. Este, que não parava de
piscar os olhos, disse que seu pai havia ligado,
dizendo para ele, com uma voz marcante, para ser
esperado na parada de ônibus. O problema era que,
por sempre ter sido um velho gaiato, seu velho
apenas pilheriava, pois, de acordo com suas
ligações, a única coisa clara se tratava da seguinte
afirmação: Aparecerei num sábado qualquer. A
partir daí, mesmo desconfiado, Boamorte ia ao
ponto de ônibus. Seu pai, como era de se esperar,
nunca aparecia, deixando-o visivelmente abatido,
quase desesperado. Mas ele continuava indo, o
rosto pálido e a boca encrespada; até que, sendo
conhecido por outros passageiros, acabou ganhando
novas amizades. Para eles, tentava contar a história
de seu coroa. Sempre mentia. Certa vez, quando
uma senhora grávida indagou a respeito das
características do senhor Heitor Boamorte I, o
assexuado teve que poetizar:

Eu quis entrar na vida do meu pai. Mas a porta


estava fechada. Ah, ele era meu fogo transgressor,
a carne que me guiava aos temporais das doces
auroras. Chorei quando ele me bateu pela
primeira vez; sorri quando afagou meus cabelos
desgrenhados, explicando que a vida era como
nossa família complexa. Não, não acho que sua
conduta militar me atemorizava. Como teria medo
do meu semeador? Pescamos sem saber,
acertamos coisas difíceis apesar do friozinho em
nossas entranhas. E, compartilhando os mesmos
mantimentos, aprendemos que somos parecidos,
embora, ainda que negasse tudo isso, o espelho
revelasse meu engano. Que barba é essa? Que
visão esmaecida é essa? Às vezes, e olha que isso
era uma pancada lancinante, nem me dava conta
se éramos ou não o mesmo espírito. Bem, eu só
queria um abraço terno, um carinho trivial, uma
noite contemplando o despertar das estrelas
fugidias ao seu lado, ou melhor, diante daqueles
tremeliques adoráveis. Quem nos separou do
mesmo mundo? Se meu pai estivesse aqui, desde o
instante onde o tempo me deixou, amuado e
alquebrado, já não iria me trancar no banheiro
para agonizar. Será, pois, que é tão complicado
conseguir esse abraço?

A mulher grávida alisava o ventre acentuado. Em


seguida, sem deixar de fixar Boamorte, questionou:

E sua mãe?
Heitor esbanjou um leve sorriso, pensou em
melros felizes e, enfim, falou alegremente:

Minha mãe virá na hora certa. Sabe? Seus


cabelinhos estarão sedosos como uma rainha dos
tempos. E todos, com certeza, acreditarão nos
anjos celestiais. Não haverá discórdias enquanto
ela nos brindar com gestos virtuosos. Mais tarde,
no dia que ela voltar, seus passos dançaram ao
redor do globo, contentes, marcando cada canteiro
com a benção da imortalidade. Eu sou poeta?
Sinceramente não sei; só sei que, na companhia da
minha genitora, sob chuvas ou tempestades, ou
entre abismos e foices assustadoras, nada nos
separará. Pois o amor materno, ainda que morra
com o advento do sono, logo ressuscita no
encontrar dos corações compatíveis. Cada palavra
que digo, então, deveria voar por nossas mentes
vazias e atingir nossos âmagos moribundos. Da
minha mãe, se assim posso dizer, espero um
abraço mítico; do meu pai, antes que seja tarde
demais, espero um cinjo de qualquer jeito. Afinal,
contanto que isso aconteça, os momentos
impacientes nessa parada sem paisagem ou alento
irão, no final das contas, ter valido o sacrifício.

A gestante pegou à condução que estava


esperando. Tchau, ela disse; até mais, ele atalhou.
Nunca mais se viram. O filho que iria nascer seria o
futuro marido da filha de Olivinha. O assexuado
seria pai? Tudo ao seu tempo. Ao trancar-se na
alcova mórbida, deitado numa rede de fibra, Heitor
procurou amar os livros. Helder lhe dera o
exemplar de um livro que só será revelado mais
tarde. No entanto, para começo de informação, o
prazer que nosso protagonista sentiu foi tão forte
que, em total descontrole, ele não conseguiu sequer
folhear o volume encadernado em brochura, e
também traduzido com bastante argúcia. O que fez?
Antegozou. Aquilo não era uma capa normal. Mas
não houve problema, pois depois iria, apesar da
vergonha aviltada, copular com outras obras
universais. A leitura de Alice no país das
maravilhas quase lhe levou para órbitas inabitadas.
E não paramos por aí: gozou com Beckett, Bernard
Shaw, Garcia Lorca, Mark Twain, Grazia Deledda,
Sylvia Plath, Florbela Espanca, revista em
quadrinhos e livretos de bolso. Assim, quando
terminava o ‘’serviço’’, tomava um refrescante
banho e, colocando uma roupa atlética, preparava-
se para suas corridas diárias. Com a alma tranquila,
se bem que um pouquinho anestesiado, Heitor
passava pelos eucaliptos e hortelãs, acenava para os
idosos da geração saúde e observava, com a face
cintilando, a orla marítima e todo o contingente de
veleiros e pescadores, cada um oferecendo os
ofícios de praxe. Pensou em dar uma volta numa
jangada. Mas como estava só, o carma que sempre
o perseguia, decidiu continuar malhando, dessa vez
praticando uns abdominais e uns polichinelos
desconcertados. Confusamente, passou a pensar na
estranha força que lhe fizera antegozar. Como não
encontrava resposta para tal disparate, somente
comprou um sanduíche natural, o jornal do dia e
um saquinho de jujubas suaves. Na rede de fibra,
sem escrúpulos ao invadir o quarto do noivo, Olívia
Guerra logo estranhou o cheirinho asqueroso de
libertinagem. Era traída por romances, ensaios,
contos e crônicas. Assim sendo, não acreditou
quando, debaixo do carpete madrepérola, escrito
num papel ecologicamente correto, havia, em
grandes letras trabalhadas, uma poesia que,
aparentemente, fora elaborada por Boamorte. Pelo
susto sentido, portanto, dava para notar que os
versos infames eram dedicados a ela:

Quando está adormecida, dengo meu, você é


rainha interminável. Quando você acorda? É
Belzebu, animal insolente por trás da porta.

No lado inverso do poema, copiado numa letra


aos garranchos, tinha um endereço: Rua tal.
Número tal. Olívia, que nunca imaginara ser traída
por uma mulher real, decidiu, batendo fortemente
os calcanhares, que iria atrás desse destinatário. E
foi. Tratava-se, no entanto, de um rancho
localizado num ponto ermo, aparentemente
perigoso. O mais estranho era a variedade de
espantalhos que havia ali, espalhados pela terra
batida e pregados em cruzes de carvalho, aos
retalhos, além de cobertas por barro seco. O portão
gradeado estava escancarado como se, apesar do
vácuo, pudesse existir alguma coisa a ser temida.
Ela precisava de, segundo sua consciência, uma
arma ou qualquer objeto que servisse como
proteção pessoal. Nada. Então, ao entrar no rancho
inabitado logo percebeu, quando inclinou os olhos
esclerosados, que todos os espantalhos tinham, na
altura do busto feito com capim, a inscrição a
seguir: Meu nome é Baptista. Evidentemente, ela se
assustou, pois sua silhueta, antes concentrada,
agora parecia ruborizada, prestes a entrar num
grande frenesi. Às vezes Olívia pensava em chorar
apenas como hábito. Talvez essa fosse uma mania
arraigada no teatro, já que ela era uma atriz sem
glórias ou galardões. De repente, uma vez que nada
mais poderia ocorrer, um estranho vulto surgiu
fulminantemente, quebrando os pensamentos da
mulher, e atirando seu boné da NBA, todo sujo,
pôs-se a movimentar suas muletas com maior
vontade. Era Baptista Dos Anjos. Havia uma
vivacidade nele, embora, através dos ferimentos
expostos no rosto quadrado, dava para notar que,
bem ou mal, algo tinha acontecido. Para fingir que
tudo estava normal, Baptista disse que logo voltaria
e, entrando numa despensa, desapareceu por um
breve momento. Olívia aproveitou para tirar a
jaqueta e o blusão com gorro que trajava. Fez
topless. Enquanto o suicida diário demorava, ela
tocava, com a pontinha dos dedos ressecados, os
mamilos intumescidos. Conhecer seu corpo era,
naquele momento, uma redenção esplendorosa. E,
tocando-se cada vez mais com vigor, em excitação
crescente, Olivinha foi surpreendida pelo barulho
da serra elétrica que, sob o controle de Baptista, ia
cortando ao meio todos os espantalhos, de modo
que assim, no rancho quase vazio, ele desfrutava,
enfim, da comemoração de mais um suicídio
concretizado. A fim de entender o que estava
acontecendo, e o porquê por trás disso, Olívia
Guerra, que já nem se preocupava com os seios
descobertos, ergueu-se subitamente da terra batida,
mas não antes de perguntar: Você não estava
morto? Dos Anjos explicou: Foi uma armação. Na
verdade, em tempos como este, o melhor é fingir-se
de morto. Sem respostas para tal argumento, a
noiva do assexuado começou a desabotoar a calça
de malha, exibindo, ao menos no que tangia à vista
do homem com muletas, uma calcinha transparente.
Amaram-se como virgens afoitos, desses que tocam
o invisível, acendem velas às potestades dos
segredos amorosos e entregam-se, sem reserva
alguma, aos desígnios dos toques frugais, meio
toscos; e ela apalpava o pedaço restante da perna
espatifada do sôfrego Baptista. Gemidos irradiavam
esses corpos que conjugavam em sintonia o verbo
do fervor eterno. De fato, eles eram a mesma coisa,
o mesmo vazio sem volta, a triste casa que
necessita de novos móveis. Qual dos dois sonhava
mais? Em todo caso, a única certeza era o calor dos
espíritos, pois, em momento algum, tentavam se
preocupar com o mundo exterior; tampouco, então,
ligavam para a futura reação de Boamorte. Sim, o
grande barato dessa conjugação era, na realidade, a
convicção que, entregues a ela, nada existia, nem
políticas, matadouros, ditaduras, tiroteios, posses
por terra, terrorismo, doenças, famílias segregadas,
questões raciais, salários irrisórios, pífias moradias,
inocentes em cárceres. Aliás, só reinava a carne
penetrando na paz adormecida, o sangue pulsando
em espasmos indomáveis. Poderiam, pois, morrer
agora. Afinal de contas, nos olhos apontados para
os espantalhos retalhados, Baptista obliterava o
suicídio de uma vez por todas, enquanto que
Olivinha, com a pele lânguida e os suspiros agudos,
somente abarcava o universo a cada posição que
inventavam. Uma vez que não tinham escrúpulos,
ou se importavam com ‘’moralidades’’, ambos
uniam-se como elementos químicos equivalentes.
Átomo contra átomo, torpor contra torpor. Assim,
quando terminaram após horas incontáveis, Dos
Anjos resolveu vestir a mulher que mudara sua
vida. Primeiro, e desprovido de habilidade, foi
colocando a calcinha transparente por entre as
pernas de Olívia; depois, ainda atrapalhado, ajustou
a calça de malha que, lindamente, ficava bem
apertada nas grossas coxas da moça. Por fim, agora
trabalhando melhor, ele pôs, sem dificuldade
alguma, o blusão e a jaqueta que cobriam os duros
seios. Em que veredas, no entanto, o noivo de
Olivinha havia se metido? O assexuado estava na já
comentada rede fibrosa, pensando no mistério
contido na bolsa da prostituta com Síndrome de
Down e tentando, em vão, abrir o livro que tanto
lhe torturava. Por que meu pai não aparece, Onde
está Olívia, Será que eu deveria trilhar o caminho
da morte feito por Carla, e transferido a mim por
meio de um esdrúxulo diário adquirido graças à
obstinação de uma jovem em trajes alabastrinos?
Essas inquietações não seriam respondidas tão
facilmente. Heitor, talvez ansiando amainar os
ânimos, abriu o livrão poderoso. Antes que
encerrasse o primeiro parágrafo, porém, aconteceu
o inevitável. Mais uma vez, entre a vergonha e o
precipício, ouvia o tilintar dos palavrões proferidos
pelas mulheres que odiavam sua postura assexuada:
Não é homem! Não é Nada! E, ainda assim, vocês
perguntarão: O que houve?
Heitor Boamorte antegozou.

Quem sair incólume desta leitura deve ter


problemas. Pisando nos musgos das ruas, Boamorte
foi atrás de seu mestre: Helder Montenegro. Fazia
um frio dos diabos, e os cidadãos, com vestes
largas, procuravam se proteger. De qualquer modo,
aquela já não era a estrada das cidreiras, dos
carinhos trocados por amantes insones ou, como
diziam os velhos sábios, o ponto do reencontro com
a vida. Os ventos de agora, infelizmente, eram de
morte, de sabores aziagos. Crianças choravam e
anciãos perdiam-se na contemplação dos relógios
que revelavam o começo do fim. Ora esfregando o
rosto com as costas da mão, ora olhando de soslaio
para a bela moça de roupa alabastrina que lhe
seguia, Heitor, inquieto e em disparada, e com uma
pressa avassaladora, ia pisoteando o calçamento
como se, o encosto atrás de si, que ainda o seguia,
não se tratasse da mocinha responsável pela entrega
do diário da morte de Carla. Dobrou na esquina, o
semblante baixo encarando o piso lodoso. Embora
a casa de Helder estivesse cada vez mais perto,
Boamorte se sentia extremamente nervoso, sendo
que, para sua sorte, a moçoila acabou desistindo da
perseguição. No lugarzinho onde estava, pertinho
de um quiosque repleto de putas, acendeu um
cigarro violento. Ainda mataria seu pulmão. Fora
isso, alguns curiosos estranhavam o modo como
Heitor se vestia: tênis All Star, blusa com colarinho
alto e uma boina prateada, com um x bordado no
centro. Na certa, ele nem se importava com
pormenores assim. Iria, antes de tudo, terminar o
cigarro, limpar os musgos nas solas dos sapatos e,
enfim, tocar a campainha do Mestre. Não via o
momento glorioso de, na companhia duma boa obra
literária, gozar como um verdadeiro namorado.
Qual seria a próxima surpresa? Bom, independente
dessa questão, o fato é que ele, após uma árdua
caminhada, indo de um lado para o outro do bairro,
tinha, e não me façam falar mais, chegado ao
pardieiro onde vivia Helder, que, como fator
diferenciado, só tinha a biblioteca fabulosa. Seja
como for, os motivos da visita, os quais Heitor
Boamorte relutava em aceitar, também eram
outros: pensava em contar a história de Carla, ou
melhor, a ideia que consistia em fazer o mesmo
itinerário feito por esta mulher que, certamente,
fora a única alma amada por Heitor. Que itinerário?
Trilhar os passos que a senhora Montero, então
ressabiada com a existência, acabou dando na
direção do crepúsculo. E tudo estava contido no
diário. Mas ao entrar no labirinto, isto é, na
portentosa biblioteca, Heitor, sempre perplexo, teve
a certeza: não serei ajudado. E, assim, viu-se
regressado ao início desta historieta onde, através
dos olhos fluorescentes de Olívia sabia que, apesar
do esforço, receberia um não como resposta.
Contudo, talvez desde sua mais tenra infância,
Helder nem se dava à educação de abrir a boca;
media o pupilo do topo da cabeça à planta dos pés,
e este permanecia imóvel, quase hipnotizado, sem
mexer braços ou pernas em nenhum momento. À
luz mortiça do ambiente, ainda paralisado
magistralmente, Heitor, já não aguentando o aroma
de tabaco ali preponderante, olhou para o mestre
impassível que, franzindo o cenho, apenas fixava,
com olhinhos dourados, o pupilo errante. Ficaram
assim durante aproximadamente cinco minutos, até
que Boamorte se mexeu involuntariamente, de
modo que seus finos braços caíram para frente. O
que você quer me dizer, principiou Dom Helder.
Nada demais, mentiu Heitor. Bem, então vamos ler
o Homem de muitos nomes, do romancista inglês
Graham Greene. Logo a figura do capitão excitou
o fraco discípulo; Helder, em voz alta, lia trechos
do poético Demian de Hesse. Quando gozaram,
imensamente satisfeitos, sobre o recente assoalho
do pavilhão, não notaram o detalhe de, aos poucos,
estarem virando pervertidos obcecados por leituras
‘’obscenas’’. Enquanto isso, e essa realidade era
dura, uma guerra não declarada tomava conta da
cidade. Roberto Burger, no meio do fogo cruzado,
quase fora atingido; se bem que era isso o que
queria. Mas voltando aos sujeitos da biblioteca, que
morriam na mão, só podemos salientar uma coisa:
Olívia não surgiria dessa vez, porque nesse mesmo
horário, sem puritanismo ou coisa semelhante, ela
dormia com Baptista ali, no rancho dos espantalhos
mortos, recebendo mordidas vorazes nos mamilos
pontiagudos. E, em erotismo máximo, seus
grasnidos de aguilhoamento, cada qual mais longo
que o outro, se bem que sensuais ao extremo,
pareciam clarear a noite turva. Vou te batizar
novamente, pois agora lhe considero como parte
integrante do clã dos ‘’Assexuados comedores de
livros’’, disse Dom Helder. Qual será meu nome,
replicou o pupilo. Eis a resposta: Lusco-fusco.
Fechando o exemplar de Greene, não antes de tirar
o diário escondido na calça, o assexuado devaneou
sobre os contratempos vividos. Será que um dia
chegarei a viver de verdade?

Passou a viver a vida de outra pessoa: Carla


Montero. E, quando passou a fazer tudo que estava
naquele diário, acabou ficando cada vez mais
estragado. Primeiro foi falar com Camilo, o
mendigo homossexual. Este fora a primeira pessoa
com que Carla conversara no dia de sua morte.
Obviamente, ele estava no local de sempre: a rua
perto das madressilvas. Em compensação, o
mendigo parecia sozinho, como que esperando
alguém. Depois, frente a frente com Camilo,
Boamorte perguntou furiosamente: O que Carla
queria com você? O interrogado fingiu não ouvir,
para em seguida apontar para um menininho com
quepe esverdeado que chorava do outro lado da
calçada. Heitor buscava compreender sua solidão.
Era solitário porque seus segredos o matavam. A
desolação vinha na forma de nuvens macabras,
nãos colecionados, derrotas acumuladas e tristezas
alojadas nos confins do seu ser nada lírico. Onde
moraria a salvação? Ela parecia longe, em outras
paragens, e lhe cobria a face com o desgosto das
horas diluídas. O homossexual pediu fogo;
Boamorte, por sua vez, fungou o nariz e, cerrando
os punhos, voltou a indagar sobre o que Carla
queria com Camilo. O pedinte contemplava a lua
que já ia alta, os taxis que paravam nos locais mais
profanos. Mas disse: Ela falou que me daria uma
casa. Foi isso. No entanto, com a testa franzida,
Boamorte não acreditou naquilo. Talvez Carla,
assim como ele, também fosse perseguida por um
Arcanjo depressivo. De Camilo, todavia, não
arrancaria nada, tampouco alguma coisa a respeito
da estranha morte que tentava decifrar. Às vezes
um frio percorria sua espinha, deixando-o
atemorizado com o futuro. A solução seria ameaçar
o pedinte, e, agarrando-o pelo colarinho, enchê-lo
de bofetadas poderosas. Soube que Carla tinha um
segredo que, no caso, apenas Heleno conhecia.
Ainda assim, Heitor não entendia o fato de, já que
não possuía residência, por que Camilo negou a
proposta feita pela senhora Montero? Sobre isso, e
coisas mais comprometedoras, o mendigo resolveu
ficar quieto. Atirando pedras nas vãs lotadas que
passava por ali, ele, o rostinho lívido virado para
Boamorte, tentava, com palavras compassadas,
explicar que Carla, quando viva, nos tempos onde
sua beleza era angelical, era o que todos chamavam
de a Assexuada. Como assim? Será que o
casamento dela com o mesquinho Heleno soares
sempre fora uma fachada? Agora, contudo, Heitor
sentia-se mal. Olhou para os faróis apagados, para
os beiços rasgados de Camilo. Ora, a existência
havia lhe abandonado. Era o búfalo derrotado. A
única coisa que lhe agradou, se assim pudermos
considerar, foi sua aceitação como membro
essencial do clã dos comedores de livros. Como a
entrevista com o pedinte havia sido um fiasco,
Heitor Boamorte achou melhor ir embora, mesmo
com o próximo passo do diário que consistia,
acreditem se quiser, numa dormida ao lado de
Camilo. O gay, que notara a intenção do assexuado,
disse jovialmente: Durma comigo. Contarei tudo
sobre Carla. Cobertos por um papelão imundo, eles
não conseguiram repousar. Sobre a esteira que
estavam, aos pedaços, notaram uma pequena bolota
de luz tépida, quase surreal. Não era nada, pois
nessa cidade onde políticos compram votos,
pessoas são produtos e almas estão aprisionadas em
jarros, luzes não existem, mas vazios por
excelência. Os dois insones contavam carneirinhos
e elefantes. Dormir parecia distante. Fizeram, pois,
cócegas um no outro. Na manhã seguinte, Heitor
Boamorte iria sonhar com o mesmo mundo onde,
esperando pelas respostas do suicida Baptista Dos
anjos, acabaria ficando como sempre: Só. Ao
menos deveria parar de fumar. Dali a um mês,
aproximadamente, seria um homem casado. Ter
filhos era ser imortal. Mas o ideal almejado por ele,
e nós já sabemos, consistia no esquecimento, no pó
cremado e sem cores.

Ao voltar para o apartamento, agora decorado


por tonalidades cinzentas, Boamorte encontrou
Olívia na rede de fibra, resoluta, segurando o livro
secreto, aquele que causava ao assexuado a
vergonha do antegozo. A mulher estava trajando
uma camisola vermelha e, em volta do pescoço,
havia um cordão prateado, com complementos
magenta. Sobre os cabelos alisados repousava uma
coroa infantil, dessas das princesinhas dos contos
de fada; nas orelhas eróticas, contudo, pendiam
brincos perolados em forma de flores. O assexuado
não entendia absolutamente nada, mas, ao contrário
do que esperava, Olívia sequer manifestou interesse
por sexo, pois, assobiando languidamente, acabou
chamando cinco mulheres com fantasias
provocantes: enfermeira, coelhinha, delegada,
mulher-gato e mulher-maravilha. A coelhinha, que
andava rebolando os quadris, logo puxou o rapaz
pelo cangote, levando-o para um quartinho
afastado. Claramente, as outras moças
acompanharam o embalo. Chovia pesadamente e,
do outro lado do município, sentado no banquinho
cimentado do ponto de ônibus, o pai do assexuado
o aguardava. Era sábado. Apesar de estar trancado,
Heitor ainda gritou para Olívia: Que porra é essa?
Ela sintetizou: Contratei estas profissionais. Elas
darão um trato em você. Enquanto isso, ainda
imerso na penumbra, o pai, com a fisionomia
abalada, ia principiando uma funesta sessão de
choros descomunais; no céu, quase morto, os
barulhos dos helicópteros se mesclavam ao pulsar
do seu peito alquebrado. Onde está meu filho,
refletiu, as lágrimas e as gotas da chuva
encharcando a cara enrugada. Aqui e ali passavam
bondes lotados, casais discutindo e viaturas em alta
velocidade. Tudo isso, então, trazia à tona
lembranças do passado onde, na beira de uma lagoa
extinta, ele corria atrás do filhinho que, por mais
que tentasse se esconder, sempre era surpreendido
por conta da cabeleira cacheada, castanha demais
para o gosto de qualquer indivíduo. Também
recordava os momentos que nunca ocorreram: o
filho formado, o filho empregado ou, ainda mais
relevante, o filho feliz. Agora eram apenas sombras
espessas, sussurros esganiçados que lhe
governavam os passos. Forçando a bengala âmbar,
talvez querendo revelar alguma independência,
Heitor Boamorte I foi, na companhia de si mesmo,
à procura do cinema mais próximo. No caminho,
caso encontrasse um estabelecimento apropriado,
tomaria leite quente com biscoitinhos da sorte.
Assim, ao atravessar a alameda pela passarela, até
pensara em se jogar por entre os carros. Mas apenas
cortejara algumas jovens senhoras em shorts
colados e decotes exuberantes.

A enfermeira mostrou a barriguinha esquelética.


Dançava como uma ninfa do Olimpo, sem dúvida
buscando elevar a excitação do assexuado. Nada.
Depois foi a vez da mulher-gato. Em primeiro
lugar, revelando praticidade, ela arrancou a
máscara (tinha um rostinho delgado) e, sibilando
acintosamente, pôs-se a empinar às ancas contra o
nariz adunco de Heitor. Talvez ele acabasse
cedendo. Até porque, diga-se de passagem, a
mulher-felina demonstrava uma tristeza descarada,
e isso o excitava muito, tendo em vista que sempre
fora a famosa vela apagada, o sujeitinho acuado por
causa das batidas dos ferros imaginários e das
aparições do Anjo sorumbático. De súbito, como
jamais esperaria de si mesmo, Boamorte apertou a
coxa direita da rapariga vestida feito gata para,
puxando-a veementemente na direção dos lábios
rachados, mordê-la aos poucos, quase arrancando
pedaços. Mas a fragrância ocre dos suores em
união lhe despertou o ‘’espírito normal’’, ou seja,
seu verdadeiro eu-lírico: a forma assexuada. E,
desse jeito, já não sentiu prazer na contemplação
daquelas raparigas fantasiadas. Nesse mesmo
instante a lâmpada fluorescente despencou do teto.
Mau presságio. Até poderíamos bloquear esta parte
do enredo, pois o senhor Boamorte I fora
espancado por uma facção local. Haviam lhe
confundido com um traficante renomado de uma
gangue rival. Em compensação, antes dos olhinhos
reptilianos cerrarem, o pai de Heitor teve um
conforto: o filme em cartaz era ruim. Mas por ser a
brutalidade algo comum, nem perderemos tempo.
Falaremos, porém, sobre a mulher-maravilha que,
lançando o sutiã na pálida testa de Heitor,
balançava os peitinhos minúsculos, quase secos. E,
nesses movimentos rápidos, ela ia dançando
perante a silhueta de Boamorte. A danada tinha
madeixas crespas, pela negra e olhos com lentes de
contanto verdes. Do sorrisinho meio forçado da
mulher-maravilha, o assexuado sugava uma espécie
de esperança contida. O que deveria fazer? Olhou
para a delegada. Esta, que usava enchimento no
busto e bastão na mão, parecia não se entrosar, de
modo que sua postura era austera. Furiosa,
começou a quebrar os vasinhos bojudos, os retratos
do quarto, a redoma de vidro que custara uma
fortuna e o quadro cubista pintado por um pintor
desconhecido. Dos seus olhos, no entanto,
brotavam lágrimas abismais. A fim de evitarem
uma desgraça maior, as outras raparigas, em
perfeita sintonia, tentaram agarrar a moça
desesperada pela cintura, sendo que,
indubitavelmente, aquilo não poderia terminar bem.
Aliás, Boamorte pensava nas multifaces do sexo,
na mescla dos corpos em busca da mesma
identidade. Neste romance, e esse comentário
parece desnecessário, o sexo perdeu seu papel
sagrado ou sua classificação como tabu. Afinal de
contas, sob uma visão crítica, dá pra notar que, bem
ou mal, a sexualidade aqui, nessa história abitolada,
mostra-se insignificante, levando em conta a
escolha sexual por parte do nosso protagonista.
Muito embora ele quisesse ser pai, entre outros
mistérios, ainda não havia encontrado uma maneira
de se reproduzir longe da cópula. Talvez adotasse
uma criança. Mas era irresponsável. Então, ao
vislumbrar o retorno da normalidade, já que a
delegada estava calminha, Boamorte, com um
pirulito na boca, ordenou que o aposento fosse,
enfim, destrancado. A coelhinha abriu a porta. O
homem empurrou Olívia da rede, pegou o livro
secreto e entrou no banheiro. No vaso sanitário,
lutando contra a prisão de ventre, o assexuado lia o
romance do antegozo. Dessa vez, todavia, até
terminou a primeira página, uma vez que isso
parecia impossível. Enquanto dava à descarga,
tonto e chateado, as raparigas fantasiadas batiam na
portinhola do lavatório. Ele sequer se importava.
Estava, pois, lendo a obra que tanto lhe penetrava o
bojo. Nada mataria sua concentração, pois a leitura
corria plena, terna como um afago do destino. Pois
bem, o corpo suava, a pupila dilatava, os nervos
fervilhavam. Com a cabeça baixa, e fechando os
olhos castanhos, puxou a navalha que descansava
ali, na fétida pia. Cortaria o pulso, acabaria com
tudo. Que nada! Embora viver fosse difícil, ainda
precisava decifrar os enigmas por trás da morte de
Carla. Agora quase gozara. Gozou. Talvez. Só
sabia que o primeiro capítulo fora concluído, e
comemorou internamente essa façanha singela.
Extraído do diário de Carla: ‘’Continuei minha
trilha sem saber o que fazer. E fui parar debaixo do
viaduto. Lá, preparando refeições numa lareira, o
triste casal parecia se perguntar o porquê de
viverem ali, sob os automóveis que lhes
despertavam o sono. Tímida, implorei para almoçar
com eles. Sim, essa atitude não fora humana, mas
compulsiva. Prendendo o cabelo quebradiço num
coque marfim, ainda tive a desonra de atormentá-
los: O que aconteceu? Por que vivem aqui? Talvez
minhas indagações fossem pueris, mesmo assim
não havia outros métodos para iniciar um diálogo
amistoso, a não ser que me despisse subitamente,
oferecendo meu corpo. Mas, enfim, tratei de
maquiar o rosto da mulherzinha que, apesar da
aparência surrada, não passava dos trinta anos.
Sendo assim, passei laquê, filtro solar, sombra nos
olhos miúdos, meio mortos. A cada gesto nobre que
fazia, então, sentia o amor se ramificar em mim, e
assim chorava por dentro como um besta em
cativeiro. Por sorte, também trazia, na mochila de
escoteira, uma tesoura com pontas grossas, mas
bastante agradável para cortar cabelos. Bom, nem
sei expressar a emoção sentida ao ir cortando o
estilo Black-power do homem simpático e
maltrapilho. Ao nosso lado, soltando arrulhos
incessantes, uma serpente amarelada dançava por
entre o areal nauseabundo. E, quando a cobra se
aproximou, com sua linguinha à mostra, o
homenzinho chamado Arthur pegou a tesoura e,
num movimento insano, atacou o réptil, que morreu
na hora. Mais tarde eles iriam à missa pedir
esmolas, depois de tomarem banho, nus em pêlo, e
em exibição explícita, com os baldes d’água
cristalina que, todos os domingos, a mulherzinha
agora maquiada conseguia graças ao pastor
Espinosa, cujos ensinamentos religiosos eram
considerados hipócritas. Seja como for, acabaram
rechaçados da missa. Eu, dando meu jeito, roubei a
oferta da igreja. Os moradores do viaduto
compraram pão e suco pronto. Nessa mesma noite,
onde meu corpo era lassidão, terminaria meu
casamento com Heleno, sobretudo porque nossos
segredos já haviam perdido a força. Em
contrapartida, não cumpri o prometido,
continuando a acreditar neste romance que, entre
brumas e halos sombrios, apenas capengava cada
vez mais. O que fiz? Beijei-lhe a boca murcha,
esmurrei-lhe a bochecha e, com a expressão
cerrada, dormi na companhia do mendigo
homossexual. Eu sempre voltava aos braços de
Camilo, pois, em meus devaneios constantes, ele
era tingido por um azul-anil e, nascido do sêmen
dos seres mitológicos, também carregava um
báculo na mão destra. Ou seja: eu sabia do
preconceito derramado sobre ele. Por um instante,
resolvi deixá-lo para trás, porque Camilo vivia nas
ruas por vontade própria. Com a aurora da
madrugada, e impulsionado pelo gorjear dos
pardais, somente agarrei o mendicante, que agora
dormia num retalho de madeira. Embora os
estrondos de possíveis tiroteios por essas bandas
fossem notórios, eu não titubeei. Por fim, sonhara
com o báculo reluzente. ’’
Heitor terminara este trecho. Iria, pois, procurar
o Mestre, levando em consideração que apenas ele
poderia lhe auxiliar. Uma vez que não queria
atrapalhar Dom Helder, Boamorte ligou para
Margot, e pediu quase como súplica, para ela entrar
em contato com o Esculápio. Helder marcou o
encontro perto da Fonte de águas fulgentes, um dos
pontos turísticos mais visitados dessa cidadezinha
impronunciável. No local marcado, o assexuado
apareceu vestindo um macacão azulado,
extremamente bizarro; dom Helder, por outro lado,
usava terno e gravata borboleta, além de uma boina
de lã, talvez italiana. Com charuto cubano acesso e
uma taça de vermute na mão enluvada, o mestre
escutou, se bem que displicentemente, as
explanações do seu pupilo. Não disse nada, nem
pilheriou ou aconselhou, de modo que, apontando
para o Museu da Absolvição da Escravatura,
começou a discursar sobre as disparidades do
passado, ora bufando como entediado, ora
limpando algumas caspas que caíam no terninho
bem-passado. Depois vieram os discursos em nome
da liberdade, da democracia e, por fim, de uma
nova filosofia de vida. Cada palavra do senhor
Helder era um tiro. A sociedade, em palavras
proferidas por ele, era selvagem e mesquinha, pois
o homem era mau por natureza. Heitor sabia que
aquelas eram ideias seculares pregadas por algum
célebre filósofo, mas preferiu emudecer, uma vez
que quase pisoteadas por suas botas militares,
formigas trabalhavam arduamente, cada qual em
sua função. A ventania aumentava, quase
esvoaçando os saiotes das damas intangíveis. O
mestre, que abraçava um livro com carinho,
ordenou, ainda que suavemente, para Boamorte
comprar a mais nova edição de A tulipa negra, do
francês Alexandre Dumas. Entrando na livraria
mais próxima, logo o discípulo adquiriu o tomo.
Suspense. Sons de violinos ornavam a cena. Helder
esticou os braços, devagarzinho, dando adeus à
fonte pura, enquanto que Heitor, nesse
acontecimento aparentemente teatral, acenava de
maneira paulatina, os dedinhos sendo levantados
com graciosidade. Então, quando a multidão
heterogênea os separou, o assexuado ainda ouviu o
brado característico do nosso dom Helder: Leia
tudo! Amanhã você conhecerá os outros membros
da ordem dos comedores de livros. Redivivo,
Heitor correu como um fugitivo, embora, nessa
ocasião, não procurasse a extinção do espírito, mas
a renovação reverberante que lhe acometia os
sentimentos. Diante da varanda do apartamento de
Olívia Guerra, aparentando estupor, ele pôs o
tapete persa cautelosamente, estirando-o no piso
cerâmico. Até parecia meditação; na verdade, havia
ali apenas duas existências: ele e A tulipa negra.
Dumas lhe transportou para outra dimensão:
orgasmo múltiplo. E, assim, em intervalos curtos, o
assexuado foi perdendo os sentidos
momentaneamente. Primeiro a visão escureceu, não
antes de ver os borrões das vigas e dos móveis
malcheirosos do aposento; depois, numa velocidade
incalculável, teve de suportar a surdez. Já não ouvia
os latidos dos cães vizinhos ou a brisa rangendo a
janela. Mas não chegamos ao fim, pois sua
derradeira frase foi: Terminei a página 73. E sua
vida... em qual lauda acabaria? O livro estava em
cima do tapete, aberto numa folha com poucos
parágrafos, e parecia, caso tivesse força própria,
zombar da seguinte perda por parte de Heitor: o
tato. Esses foram os três minutos mais logos que
vivera. Ninguém poderia lhe salvar, exceto ele
mesmo. Felizmente, os sentidos voltaram, bem
como lhe tornaram um tantinho mais calmo. À
noite contaria tudo para Olívia, pois ela fingiria
escutar. Sua noiva, então, é que lhe diria algo
importante, uma trágica notícia sobre seu pai, o
severo e incomparável Heitor Boamorte I. Como
era tamanha a dor, os anjos agonizantes que
perseguiam o assexuado. Poderia fugir? Esquecer a
brutalidade sofrida e começar novamente? Pensou
em procurar Roberto, para bater o pênalti
derradeiro. Dessa vez, segundo lhe alertava o
âmago, marcaria o gol, o símbolo capaz de lhe
expulsar das trevas. E, controlando a respiração,
deixou Orpheu adormecê-lo; então sonhou com
Baptista, que enveredava absorto por matagais
inexoráveis, trazendo nos olhos a obscuridade das
guerras sem sentido.

E Heitor conversou com Dos Anjos: Sou o


tempo derretido, um relógio sem ponteiro. Quando
alguém me estenderá a mão? É como se a morte
me acompanhasse, sedenta, prestes a cerrar meus
olhos tristes. É certo que caminhei por estradas
íngremes, caí perto dos fracos para dizer que sou
humilde, e levantei diante dos ímpios em busca do
reconhecimento. Mas tudo que senti, ao menos até
agora, foi o gosto irrisório dos morangos
cristalizados, a certeza de que, como dizia o poeta,
não amei nem fui coroado. Por que romperam os
cursos da paixão antes emanados em meu peito?
No decorrer destes tempos violentos, não me
lembro de ter recebido o toque da paz, ou mesmo
um abraço sincero. Bem, é verdade que vi flâmulas
hasteadas clamando mudança, crianças em volta
de uma ciranda revestida em esperança. No
entanto, em termos poéticos, tudo que me restou foi
um tango que, como sempre, só termina quando os
amores são rechaçados, entregues à forca já
preparada. Pois poucos são os poetas, e muitas às
inquietações. Minha alma talvez nem queira
repouso, uma vez que a dor já virou rotina. Será
que adiantaria escalar colinas e enfrentar marés
cheias para continuar do mesmo jeito? Embora
ainda crepite o fogo da liberdade em mim, o
inevitável parece ser cair na solidão, sendo a
carne fria e mórbida destinada aos abutres. Por
um instante, até encarei o espelho múltiplo,
enfrentando meu olhar esmaecido. O que
acontecerá às gerações vindouras? E, no meu
caso, serei invisível para todo o sempre? Quanto
ao amor e seus desígnios, eles pouco adiantaram,
pois foram destruindo os muros intransponíveis, as
correias inquebrantáveis, os egoísmos enraizados
no cerne das naturezas humanas. Mas isso não
ocorreu comigo, de modo que me entreguei à
decomposição evidente. Ah, como gostaria de
serpear pelo mundo! Os olhos, porém, são os
mesmos; os lábios, quase castos, ainda anseiam
pelo beijo magnânimo, pela redenção que deveria
surgir no galopar de feras antigas. Apesar desses
relatos, meu caro Baptista, o grande desatino é a
convicção que, mesmo se tivesse uma dezena de
vidas, provavelmente desperdiçaria todas porque,
em vez de aproveitarmos o tempo e suas faces, nós,
os homens solitários, insistem em sepultá-lo aqui,
onde os sacrificados não têm continuidade. Até
quando permanecerei assim, admirando o
naufrágio da minha essência? Minha juventude foi
roubada quando estava no auge, e essas coisas
não se fazem. De todo modo, esperarei que
depositem sobre meu túmulo um buquê de miosótis,
com a inscrição: ‘’ninguém se lembra dele, salvo
estas flores e os seres imaginários’’. (lágrimas).
Por quê? Por que perdi o orvalho da noite, o
gostinho salino da boquinha de Carla? Sim, cansei
de ser esse grão, esses restos fossilizados. Ufa! Em
compensação, portanto, posso rir da mediocridade
humana, dos que não me amaram pela, os sábios
compreendem, minha soberba contradição. Para
encerrar, e não me pergunte o sentido disso,
falarei em nome das minhas frágeis e âmbares
membranas: Eu sou todos os poetas; todos os
poemas.

Baptista, em posição fetal, afinal brincava com a


morbidez do outro, sentenciou:

Liberte-se.

O assexuado acordou; o sonho ainda lhe ferindo.


Despreguiçando-se lentamente, acabou por se
lembrar da penalidade máxima que bateria. Com os
dentes escovados, desceu pela escadinha de tijolos,
abriu o portão metálico. Pouco depois, numa
caminhada agradável, já estava em frente à mansão
do Burger, seu antigo lar. E os pés preparados, em
posição de combate, tocariam na bola. No início,
normalmente assustado, procurou fixar nas traves
bem pintadas de branco e, chutando com
brutalidade, viu a bola parar nas mãos do goleiro.
Roberto humilhava o perdedor, saboreando os
louros da vitória, principalmente porque se tratava
de Boamorte, o idiota que lhe abandonara ali, na
mansarda repleta por Minotauros da sua cabeça.
Tenho vontade de sumir, começou Heitor, agora em
prantos profundos. Burger, lívido e constrangido,
propôs que eles, acompanhados por um grupo de
mulheres contratadas, além de esbeltas, fossem
tomar banho numa cascata que fazia parte do
recente complexo de diversão criado por ele. O
assexuado, por outro lado, não aceitou a proposta,
ficando calado feito um estrategista corrupto. Na
verdade olhava o belo jasmim que ‘’enfeitava’’ o
jardim harmonioso. Lá fora, imersos em bares e
botecos, os policiais não trabalhavam. Era triste a
cara da cidade. Mesmo assim, Heitor saiu por aí,
magoado, e comprou O estrangeiro, de Albert
Camus. Gozou durante horas a fio, de modo que
parecia ter entrado em coma. Bom, o começo do O
estrangeiro era algo mágico, pois, num transe
apocalíptico, aquilo ia lhe corroendo o fígado de
uma forma positiva. Suando aos montes, ainda
conseguiu se reerguer, embora os membros
superiores tremessem num ímpeto incontrolável.
Cada grunhido emitido, todavia, lhe levava para os
lugares mais recônditos do globo. Estava
momentaneamente satisfeito por não precisar do
‘’sexo real’’, e a fim de se rebelar sem razão,
deixou seu ex-quartinho (ele estava trancado graças
à permissão do Roberto) para, correndo por entre as
cercas do casarão, bradar em alto e bom som que
ele era, sim, um sujeito maior que a sexualidade,
maior que o tempo aziago e que, apesar das
contradições, iria, talvez um dia, ser reconhecido
pela obstinação de ter vivido, mesmo em constantes
ataques, distante dos prazeres humanos, da conexão
das carnes similares ou opostas. Como válvula de
escape, por exemplo, tentaria descobrir os mistérios
por trás da morte de Carla, da bolsinha da prostituta
com Síndrome de Down e a verdade capaz de fazê-
lo gozar por causa das leituras sublimes,
especialmente escritas para ele. Ao regressar para o
apartamento cinzento, logo encontrou Olívia na
rede, dessa vez sendo massageada por Baptista, que
em posição ereta, levantava o queixo quadrado,
meticulosamente barbeado. Também segurava uma
pistola calibre 38. E, ameaçando Boamorte, disse
que deveriam ter uma conversa franca onde, como
ponto marcado, se bem que extremamente
perigoso, teriam a avenida abarrotada por veículos,
a mesma do passado, ou seja, o amargo local onde,
atingido por um fusca moderno, Heitor fraturara
algumas costelas. Assim, um de costas para o
outro, eles começaram a dialogar no cantinho
proposto por Baptista Dos Anjos. Os carros
passavam pertinho, quase causando um acidente
fatal. O assexuado não conseguia compreender o
fato do suicida diário não ter morrido, pois pensava
que ele tinha se suicidado. O município parecia
dormir, já que na madrugada dissonante, envolta
em névoas depressivas, somente havia duas
pessoas, sendo que, para explicar, os motoristas dos
automóveis nem contavam, levando em conta que
eram apenas pessoas em movimento, não
violentadas pela inércia da existência sem triunfo.
Passaram a falar sobre tristezas. Baptista foi o
primeiro a filosofar:

Veja bem, ultimamente venho sonhando com


cedros. Ao redor deles, de abraços escancarados,
está Olívia. Ela me ajudou, porque não cometo
mais suicídios diários. Mas o que é a tristeza?
Senão uma rocha inquebrantável? Sabe, às vezes
procuro esquecer que passei a vida à toa. Você,
por exemplo, já andou de trem ou avião? Eu sinto
que estou enlouquecendo, mas são ossos do ofício.
Hoje, no entanto, pretendo me dedicar ao amor
que reverbera, magicamente se ramificando por
todos os flancos. No mais, não quero pensar em
nada, a não ser no que tenho. Foram, e você sabe
disso, muitas coisas perdidas, furtadas. Até porque
eu morri durante vários dias, para enfim
ressuscitar agora. Se os carros nos atingirem, isso
é problema seu. Olívia está me esperando. Vocês
desistirão do casamento. Aliás, chegou seu
momento. Fale o que quiser. Certamente sua
apatia é pior que meus desvarios. Primeiro fale da
paixão, depois tente não ser atropelado.

A madrugada era recheada por sombras atrozes.


Os leitores até poderiam abandonar a leitura, pois
pétalas estavam morrendo, os protagonistas
pareciam sufocados por um travesseiro de veludo.
Frascos se espatifavam, sinais drásticos revelavam
os gritos abafados: vela apagada, búfalo derrotado,
ampulheta desfigurada. Algumas janelas
começavam a ser abertas, e o povo, com os dentes
tremendo, observava os fulanos no centro da
alameda, talvez esperando o afago do deus da
morte. Ninguém sequer pensou em ajudar. Os
guardas, também curiosos, iam assistindo o
episódio cinematográfico: dois homens sentados na
rua, roçando suas costas ossudas e filosofando
sobre os desgastes do existir. Alguns mexeriqueiros
chegaram a dizer: Eles querem fama. Mas essa não
era a realidade. O ópio deles era o esquecimento, os
desfiladeiros etéreos que surgiriam em outro limbo.
Boamorte tirou uma caixinha de chocolates do
bolsinho da blusa escarlate. Então dividiu os
bombons com Baptista, embora o ressentimento
fosse grande. Em seguida, ao ser arranhado por um
Fiat aos pedaços, logrou falar alguma coisa. Cinco
minutos depois, e com o texto já na ponta da
língua, soltou o verbo:
Ainda bem que não estou vendo teus olhos.
Afinal, por bem ou por mal, eu continuo tendo uma
réstia de esperança. Os tempos, atualmente, são
brutais, infectos demais. É como se, mesmo
enclausurados dos olhares alheios, as pessoas
estejam presas em si mesmas. Não, nem quero
entender essas óperas mortas, esse corpo sem
opulência que tenho de carregar com flagelo. Se
você, por acaso, realmente amar a Olívia, e
acredito nisso por causa da sua respiração
acelerada, não precisa me ameaçar ou coisa
semelhante, pois ela é toda sua. Mas o que você
acha do universo que nos ofereceram? No meu
caso, se bem que nem deveria contar, eu há muito
deixei de dançar ao ritmo dos passarinhos e das
carroças com garrafões de água. Meus dias, enfim,
podem ser resumidos aos gozos que sinto quando
leio. Amanhã, se estiver vivo, lerei um conto do
mexicano Juan Rulfo, intitulado A terra que nos
deram. Talvez leia Borges depois, mas não tenho
certeza. Só sei que nossa conversa recende a
sentimentos longínquos, como os belos dias onde,
balançando numa redinha com meu avô, o
velhinho Salazar Boamorte, ele sempre tagarelava
e oferecia, com os olhos cintilando, um pão
francês; o recheio era feijão preto. Comíamos
durante horas, não antes de agradecermos ao
santo dos cavalos, creio que uma invenção dele, já
que nunca ouvira falar sobre isso. Para mim, é
bem verdade, toda essa cidade é um desenho. Nada
é real, nem mesmo nossas ideias vãs e traiçoeiras.
Por isso, ao olhar nossa região de perto, tudo é
como uma espécie de líquido pastoso,
tragicamente derramado do recipiente responsável
pelo fluxo perfeito. E velas vão derretendo, suores
vão se dissipando. Chegamos até aqui e somos
mais monstruosos que nossos antepassados. Cadê
meu pão com feijão preto? Onde estarão os cedros
que você sonhou? Aqui, nesse marasmo, posso
dizer que sinto um calombo em sua coluna, talvez a
marca de uma bala de festim. Nossa, terminarei
com os versos criados pelos sinos dessa catedral à
nossa frente: ... (os leitores, homens ou mulheres,
assexuados ou assexuadas, terão de imaginar o que
foi dito).

Enquanto Heitor e Baptista cometiam suas


loucuras, Alana, a garota de programa, andava no
mesmo local onde, em tempos imemoriais, ela e S.
se encontravam. Antes, porém, esta praça era mais
movimentada: meninos soltavam pipas berrantes,
pessoas passeavam com seus cachorros variados.
Agora seus olhos só viam crisântemos mortos,
folhas rasgadas, o resfolegar imponente de um
tempo aprisionado. Como seria bom brincar de
poetisa com S.! Mas o passado é utopia, pois, certa
vez, quando S. lhe recitava versinhos sobre castelos
mágicos, Alana realmente se via ali, perto da porta
com aldrava de cobre, e sendo recepcionada pelo
bufão da corte. O presente, contudo, era mordaz.
Ela, pois, sangrava como açude. Nessa manhã, para
desgosto máximo, voltara a se prostituir em grande
escala. Os clientes tentavam lhe abusar com
fetiches ridículos. O fato é que, por duas vezes, se
apaixonara pelo mesmo cliente; na primeira vez,
depois de apalpadelas mornas, ela fez sexo oral;
chupou como se aquilo pudesse salvá-la do
precipício onde estava. Mas a literatura latino-
americana não é apenas sexo, embora esse espectro
nos perturbe imensamente. Já na segunda vez, o
cliente lhe ensinou a apreciar música erudita,
sobretudo Wagner. Ela não gostou, de modo que,
por conta disso, passou a ouvir este tipo de música
até o fim de seus dias. Eles também, por
curiosidade, olhavam os transeuntes pela janela do
motel, apontando os defeitos de cada um. Em todo
caso, o severo S. acabava voltando. Embora ela
negasse veementemente, ele estava nos anúncios
dos jornais, nas odes apaixonadas, nas estradas com
pedras diamantinas, ou até mesmo nos pesadelos
recentes. Na verdade, a alegria por ter amado S.
resumia-se ao fato de, apesar do interesse tácito, o
rapaz nunca ter perguntado, uma oportunidadezinha
sequer, o conteúdo misterioso de sua bolsa. Com
efeito, então, logo aprenderam a amar. Faziam
amor no sofá-cama, no tapetinho da sala de estar e
no porão assustador cheio de cabides parecidos
com soldados ditatoriais, desses que matam feito
máquinas. E, no porão, praticavam danças
caribenhas, beijos na boca, dicas para terminar um
relacionamento e piadas sujas. Além disso, como
mandava o figurino, também recitavam poesias
concebidas no momento, e cada vez mais se viam
obrigados a praticar esta arte. Alana, vívida como
magnólia branca, começava: Tua pele é o espelho
duplo que adentro, a chave capaz de me desvendar
por inteira, o fogo-fátuo onipresente em minha
forma. Ora, meu lábio inferior freme diante da
amplitude dos seus gestos, meio mágicos, repletos
de torpor excitante. Eu te quero porque me nega
por ironia; eu não te quero, pois assim a dor
aumenta, alavancando o amor que desaba
sentinelas ao ataque. Profundos são teus olhos
dadaístas, porque, através da luz faminta provinda
deles, sou esfera em transição. É hora de chorar
pelos corpos que não se encontraram. Quer saber?
De nada valeria o porvir banhado em glórias se,
por acaso, estivesse sem os peremptórios abraços
do meu amado. S. Chorou. Depois veio a poesia:
Você sempre esteve em mim. Para onde eu
correria? O ulular que me afligia era o clamor da
busca por teu complemento preciso. Antes disso,
no entanto, tive de ser minha própria sarjeta, o
cavalheiro curvado e cego pelos anos coléricos.
Esta cidade, por exemplo, era um reino onde a
população, em constante felicidade, podia se
reunir todos os dias, e verdadeiramente sem medo.
Mas eu estava falando do poder do teu corpinho
que é cachoeira, caixa de Pandora, sutil caminho
que desemboca num prado de quimeras. Em suma:
tua lâmina resplandecente cortou o velcro, os
eflúvios amargos responsáveis por minha conduta
solitária. Hoje já não sou vereda rebuscada de
morte, mas sonho outonal carregado por seus
braços. Sim, S. e Alana trocavam correspondências
de amor frequentemente, apesar das críticas
contemporâneas: ‘’Ninguém faz isso, não mais’’.
De qualquer modo, retomando o instante atual, a
prostituta com Síndrome de Down arquivou suas
memórias, e gotículas de suor enregelado escorriam
pela testa compacta. De repente, mesmo quando ela
entraria num pub qualquer, uma moto avermelhada
parou no acostamento, e saindo dela, com capacete
na mão e olhar fixo, um jovem de cabelos crespos,
narizinho rosado e pele bronzeada, então brilhante,
sorriu. Era o cliente especial, o único conhecedor
dos segredos da bolsa.

Chegou o momento esperado: o papo entre autor


e leitor. Muito embora isso não tenha nada a ver,
nunca poderemos considerar maléfica uma boa
conversinha. Pois bem! Se você ler ‘’O assexuado’’
todo, de cabo a rabo, da vegetação rasteira ao cume
da montanha, a culpa será sua; talvez seja minha
mesmo. Minha mãe disse que eu deveria publicar
alguma obra, pois escrevo demasiadamente, e ela
estava certíssima; meu pai, pelo contrário,
esbravejou: você deveria ter prestado concurso
para a Receita Federal; meus irmãos, na medida
do possível, até me apoiaram. Então, caso o leitor
pesquise minha biografia, talvez acabe se
decepcionando, uma vez que estou começando
agora, ou melhor, engatinhando nesse meio
literário. Esse romance pode não ser publicado,
mas, se por pura sorte ele estiver em suas mãos, por
favor, aproveite-o. Não, não me incomodo se vocês
moram em casas de taipa ou alvenaria, porque tudo
que quero é agradá-los. Mandem cartas pra mim.
Críticas e sugestões serão bem-vindas. Querem
algo maior? À luz bruxuleante foi que escrevi este
livrinho. Em meu pântano, onde os desesperos
foram entulhados, passei horas digitando este texto,
se bem que contente por se tratar da minha
contribuição para este tempo ruidoso. Por vocês, na
verdade, até me inspirei em coisas tolas: nas
miçangas no pescoço da mocinha que disse Você
nunca será escritor e, também, no sujeito de libré
que me barrou num evento por eu estar ‘’mal
vestido’’. Aliás, observei cada arranha-céu, cada
vidro distinto, cada elemento químico que pudesse
estudar para virar o ‘’mestre dos romances’’.
Chorei ao ler os laureados, passeei meus olhos nos
mais vendidos, agarrei-me em críticas literárias
tenras ou ferrenhas. Claro, os vultos do pessimismo
ceifaram algumas noites, e sem dormir é difícil
trabalhar. Às margens do rio poluído perto da
minha vizinhança, com a caneta em punho e a
caderneta esperando, sonhei descrever mundos de
leite, universos melífluos, então habitados por
vinhedos flutuantes e gôndolas metafísicas, das que
nos embalam em direção às torrentes dos
amorzinhos conquistados. Por isso, em respeito a
todos, devo confessar a solidão cravada como
estaca em meu coração, levando em conta os
anseios enfrentados por mim. Enfim o corvo diluiu
perante o poder das letras. Sou a penumbra
mitigada pelo estandarte do leitorzinho que, absorto
na leitura, ainda consegue reformar a história e seus
absurdos.

Era sábado. O céu cor de anjo, um tanto opaco,


caracterizava o espanto sentido por Heitor: seu pai
não chegara. Quando viria? Havia muita gente ali,
aglomerada como uma porção de estrelas em
choque. Todos esperavam suas conduções, e
Boamorte aguardava seu velho, ansioso, e percebia
que a limpidez já não rodeava essas paragens
desertas. Tocou o invisível com as mãos
arroxeadas, e deslumbrou os tempos oníricos onde,
na companhia do velho Boamorte I, rabiscava o
concreto das paredes com gizes e canetinhas; ainda
dava para sentir a essência inefável dos troféus
militares de seu velhote. E olha que, desde sempre,
eles dividiram a solidão, marca registrada dessa
estirpe nebulosa. Mas Heitor não entendia os
blocos de granito no chão suado, os gritos dos
pedreiros que reconstruíam o Museu da Libertação
dos Escravos, a areia corrosiva sujando os rostos
das garbosas matronas. Tudo virara sombras, até
mesmo os abraços dos enamorados sem
compromisso; e o assexuado chamava o nome do
pai, que nunca iria responder. Entre o torpor dos
besouros lhe atacando e a agonia da espera
inquietante, ele ia esquadrinhando o espírito parvo.
Os olhos patrícios de Heitor I estavam nas veredas
mais improváveis. O assexuado, pois, perguntou se,
em nome de deus, e olha que sempre fora
agnóstico, alguém, quem quer que fosse, ao menos
de passagem, tinha visto algum ancião com postura
acadêmica, geralmente portando uma bengala
marfim. Ninguém. Para passar o pânico, embora
essa tarefa tivesse um quê impossível, Heitor lia
uma revista literária, em transe, sublinhando cada
termo cujo significado desconhecia. Fazia frio, e a
voz de verniz do ex-sargento desaparecido ressoava
misteriosamente. Durante duas horas quase
intermináveis, no entanto, ele teve de encarar a
recente fonte permeada por peixinhos azuis, uma
das últimas obras feitas pela prefeitura que,
certamente, tinha como intuito apenas angariar
mais votos, tendo em vista que as eleições se
aproximavam. Os peixes mergulhavam com
vivacidade, fazendo movimentos circulares. Agora,
porém, o coração de Heitor estava fumegante, pois
sabia, para própria infelicidade, que nunca fora ele
mesmo, nem no dia quando, entre dois amores para
escolher, optou por continuar sozinho, ficando em
sua alcova de mosaicos tenebrosos, pinturas
rupestres e decepções infindáveis. E o pai? Este
não veio. Os gângsteres lhe enterraram num terreno
baldio, ponto dos indigentes, casa dos que
pensavam ser vida o que inferno era. Sendo assim,
apesar do arco-íris súbito, então crescendo no
horizonte, a cidade permanecia imóvel,
meticulosamente contaminada pela ditadura branca,
nossa atávica senhora. Como o vazio era a única
verdade, os conformados então dormiam enquanto,
através dos acordos firmados em interesses
pessoais, ‘’a sociedade’’ escolheria e fuzilaria seus
mortos. Todos os problemas são clichês, perguntou
uma adolescente de corpo torneado, ou todo clichê
é um problema? Prefiro o silêncio, disse
Boamorte, e desmaiou perante o pulo inigualável
do mais belo dos peixes azuis. A adolescente pegou
a revista literária e, abrindo-a numa página
marcada, encontrou um rabisco à lapiseira: ‘’Por
que sou assexuado’’? A brisa que veio recendia a
borracha queimada. Mais tarde, quando Boamorte
já estava recuperado, ele resolveu retornar ao ofício
de michê assexuado. Olívia adorou a ideia. E, no
quartinho apertado do apartamento, passou a
receber suas clientes. Eram tantas as moças que,
para não perder o foco, teve de separá-las por
ordem alfabética. A primeira foi Amanda, a
ninfetinha de pele rosada e peitos medianos. Ela
apareceu com uma vestimenta elegante: luvas
alabastrinas, meias-calças lilases, calcinha com um
rasgo proposital na região central. Mas, seja como
for, ela só poderia tirar a roupa, e isso de acordo
com o desejo de Boamorte se, caso possível,
conseguisse, entre uma dança de sedução e um gole
de conhaque, discursar brevemente sobre algum
problema social, se bem que, no que dizia respeito
à Amanda, talvez as coisas fossem mais fáceis, uma
vez que suas pupilas azuis e tediosas, sempre
resplandecentes, logo impressionaram o michê.
Assim, ao toque do sininho segurado pelas
mãozinhas do protagonista deste romance, a mulher
começou a discutir violentamente, criticando o
preconceito e suas segmentações. Defendia com
todo vigor os direitos das mulheres e dos idosos,
ora arrancando uma meia-calça, ora revelando um
seio marcado por sarnas. Do outro lado da porta,
espiando pela fechadura acobreada, Olívia, com os
membros tremendo, tentava não perder nenhum
detalhe daquela cena. Será que a fera masculina iria
despertar? Bom, cada dona tinha trinta minutos
para, pelo menos, tentar transar com Heitor. O
preconceito é a marca d’água dos homens,
prosseguia Amanda, o timbre deleitoso corroendo o
ar escamoteado. Evidentemente, os comentários da
cliente eram fracos, próprios de alguém sem leitura;
quadro este bastante normal, levando em
consideração a enfermidade educacional alastrada
nesse país cujo nome é palavrão, palavra indigna de
ser pronunciada, doce e pecaminosa desonra aos
olhos inquisidores das nações vizinhas. Contudo,
aproveitando a beleza cabal da indecente
Amandinha, Boamorte, agora num muxoxo
explícito, não evitava a nudez que viria em breve,
também dominadora, com a parte íntima sem tapa-
sexo. Não obstante, e por estranho que pareça, essa
visão carnal, pois Amanda abria a vagina
delicadamente, não lhe causou nada mais que asco,
profunda aversão pela construção mundana que,
segundo ele, há muito abandonou os desertores do
sexo humano. O amor, então, até continuaria tendo
cores, voz marcante, brilho intenso de um verão
clareado. A sexualidade, por outro lado, era
forquilha, machado trevoso, ponte destruída nos
augúrios da escuridão, troca não equivalente no
processo da alquimia, alma controlada feito
marionete. Mas o encontrar dos corpos úmidos está
em toda parte: nas artes, na moda, no olhar
embaraçado, no emaranhando de relações que são
teias de aranhas venenosas. Como escaparia dos
daguerreótipos, das imagens sexuais da sua
consciência? Nos sonhos, quase sempre eróticos,
enfrentaria os demônios vestindo trajes safados, e
acordaria vitimado pela polução noturna, embora,
no sobressalto leve em seu rosto, belo e petrificado,
somente restasse à jovialidade de uma das muitas
madonas pintadas por Rafael Sanzio, onde a grande
eminência estava na ilusão de profundidade. Às
vezes, mal aceitara sua condição claudicante,
Heitor procurava estimular o prazer de alguma
maneira, inclusive forçando toda clientela feminina
a cometer atos humilhantes, desumanos demais
para caber neste relato. Enfim, como o assexuado
continuava impenetrável, Amanda desistiu da
empreitada e, saindo agitadamente do quarto, nem
se tocou que, ao cruzar a porta e se esbarrar com
Olívia Guerra, ainda estava trajando a peça íntima
de renda, a mesma com um corte ignominioso no
meio, que revelava o órgão reprodutor e
ginecológico. Mas vamos nos concentrar com a
chegada da próxima freguesa. Bianca apareceu
como uma esperança sorrindo numa tragédia
anunciada. Ela chegou confiante, conquistando a
empatia de Baptista e Olívia, já que Heitor, apesar
do adiamento do casório, ainda vivia e trabalhava
ali, no cafofo cedido generosamente para ele.

O mundo da prostituição, a vida noturna dos


profissionais do sexo, tudo isso precisa ser
discutido com cautela e longe dos estereótipos que
regem este assunto. Sendo assim, com base no
perfil de Bianca Blanco, deixamos exposto o
cotidiano, as histórias e lutas daqueles que, todos os
dias, sem falta, oferecem seus corpos nas boates,
nos antros e ruas de uma cidadela qualquer. Bianca
afirmava, na cama agora sem dossel, que existia
muito preconceito em relação aos trabalhadores do
sexo. Com seus vinte e sete anos, apesar do rosto
cansado, explicava o sentido de ter embarcado
neste ramo: Não me arrependo de nada. Comecei,
então, porque precisava de dinheiro para
sobreviver num lugar tão imenso e assustador.
Depois, quando já era maior de idade, conheci
uma velha que me deu abrigo em sua casinha. Mas
isso não importa, não é mesmo? Sou uma Stripper
de primeira linha, impecável e sensual, e repleta
por um talento que adquiri em anos de prática. Ela
também largou a escola cedo para, pouco tempo
depois, abandonar seu estado. Veio para a cidade
inominável, pegando carona de um caminhoneiro.
Fui espancada por meu padrasto. Não podia mais
viver daquela maneira. A prostituta, em todo caso,
parecia inconformada com as visões já
estabelecidas da sociedade. E tendo como hábito
falar depressa, comendo algumas sílabas, Bianca
revelou que queria ter sido poetisa. De qualquer
modo, o fato é que, antes de ser putinha, teve
outros ofícios: Vendi balas no sinal, fui faxineira e
lavadeira de roupas. Ah, ia esquecendo! Tentei ser
modelo, mas não estava nos padrões exigidos
porque, querendo ou não, sempre tive essas
gordurinhas localizadas, típicas de quem toma
uma cervejinha. Mesmo assim, pensando bem,
acho que nasci pra ficar nua e fazer amor com
todo tipo de gente. Não, não sou uma mulher
conformada. Na verdade, a vida me fez desta
forma. Além do mais, num passado nem tão
distante, acabei sendo demitida por um casal de
italianos que morava por aqui. Eles afirmaram que
roubei um valioso anel de rubi. Tudo uma grande
mentira. Na época, só pra explicar, eu era
empregada doméstica. Hoje, sou uma profissional
do sexo. Aliás, ela disse que já usou diversas
drogas: maconha, haxixe, cola de sapateiro, crack e
uma série de coisas que não sabia o nome, mas que
misturara com bebidas alcoólicas. Mas, mesmo
assim, negou ser viciada em algum entorpecente,
pois, de acordo com suas palavras, estava limpa, ou
seja, há muito não usava qualquer tipo de droga ou
alucinógeno. Cheia de historinhas curiosas, a
extrovertida Blanco contou casos inacreditáveis
como o do velhinho que, ao ser traído por sua
esposa, acabou contratando seus serviços, ou
melhor, os dotes da Bianca para, assim, chorar
mágoas e decepções: Presta atenção. Uma vez, por
exemplo, um velhinho me pagou uma bolada para,
acredite se quiser, apenas falar das lamentações
vividas. O coitado tinha sido traído. Assim,
chorando em meu ombro, pediu o seguinte: tira a
roupa e pule na cama. Fiz o solicitado, e ganhei
uma quantia considerável. Outro acontecimento?
Vamos lá. Fui chamada por um grupo de jovens
musculosos, sarados. Eles, atrevidos, disseram que
era o aniversário do amigo mais calado.
Receptiva, concordei com o preço sugerido.
Porém, no quartinho onde realizo meu trabalho,
ele disse: Sou impotente sexual. Segurei o riso,
nervosa, prestando atenção no garoto. Este estava
mentindo. Ele era veado. No entanto, sempre
alisando os cabelos enrolados, Bianca Blanco
encheu o busto para falar de suas habilidades como
stripper: Vai completar dez anos que me prostituo.
Já em relação ao strip-tease, acredito ter
começado há uns cinco anos. No entanto, apesar
de existir outras mulherzinhas com muito tempo de
‘’mercado’’, sou uma das melhores putas na arte
de ficar pelada. Outra questão é que ela negou
todas as propostas para participar de filmes,
digamos assim, com conteúdo adulto: Sim, neguei
tudo. Em primeiro lugar, afinal é preciso ser
sincera, pensei na minha filhinha de sete anos. O
que ela iria achar dessa desonra? Não seria justo
da minha parte; em segundo lugar, portanto, os
cachês oferecidos eram ínfimos. Além disso, eles
não me trataram bem, pois, por tudo que é mais
sagrado, os mequetrefes só sabiam oferecer
drogas. Segundo Bianca, que se prostitui com
orgulho, o fato de ter abandonado outra cidade é
algo bastante peculiar, coisa que lhe torna uma
dessas aventureiras do cinema ou dos romances.
Assim, meio rubra, comentou: continuo neste
caminho, pois tenho minha filhinha pra cuidar.
Existe salvação pra mim. Talvez não. Por um
instante, quando era pequenina, pensei que seria
uma pessoa eternizada. Que besteira! Hoje, diante
do espelho, canto para um passado distante tudo
aquilo que habita em meu peito. Até porque, sem
querer ser pessimista, a verdade é que, embora
meus shows sejam espetaculares, sou bastante
complexada. Meus seios, quase masculinos, me
fazem chorar no escuro. Sobre o que é ser uma
profissional do sexo, Bianca Blanco, vulgo A Puta
orvalhada, mostrou sua força: A mulher da noite
sabe lidar com problemas. Sendo assim, conhece
os mistérios noturnos de cor e salteado, isto é, sem
margens para erros tolos. Portanto, caso minha
explicação não tenha sido satisfatória, basta
contratar meus serviços ousados. Então, vítima ou
não do sistema que nos governa, uma coisa é
exata: trepar salvou minha existência. A rapariga
acreditava, com todo empenho, numa mudança de
vida. A raiva que sentia pelo ex-marido não lhe
afetou nas tarefas do cotidiano, embora sua silhueta
já enrugada afirmasse o contrário. Além disso,
ainda considerava plausível encontrar um novo
amor, arrebatador e certeiro, capaz de tirá-la do
buraco onde se meteu. E, enquanto sua paixão não
chegava, preferiu sintetizar tudo que passou:
Dormi nas ruas, praças e casebres; deitei-me com
velhos sebosos e cheirosos, com jovens macios ou
fedendo a mijo. Sim, sonhei ser outra mulher, mais
sorridente, com aninhos dourados pela frente.
Tenho pena do tempo que fechou meus olhos que,
para piorar, não passam de baratas lentes de
contato. Talvez, no fim das contas, haja uma luz
celestial, um braço masculino que salve meus
passos errantes. O tempo, todavia, leva tudo. Mas
não levou o meu amor.

O dorso nu, cheirando a betume, logo atiçou


Boamorte. Às vezes, e isso raramente ocorria, ele
parecia regressar à sua condição de homem. A
região lombar referida naturalmente pertencia a
Bianca, que sendo massageada pelo assexuado,
contava, aos poucos, se bem que deliberadamente,
uma triste história, onde, habitados numa ilhota
fictícia, seus personagens, exilados pelo Governo
esperavam, cada qual ao seu tempo, o momento do
fuzilamento. Mas antes disso, enfileirados em
ordem alfabética, os exilados iam, em nome da
pátria desgarrada, contando uma sublime epopéia
que, curiosamente, era narrada de um por um; e
assim que o primeiro terminava sua parte, os
carrascos o matavam, e o segundo contador
prosseguia com a fábula a respeito da paz. Então os
beijinhos nervosos de Heitor foram aumentando, e
Bianca gemia laboriosamente, os olhos
acabrunhados fitando o autor das beijocas. No
quartinho havia uma estante cheia de livros,
sobretudo clássicos da literatura, sendo estes
separados por nacionalidade ou escola literária. A
puta ao ver o exemplar em brochura e com páginas
amareladas de O velho e o mar, de Ernest
Hemingway, quase chorou. Os olhinhos de tristeza
evidente brilharam, e ela prorrompeu numa gritaria
exuberante: A capa desta edição foi ilustrada pelo
fantástico Dounê. E, após essa balbúrdia, o
assexuado recordou que não amava mulheres, mas
livros. Contente, levantou-se do leito imaculado e,
andando em linha reta, assomou à estante; depois
pegou O velho e o mar, abriu num trechinho
qualquer e começou a sentir prazer. Gozaria em
questão de minutos, para a visível estupefação de
Bianca, que abandonando o cubículo, não antes de
quebrar algumas porcelanas chinesas, xingou o
amor e a solidão, a paz e a guerra. Voltaria a morar
no fétido sótão, pois lá o ostracismo era o anfitrião
principal. Lá fora, para não perder a rotina lúgubre,
os cidadãos viviam entre o tiro do rifle e o toque de
recolher, entre a educação execrada e a implantação
de máquinas no lugar de operários. A revolução
desumana destroçava suas vítimas. Enquanto isso,
entre grunhidos e dores aprazíveis, Heitor gozava,
prolixo, e das suas expressões sulcadas, meio
agonizantes, os sinais do desespero pareciam
eternos. Pois bem, a alma precisava ser regada. Ao
sair pela porta pivotante e encarar a chuvarada do
lado externo, o assexuado lembrou o perfume de
cânfora usado por Carla; esse odor lhe despertava
instintos perigosos. Porém voltou ao quarto, para
ler. Talvez Hemingway gostasse dele. Nada a ver.
Como a leitura lhe alavancava o gozo, com força
bruta, ele esquecia certos pormenores: seguir o
diário da morte de Carla, se encontrar com o
Mestre, ir à busca dos pais desaparecidos e alugar
um apartamento próprio. Escreveu uma carta para
mãe. Todas as suas cartas eram correspondências
de amor; para ele, o amor também era lembrança,
aroma de livrinho novo, arvoredo cheio de ramos
selvagens. Enquanto pensava nessas coisas, com
efeito, sua mente o levou para os pomares onde, há
tempos diluídos, pedira, pela primeira vez, uma
menina em namoro. Na ocasião, então um
adolescente imberbe, ofereceu para a pretendente, a
irascível Dora, flores artificiais e um pueril cartão
postal, que mostrava a imagem do Parque
Ecológico. E, como sempre, voltava a pensar na
mãe distante. Só veio encontrá-la semanas depois,
ocasionalmente, numa feira de automóveis
promocionais, e ela conservava o ar exultante das
pessoas que fumam escondidas. De longe, no meio
dos carros populares, Heitor observava a mãe de
sempre: chapéu de feltro démodé, brincos
argolados, vestido caramelo e sandálias com
plataformas altas. Também percebeu que,
infelizmente, ela carregava o mesmo semblante
triste, talvez preocupado com o paradeiro do
marido. Fosse como fosse, ela acabou vendo seu
filhinho, o filho que continuava do mesmo jeito:
olhar vazio, testa franzida, centelha de
desesperança evidente. E os dois se encaravam, de
alto a baixo, medindo cada olhadela sepulcral, e
iam se aproximando, aos pouquinhos, os passos
morrendo no asfalto denso. Quando estivessem
tête-à-tête, talvez as palavras morressem, se bem
que ele gostaria, pelo menos, de perguntar como ia
o cotidiano, o coração, a casa de veraneio onde os
velhos amigos, todos aspirantes a poeta, liam seus
versos já sem estampa, pois não havia ninguém
para ajudá-los. A mãe, no entanto, estava
acompanhada por um sujeito carrancudo parecido
com o tio Bernardo que, com os braços
tremeluzindo, segurava, quase derrubando, um
índio longo e magro, e aparentemente uma das
últimas vítimas de uma doença há muito
erradicada: poliomielite. Mas Heitor desviou os
olhos para a multidão perdida. Todos eram tristes, e
suas caras pareciam sombras, máscaras controladas
por mercenários. O que restava ao mundo nessa
hora? Qual a cor desse instante? A boca do
assexuado passou a ter gosto de sidra; não pensava
em nada, nem na mãe silenciosa com o
chapeuzinho de feltro, ou no pai, então engolido
pelo turbilhão da cidade sem nome, cujo todo
bosque é encruzilhada. Sendo assim, por que mãe e
filho não se falavam? Heitor chorava pela
mãezinha que acabara de acender um cigarro, uma
vez que já não fumava escondida; ela, a mãe-
exemplo, virara para a direção oposta, embora
soubesse que esse ato não mudaria nada, sobretudo
a morbidez incutida no coração de Boamorte, e, à
medida que o tempo passava, atroz, ambos
permaneciam calados, entregues ao torpor imediato
vindo das almas alheias, em chamas, e
violentamente desprovidas de sentimentos alegres,
boçais. A mãe não era difícil; ao contrário, sempre
fora comunicativa, eterna militante dos tempos
juvenis. Mas o mundo, em linguagem filosófica, é
espelho sem reflexo, orgulho ferino e praticamente
inquebrantável. Claro, eles iriam conversar porque,
apesar do silêncio tedioso, necessitavam dos
carinhos mútuos que, enfim, viriam em seguida. Se
eles se abraçaram, contudo, isso só os mascarados
ali presentes podem responder. Sem dúvida
conversaram muito, e também planejaram
encontros futuros, almoços e jantas familiares. Por
um lapso, viver pareceu fácil, mas logo o cortinado
se fechou, e estavam mais uma vez sozinhos, cada
qual seguindo sua rota. Antes, porém, a mãe
apresentou o índio comportado, sem cadeira de
rodas e carregado pelo tio Bernardo, que era, sim, o
mesmo guarda que perseguira Boamorte. O índio,
todavia, tinha olhos gélidos, presença fulminante.
Era moreno como canguru e fininho feito serpente
do Nilo. Dentro das unhas, compridas e
pontiagudas, havia sujeiras acumuladas. Mas como
era belo o indígena encurralado por gente racista,
mesquinha e culturalmente baixa. Todos olhavam o
silvícola, inclusive Heitor; sendo este último
bastante respeitoso, pois, fixando a figura estendida
nos braços do tio Bernardo, o assexuado parecia
cultuar uma divindade, alguém que aparentava ser
maior do que aprendemos a chamar de humano.
Depois o índio fez careta, movimentando os beiços
roxos-poesia como se quisesse ser beijado, como
se, nesse gestinho miúdo pudesse, numa fração de
segundo, conseguir, em vontade predeterminada, o
que realmente desejava. E então, o público se
aglomerou para ver tudo, até que Heitor roubou a
cena. Perturbado, trespassou o círculo de
indivíduos, e depois, desconhecendo a si mesmo,
embora não houvesse se livrado da expressão vácua
característica, inclinou os lábios frente a frente com
o indígena, e recebeu, sem defesa, uma bofetada no
rosto cândido. Todos pararam; a mãe acudiu o
filho; nenhum dos dois fumaria mais escondido.

Deitada, nua, com um livro de sonetos cobrindo


o bumbum largo. Era Cristina Nobre. Seus seios
eram inchados, voluptuosos, e a cintura
extremamente fina; ela lia devagar, quase parando,
e a cada estrofe terminada soltava um bocejo suave.
Até parecia despreocupada com a postura
assexuada do rapaz, de modo que somente
esbanjava sorrisinhos sem dentes, para incitá-lo
ainda mais. Em seguida, quando encerrou a leitura,
Cristina arremessou os dois livros, o que lia e o que
cobria suas nádegas para bem longe, e passou a
falar sobre os problemas educacionais da nação
impronunciável. Primeiro reclamou da cultura
machista, dos antepassados que escravizaram o
poderio feminino. Heitor escutava sem opinar; a
mulher de traseiro largo também era tristonha, pois
seus olhos só fitavam o chão, a superfície sem
acusações ou violências. No desenho de seu corpo
cálido, aliás, em demasia, os espectros da dor
pareciam presentes em cada camada tocada. Nada
nela era alegria, exceto o quadril imenso, que
latejava de vez em quando. Cristina seria mãe aos
doze anos, mas perdera o bebê. Afinal sempre
levara uma vida desregrada, longe dos padrões
naturais. A desgraçada também tentara se suicidar
tomando uma hóstia de comprimidos. Seja como
for, ela não morreria assim, abandonada, sem
alguém para xingar-lhe à vestimenta, os silêncios
mordazes e o cadafalso que escolhera. Agora
Boamorte lhe afagava o penteado japonês, o
pescoço com pintinhas negras, o queixo pontudo
como arma que atira pra matar. E o acontecimento
a seguir pode ser considerado asqueroso: o
assexuado lambeu os quadris de Cristina Nobre,
com fulgor, para tentar acalmá-la. Debalde. Ela, ao
menos por míseros segundos, tornou-se afresco
contemporâneo pintado nos vitrais de um templo,
labareda refulgente nesse quarto escuro, carne
revestida em espírito pelas lambidas de Boamorte.
Bem, o universo parara. Não, não havia continentes
em destruição, frustrações colecionadas a cada
despertar. Pela primeira vez, depois de meses como
michê, seria despido por uma mulher. Por que
Cristina fora escolhida? Talvez pela candura, pelo
ranger enunciado em seu imo. Assim, agarrando-a
com a alma, Heitor lhe contou sobre o medo do
sexo, sobre a fuga que planejava: a fuga de si
mesmo. Ela empalideceu, mas foi coisa rápida.
Enquanto despia a blusa enxadrezada do homem
que tremia incessantemente, a coxa suada de
Cristina esfregava na virilha do parceiro. Se
pudéssemos, amigos e amigas, até terminaríamos
por aqui, mas o ketchup derramado nem sempre
serve como sangue num filme de ação. Ali, entre a
virgindade quase perdida e a oportunidade de
continuar em estado casto como vingança contra a
vida, residia o absurdo das horas dilatadas, o
ridículo da sociedade fantasma desfalcada de
heróis, os caminhos tortuosos para descobrir que,
no término desse romance, o protagonista poderá
deitar com alguém, carnalmente, como o poeta que
sentiu na pele a tesoura dos nãos recebidos, das
críticas que lhe apresentaram o anonimato. Não
posso continuar, disse Boamorte, e seu timbre era
enfadonho; Você acha certo matar o amor assim,
de repente, como se nada tivesse acontecido? Que
cruz é essa?Teus olhos são gazeados e
conflitantes... por quê?; Heitor não respondia,
andando em ziguezague pelo recinto, como se
estivesse em busca de algum objeto perdido,
sobretudo algo de suma importância, sendo que, na
realidade, estava implorando pelo próprio fim, pelo
próximo encontro que deveria ter com o Mestre
Helder, para ver se ainda tinha salvação. No final
do saldo, o enigma: Estarei lhe esperando na Rua
dos estressados, perto do cabaré, o local onde
enterraram seu pai, falou Cristina, e ela não
brincava. O assexuado fechou a janela pequena,
cobrindo-a com uma cortina ametista.

Então começou a pensar em Carla, e Cristina,


percebendo a inércia do homem, decidiu, apesar da
vergonha, deixá-lo sozinho. Boamorte, pois,
escreveu um texto em memória de Carla, em
homenagem aos poetas solitários:

Hino aos poetas


solitários

Você estava ali, diante dos meus olhos fugidios,


silenciosa como quem espera. Tive de me
aproximar. O coração sangrava incessantemente.
Por que teu tênue rosto ainda não era meu? Sim,
iria me aproximar com cautela, sobressaltado. Sob
uma luz incendiária, amor meu, teu cabelo
resplandecia numa beleza fulgurante. Então,
sugando tua essência de baunilha refrescante,
toquei tua pele celestial. Não, nunca acreditara em
anjos, mas, naquele instante supremo, acabei
titubeando, tiritando em arrepios românticos.
Sabe, seu calor combinava com meu mórbido
enregelamento. Mas ainda não dissera que te
amava, embora todos já soubessem da minha
suscetibilidade patética perante teus encantos
libertinos. Por isso, como solitário em desespero,
aproximei-me dos seus lábios úmidos e delirantes.
Sempre que minha tenra gueixa beijava meu rosto,
sincera, eu sentia uma languidez maravilhosa, uma
libertação de mim mesmo. Quando, se é que isto
vai acontecer, terei teu amor denso e peremptório
dedicado aos meus caprichos de poeta turvo,
recluso nas águas profundas de um tempo abismal,
atroz?
Tudo, até então, havia me conduzido aos seus
braços aconchegantes, ternos como um lençol num
dia de chuva intermitente. Talvez, no dia que sentei
ao teu lado no banco da faculdade, você aguardou
meu brado: ‘’Eu te amo’’! Antes disso, todavia,
como a senhorita já tinha conhecimento, lhe
escrevi cartas ardentemente apaixonadas,
marcadas com minha entrega humilhante onde,
absolutamente prostrado, sempre recebia seu não
em chamas. Aliás, entre bebidas e cigarros
mordazes, caía uma depressão aguda. Cheguei a
pensar: ‘’Tenho alguma doença incurável’’. Afinal
de contas, nunca seria seu baluarte. Se bem que,
em verdade revelada, já não podia viver sem o
sândalo da sua boca multicolorida.

Por um instante agarrei sua delgada cintura


com vigor. Você não me levava a sério. Apenas
sorria de um jeito banal, meio de lado. Ainda
assim, alquebrado e atônito, decorava todas suas
roupas, batons, penteados de momento. Queria te
conquistar feito criança teimosa, porém esperta.
Onde te vi pela primeira vez? Nos sonhos, nas
veredas do mundo onírico. E, assim, entreguei-me
sem reservas, quase como defunto que encontra
alguma saída para ressuscitar. Até porque, em
todo caso, algo afirma ou afirmava, imensamente:
‘’Você, autor pusilânime, há muito fenecera.
Contudo, para minha lírica salvação, minha dama
surgiu nas brumas ou espumas de Afrodite. Ficou
a pergunta: quantos bosques eu teria de trespassar
para, enfim, obter seu bendito amor terreno?
Porque em espírito e, mesmo que não saibas, já és
minha. Desde o princípio dos verbos ou alfas.

E, perdido nas trevas do tempo obtuso, procurei


esquecer sua presença fixa. Em vão. O romance
aumentou drasticamente em meu coração
aparvalhado, vacilante no vazio das horas
diluídas. A propósito, os olhares das outras
rainhas eram opacos, pois, comparado com seu
olhar perfeitamente perolado, as coisas eram
superficiais ao extremo. Por isso, quando não tiver
mais sustento, encosta teu âmago frondoso em
minha vida boêmia. Parei. Fixei sua postura
magistral. Por que você não se levantou do banco,
aflita, vindo mesclar nossos corpos fragmentados
pelo pavor da proximidade inevitável?

Embora tenha lhe visto nos vales que caminhei


com o acaso, não sabia se te esperaria
eternamente porque, sem dúvida, estava
definhando aos poucos, deixando de sentir o zéfiro
das manhãs adoráveis. Contudo, antes de qualquer
coisa, sempre sonhei, inclusive naquele momento
da faculdade, em cobrir você com beijos
inflamados, cheios de angústia, prestes a explodir
num suicídio amoroso sem retorno. Mas nada fiz.
Afinal de contas, durante inóspitos minutos, a
senhorita franziu o cenho com fúria, como se
dissesse: ‘’Nunca serei tua. Mas podemos ser bons
amigos’’. Minha pele eriçava, parecia queimar
como morte iminente, apesar de me deixar levar
por teus instintos incompreensíveis, capazes de
domar qualquer homem feito, cujo único feito, é
buscar o amor que ruge em teu busto
meticulosamente arquitetado. Bem, você é a
senhora das flores e dos amores febris, do arrepio
que faz meus membros adormecer.

De súbito, até fui medíocre; mendigando um


afago seu, no turbilhão de minha alma, encontrei
uma razão para levantar eufórico. Sem você?
Aprendi que nada tinha nomenclatura, nem a
alma. Nem o tempo ensandecido. A senhora foi,
desde o primeiro instante, minha obsessão idílica,
o ponto que vislumbrava no sol poente. Detalhe:
nenhuma distância foi apta o suficiente para
desmanchar tua silhueta dos meus devaneios mais
profundos.

Passei a mão no seu ombro. Quase desfaleci.


Uma dor pungente, ainda que encantadora, pulsou
em minhas entranhas ariscas. Por mais força que
fizesse, todavia, o desejo candente de expandir aos
céus por teu contato era meu único estandarte, e,
apesar das tempestades da solidão carrasca, só
focava o futuro radiante que se anunciava no abrir
das nuvens mitológicas que, poeticamente
algodoadas, tornavam nosso encontro intangível
totalmente inquebrantável. Dos ombros, então,
desci para a mãozinha suave, delicada como botão
de rosa. Em seguida, apertando seus dedos com
tenacidade, notei: os ventos certeiros, as guerras
inúteis, a penumbra do espírito, a cruz cravada na
colina, o luzir dos olhos onipresentes e as águas
diáfanas! Tudo isso, como uma flamejante flecha
do que chamamos destino, operou para nossa
paixão desenfreada, ou melhor, para que minha
paixão impossível pudesse ocorrer.

Com voz doce, bem postada, você cortou nossos


laços. Hecatombe. A partir daí, sem fingir que era
dor o que realmente sentia, tranquei-me no porão
dos macambúzios. Este, com certeza, sempre fora
meu lugar, minha terra, meu cal, meu túmulo.
Acompanhado por ratos enormes, asquerosos,
baixei as pálpebras de chofre. Ali, longe do cálido
abraço que antes recebia, pulverizei por completo.
Assim, na evaporação do meu corpinho, sua
imagem apareceu para mim, densa e embaraçada,
talvez por conta da fome mortal dos apaixonados
sem êxito.

Silêncio. Quando disse que te amava


irremediavelmente, lembro que recebi um não
honesto, mas espinhoso para um poeta machucado.
Silêncio. Voltei com passos mudos. Para onde? Na
direção do crepúsculo, da alcova bruxuleante de
minha existência. Silêncio. Acendi uma vela.

Post-Scriptum: Ainda estou no fétido porão, se


bem que, sinceramente, nem sei se estou vivo ou
morto.

Silêncio.

Daniele: moleton azul cobalto, pó-de-arroz, short


apertado e olhar de fauno. Ela jogava cada peça
para o alto, com vivacidade, e dançava
perfidamente, suas ancas indo de um lado para o
outro. Mas Heitor não contemplava seu corpinho
insinuante, pois estava concentrado na Cidade
Inominável, o canto do silêncio doloso, a estrada de
cadáveres inóspitos, o desfiladeiro cheio de animais
que só servem como casacos. O túnel da solidão,
por exemplo, era o único trajeto que, nesta
cidadezinha crepuscular, os habitantes, todos sem
face verdadeira, conheciam. Por sorte, os meninos
sonhadores ainda acreditavam numa manhã sem
sangue. Mas este era o município do fingimento,
das conivências com partidos políticos opressores.
Em toda paragem, a imagem da queda se mostrava,
sem pudor, e irradiava aos espíritos desolados à dor
dos assassinatos camuflados, da bandeira patriótica
que já não habitava em nenhuma casa. E, olhando o
bico dos peitinhos de Daniele, duros e marcados,
dava para notar o mesmo ar de solidão das
raparigas abandonadas, loucas para alcançar o
sonho dourado, mas envoltas pelas feridas de uma
terra batida. Daniele bebia vinho como se, por
conta dessa bebida dita sagrada, o inferno embutido
em si fosse, na valsa invisível do momento,
totalmente exorcizado. Bem, o que falar dos olhos
cinzentos que ela pensava ter? Pois, em palavras
sinceras, ninguém sabia para onde ela olhava: se
para o instante vivido, ou para cada objeto que
denotava morte, e, à medida que esquadrinhava
tudo, naturalmente enfastiada, apenas percebia que,
bom ou não, toda sombra que era a cidade estava
intrínseca nos olhos de Heitor, aqueles olhos
sonoros como a porta da vida se fechando,
indiferentes como o socialista conformado, de
cabeça baixa pelo medo de confrontar o sistema.
Não obstante, após minutos sem piscar, o jogo das
visões terminaria, não antes da então improvável
troca de carícias; carinhos estes que foram apenas
beijinhos nas têmporas e um singelo roçar de
narizes. Agora Dani sentia a frustração dos amores
perdidos, o estranho réquiem dos homens que
morrem enquanto estão vivos, a febre crua e
macilenta dos retratos onde era uma menina cor
topázio. Ato contínuo Boamorte abriu o zíper. Iria,
enfim, se entregar ao laço quimérico da união das
carnes trêmulas? Quem disse não, e evidentemente
a maioria dos leitores fez isso, indubitavelmente
acertou no palpite; a palpitação mais árida,
portanto, jazia no coração de Heitor, e ele, desde o
começo da narrativa, estava, embora a contragosto,
infelizmente condenado. Ainda não transara; não
casara; não encontrara o pai sumido; não dormira o
sono das crianças inocentes.

Esther, estrela em repouso, noite ambientada nos


ombros curtos, pele perfumada com essência floral.
Nos pés, os calombos de quem sofre maus tratos;
nas mãos, a leveza de um toque iluminado. Mas os
mesmo olhos que fixavam Heitor eram, por assim
dizer, os mesmos olhos que choravam todos os
dias, e essas lágrimas nunca caberiam neste enredo.
Sob a lividez da sua face, onde ninguém conseguia
esquadrinhar, havia uma afável menina que, em
tempos remotos, gritava para o mundo o
significado da dor pungente, das fotografias que
revelam fantasmas enxeridos. Agora o sexo era
redentor, pequena nuvem voadora, embora, na
vastidão de si mesma, soubesse que o assexuado
não ousaria sequer tocá-la, e ele realmente nada
fizera, exceto dialogar sobre luzes espectrais, sobre
o quadro clínico da sociedade. A sociedade está
com câncer; Nós somos a cura, dizia, e depois
soluçava feito o leitor que, após anos de labuta,
encontra o escritor preferido, se bem que este
escritor, apesar disso ser natural, não se tratar do
modelo esperado. Na verdade, quando Esther
começou a fazer massagem tailandesa em Heitor,
ficando então em cima dele, os pezinhos roçando
nas costas do rapaz, ela nem desconfiava que ele,
por seu turno, apenas falaria a respeito da
desoladora condição de colonizados, já que
segundo suas queixas, até certo ponto relevantes,
toda a nação ainda era colonizada, sobretudo por
ser dependente de um modo de vida alugado do
exterior. Por isso, naquele momentinho banal,
sentia-se como um pobre colonizado; e Esther seria
a colonizadora, uma vez que ali, em cima dele,
poderia fazer o que quiser, ou seja, inclusive
machucá-lo, muito embora esse não fosse o desejo
da mulher com voz ranhosa, sorrisinho enviesado e
personalidade cativante. De resto, eles comentavam
sobre os falsos heróis da história, os mesmos
sujeitos que enganaram os índios, massacram os
negros e ainda tentaram, em vão, nos iludir com
promessas de independência, justiça igualitária e
liberdade. Mas como eles iriam ser livres, senão
encenando por trás das máscaras já confundidas
com seus rostos verdadeiros? Aliás, a porta estava
trancada, o ar-condicionado ligado trazia à tona o
friozinho da poesia perdida no tempo, o frio das
febres dos relacionamentos que não vingaram; e,
em seguida, sempre soluçando, Heitor Boamorte
mostrou a foto de Carla, e Esther, suspirando
lascivamente, considerou melhor ir embora, pois
esse instante já deixara de ser tinta, seja a óleo ou
acrílica, sombria ou salvadora. De todo jeito, ela
não queria sair assim, desiludida, e por isso faria
algo inusitado, com cor, para tentar infiltrar, nem
que fosse uma reles filigrana, alguma esperança no
coração de Boamorte; e ela tirou da pasta de
estudante (era menor de idade) uma trufa
embrulhada em papel celofane. O recheio? Abacaxi
com leite condensado. Heitor, que admirava a
forma como a menina desembrulhava o troço, logo
teve vontade de mordiscar o chocolate; Esther
mordeu o lado direito, deixando a outra metade
para o enamorado instantâneo, e este cravou os
dentes rapidamente. Sim, poderíamos denominar
esta parte como o encontro dos lábios, como a hora
onde o divino enfim existe, ou como a fada que
aparece para nos acalentar nas noites insones. Em
todo caso, os ‘’enamorados’’ somente encostaram
às bocas suavemente, de um jeitinho que não
podemos chamar de beijo, mas de protocolo.
Seriam amigos dali pra frente, e estariam sempre
conversando sobre colônia x colonizador, namoros
com trufas e leitor diante do escritor favorito. Se
pudesse, e talvez pudesse mesmo, Esther não
voltaria nunca mais, porque o destino de Heitor era
a solidão, a certeza de que mil anos passariam para,
quem sabe, alguém nascer com suas mesmas
características. Ah, o pobrezinho foi colonizado por
ele mesmo, pensava Esther, não antes de deixá-lo
recluso ali, onde o amor jamais triunfara.

Parece fábula, utopia engendrada por um


romancista à procura da primeira publicação, mas,
quando ninguém mais esperava, Baptista se
suicidara novamente, desta vez quase vacilando de
verdade, se é que a verdade existe. Dos Anjos,
contudo, buscava sua identidade latino-americana,
sendo que, em sinceridade desmedida, todos os
latinos já fizeram isso. Talvez ele quisesse se tornar
personagem de um livro que pudesse, no decorrer
das páginas fantásticas, sintetizar todas as
revoluções, frustrações e necessidades de um povo
que está só diante da manada de ditadores soltos,
prontos para escolherem seus mortos. Sendo assim,
ainda desesperado pela cidade cor de merda à sua
frente, deveria morrer simbolicamente num celeiro
de belezas naturais, e então, trajando um uniforme
militar representaria, através desse joguete, o
extermínio dos infindáveis opressores, os tiranos
quase extraterrenos que castigaram a população,
sem ruborização nenhuma, prejudicando qualquer
geração vindoura. Pois viver é driblar a opressão;
morrer é fast food, ruminava Baptista, talvez
falando com o menininho dentro de si, lá onde o
preconceito nem sabia que existia. Ora, os que
dormiam sob a névoa cristalina, também
acordavam sob os disparos da escopeta.

Depois Baptista voltou para o apartamento.


Olívia dormia profusamente, e ele só podia olhá-la
de maneira interrogativa, pensando: Por que ela me
ama se, no geral, entre minhas dores e meus
arroubos de felicidade, eu sempre a machuco? Pelo
quarto, para não perderem o costume, havia
revistas espalhadas, um cubo mágico dentro de uma
caneca grande, o pôster de uma produção
cinematográfica sobre amores possíveis. Mas
famintos mesmos eram os olhos leitosos de Olívia,
sua cara feito sombra sobrevivente do pós-guerra.
Eles viviam na dor, no inferninho sem sonhos
palpáveis. No entanto, quando ela despertasse, Dos
Anjos contaria a verdade sobre a perna amputada,
porque esse segredo era como um vulcão que, em
angústia crescente, precisava, enfim, entrar em
erupção. Bem, mas quem é esse Baptista? Seu
corpo já não tinha forças, a virilidade parecia lenda,
romance de cavalaria, e, enquanto acariciava
Olivinha, a alma tremendo sem limites, não
conseguia entender o porquê do amor, tão
encapsulado em nós, ser tão parecido desde os
tempos dos nossos ancestrais. Ou seja: Olívia era a
personificação dos poemas de Byron. E, no
labirinto dessas questões, Baptista ia morrendo
paulatinamente, de vergonha, pois não se via digno
da lazulita chamada Olívia Guerra. Embora ele
tivesse amor-próprio, os homens tristes são rochas
em decomposição; assim passou a ter insônia, de
modo que também sofria enxaquecas abomináveis.
E então, erguendo-se do catre desconfortável, uma
vez que deixara de dormir com a mulher, entrou no
banheiro almiscarado e, apoiando as mãos nos
ladrilhos, não antes das respirações necessárias,
vomitou. Vomitava, pois, todos os dias; e Olívia
advertia que, ao menos, mesmo doente, ele não se
esquecesse de puxar à descarga, a fim de evitar o
mau cheiro. Podridão, essa palavra turvava-lhe o
bem-estar. Às vezes andava pelo apartamento
vazio, o corpo se movimentando como zumbi. À
voz da emboscada que lhe mandava adormecer, em
tom brutal, Dos Anjos sentia a constatação que, na
vastidão dos seus anseios, apenas desejava
conversar com alguém. Transtornado, pôs-se a
quebrar o catre e, notando o despertar da noiva e
seus cabelos alaranjados, pensou em amá-la
tragicamente. Olívia nunca fez sexo anal, e nem
faria nesta ocasião porque, enquanto Baptista não
mudasse de compostura, sem dúvida a serpente
amorosa jamais subiria ao toque da flauta-doce. Se
alguém pudesse, em todo caso, salvar o suicida
simbólico, talvez não fizesse nada. Os justos
geralmente surgem ao acaso; até porque, na
estupidez do espetáculo, os que veem à agonia,
ainda que magoados, são os senhores que cavam,
com pás pesadas, a tumba dos espíritos solitários.
Na manhã seguinte almoçaram fora; tinham que
falar sobre suas vidas, apesar de, por motivos
incongruentes, Olívia permanecer calada, sem
nenhuma vibração. Talvez o fogo da paixão
estivesse se extinguindo. Seja como for, pediram
salmão defumado, pois, por sorte ou coisa que o
valha, o generoso Roberto iria pagar tudo, inclusive
sobremesas e afins; mas Roberto não estava lá, só
pagaria o almoço. Um violinista de olhar
envidraçado se aproximou da mesa do casal,
tocando uma bela canção de exílio, e Baptista
pensava na dura realidade que não tinha sido, ou
nos erros colecionados como insetos raros. Lá fora,
os ingênuos riam da beleza das copas das árvores,
das velhotas elegantes com sombrinhas num dia
morno. Todos continuavam iguais, em desilusão
completa. Qual a razão dessa paralisação nada
translúcida? Os lábios lúcidos de Dos Anjos
beijaram o rostinho côncavo de olivinha, e ela
parecia em outra dimensão, talvez num limbo dos
deuses. No mais, quando a mudez voltava, Baptista
falava sobre o pai, morto numa guerra política.
Meu velho era do partido comunista, mas tomava
coca-cola, dizia, e o garçom, que ouvia cada
detalhe, começava a sorrir debilmente, passando a
mão na região glútea do Violinista que,
naturalmente constrangido, deu um saltinho
atlético. Enquanto degustavam um vinho branco,
entregues à efemeridade do instante, o casalzinho
até então em crise, se assim podemos concluir,
começava a se entender mais uma vez. Olívia
limpava, com o guardanapo cinza, o lábio superior
de Baptista; fazia isso em movimentos circulares,
típicos dos namorados românticos. Bom, ao
contrário do que poderia imaginar, já que Olivinha
era extremamente liberal, sua avó fizera parte da
força nazista latino-americana. Nunca acharam
minha avó, disse Olívia, e Dos Anjos bebeu o
vinho de um gole; perguntou: Você admira o
nazismo? A interrogada negou a questão com os
olhos leitosos e fluorescentes, que pareciam
furiosos pela suspeita lançada por seu noivo.
Mudando de assunto, se bem que forçando a barra,
o homem resolveu discutir em nome da perna
amputada, muito embora, porém, Olivinha achasse
melhor evocar os poemas de Ovídio, Octavio Paz e
de um brasileiro chamado Carlos Drummond de
Andrade. Os dois se encaravam; No fundo, no
fundo, ela precisava saber a verdade por trás da
perda da perninha de Baptista, afinal ele não tinha
sido atacado por tubarão algum, levando em conta
que essa desculpa, invariavelmente, é o cúmulo do
clichê aventureiro. Detalhe: iriam conversar fora do
restaurante, porque o garçom era bastante esperto.
Ao saírem da espelunca, portanto, choraram
tenebrosamente. Estavam diante do esgoto, dos
matos destruídos para a construção de um
shopping. Cada respiração sôfrega representava um
feto não nascido. Mesmo assim, como dizem os
otimistas, o bálsamo surge depois dos maus
agouros. E, assim, antes da conversinha aziaga,
fizeram beicinho, beijando-se como crianças.
Nunca vou te abandonar, pois tua expiação é do
tamanho desse continente, afirmou Olívia. Algum
amante não correspondido acabava de ser perder do
outro lado do tempo.

Quando disseram a Boamorte que Kafka era


assexuado, ele estranhou muito este tipo de
informação. Agora pensava em Carla Montero; ela,
quando viva, andava levando o mundo em seus
ombros diminutos. Seus olhos cintilavam os
caminhos de Heitor, de modo que ele, naquela
ocasião, passara a chorar menos. Amiúde, também
se comunicavam por telefone, despreocupados com
contas ou assuntos primordiais. Mas Heitor estava
indo falar com Helder, e Helder o esperava,
resoluto, e estranhamente acompanhado por três
mulheres assexuadas: Bia, Tereza e Patrícia. Estas
estavam lendo a enciclopédia britânica, excitadas,
cada qual tocando seu clitóris, enquanto o Mestre
lia Kipling, a leitura em voz alta ressoando pela
biblioteca. Depois falaram sobre Heitor, o qual
chegou logo a seguir, trazendo uma garrafa de
Vodka. Beberam durante boa parte da noite, depois
contaram anedotas sem graça. Em compensação, os
assuntos foram ficando sérios. Bia disse que era
soropositiva; Tereza, mexendo nos brincos de
plástico, insistiu que sofria com desmaios crônicos;
e, por fim, Patrícia revelou uma região pubiana
pessimamente depilada. Na verdade, não gostaria
de compartilhar seus problemas pessoais com
ninguém. A propósito, para que isso possa constar
nos autos, eles não gozaram dessa vez, e o
assexuado se mostrou desolado como a galinha que
perdeu seus ovos de ouro. Ainda restava uma taça
de vodka, mas, quem sabe pelo estupor do
momento, a bebida tornou-se, ao menos para
Boamorte, poesia surreal. Então pediu, entre
soluços e gagueiras, para Bia, toda encolhida,
derramar o líquido na testa morena; a mulher
obedeceu sem reservas, tomando um banho de
álcool. A felicidade era uma questão de fechar os
olhos, esquecer o fast food da morte e lançar-se ao
vazio poético do instante. Com o equilíbrio
perdido, e mordendo carinhosamente a orelha de
Tereza, Heitor caía na desgraça dos acontecimentos
frustrados. Patrícia, assim como as putas que são
desertos, tirava a calça de funcionário público
usada por Helder, para aplicar-lhe um oral já sem
fibra. Pausa! O que significa essa miopia
momentânea? Se eles são assexuados, ou algo do
gênero, por que estavam fazendo certas coisas
esdrúxulas? Boamorte recobrou os sentidos e,
abrindo a gaveta de uma escrivaninha
aparentemente perdida por ali, achou uma faca para
fatiar bife; mas a facas que cortam bife também
cortam gente. O sinal, no entanto, fora claro. Já
vestidos, os membros da Ordem dos comedores de
livros expulsaram o assexuado, e Boamorte nem
esperou que lhe dissessem os motivos, afinal ele
queria se excluir por conta própria, mas não era
capaz dessa façanha. Preciso me encontrar com o
mendigo homossexual, disse para os outdoors que
mostravam, na imagem de um jovem sorridente, a
seguinte proposta: Alistem-se nas Forças Armadas.
Heitor Lembrou que não quis servir o exército, pois
os militares lhe assustavam. Então, em timbre
bélico, gritou contra a cidade sitiada: Sou
anarquista. Não era nada, tampouco algum
revolucionário futurista. Sangrando, decidiu visitar
o porto; veria os navios cargueiros, tão-somente os
barcos que poderiam mudar o humor negro
incrustado em seus sentimentos mais profundos.
Bia era aidética, mas esse termo é proibido; Patrícia
se depilava mal deliberadamente, buscando o
ferimento; Tereza, a mulher desmaio; Helder, o
falso professor com costeletas de filólogo
depravado. Subitamente, Heitor pensou em roleta-
russa, no velho transformista assassinado, na
moçoila de vestes alabastrinas e, sobretudo, nos
árduos anos da sua juventude onde, amuada como
os arvoredos que não dão frutos, Carla esteve
prestes a entrar num convento.

Carla não via apenas músculos, mas também


cabeças. Por isso se apaixonou por Heleno naquele
dia, num frigorífico, em meados de um ano denso.
Para ela, a ideia do convento morrera ali; depois
vieram os problemas com o amor, e ela passou a se
sentir cada vez mais sufocada, pois todos falavam
dela, dos seus erros e acertos. Na contramão de
Heitor, Carla era sempre vigiada, e essa situação
lhe desesperava. Certa vez, quando se escondeu no
porão para chorar, afinal não seria mais freira, seus
amigos comemoravam, aos berros, esse novo
acontecimento. E, ao fechar os olhos, ela parecia
sonhar com um cacho de uvas verdes que, das mãos
de Heleno, meio gastas, iam caindo na direção de
sua boca finíssima, quase que irreal feito desenho
animado. Assim os anos passavam depressa;
começou a pintar quadros impressionistas. Mas não
era Monet, bem como Boamorte, apesar do cancro
literário, também não era Verlaine. O fato é que sua
vidinha não era colorida ou impressionista, mas
tingida por abantesmas e dores pecaminosas.
Carlinha amava os outros, salvo os que estavam
mais próximos dela. Às vezes escondia-se para
fumar, principalmente quando as horas pareciam
iguais. Para mudar a rotina, entretanto, gostava de
pegar um táxi de madrugada, com o intuito de
conhecer a verdadeira cidade, porque a realidade só
acontece quando os pobres seres saem de suas
festas e tabernas assim, ora bêbados, ora
acompanhados por alguém interessante.
Geralmente, os taxistas perguntavam: Por que você
anda de táxi numa hora dessas? Carla soltava
muxoxos, prendia o cabelo e dizia cinicamente:
Quero ser a câmera do mundo. Os taxistas não
entendiam nada, e pisando fundo no acelerador,
mostravam os pontos mais imundos do município:
becos febris, menininhas se prostituindo numa
esquina poluída, pessoas sem abrigo brigando por
latrinas de lixo. Esse é o canteiro destinado aos que
nascerão para tomar conta destas terras? Eis a
pergunta cravada no espírito de Carla Montero. Ao
voltar pra casa, depressiva, logo se olhava no
espelho: era vampira. Ou melhor: assim como os
vampiros não conseguia se enxergar no espelho.
Estava vazia, de modo que nem os versos do
menino Rimbaud poderiam salvá-la. Independente
da alma corroída, e sempre procurando sair do
tanque de guerra que eram seus dias, ela procurava
se denominar da forma mais poética possível:
Carla, rosa dos meus lábios, salvação dos meus
receios, menina cingida de fogo! Você levita pelo
mar cáustico, alimenta meus desejos inverossímeis.
Esses eram, enfim, os delírios que lhe acometiam.
Como sabemos, embora o saber seja relativo, Carla
casou com Heleno, na igreja mais cotada, perto do
pé de goiaba que, desde épocas ancestrais, era
símbolo desse país em construção, cujo nome
brilha como brasa marcada, mas que, por respeito
ao leitor, não pode ser pronunciado. Aliás, antes de
Carla morrer, ela já nem se lembrava do vestido
usado no casamento, sequer sabia se era branco ou
creme. Mais tarde, quando todos falavam o nome
da nação onde viviam, as pessoas ainda fofocavam
sobre a garota que não virou Irmã, casou com um
homem quase fóssil e que, na calada da noite, sem
companhia ou proteção, saía por aí enfeitada, num
táxi, prestando atenção nas mazelas e misérias
humanas, e tristemente percebendo que essas não
eram poucas. O que há aqui, senão fumaça de
fábrica, falava para os taxistas, e suas pupilas
pareciam brilhar como um letreiro de uma boate em
inauguração. Sabe o que vejo, indagou o taxista
menos simpático que já pegara. Ela fingia ouvir a
caricatura bigoduda, mas tudo o que ouvia, em
suma, poderia ser dito assim: Vejo uma mulher
vazia. E Carla voltava para o sofrimento escutando
a mesma música. Mas de onde vinha essa melodia
violenta? Era, na verdade, uma mistura de sons de
guitarras elétricas e clarinetes desafinados. O
estranho é que os taxistas sempre ouviam essa
sinfonia mortal. Para ela, este som lembrava os
vizinhos viciados em entorpecentes, que brigavam
como almas repartidas. Somente os sábios podiam
escapar desse ritmozinho, pois os que se cobrem
com lençóis furados perante os redemoinhos do
caos, em busca da paz que nunca chega, são os
primeiros eliminados pelas tropas inimigas. Sim, a
senhorita Montero sabia que o clarinete era canhão,
e o solo da guitarra elétrica era como granada
explodindo num campo minado. Então, por mil
diabos que sejam, havia motivos para ter medo?
Não, gritavam os estúpidos que dizem Aqui não
tem terremoto ou tsunamis! Será que não enxergam
nossa batalha ambiental? E o que falar de um país
que se fragmenta em várias outras nações, sendo
que todas estas querem independência? Porém esta
música não faz apenas alusões às guerras políticas,
ainda que sua letra deformada, com refrão
subliminar, fizesse, se bem que brevemente, nossa
Carla pensar nos soldados da ONU, todos vestidos
de azul, fazendo suas missões no Haiti, na África
ou onde menos esperamos. Ah, ela morreu sem
lembrar o vestido que usara antes da troca das
alianças douradas, anéis estes comprados no cartão
de crédito, sendo parcelados em dez vezes! A
melodia, portanto, só teve seu fim quando, enfim
determinada, Carla desistira dos passeios de táxi,
bem como das pinturas impressionistas, uma vez
que seus quadros não eram ruins, mas apocalípticos
demais. Por um instante pensou na clausura que
perdera e, bordando freneticamente como
Penélope, olhava, com olhinhos safados, para a
tabelinha da menstruação, para o armário impoluto
onde estava sua monografia sobre o nazismo na
América Latina e, para terminar, na direção dos
dardos que jogava, sempre acertando, no meio da
testa do primeiro presidente Bush, segundo ela: O
Senhor dos conflitos banais. Depois pensava
novamente nos soldados da ONU, nas emissões de
gás carbônico e nas formas de vida sustentável; em
média, tomava banho em cinco minutos, visando
economizar água. Apesar dos seus esforços, e estes
eram muitos, Carla voltou a puxar um cachimbo,
em surdina, dentro do porãozinho que só ela
conhecia. Nesse lugar macabro, quase sem luz,
tinha ratos que guinchavam assustadoramente,
vermes espalhados pelo piso laminado e a música
do clarinete-canhão com a guitarra-granada. A
propósito, indo de um canto ao outro, Carla
Montero atirou o cachimbo contra uma estrutura
metálica, que logo rangeu, e o estampido emitido
parecia com vozes abafadas, talvez dos fantasmas
também vitimados pelo mundinho sanguinário,
porque eles, assim como nós, passaram pelos
mesmos crimes e castigos. A partir dessas
discussões podemos, através de nossas mentes,
tentar, embora com imperícia, decifrar o que
aconteceria se, no mesmo instante que Carla
deixasse o porão, Heleno aparecesse saltitando, de
boca colada, e com uma concubina corpulenta. Foi
isso o que ocorreu. O marido ajeitou a gravata,
aprumou o peitoral e continuou parado, esperando
os palavrões da mulher, que não vinham. Acabou,
disse Carlinha, e a amante, rebolando os quadris
avantajados, parecia ainda mais feliz e, ajeitando a
peruca ciano claro, piscou para a rival em flamas.
Precisamos conversar, atalhou Heleno soares. A
puta de peruca roeu suas unhas, depois arremessou
o cachecol da universidade no rostinho de Carla;
enquanto isso, à espreita, a morte já preparava sua
poção, o feitiço que derrubaria Soares e Montero.

Tudo é tão breve: os primeiros amores, o tempo


para pedir desculpas, a juventude e seus ideais
revolucionários, a estabilidade familiar, a
normalidade dos caminhos, as carícias sinceras, os
conselhos que deveríamos ter ouvido, a imensidão
do céu, os atos invisíveis, o gosto do café
quentinho, o chantili esparramado pelo corpo, o
contato com a força que os crentes chamam deus,
as relações amistosas entre países vizinhos, ou a
honestidade dos que acham uma mala e devolvem o
dinheiro encontrado nela; breve, então, somos nós,
os intelectuais vestidos com sobrecasacas
vermelhas, alguns com uma camisa do Che, outros
com uma atualmente pouco utilizada máquina de
escrever; breve é a felicidade dos poderosos! E,
como a brevidade dói, e machuca mesmo, Heleno
sonhava que estava, juntamente com Heitor, por
trás de um campo minado, onde os dois apostavam
a respeito das vidas dos guerreadores. Heitor
falava: Esse soldadinho vai explodir em três
passos; Heleno Soares rebatia: Ele dará cinco
passos, e depois boom! Soares sempre acertava. Na
sua derrocada rumo ao desespero, Carla se
rastejava por aí, os passinhos perdidos por
bequinhos infinitos. Arruinada, entrava em
qualquer taberna, bebendo de tudo. O assexuado,
que nesse tempo seguia Carla por todos os lados,
não compreendia a morbidez incrustada nela; se
pudesse, até mostraria a importância de se ter um
coração, sobretudo naqueles dias fétidos. Todos os
homens eram sombras capengas, tristemente
englobadas por uma tirania não vista. Em todo
caso, Boamorte pensou que, antes da tragédia
máxima, poderia amar, pela primeira e única vez, a
aviltada Carla Montero, que começara a ministrar
aulas de história geral numa escola do Estado.
Nossa educação é lastimosa, asseverava, e
trancava-se no carro blindado para choramingar
amargamente. Por que as criancinhas de hoje, ao
invés de bonequinhos ou peças de lego, usam
celulares e armas tecnológicas? Ela se perguntava,
com a asma atacando, mas, na maioria das vezes,
sentia que os esforços eram à toa, bem como a
existência que vinha levando. Dois dias depois,
para piorar o ânimo, Heleno foi ameaçado de morte
por um contrabandista com sotaque castelhano, que
o acusava de traição à pátria. Naturalmente o
acusado não entendia nada, pois passava a maior
parte do dia trabalhando ou, quando muito, lendo
os jornais e suas notícias parecidas. Acham que sou
espião, Soares disse ao assexuado; Heitor
Boamorte acariciou a barbicha, bateu no peito feito
um camarada da revolução liberal e atestou: Sua
esquizofrenia me surpreende. Na manhã seguinte,
pelo que consta nos relatórios policiais, Heleno e
Carla não mais acordaram. Estavam mortos,
mortinhos mesmo, de modo que era necessário
repetir: tudo é tão breve: o ponto dos namoros que
virou prisão, os festivais de flores, a certeza que
podemos deixar nossas coisas na rua, o macarrão
ligando a dama e o vagabundo, a primeira valsinha
da ninféia de quinze anos, a primeira pílula
anticoncepcional, os últimos telefonemas que não
chegaram, ou o porto que anuncia o barco de
Neverland, a sineta anunciado o recreio pueril, a
película proibida pra menores, o derradeiro
dramaturgo lido numa primavera interminável e a
chance de, apesar do bloqueio, dois indivíduos, no
caso Soares e Carla Montero, falarem o quanto
queriam que fossem beijos o que, na realidade, foi
ilusão. Mas não havia reparação, curativo para
mitigar tamanha dor. Quando o inferno dantesco
dizia ser a única saída, Boamorte pensou no exílio;
e, chamando Olivinha, foram para o bosque de
ninguém, lá nas cordilheiras onde o amor, para não
perder o ofício, havia fenecido.

Frida balia, rangia, cacarejava, só não falava.


Veio decidida a tornar, pois estas eram suas
palavras, o assexuado num homem de verdade, se
bem que esta última expressão é um conceito
imposto pela portentosa persona que chamamos
sociedade. Frida também tinha uma estatura
diminuta, e o corpo parecia algo pegajoso, como se
estivesse banhado por uma calda de graviola. A
mulher havia entrado no aposento com um copo de
suco de laranja, então oferecido por Olívia, a
anfitriã. Mas Boamorte não aceitou a bebida
porque, aproveitando a mudez de Frida, poderia
contar qualquer coisa, inclusive relatos sinistros.
Foi direto: Não conheço o amor mútuo, mas tão-
somente o não correspondido. Os olhos da muda
estavam marejados, e o assexuado prosseguiu:
Quando moleque amei demais uma garota; ela só
gostava de caras mais velhos, assim como as
mocinhas de hoje em dia. Eu, contudo, percebia
que os fanfarrões apenas queriam usá-la, a fim de
fazerem propaganda sobre suas virilidades. Bom, a
garota se chamava Adriana, e nunca descobrira
que, quando estava ao seu lado, eu sentia náuseas
e pontadas agudas no peito. Agora Frida fitou
Heitor, o qual, na singularidade do instante, parecia
um bibelô, frágil e carente, claramente precisando
de auxílio, embora ainda tentasse impor uma
postura robótica, isto é, como se nada de
extraordinário estivesse acontecendo. Em seguida
foi olhar, pela janelinha trincada, a condição do
trânsito; logo se alarmou. Baptista, no quarto
contíguo, bradava como se, por causa do baque da
notícia, tivesse perdido o juízo: Mataram o
prefeito! O corrupto foi atropelado. Como a
surpresa sempre traz novidades, Frida, em susto
confesso, falou, e até que sua voz era leve, talvez
meiga ao extremo. Assim, uma vez que ela não
tinha precisado tirar sua roupa vanguardista,
acabou puxando Heitor pelo braço, de modo que
ainda tivessem tempo de, na melhor das hipóteses,
ao menos ver se realmente se tratava do prefeito, o
senhor Azevedo, o calhorda que só trouxera
espinhos para a cidade. Então, quando já estavam
na cena do acidente, as fisionomias estáticas e com
mãos no coração, então vislumbraram a ironia: era
o prefeito. O coitado tinha sido atropelado pelo
carro verde-floresta, o conversível responsável por
suas propagandas políticas. Além disso, o
inverossímil ainda estava por acontecer: enquanto o
prefeito agonizava, notoriamente se debatendo,
ninguém ousava chamar a ambulância, nem mesmo
os assessores do político. Era como se o próprio
serviço de saúde quisesse que o falastrão
empacotasse; na marcha contrária a tudo isso, e
ligando irrefreavelmente para os hospitais, estava
Heitor Boamorte. Observação: ele sequer votara em
Azevedo, pois anulara seu voto, mas, vendo-o ali,
na frente dos eleitores frustrados, entendeu que,
apesar da sonegação dos impostos ou das verbas
desviadas, José Relicário Azevedo também era,
querendo ou não, um homem desestruturado que
havia galgado os degraus do poder. Por isso, entre
um pensamento e outro, Heitor se questionava: De
quem é a culpa? Não, não havia culpados, mas
cúmplices. E, sem nada pra fazer, Boamorte
acendeu o primeiro cigarro do dia, sabendo que
ainda morreria de tanto fumar. Aborrecido, pôs-se a
andar sem rumo pelo centro fedorento e, quando
teve o ímpeto de arremessar o maço de cigarros
para o alto, acabou desistindo da ação, já que um
velhinho com cartola de mágico, óculos redondos e
empoeirados e um terno de pinguim, acochado,
impediu-o desse gesto desolado. Ora, se não é o
famoso assexuado, brincou o velhinho, que não
parava de fazer caretas. Quem é você, indagou
Heitor, e o perguntado deu língua, exibindo
algumas manchas esbranquiçadas na boca de
coringa. Sou poeta de rua, respondeu o velhinho;
depois acrescentou: Meu nome é Armando
Velásquez. Para não perder a comicidade ali
praticada, Boamorte revidou com caretas
inexpressivas. O poeta de rua, que caminhava
arqueado, além de mancando sofrivelmente, ainda
disse, em tonalidade áspera: Você quer mudar? Se
sua resposta for não, o problema é seu; mas, caso
a resposta seja afirmativa, o problema é nosso! Ele
parecia trabalhar nos Alcoólicos Anônimos; até
porque conservava uma característica marcante de
motivador social. Posso lhe ensinar a fenda para
Atlântida, a magia para paralisar o tempo, a
invisibilidade quando necessária, o baluarte das
montanhas que se movimentam ao nosso comando.
Bem, você terá a mirra e a chave, o cadeado e a
fórmula da coca-cola. Sabe? Ao pisar no lodaçal,
teus pés criarão loureiros, azaléias e roseiras de
qualquer coloração.

Como posso ter esses poderes?, interrogou


Boamorte, o âmago tremendo como se gigantes
pisassem, com os pés que são abalos sísmicos,
dentro dele. Armando Velásquez, o mediador dos
milagres nessa época sem milagres, arrematou:

Não seja tolo; seja poeta.

Heitor assentiu.

Depois o velhinho levou-o para um armazém,


suposto lugar onde ensinava aos seus discípulos os
truques da poesia e, acima de tudo, os mistérios por
trás de nossos corações. Por que temos um
coração? Você não sabe? Conte-me uma história,
meu caro.

O assexuado, sem foco algum, pareceu


transcender. Disse vertiginosamente: O amor é um
troço difícil. Esta afirmação, ponto de partida para
minha história melosa, deixa ou parece deixar
claro, um sabor de cereja em nossas bocas
ressecadas. Afinal... do que deveria falar, senão de
amor? Alguém, certo dia, comentou: estou
gostando de uma garota, mas não consigo
expressar, em palavras, o que estou sentindo.
Pobrezinho! Feito você e eu, ele sofreu o coito do
amor. Porém, por bem ou por mal, quem vai trazer
nossa virgindade amorosa de antes? Aliás, isso
não é tudo, até porque estou transbordando de
tanta paixão; fato este bastante complicado, ou
melhor, tão bizarro que outro fulano me plagiará:
‘’o amor é um troço difícil’’. Ademais, com efeito,
devo confessar: só as declarações românticas
deveriam ser plagiadas. Contudo, põe ponto ou
tira ponto, volto meu curto texto ao amorzinho da
minha vida. Ela, toda minha, ao menos em meus
devaneios de Forest Gump, continua ali, sentada
na calçada de sua casa, talvez pensando em mim;
quase certamente, e nessas coisas pouco erro,
pensando em outro. Ah, mas o amor é um troço
difícil, sem bigodes ou cavanhaques, sem
shortinhos ou calcinhas, livre como topless,
hilariante feito piada de sogra. Agora, no entanto,
não sei o que dizer, nem o que beber, ou como
continuar. Só sei de uma coisa: ela ainda está lá,
gelada e quente ao mesmo tempo, esperando com
pressa meu abraço, minhas loucuras de TE
QUERO PARA SEMPRE, meu coração como
oferenda incondicional, eterna. E, quando o
mundo terminar, águas de todos os sabores e
purezas nascerão, ou flores de novas espécies
desabrocharão, céu e chuva irão se casar. Mas
este não é o final, pois meu mundo só começará,
enfim, quando encontrar os lábios teus.

Armando não estava satisfeito. Pelo contrário,


com os olhos como rifles, ordenou, para não perder
seu arquétipo de professor absorto, que Boamorte
falasse da dor.

Heitor crispou os lábios, chateado, e fez o que


lhe era mandado. Falou:

O que governa o mundo, senão a dor? Este


anseio de se livrar do inesperado, de sentir no
corpo ou na mente a rejeição de um amor não
correspondido, de uma carta não respondida, de
um grosseiro tapa que parece fremir dentro dos
nossos corações despedaçados, humilhados,
jogados contra o vento teimoso, pueril, capaz de
nos tornar prisioneiros quando estamos livres,
libertados de um sistema excruciante e frio; pois
estamos agasalhados em casacos feitos de peles de
animais, que infelizmente também sentiram em
seus corpos e espíritos a dor, ela mesma, ela
sempre, donas das chaves que regem o caos,
senhora absoluta dos encontros fugazes, dos
comprimidos para depressão que tomamos nos
dias de chuva, infernal rainha daqueles que
clamam por paz, amor, respeito e temperança. Ah!
Mas viver sem ela é impossível! Afinal o que seria
dos poetas, dos filósofos, dos hermeneutas ou até
mesmo dos loucos se a dor não existisse, se fosse
apenas uma invenção de nossas cabeças
ensandecidas? Por isso, no fim das contas, não
importa onde ando, falo ou tombo, pois tudo que
penso é dor, e tudo que amo será dor.
O poeta de rua extravasou: Você pode melhorar.
Fale da Humanidade; pode enlouquecer à vontade.
O assexuado tentou, em inspiração abalada, fazer o
melhor possível.

As pessoas se preocupam com status, mas eu


quero amar, viver coisas novas, deixar na pele o
gosto da primavera infinita. Bem, amor meu, sabia
que teus olhos são meu único caminho, minha
única e maravilhosa forma de me considerar vivo,
alegre? O sol já não brilha como antes, e isso
causa medo, insônia, indiferença, uma melancolia
que cresce como uma labareda de chamas
profanas, daquelas que não acreditam em deus
com D maiúsculo, dessas que insistem em rasgar
todas as folhas de minhas melhores poesias,
tornando-me apenas um homem como qualquer
outro, isto é, nem pequeno ou grande, nem forte ou
fraco, insosso ou salgado, mas como dizia
Nietzsche: ‘’Demasiadamente humano’’.

Velásquez e Boamorte estavam chorando.


Lágrima: o silêncio dos olhos, o grito das
pálpebras, a urna que se abre com os enigmas da
vida. Não, não somos capazes de, apesar do
esforço, perceber os motivos dessas torrentes de
águas lindas descendo de nossas vistas. Depois as
pupilas dilatam, e nem sabemos mais se são
lágrimas verdadeiras ou de crocodilo; e o
lacrimejar torna-se sortilégio, ou dom divino, uma
vez que nada parece ser tão sincero, tão natural; é
como a quebra de muros opostos, de ciúmes tolos
ou invejas enraizadas na memória. Mas o choro dos
poetas, e essa é uma grande verdade, nada tem a
ver com o choro dos cientistas e religiosos. Assim,
para os que choram bastante, resta a certeza que, na
esquina do tempo, eles possam ser estrelas d’água
ou golfinhos que sonhavam ter virado homens. E,
nesses passeios chorosos, vemos que, desde o
nascimento, já estamos lavados em lágrimas, e,
sendo assim, sentimos o chororô dos atletas no
pódio olímpico, os prantos rasgados dos que
perderam um ente querido. Seja como for, o
prefeito Azevedo morrera entre sorrisos, ou seja, na
mais perfeita antítese do nosso objeto de estudo.
Pois bem, chorar é como estar encarcerado dentro
de um espelho mágico; você bate no vidro, tenta
destruí-lo, mas, em termos práticos, acaba ainda
mais aprisionado, ficando escravo do próprio
reflexo medonho. Quantos agraciados não
choraram no discurso de Martin Luther King?
Quantos ‘’enfeitiçados’’ não se debruçaram em
choros imponentes diante da retórica de Adolf
Hitler? A lágrima sempre esteve presente aqui,
entre o bem e o mal, entre adágios populares e
preconceitos incubados, bem debaixo de nossos
narizes empinados. De fato, o beijo vindo antes ou
depois do dilúvio das lágrimas é muito mais lírico
que o velho riso frouxo, quase sempre uma
máscara. Assim sendo, Heitor cessou os prantos, de
súbito, e disse sem mais delongas: O que preciso
fazer? Armando, ajeitando a cartola mágica que
estava prestes a cair, respondeu com outra
pergunta: Pode uma pessoa viver sem sexo? Muitos
vivem assim, cortou Boamorte, para calar o poeta
de rua. Este bufou tediosamente, caiu numa
gargalhada estridente e, limpando o buço suado
com um papel-toalha azul-piscina, não mediu suas
palavras, e como que ordenasse, embora não fosse
esta sua intenção, falou secamente: Faça amor com
uma deusa latino-americana; desse jeito, caso
minhas previsões poéticas e astrológicas estiverem
corretas, nosso sofrido continente será salvo.
Mesmo assim, em primeiro lugar, mude sua
própria imaginação; em seguida, porém, faça o
que quiser. Heitor não disse nada, e saindo do
armazém, que era sujo como a alma humana, ainda
teve tempo de ver, com a face estarrecida, a grande
comitiva de trabalhadores nervosos batendo
colheres e panelas, talvez numa espécie de greve.
Queriam um aumento salarial, e atrás deles, numa
fila nada civil, os professores da rede pública de
ensino, então vestidos em becas tradicionais,
reclamavam, com suas vozes entoando canções
democráticas, sobre a condição precária de ser
educador nesses tempos de agonia e ignorância.
Greves, lágrimas, vida sem sexo, prisão perpétua,
alojado num espelho funesto: esses eram os terrores
de Heitor Boamorte, o espírito maligno condenado
aos julgamentos prévios de uma gente de mente
fechada. Daqui a pouco, todavia, estaria ali,
debaixo dos galhos de uma mangueira, perto dos
canaviais que deviam ser patrimônio público, mas
que eram lixões ambulantes. Se pudéssemos sorrir
das desgraças de Boamorte, talvez a cidade sem
nome ficasse um tiquinho mais feliz. Enfim, e
glórias por isso, a grande árvore apareceu e, em
toda sua contemplação, o assexuado concordou
que, dali por diante, só iria sossegar quando, no
término da luta, já não fosse dependente de Carla;
muito pelo inverso: treparia com a mais fértil das
latino-americanas, se bem que, verdade seja dita,
ainda delirava perante os delírios acerca das musas
espanholas, porque seu amigo de infância estava lá,
nas entranhas européias, livre e com capital de
sobra, e possivelmente há muito esquecido da
existência de Heitor. Agora o narrador se despede
por enquanto. Por fim, antes dessa licença poética,
sou obrigado aos seguintes dizeres: grandes leituras
precisam de grandes leitores. Desfrutem da sintaxe
do próximo autor.

Alguns me chamam de Heitor Boamorte, outros


de Assexuado ou bêbado, mas isso fica conforme o
seu bel-prazer. Meu relato será breve como uma
noite que poderia ter sido perfeita. Bem, fui atrás
do meu sonho latino-americano.

Eu sabia que iria morrer com meus


brinquedinhos sexuais. No entanto, antes desse
trágico fim, uma coisa tinha de ser feita: minha
virgindade, sem dúvida, abandonaria meu corpo
achatado. Sim, era um virgem de idade avançada,
quase calvo, amante dos filmes que, segundo os
imbecis, são de péssima qualidade, ou melhor,
simplesmente películas B.

Em todo caso, sempre fui um homem prevenido;


minha coleção de camisinhas pode, porque ainda
brinco com elas e, de forma encantadora, encher a
estante de uma portentosa biblioteca. Na verdade,
por tudo no mundo, meu cabaço seria extinto. Só
não imaginava com quem. Talvez com uma puta
qualquer, dessas bem brasileiras: bundão e
rebolado no pé. Eu me perdia em clichês enquanto,
do outro lado do mundo, mais um idiota punha os
pés na calçada da fama. Talvez, como vocês devem
pensar, eu seja um boboca lascado, pois assim são
muitos dos latino-americanos, embora a maioria
possa negar com veemência.

Os Classificados, isto é, o caderno de anúncios


do jornal, estava em minhas hepáticas mãos. O
acervo de putas e putarias era sensacional. Um
deles: Joaninha: Gostosa do começo ao fim. Dez
reais; outros: Silvana (pedaço de mau caminho);
Liandra (serviço completo); Carla (ninfeta sensual,
corpo de princesa de cinema); Talita (tratamento
vip. Após me levar para jantar num restaurante
chique, o bem-bom é completo); Leca (dezoito
anos, corpo sarado e safadinha); Andrea Milk
(morena gostosa, especialista em oral africano)
Oral africano? Tereza (bunda brasileira, seios
americanos e cara de Miss); Bela Joana (novinha
do sul, habilidosa em massagens e, como
proclamava, rainha do sexo tântrico); Laura
Piriguete (bundinha castelhana e peitos
alucinógenos).

Confesso que a última me atraiu um bocado; sua


descrição acalentava meus vícios criativos:
bundinha castelhana e peitos alucinógenos. O
negócio era bom. Mas, como sou curioso, mau
hábito de gente desocupada, agouro de sujeitos
metidos a poetas, direcionei meus diminutos olhos
para a parte dos travestis. Contentei-me, contudo,
com os cinco primeiros anúncios. Eis a morbidez
de meus instintos: Vanessa Net (traveco 100% e,
acima de tudo, amante de orgias ao estilo Baco);
Rogéria Devassada (aceita todo tipo de macho, seja
movido por álcool ou gasolina); Priscila do deserto
(‘’Uso bregueços sexuais; tenho um brinquedo de
quase trinta centímetros... ’’); Halla Cabala
(orgasmos incontroláveis); e, por fim, Raina Star
(cu de todos nós!).
Aliás, passei a noite em claro. A pesquisa de
putas exigia uma sabedoria de Salomão. Se bem
que, de alguma forma, não sei qual, adormeci na
poltrona ainda lacrada, comprada numa loja gótica.
Chamava-a Mistral (uma homenagem para a
poetisa chilena, escritora esta que nunca li). Em
seguida, ainda devaneando no espaço pesadelo-
realidade, mergulhei no meu primeiro sonho latino-
americano.

Estava só como um legítimo brasileiro. Enquanto


os gênios das artes latinas, em todos os seus
campos, sentavam numa mesa redonda e
gigantesca, eu, o único ‘’canarinho’’, choroso e
recalcado, ficava acocado no canto da câmara de
luz fluorescente. Suava muito. Todos peroravam a
respeito das obras literárias mais marcantes do
século passado, sendo que um deles, um rapaz de
boina militar fixava seus protuberantes olhos
descompassados em minha direção, numa espécie
de jogo onde, objetivos traçados, o seu consistia em
me encarar com pena e superioridade. No meu
cantinho opaco, dengoso, lia uma tradução de
Borges para o português, afinal nunca aprendera o
espanhol ou castelhano.

Apesar das intempéries do passeio onírico,


consegui acordar com certa disposição. Queria
juntar o continente Americano, libertando os medos
políticos que tanto nos juntavam e separavam, bem
como um conjunto de irmãos pragmáticos,
evidentemente entrelaçados por intermitentes
contradições. Pensei, então, em mudar de
estratégia. Que tal copular com uma escritora
chilena, assim como Gabriela Mistral, ou melhor,
bem mais bonita que ela?

Logo, sem maiores dificuldades, encontrei o


endereço de uma contista chilena, residente no
Brasil desde sua expatriação. A mulher de tenra
face morava sozinha nestas terras verde-amarelas.
Quando entrei no seu apartamento, não pude deixar
de notar o fulgor de seu rosto imprudente,
meticulosamente maquiado. Ela disse: O que o
senhor deseja? Seu português, meio ranhoso,
seduzia minhas labaredas espirituais. O jeito foi
contar minha história. Maria Rosales enrubesceu,
expulsando-me com grasnidos excitantes. De modo
que, mais uma vez, larguei-me nos zéfiros dos
meus sonhos. E, toda vez que despertava, sem tato
ou direção, uma nova ideia se materializava: Vou
procurar uma modelo venezuelana.

Achar Constantina foi uma missão custosa, pois


como não gostava de moda ou afins, tive de ir
numa dessas semanas de desfiles, e, graças a esse
esforço macabro, conheci a modelo, mas não me
pergunte o disfarce que usei para entrevistá-la no
camarim. Constantina, diferentemente de Rosales,
gostou da minha cara. Pouco depois, estávamos
num quiosque de estrada bebendo um abismal suco
de tomate, o preferido da Miss Venezuela, dessa
garota nascida em Maracaíbo, fã de beisebol e
namorada de um lutador de Greco-romana. Este,
com ‘’mucho’’ gosto, esperava-a no aeroporto há
mais de meia hora. Mas sua namoradinha não iria
aparecer porque, segundo suas funestas palavras,
tinha se cansado dos homens. Ou seja: o sonhador
aqui, amuado e insano, havia, numa jogada só,
errado o alvo e perdido na loteria. Daquele mato
não sairia cachorro. Em compensação, ao levantar
no meio da madrugada feito um sonâmbulo
embasbacado, pensei: Eureca! Mais vale uma
‘’hermana’’ argentina.

Minhas investigações, cuja procedência não será


relatada, levaram-me para uma periferia animada,
pelo que pude vislumbrar, ao som mesclado de
batuques e guitarras elétricas. Hum, o fato é que
Cristina Rodríguez, ninfa de sardas e espinhas,
‘’escondia-se’’ ali, na favela da alegria. Com muito
bom gosto, penso eu, toquei a campainha da
menina da internet, isto é, da jovem que encontrei
lá, com uma foto picante num site amador. A
diabinha também escrevia textos eróticos. Assim, a
senhorita Rodríguez abriu a porta de supetão.

A visão a seguir é proibida para menores de


dezoito anos. Cristina estava seminua, os cabelos
tingidos de vermelho cobrindo os pequenos e
firmes seios, e uma calcinha transparente, cujo
único tapa-sexo era o estandarte do Boca Juniors, o
time de futebol mais popular da Argentina. Assim,
talvez sobressaltada, ela soltou um muxoxo:
‘’Merda! Pensei que era o Abelardo’’. Não insisti.
Peguei o rumo de volta, fantasiando o corpinho da
pequena erótica.

Então, para os que ainda me acompanham nesse


conto de veredas intermináveis, só me restou andar
no meio-fio de um precipício. Talvez minha causa
mortis não fosse os brinquedos sexuais, mas o
suicídio que tudo apaga. Veio uma sucessão de
prantos, pois não era capaz de tal absurdo. Sob a
luz mortificada dos postes, regressei ao meu
querido lar de paredes cinzentas. Tomei uma ducha
pesada, enquanto a televisão ligada (sempre
deixava minha TV desse jeito) transmitia o último
capítulo de uma novela mexicana com um nome
brega, além de ser terrivelmente dublada por vozes
forçadas. E, seguindo esse ritmo ‘’caliente’’, o
brilho desceu dos céus: Chegou o momento de uma
mexicana apimentada em minha vida.

Juanita vendia amoras numa feira. Depois, então,


voltava para sua quitinete, sozinha, doida para ler
os livros de Roberto Bolãno. Portanto, quando seu
relógio de ouro, roubado em alguma ocasião,
anunciava o meio-dia, ela almoçava seus
mantimentos insolitamente temperados.

A feia feirante recebeu-me de braços abertos,


hospitaleira como uma freira caridosa. Lembro que
comi uma porção de salgadinhos cobertos de óleo.
Em todo caso, terminada sua ajuda alimentícia, a
gorda Juanita pareceu esmorecer. ‘’Psiu! Vou ler
Bolãno e assistir minha novela’’. Curiosamente, ela
só via as telenovelas da rede Globo, ou seja,
produções Made in Brasil. Onde, então, pulsava seu
coração mexicano? Decepcionei-me. Não queria
esfaquear minha castidade com uma traidora de sua
pátria. Todas as noites, entretanto, conforme fiquei
sabendo, Dona Juanita rezava em nome da santa
padroeira de seu país. Eu não fazia ideia.
De qualquer forma, para meu alento, os sonhos
voltaram. Dessa vez, salvo meus toques
hiperbólicos, eu dormia sob uma macieira,
desprotegido, prestes a sofrer com a queda de um
fruto. Todavia, postada ao meu lado, e, beijando
meus frágeis lábios, uma linda camponesa da
América do Sul franzia a testa com desprezo,
fazendo pouco caso da minha presença. Em sua
blusa social masculina, impoluta, uma inscrição
chamava a atenção: ‘’Vítima da guerra do
Paraguai’’. Restavam-me apenas um bocado de
lágrimas sinceras. Claro, a partir do dia que nascia
banhado em raios fúlgidos, procuraria uma
paraguaia. Era minha última chance, meu
derradeiro espasmo contra a penumbra que me
perseguia, atroz, martelando meu coração em
disparada.

Frio, tédio, angústia. Cadê minha busca?


Perturbava-me comigo mesmo, com a minha
indigesta incompetência. Eis, então, a cortina dos
absurdos da vida se escancarando. Enquanto
tomava uma dose de cachaça numa espelunca
denominada O equilíbrio dos bêbados, uma
atraente mulher dos Correios ia se aproximando do
meu banco carcomido, comido pelos dissabores da
existência. No balcão, ao meu lado, pediu um copo
de vermute; depois saiu com o copo na mão,
seguindo o embalo de uma velha cúmbia
colombiana ou, quem sabe, lá das bandas do Peru.

Embora não curtisse essas lambadas latinas, pois


sempre fui do contra, tive de me esbarrar com a
‘’muchacha’’ do vermute que, segundo seu
sotaque, pensei tratar-se de uma uruguaia perdida
nas fronteiras Brasil-Uruguai. Não, eu realmente
não estava certo; a fulaninha, ainda dançando, disse
rispidamente: Sou paraguaia. Odeio vocês, os
brasileiros de merda, sujeitinhos responsáveis (ela
esquecera os argentinos e uruguaios) por uma
guerra estúpida, matadora de uma marcada geração
de paraguaios.

É preciso dizer: De súbito, sem medo de ser


feliz, deixei a paixão me guiar por seus caminhos
utópicos. Sim, encostei meu lábio úmido no
pescoço de girafa da carteira-dançarina. Senti seu
cheiro de exílio. Mas ela foi a primeira a falar:

Você fede a ditadura

Eu respondi:

Você é uma solteirona pirata! Fabricada na


mafiosa Assunção!

Minhas exclamações foram ásperas, porém


infundadas e mentirosas. Ela, no final das contas,
amava a terra do pau-brasil; eu, no final das contas,
amava as nações derivadas do Latim. Ambos,
portanto, tínhamos muito em comum. Por isso,
apesar das discussões acaloradas, Odete Calderón
(que belo nome!) ofereceu sua hospitalidade por
um dia.

Seu muquifo era de doer nas entranhas. Em vez


de dizer isso ou qualquer outra bobagem,
permaneci calado, austero como um monge. Como
minha condição de Homenzarrão imaculado já
havia sido explanada, somente esperei seu retorno,
o tão ilustre ‘’feedback’’. Odete, porém, deu de
ombros, indo trocar sua vestimenta. Quando voltou,
sorridente, novo silêncio, dessa vez por causa de
sua camisola magenta. Nas costas, quase nos
quadris voluptuosos, a inscrição: ‘’Vítima da
guerra do Paraguai’’. De resto, nem tencionava
entender sua rebeldia, aquele abatimento forçado,
provavelmente feroz por conta de algum ancestral
perdido na tal hecatombe. Bem, deveria ser alguém
muito importante. Mas tudo que eu queria, no
entanto, era transar com ela porque, ao invés de
cumprir minha promessa antes do apagar das luzes
póstumas, isto é, da morte, meu anseio lírico
acreditava que, entrando em contato com o corpo
da macambúzia senhora Calderón, o mundo dos
latinos seria um só, como uma unificação das
nações irmãs.

Odete Calderón mostrou os vastos seios, maiores


que as Américas, mais sofisticados que a Europa,
mais sedutores que a África, mais organizados que
a Ásia e suas tecnologias de ponta. Ela sorria
devagar, um sorriso de dentes cintilantes, dentes
que guardavam uma língua superior, exterminadora
da barreira de idiomas. Bom, minha amada
paraguaia puxou uma cadeira de plástico. Sentei.
Debaixo de uma iluminação diáfana, meio
incandescente, Odete pôs as cálidas mãos em meus
olhinhos dispersos numa viagem beat, hippie,
surrealista. Pedi para começarmos a ação. Tenha
um sonho latino-americano, meu amor repetia com
voz de oráculo. Dormi um sono de Orpheu.

Nem sei se fizemos amor; sei que não empacotei


com os brinquedinhos sexuais; sei que, depois do
despertar, a América Latina era uma só.

Sim, sou chato; o mal reside onde menos espero.


Vou, pois, cortar o barato de todo mundo, já que
direi os segredos que vocês querem, uma vez que o
escritor deste livro, cuja demora me aflige, ainda
não explicou. Vamos lá: Roberto Burger, por
exemplo, era pedófilo; Alana, a prostituta com
Síndrome de Down, tinha o seguinte mistério
guardado em sua bolsa: uma lista com os nomes
dos futuros escritores ganhadores do Nobel de
literatura; o poeta de rua, nosso prestigiado
Armando Velásquez escondia, nas entranhas do
armazém poeirento, a pequena Charlotte, sua
filhinha que, por motivos diversos, não queria
compartilhar com o mundo; Baptista, o suicida
diário, sempre quis se matar de verdade, mas era
covarde demais pra tanto, de modo que, em questão
de poucos anos, seria internado numa clínica de
reabilitação psicológica. Na certa, o autorzinho
deste romance que você devora fantasticamente
tentará, sem sucesso, negar minhas revelações
precoces; e, como continuarei fofocando, péssimo
ato dos desocupados, o fato é que muita coisa vai
feder, e olha que não estou me referindo ao rio
poluído que corta meu bairro. Nossa, a tristeza é
límpida até mesmo numa quebra de clima. Querem
saber? O dólar e o euro estavam em queda quando,
correndo pela Rua das Cidreiras consegui, através
dos faróis de um rabecão, notar o pesar que era
viver assim, sem um corpo pra tocar, sem um
acalanto para dedicar minhas vitórias e tropeços.
Debaixo de uma folha de um arvoredo cujo nome
me escapa, vi a gotinha d’água descer
paulatinamente, para acertar meu rosto fantasma,
minha pele fantasma, a vitamina sem açúcar que eu
havia me tornado. E, por onde andava, tinha de
encarar os felizes chupando alcaçuz, as festas
familiares por conta de um aniversário. Às vezes
me perdia nos pardieiros de música lasciva, nos
botequins onde o futebol virava guerra, nas
audiências sobre crimes hediondos, julgamentos
estes ocorridos no precário tribunal da cidade.
Depois passei a ouvir vozes; pouca coisa, talvez
alguns sibilos na escuridão. No geral, até sentia
falta do Anjo sorumbático, dele e do seu físico
âmbar, desses que revelam força, muito embora ele
fosse o mais triste entre os tristes. Será que não
vivia uma fantasia, um jogo de aventuras criadas
por mim? Como explicar meus sentimentos por
Carla? Alguém, por acaso, lembra da então pouco
comentada Olívia? Belos eram os seios das moças
que buscaram, em vão, matar minha conduta
assexuada. Resolvi procurar o sábio Helder, para
pedir desculpas; mas ele, bem como meu pai, nunca
estava. Aliás, ainda esperava meu velho, no
banquinho do ponto de ônibus, e essa espera me
angustiava. Então, para não entrar em desespero,
sempre levava algum livro; nesse tempo, pelo que
posso recordar, lia romances árabes. Como era
lindo o Taj Mahal, ou os caminhos sedutores que
estes livros místicos me revelavam. Pensei que
ficaria esperando o senhor Boamorte I eternamente,
e também acreditei que, para ele aparecer, eu
deveria, mesmo na dor ou no frio, ler os textos das
arábias não durante mil e uma noites, mas, como
um filho pródigo, durante mil e um sábados. Como
todas as lendas a respeito disso dizem que eu morri
assim, nada posso fazer, a não ser zombar: Nunca
estive tão vivo! Agora rufem os tambores! Vou
mexer com vocês, os leitores fantásticos. Diga-me,
leitor atento, o que falta nesta obra? Sinto dizer:
Mas estão dizendo que vocês não são um
diferencial, que não leem como deveriam, e eu até
concordo com essa teoria. Também falam: Quem
escreve em nosso país não pode viver nesse ramo
por muito tempo, de modo que muitos ficcionistas
jovens acabam desistindo. Talvez os leitores nos
salvem, porque o romancista desta terra
preconceituosa precisa se lançar cada vez mais
contra o fogo das ideias previamente concebidas, e
é por essa razão que me perco neste marketing
literário, pois é o que ainda posso fazer. Então
leiam na dor, no amor e nas desilusões da vida;
continuem, pois, a conhecer o mundo através dos
livros! Não cabe a mim, na verdade, inculcar
qualquer revolução em suas cabeças, mas, por
conta desta época brutal, é necessário tentar isso,
isto é, tentar morrer por aqueles que, insatisfeitos
com o rumo das coisas, ainda guardam um
tempinho para a leitura, para a discussão sobre o
que o autor estava propondo. Ou seja: se alguém
lhe falar: Você não é capaz de mudar, por favor,
não ligue para tal absurdo; até porque a história dos
sangues derramados e dos sacrifícios humanos em
busca de um tempo melhor estão enraizados no
guerreiro e na amazona que, por vontade própria,
estão sempre abraçando um livrinho. Alguns, como
sempre, não gostaram de mim, já que roubei o
posto do narrador. Em linhas gerais, os poucos que
entenderam meu texto serão, ao menos por partes,
um pouquinho mais felizes, embora a felicidade
seja como uma gripe, tendo como explicação que
esta, quando assim deseja, vai e volta, volta e vai.
Aliás, salvo algum engano trivial, acho que esqueci
pouca coisa, talvez uma ou duas, sobretudo em
termos de relevância. Deixo, contudo, e em anexo,
uma de minhas derradeiras histórias: o caso do
falecimento de meu pai. É, os casos da literatura
precisam ser pessoais, e seguindo essa corrente,
não antes de assoar meu nariz que sangra, enfim eu
começo: Mil e um sábados haviam se passado, e
nada do meu pai. Aí, ao ser assombrado por um
desses relâmpagos imortais, acabei me lembrando
da minha cliente, uma mulher desgovernada que
havia me dito: Encontre-me no cabaré, perto do
local onde enterraram seu coroa. Eu fui. Penando
para não chorar, logo pisei no solo, no tal terreno
baldio onde, vítima de uma gangue sem escrúpulos,
o austero Boamorte I estava enterrado. Ele não
tivera uma boa morte, bem como sugere seu nome,
pensei, e lançando uma pétala de uma flor amarela
em cima do túmulo de araque notei, pelo brilho dos
olhos fumegantes de minha acompanhante, o quão
sublime era meu ato, o ato de um filhinho que
esperou o pai por mil e um sábados, sendo que o
certo, indubitavelmente, seria tê-lo buscado onde
quer que ele, na penumbra do momento, tivesse se
infiltrado, e é bem verdade que tudo que fiz foi,
graças a uma florzinha amarela, resumir o amor
que nunca tinha sido, ou o relacionamento de
camaradagem que não havia vingado; e a flor
amarela demorou a cair, pois o vento a balançava
de um lado para o outro, e meus olhos eram os
únicos acompanhantes dessa dança incessante. Meu
espiritinho sangrava mais uma vez: Meu paizão
não morreu! Ele não pode fazer isso comigo! A
vontade que eu tinha consistia, apesar das
recomendações dos amigos, em fazer parte da
maldita gangue, do terrível grupo de extermínio
culpado por essa tragédia. Assim, com voz ativa no
grupo, poderia mandar nos idiotas, fazendo mais ou
menos desse jeito: Leiam estes catataus árabes
durante mil e um sábados.

E os mil e um sábados viraram mil e um motivos


de tristeza. Eu, quase sem saber, sempre estava
acordado quando todos adormeciam, e inocentes,
bem como o soneto de Camões, eles pareciam
desgraçar meu rosto, faminto e apagado, enquanto,
do outro lado do espelho singelo, eu permanecia
preso, entregue ao meu eterno retorno da dor, para,
logo depois, morrer aos poucos, e ir percebendo
que, nas ruas sem cheiro, ou até mesmo no
esplendor provindo dos beiços sorridentes das
crianças, tudo que fiz foi esperar o fim, o fim que
não chegaria rápido, mas em doses lentas e
provocantes. Em seguida abracei a velha imagem
de Carla Montero, ou melhor, o velho desenho que
mandara um pintor desconhecido criar. E, olhando
a imagem cálida do meu amor, chorei durante um
tempo indeterminado, perguntando: Onde está a
paz? Para onde levaram minha jangada, o
barquinho onde, em meus sonhos mais recônditos,
eu estava com uma criatura alada, não mais um
Anjo cabisbaixo? Então eu aspirava o ar dessa
terrinha inominável, e depois, quando o perfume de
benjoim aumentava, eu, o assexuado de sempre,
começava a entrar em pânico. Sou um farsante,
pensei antes da flor amarela, que rodopiava no
espaço, cair sobre o ‘’jazigo’’ onde enterraram meu
pai; e pensei também em minha mãe, nas tardes
sem sinos angelicais, ou nos momentos que a
senhora Boamorte fumava escondida,
repreendendo-me por não ser algum gênio imortal.
De resto, com o desespero me afunilando cada vez
mais, achei ter visto Carlinha, agora aos quarenta,
sair de um hospital para pacientes com câncer
terminal, e me perguntei se ela realmente estava
morta ou, se no melhor dos casos, eu é que tinha
morrido desde o começo da trama. Loucura: foi
isso que doeu em mim. Como nada me escutava,
nem o vazio ou os homens, já que estes são
mentiras em prantos, apenas recordei que já não
tinha amigos ou desafetos. O que deveria dizer para
o céu estrelado, em chamas orvalhadas, que me
chamava em direção ao pó imediato? Nada, e esse
nada era minha verdadeira personalidade. Com o
coração espatifado, e outras coisas mais, caminhei,
entre o mormaço do balneário e a beleza da Rua
das cidreiras, para, enfim, apesar da luta constante,
aceitar minha estadia no inferno, de modo que, com
o cansaço em relação a tudo, só encontrei o
desprezo das horas, dos laços que nunca pude
obter. É melhor esclarecer os fatos, Disse
Armando, e sua revolta era compreensível; Não
diga mais disparates, gritou Baptista, e eu não
entendia porcaria nenhuma; Olívia e a prostituta
com Síndrome de Down somente bufavam de raiva.
Sim, a flor amarela ficou linda no ponto onde
parou, e imaginei que repousara nos olhos militares
do Oficial Boamorte I; mas não devia mudar de
assunto, pois, para clarear meus anseios, menti de
forma crua. Todos os segredos aqui contados são
falsos, porque nunca soube o segredinho da bolsa,
nem muito menos o sentido dos suicídios
simbólicos de Baptista. Por isso, agora que o final
se aproxima, sinto minha criatividade morrer, e
através do semblante de Olívia Guerra vejo,
embora sem querer, o quanto fui mutilado por mim
mesmo. Ruminei: Preciso conversar com Camilo.
O mendigo homossexual me esperava, sorrindo
feito hiena, e segurando o diário da morte de Carla.
Atarantado, ele tocou em minha face, fez um gesto
obsceno e disse: Quer que lhe diga a verdade?
Você fez o caminho de sua amada. Ela lhe espera
na avenida, o corpo tremendo por ti. Seria meu
último passo, minha última alternativa. Camilo
Jogou um raminho de flores em estanho na minha
direção. Eu segurei essa dádiva.

Aqui termina o labirinto da morte. À luz


minguante dos refletores, atravessei a pista; Carla,
com os braços cruzados, estava lá, no centro da
alameda; e os carros quase nos acertavam. Era a
tristeza, o choro da cidade impronunciável. De
resto, já não ouvia mais nada e, em pouco tempo,
perdi a visão para tudo, exceto para Carla. Para
mim, isso não foi de todo ruim, pois podia, naquele
instante, notar como o amor jamais entra em
extinção. Agora o leitor precisa fechar os olhos,
com harmonia, e esperar que a brisa dos anjos
percorra sobre seu corpo que é embalagem,
enlatado qualquer. Mas depois eu tive de pensar na
beatitude das acácias, no raminho de flores em
estanho que, firmes em minhas mãos, eram
erguidos para a plácida Carlinha; e vi: sobre os
cachos de minha eterna rainha havia, pelo menos
era o que parecia, uma espécie de auréola angelical,
de modo que acreditei, se bem que por um breve
momento, na existência de amores que
permanecem além do tempo. Tudo está diferente,
refleti, e Carla me contava sobre a mudez dos
pássaros, ou sobre os santuários que ela
vislumbrava em meu olhar. Por um instante,
ficamos em silêncio, na companhia das buzinas em
disparada; isso foi ela que me disse, já que não
ouvia mais nada, tampouco o chamado dos meus
sonhos. Naturalmente, alguns poetas sempre se
perdem na decisão final, e no meu caso não seria
diferente. Dando de ombros, fui bater o último
pênalti da minha vida. Roberto, no meio do gol, já
sabia o resultado: bola na trave. É óbvio que essa
história ocorreu antes desse, digamos assim,
encontro com Carla. O duro golpe aconteceu
quando, ao interrogá-la a respeito da causa do seu
falecimento, ela começou a chorar, e seu coração
estava fragmentado como partículas de uma alma
ruim. Então tirei o pirulito de cereja do bolso da
calça jeans, para saboreá-lo sozinho; mas minha
ninfa continuava ali, chorando como se, numa
inversão dessa epopéia, ela estivesse enclausurada
num espelho ou, ainda pior, perdida no túnel da
solidão. Eu arrisquei:

Você vai ficar comigo?

Você continuará como o assexuado de sempre.


Bom, e o livro que lhe causa o antegozo?

Meu coração está cansado. Não quero mais


chorar eternamente.
Heitor Boamorte não explicou sobre o livro do
antegozo. Triste, ainda viu o desaparecimento de
Carla.

A cidade continuava chorando, e ele sorria para


o vazio que sempre fora.

Depois pensou nos personagens atípicos: o


mendigo homossexual, a prostituta com Síndrome
de Down, o sujeito que se matava diariamente, o
casal morto de forma misteriosa, as mulheres que
tentaram devolver sua masculinidade, o poeta de
rua e Olívia Guerra, sua amiga.

Eles não mudaram de vida; não mudaram nada.


Dos sonhos de Boamorte, no entanto, começaram a
brotar quimeras dentro de quimeras. Assim, em
profundo desgosto, atravessou a alameda: o amor
futuro lhe vigiava. Era sábado; e, respirando fundo,
Heitor prometeu que, dali pra frente, seriam mil e
um sábados de alegria.

A leitura de hoje fica por aqui; a vida, ao


contrário, é inenarrável.
Aos meus pais (Maurício Ferreira e
Verônica Milhome)

Meu pai disse: E um homem de verdade


pode publicar um livro?

Minha mãe disse: Que bom que você


escreve!
‘’Isso não tem nada a ver’’

Vinicius
Milhome, meu primo.

Você também pode gostar