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ANULAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO

E O DEVIDO PROCESSO LEGAL

Giordano da Silva Rossetto


Advogado da União
em exercício no Ministério dos Transportes Brasília - DF

PALAVRAS-CHAVE: Procedimento; Administração Pública; Devido Processo Legal;


Garantia.

KEYWORDS: Procedures; Public Power; Due Process; Garantee.

SUMÁRIO: PROCEDIMENTOS DE CARÁTER ADMINISTRATIVO. SITUAÇÃO


DE CONFLITUOSIDADE EXISTENTE ENTRE OS INTERESSES DO ESTADO
E SEUS ADMINISTRADOS. NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, PELO PODER
PÚBLICO, DA FÓRMULA CONSTITUCIONAL DO DEVIDO PROCESSO
LEGAL. PRERROGATIVAS QUE COMPÕEM A GARANTIA CONSTITUCIONAL
DO DEVIDO PROCESSO ADMINISTRATIVO, COROLÁRIO DO DEVIDO
PROCESSO LEGAL. DIREITO À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO COMO
PROJEÇÕES CONCRETIZADORAS DESSA GARANTIA CONSTITUCIONAL.

Este artigo trata de analisar a forma de atuação da Administração Pública quando


objetiva cancelar vantagens conferidas a terceiros, porém, sem observar a garantia
constitucional do devido processo legal, umbilicalmente relacionada a todo procedimento
administrativo que se procura reputar adequado tanto aos atingidos pelas atividades
estatais quanto aos interesses do próprio Poder Público.

Todavia, antes dessa aferição particularizada de declarações tendentes à revisão


(anulação) de atos administrativos — com desconstituir unilateralmente atos anteriores,
sobretudo quando afetam a esfera jurídica de terceiros — insista-se na necessidade de
uma sucinta digressão sobre a perspectiva a partir da qual a vertente questão deve ser
compreendida.

Segundo a teoria clássica, o nosso ordenamento jurídico é um sistema hierarquizado de


normas (escritas e implícitas), ocupando cada qual uma posição intersistemática, formadora
de um todo harmônico. Jungido a essa premissa, verifica-se que, para uma norma ser válida,
é preciso que busque o seu supedâneo de validade em outra norma superior, daí surgir a
expressão ‘sistema ou ordem normativa’, vital para a compreensão do tema.

Consoante essa perspectiva orgânica das regras jurídicas, a Constituição ocupa o


topo da hierarquia, consubstanciando a fonte de validade de todas as demais e, portanto, o
fundamento do próprio sistema, sendo suas regras — e também os princípios nela inseridos
— normas de natureza estruturante de toda a ordem jurídica estabelecida.

Já, sobre a questão específica dos princípios — estes dotados de força normativa e
considerados diretrizes gerais que também subordinam regras —, representam mandamento
nuclear do sistema, seu verdadeiro alicerce enquanto disposição fundamental que se irradia
sobre as mais diferentes normas, servindo também de critério à exata compreensão e
inteligência da ordem jurídica.

Sobre a necessidade de se respeitar um princípio do sistema, Celso Antonio Bandeira


de Mello leciona que:

violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma


qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um
específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos.
1
É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme
escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o
sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a
seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”. (Curso de Direito
Administrativo, Ed. Malheiros, 2002, p. 807)

Quanto aos princípios inseridos na Constituição — repiso: com a sua força ideológico-
normativa a alcançar todas as regras de Direito — eles também se definem como exigências
de otimização abertas a vários compromissos, interpretações, integrações e concordâncias
práticas, tudo a permitir um alto grau de concretização das demais normas positivadas.

Acerca da perspectiva axiológica (ou principiológica) do Direito, como tônica na


solução das questões judiciais, citando Luís Roberto Barroso, destacou o Ministro Luiz
Fux, do Superior Tribunal de Justiça, em voto-vencedor no REsp 977.058/RS, julgado em
22/10/2008, do qual destaco o seguinte trecho:

A esse respeito destacou o eminente Professor Luís Roberto Barroso, in


Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro
(Pós- Modernidade, Teoria Crítica e Pós-Positivismo), Revista da AJUFE, p.
51-85, litteris:

III. PÓS-POSITIVISMO E A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS.

O Direito, a partir da segunda metade do século XX, já não cabia mais no


positivismo jurídico. A aproximação quase absoluta entre Direito e norma
e sua rígida separação da ética não correspondiam ao estágio do processo
civilizatório e às ambições dos que patrocinavam a causa da humanidade.
Por outro lado, o discurso científico impregnara o Direito. Seus operadores
não desejavam o retorno puro e simples ao jusnaturalismo, aos fundamentos
vagos, abstratos ou metafísicos de uma razão subjetiva. Nesse contexto, o
pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas como uma
superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando
deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as
idéias de justiça e legitimidade.

O constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores,


uma reaproximação entre ética e Direito. Para poderem beneficiar-se do
amplo instrumental do Direito, migrando da filosofia para o mundo jurídico,
esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento
e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na
Constituição, explícita ou implicitamente. Alguns nela já se inscreviam de
longa data, como a liberdade e a igualdade, sem embargo da evolução
de seus significados. Outros, conquanto clássicos, sofreram releituras
e revelaram novas sutilezas, como a separação dos Poderes e o Estado
democrático de direito. Houve, ainda, princípios que se incorporaram mais
recentemente ou, ao menos, passaram a ter uma nova dimensão, como o
da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da solidariedade e da
reserva de justiça.

A novidade das últimas décadas não está, propriamente, na existência


de princípios e no seu eventual reconhecimento pela ordem jurídica. Os
princípios, vindos dos textos religiosos, filosóficos ou jusnaturalistas, de
longa data permeiam a realidade e o imaginário do Direito, de forma
direta ou indireta. Na tradição judaico-cristã, colhe-se o mandamento de
respeito ao próximo, princípio magno que atravessa os séculos e inspira
um conjunto amplo de normas. Da filosofia grega origina-se o princípio
da não-contradição, formulado por Aristóteles, que se tornou uma das leis
fundamentais do pensamento: “Nada pode ser e não ser simultaneamente”,

2
preceito subjacente à idéia de que o Direito não tolera antinomias. No
direito romano pretendeu-se enunciar a síntese dos princípios básicos do
Direito: “Viver honestamente, não lesar a outrem e dar a cada um o que é
seu. Os princípios, como se percebe, vêm de longe e desempenham papéis
variados. O que há de singular na dogmática jurídica da quadra histórica
atual é o reconhecimento de sua normatividade.

Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a


síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a
ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios
dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes
e atenuando tensões normativas. De parte isto, servem de guia para o
intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior
que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico,
até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie. Estes
os papéis desempenhados pelos princípios: a) condensar valores; b) dar
unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do “intérprete”. Na trajetória
que os conduziu ao centro do sistema, os princípios tiveram de conquistar o
status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão
puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e
imediata. A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas
em geral, e as normas constitucionais em particular, enquadram-se em
duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras. Normalmente,
as regras contêm relato mais objetivo, com incidência restrita às situações
específicas às quais se dirigem. Já os princípios têm maior teor de abstração
e uma finalidade mais destacada no sistema. Inexiste hierarquia entre
ambas as categorias, à vista do princípio da unidade da Constituição. Isto
não impede que princípios e regras desempenhem funções distintas dentro
do ordenamento.

A distinção qualitativa entre regra e princípio é um dos pilares da moderna


dogmática constitucional, indispensável para a superação do positivismo
legalista, onde as normas se cingiam a regras jurídicas. A Constituição passa
a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a
valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização
dos direitos fundamentais desempenham um papel central. A mudança de
paradigma nessa matéria deve especial tributo à sistematização de Ronald
Dworkin. Sua elaboração acerca dos diferentes papéis desempenhados
por regras e princípios ganhou curso universal e passou a constituir o
conhecimento convencional na matéria.

Regras são proposições normativas aplicáveis sob a forma de tudo ou


nada (“all or nothing’). Se os fatos nela previstos ocorrerem, a regra deve
incidir, de modo direto e automático, produzindo seus efeitos. Por exemplo:
a cláusula constitucional que estabelece a aposentadoria compulsória por
idade é uma regra. Quando o servidor completa setenta anos, deve passar
à inatividade, sem que a aplicação do preceito comporte maior especulação.
O mesmo se passa com a norma constitucional que prevê que a criação
de uma autarquia depende de lei específica. O comando é objetivo e não
dá margem a elaborações mais sofisticadas acerca de sua incidência. Uma
regra somente deixará de incidir sobre a hipótese de fato que contempla se
for inválida, se houver outra mais específica ou se não estiver em vigor. Sua
aplicação se dá, predominantemente, mediante subsunção.

Princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento


ético, uma decisão política relevante, e indicam uma determinada direção a
seguir. Ocorre que, em uma ordem pluralista, existem outros princípios que
abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos.

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A colisão de princípios, portanto, não só é possível, como faz parte da lógica
do sistema, que é dialético. Por isso a sua incidência não pode ser posta em
termos de ludo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos
princípios uma dimensão de peso ou importância. À vista dos elementos
do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas,
quando se defronte com antagonismos inevitáveis, como os que existem
entre a liberdade de expressão e o direito de privacidade, a livre iniciativa
e a intervenção estatal, o direito de propriedade e a sua função social. A
aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação.

Nesse contexto, impõe-se um breve aprofundamento da questão


dos conflitos normativos. O Direito, como se sabe, é um sistema de
normas harmonicamente articuladas. Uma situação não pode ser regida
simultaneamente por duas disposições legais que se contraponham. Para
solucionar essas hipóteses de conflito de leis, o ordenamento jurídico se
serve de três critérios tradicionais: o da hierarquia - pelo qual a lei superior
prevalece sobre a inferior -, o cronológico - onde a lei posterior prevalece
sobre a anterior - e o da especialização - em que a lei específica prevalece
sobre a lei geral. Estes critérios, todavia, não são adequados ou plenamente
satisfatórios quando a colisão se dá entre normas constitucionais,
especialmente entre os princípios constitucionais, categoria na qual devem
ser situados os conflitos entre direitos fundamentais. Relembre-se: enquanto
as normas são aplicadas na plenitude da sua força normativa - ou, então,
são violadas -, os princípios são ponderados.

A denominada ponderação de valores ou ponderação de interesses é a


técnica pela qual se procura estabelecer o peso relativo de cada um dos
princípios contrapostos. Como não existe um critério abstrato que imponha
a supremacia de um sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto,
fazer concessões recíprocas, de modo a produzir um resultado socialmente
desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos
fundamentais em oposição. O legislador não pode, arbitrarimente, escolher
um dos interesses em jogo e anular o outro, sob pena de violar o texto
constitucional. Seus balizamentos devem ser o princípio da razoabilidade (v,
infra) e a preservação, tanto quanto possível, do núcleo mínimo do valor que
esteja cedendo passo. Não há, aqui, superioridade formal de nenhum dos
princípios em tensão, mas a simples determinação da solução que melhor
atende o ideário constitucional na situação apreciada.

Cabe assinalar, antes de encerrar a discussão acerca da distinção qualitativa


entre regra e princípio, que ela nem sempre é singela. As dificuldades
decorrem de fatores diversos, como as vicissitudes da técnica legislativa,
a natureza das coisas e os limites da linguagem. Por vezes, uma regra
conterá termo ou locução de conteúdo indeterminado, aberto ou flexível,
como, por exemplo, ordem pública, justa indenização, relevante interesse
coletivo, melhor interesse do menor. Em hipóteses como essas, a regra
desempenhará papel semelhante ao dos princípios, permitindo ao intérprete
integrar com sua subjetividade o comando normativo e formular a decisão
concreta que melhor irá reger a situação de fato apreciada, Em algumas
situações, uma regra excepcionará a aplicação de um princípio. Em outras,
um princípio poderá paralisar a incidência de uma regra, Enfim, há um
conjunto amplo de possibilidades nessa matéria, Esta não é, todavia, a
instância própria para desenvolvê-las.

A perspectiva pós-positivista e principiológica do Direito influenciou


decisivamente a formação de uma moderna hermenêutica constitucional.
Assim, ao lado dos princípios materiais envolvidos, desenvolveu-se
um catálogo de princípios instrumentais e específicos de interpretação

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constitucional do ponto de vista metodológico, o problema concreto a
ser resolvido passou a disputar com o sistema normativo a primazia na
formulação da solução adequada, solução que deve fundar-se em uma linha
de argumentação apta a conquistar racionalmente os interlocutores, sendo
certo que o processo interpretativo não tem como personagens apenas os
juristas, mas a comunidade como um todo. (grifo nosso). O novo século
se inicia fundado na percepção de que o Direito é um sistema aberto de
valores. A Constituição, por sua vez, é um conjunto de princípios e regras
destinados a realizá-Ios, a despeito de se reconhecer nos valores uma
dimensão suprapositiva. A idéia de abertura se comunica com a Constituição
e traduz a sua permeabilidade a elementos externos e a renúncia à
pretensão de disciplinar, por meio de regras específicas, o infinito conjunto
de possibilidades apresentadas pelo mundo real. Por ser o principal canal de
comunicação entre o sistema de valores e o sistema jurídico, os princípios
não comportam enumeração taxativa. Mas, naturalmente, existe um amplo
espaço de consenso, onde têm lugar alguns dos protagonistas da discussão
política, filosófica e jurídica do século que se encerrou: Estado de direito
democrático, liberdade, igualdade, justiça. [...]

Um exemplo concreto da incidência de um princípio constitucional sobre uma regra


de direito — no caso, o princípio da isonomia ou igualdade previsto no caput do art. 5º
da Constituição1 — pode ser inferido a partir da decisão proferida pelo seu guardião, o
Supremo Tribunal Federal - STF, no Mandado de Injunção nº 58, o qual transcrevo, em
parte, para a ilustração do assunto:

“O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é  —


enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica — suscetível
de regulamentação ou de complementação normativa. Esse princípio —
cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do
Poder Público — deve ser considerado, em sua precípua função de obstar
discriminações e de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto:
(a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na
lei — que opera numa fase de generalidade puramente abstrata — constitui
exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela
não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da
ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já
elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que,
na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que
ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância
desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e
produzido a eiva de inconstitucionalidade.” (MI 58, Rel. p/ o ac. Min. Celso
de Mello, julgamento em 14-12-90, DJ de 19-4-91)

Imperioso concluir, portanto, que, ainda que exista lei (norma-regra) anterior
disciplinando um fato jurídico, é curial que se verifique em qual medida a sua exigência se
revela compatível com os princípios constitucionais, pois a sua interpretação e aplicação
devem necessariamente ser conforme os ditames da Constituição, sendo a observância
dos seus princípios — fundamentos de toda a ordem normativa — a primeira fonte ou
caminho para tal aspiração.

Diante dessa primeira compreensão sobre o nosso ordenamento jurídico, todos os


aplicadores do Direito (e aqui se insere também a figura do administrador público) devem
utilizar os princípios constitucionais como vetores, verdadeiras bússolas a direcionar suas
condutas a uma correta interpretação e posterior aplicação das leis infraconstitucionais.

1 CF, “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:...”
5
Em outros termos, antes da execução de uma norma jurídica, o seu aplicador nunca pode
esquecer que na base do conjunto há princípios a serem observados.

Pois bem, cediço que todas as regras jurídicas rendem obediência a um dado jurídico-
supremo e hierarquicamente superior a todas as leis — a Constituição de 1988 —, inicia-se
outras considerações, destacando três princípios muito importantes nela (Constituição)
explicitamente inseridos.

Trata-se dos princípios do devido processo legal, e os seus corolários princípios do


contraditório e da ampla defesa, entendidos como um conjunto de primados garantidores
de um processo regular, participativo, legitimador da imperatividade de atos estatais,
necessariamente impessoais, livres de perseguições, de favoritismos e pautados sempre
pelo interesse público. Destaca-se do texto constitucional:

TÍTULO II
Dos Direitos e Garantias Fundamentais
CAPÍTULO I
DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:

[...]

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido


processo legal.

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados


em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com meios e
recursos a ela inerentes2.

Como se pode ver, atribuindo significado ímpar aos direitos individuais, ao consagrar
garantias destinadas à defesa de posições jurídicas perante a Administração Pública e ao
Poder Judiciário, a Constituição, nos citados incisos, sobretudo no primeiro — inc. LIV —,
ao mencionar a palavra “processo” não lhe positivou nenhum adjetivo discriminador, o
que faz concluir que o aludido cânone constitucional açambarca tanto o processo judicial
quanto o processo administrativo, conclusão reforçada pelo inciso LV.

Assim, é de fácil constatação que o processo, seja ele de que espécie for — judicial
ou administrativo —, encontra-se jungido ao basilar princípio constitucional do devido
processo legal e seus corolários (contraditório e ampla defesa), que devem afiançar às
pessoas expostas ao seu crivo um procedimento justo e eqüitativo com amplo direito de
defesa e contraditório.

O princípio constitucional do contraditório possui dupla fundamentação: lógica e


política. Pela primeira, afirma-se o dever de se franquear às partes em litígio a necessária
ciência bilateral sobre todos os atos e termos de natureza procedimental. Já, pela segunda,
há o sentido comum de que ninguém poderá ser ‘julgado’ sem ser ouvido, premissas que
autorizam a apresentar o princípio do contraditório como sinonímia do chamado ‘amplo
debate’.

2 Esses princípios constitucionais encontram-se hoje também afirmados explicitamente em nível legal, desde o advento da
Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que “regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal”,
cujo art. 2º arrola os seguintes: legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla
defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
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No largo contexto do devido processo legal, emerge também o princípio da ampla
defesa3, que traduz a liberdade inerente ao indivíduo de, no âmbito de um Estado democrático
como o nosso, alegar fatos e propor provas em defesa de seus interesses. Isso demonstra
a evidente correlação entre a ampla defesa e o amplo debate (princípio do contraditório),
não sendo concebível falar da presença de um sem pressupor a existência do outro — daí
a inteligência do inciso LV do art. 5º da Constituição ao agrupá-los em apenas uma regra.

A ampla defesa, por sua própria expressão, abre espaço para que o interessado-
litigante exerça, sem qualquer restrição, o seu direito de defesa, prerrogativa que não
constitui mera liberalidade, mas verdadeiro interesse público, essencial a todo regime
que se intitula democrático, devendo ser garantido em qualquer espécie de processo que
envolva o poder decisório do Estado sobre pessoas físicas e jurídicas.

Demonstrado o íntimo relacionamento entre o contraditório e a ampla defesa, é


necessário conceber e apreender a aplicação de tais preceitos perante um dever-poder
estatal denominado autotutela, segundo o qual a Administração Pública exercita o
controle sobre os seus próprios atos, com a possibilidade de anular os ilegais e revogar os
inconvenientes ou inoportunos, independentemente de recurso ao Poder Judiciário.

Esse dever-poder conferido à Administração para rever seus atos, sobretudo quando
contrários ao ordenamento jurídico, está hoje consagrado nos enunciados nº 346 e nº 473
da súmula da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal - STF, a saber:

346 — A Administração pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.

473 — A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados


de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou
revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os
direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

É justamente nesse amplo contexto que a questão acerca do cancelamento


administrativo de vantagens conferidas a terceiros deve ser examinada, tudo a envolver a
grave questão relacionada à legitimidade de procedimentos no bojo dos quais a Administração
Pública, sob o pretexto de haver irregularidades, anula um ato administrativo anterior (dever-
poder de autotutela) já integrado ao patrimônio de terceiros, todavia, unilateralmente, é
dizer: sem conferir aos interessados a garantia de contrariar a manifestação produzida pela
Administração nem produzir prova; enfim, sem as garantias do devido processo legal.

A questão, como além se procurará demonstrar, merece séria atenção de toda


a Administração Pública, porquanto a forma com que seus procedimentos estão sendo
realizados está ensejando na esfera do Poder Judiciário uma expressiva, nociva e prejudicial
avalanche de ações, fato que gera dissídios entre os próprios poderes públicos (Executivo
x Judiciário), comprometendo o prestígio das instituições democráticas.

Tirante o fato de que o Poder Público, bastas vezes, demora longos anos para rever
um ato administrativo reconhecidamente ilegal — o que gera na esfera do Poder Judiciário
a declaração da impossibilidade de revê-los quando decorridos mais de cinco razoáveis
anos (questão que desemboca no grande debate entre a segurança jurídica e a inércia
administrativa) —, tem ocorrido que os órgãos e entidades públicas, ao constatarem ter sido

3 Permito-me não discutir aqui a inexistente dualidade principiológica entre contraditório-ampla defesa defendida
por alguns, uma vez que não vislumbro diferenças práticas ao não tratá-los de forma particularizada. Porém,
registro que, de acordo com parcela da doutrina, o contraditório seria natural corolário da ampla defesa.
Esta, sim, é que constituiria o princípio fundamental e inarredável. Na verdade, dentro da ampla defesa
já se incluiria, em seu sentido, o direito ao contraditório, que é o direito de contestação, de redargüição a
acusações, de impugnação de atos e atividades. Outros aspectos cabem na ampla defesa e também são
inderrogáveis, como é caso da produção de prova, do acompanhamento dos atos processuais, da vista do
processo, da interposição de recursos e, afinal, de toda a intervenção que a parte entender necessária para
provar suas alegações.
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ilegal a concessão de uma vantagem, cancela-a abrupta e unilateralmente, sem, contudo,
conceder ao interessado o direito constitucional do contraditório e da ampla defesa.

Ocorre que, em seguida, diante dessa prática inconstitucional e ilegal, o prejudicado,


socorrendo-se do Poder Judiciário, pleiteia uma decisão liminar com a qual consegue,
de pronto, restabelecer a vantagem suprimida, isso sob o argumento de que não foram
observadas suas mínimas garantias legais de defesa.

Em juízo, demonstrado esse ilícito praticado no processo administrativo — com


não observar os princípios do contraditório e da ampla defesa — o então Estado-juiz, sem
mesmo aferir se o demandante teria ou não direito ao objeto pretendido (isto é, o real
direito à percepção da vantagem), determina liminarmente a restauração do antigo estado
das coisas, até que o devido processo administrativo seja respeitado.

Antes de trazer à baila as expressivas manifestações do Poder Judiciário nesses


casos, cumpre mencionar, em razão da sua pertinência e do seu didatismo, a vasta doutrina
nacional que defende amplamente o dever de observância, pela Administração Pública,
dos princípios do contraditório e da ampla defesa em seus processos administrativos,
entendimento que valoriza a perspectiva constitucional já referida (v. supra).

Segundo os ensinamentos de Ada Pelegrini Grinover:

O coroamento do caminho evolutivo da interpretação da cláusula do ‘devido


processo legal’ ocorreu, no Brasil, com a Constituição de 1988, pelo art. 5º,
inc. LV, que reza:

‘Art. 5°, LV. Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos


acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com
os meios e recursos a ela inerentes.’

[...]

Assim, as garantias do contraditório e da ampla defesa desdobram-se


hoje em três planos: a) no plano jurisdicional, em que elas passam a ser
expressamente reconhecidas, diretamente como tais, para o processo penal
e para o não-penal; b) no plano das acusações em geral, em que a garantia
explicitamente abrange as pessoas objeto de acusação; c) no processo
administrativo sempre que haja litigantes. [...] É esta a grande inovação da
Constituição de 1988.

[...]

Assim, a Constituição não mais limita o contraditório e a ampla defesa aos


processos administrativos (punitivos) em que haja acusados, mas estende
as garantias a todos os processos administrativos, não-punitivos e punitivos,
ainda que neles não haja acusados, mas simplesmente litigantes.

Litigantes existem sempre que, num procedimento qualquer, surja um


conflito de interesses. Não é preciso que o conflito seja qualificado pela
pretensão resistida, pois neste caso surgirão a lide e o processo jurisdicional.
Basta que os partícipes do processo administrativo se anteponham face a
face, numa posição contraposta. Litígio equivale a controvérsia, a contenda,
e não a lide. Pode haver litigantes — e os há — sem acusação alguma, em
qualquer lide.” (“O Processo em Evolução”, Forense Universitária, 1996, p.
82/85, itens ns. 1.3, 1.4, 2.1 e 2.2).

Maria Sylvia Zanella di Pietro se manifesta no sentido de que:

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Em atendimento aos princípios do contraditório e da ampla defesa, a Lei nº
9.784/90 assegura ao administrado os direitos de ter ciência da tramitação
dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter
vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as
decisões proferidas; formular alegações e apresentar documentos antes da
decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente.

[...]

Além disso, a mesma lei impõe a intimação do interessado nos seguintes


casos: para ciência de decisão ou efetivação de diligências (art. 26); para
conhecimento de atos do processo que resultem em imposição de deveres,
ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades e para os atos
de outra natureza, de seu interesse (art. 28); para prestação de informações
ou apresentação de provas (art. 39), para apresentar alegações, em caso
de interposição de recurso (art. 62)” (Direito Administrativo, 14 ed. Atlas,
2002. p. 514).

Segundo demonstram Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari:

O direito à ampla defesa impõe à autoridade o dever de fiel observância


das normas processuais e de todos os princípios jurídicos incidentes sobre o
processo” [...] Sempre que o patrimônio jurídico e moral de alguém puder
ser afetado por uma decisão administrativa deve a ele ser proporcionada
a possibilidade de exercitar a ampla defesa, que só tem sentido em sua
plenitude se for produzida previamente à decisão, para que possa ser
conhecida e efetivamente considerada pela autoridade competente para
decidir.” (Processo Administrativo. 2 ed. Malheiros, 2007, p. 91).

Como bem ressaltado por Marçal Justen Filho:

“Também haveria frustração do princípio da ampla defesa se a audiência


do particular fosse posterior à prática do ato estatal. Não existe ampla
defesa quando apenas se assegura a garantia do recurso, sem oportunidade
para manifestação prévia. Ou seja, a participação do interessado tem de
ser efetiva e real. Tal não se passa quando a Administração já formulou
antecipadamente suas decisões [...]” (Ampla Defesa e Conhecimento
de Argüições de Inconstistitucionalidade e Ilegalidade no Processo
Administrativo, Revista Dialética de Direito Tributário, nº 25, p. 75-76).

Por fim, vale rememorar Hely Lopes Meirelles que, tratando do tema muito antes da
Constituição de 1988, assim se pronunciava:

[...] o princípio que garante direito de defesa em qualquer processo —


judicial ou administrativo — em que haja possibilidade de ofensa de direito
individual amparado pelo Constituição da República (art. 153 § 15). É
o princípio do due processo of law, de prática universal entre os povos
civilizados, já consagrado pela doutrina e pela jurisprudência pátrias.
[...] Como, pois, admitir-se que seja ele postergado pela Administração
na prática de atos executórios contra o patrimônio de particulares, ou de
atos que impliquem em substanciais restrições em sua vida econômico-
financeira?” (Licitação — adjudicação — Anulação em Estudos e pareceres
de Direito Público, v. 3, São Paulo, RT, 1980, p. 59).

Esposados os autorizados magistérios acima, cabe agora perfilhar o entendimento do


Poder Judiciário, cuja remansosa jurisprudência afirma peremptoriamente a necessidade de
se respeitar o devido processo legal, sob pena de inconstitucionalidade do ato administrativo

9
(ilegalidade lato sensu ou superilegalidade), a ensejar a sua conseqüente anulação pelos
Juízos e Tribunais do país.

Em primeiro lugar, diante da relevância do assunto, é de se citar o inteiro


teor de dois votos vencedores proferidos pelos Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio,
do Supremo Tribunal Federal - STF, cuja veemência propugna pelo dever de observância do
devido processo legal pela Administração Pública, sob pena de fulminado pelo Poder Judiciário
o ato ilegal praticado, devam ser irremediavelmente renovados os seus procedimentos4:

VOTO DO SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR):

EMENTA: Agravo regimental em recurso extraordinário. 2. Servidor Público


Inativo. Redução de Vencimentos. Inobservância do contraditório e da ampla
defesa. Não instauração de processo administrativo. Violação verificada. 3.
A garantia do direito de defesa contempla, no seu âmbito de proteção,
todos os processos judiciais ou administrativos. Precedentes. 4. Agravo
regimental a que se nega provimento.

[...] A decisão agravada foi proferida em conformidade com a jurisprudência


desta Corte quanto a necessidade de assegurar aos litigantes em processo
judicial ou administrativo, os princípios constitucionais do contraditório e da
ampla defesa, v.g., o AgRAI 413.323, 1ª T., Rel. Ilmar Galvão, DJ 11.04.03;
e o AgRRE 337.560, 2ª T., Rel. Maurício Corrêa, DJ 14.11.02.

Ainda sobre o tema, tenho enfatizado que a Constituição de 1988 (art. 5º,
LV) ampliou o direito de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Como já escrevi em outra oportunidade, as dúvidas porventura existentes


na doutrina e na jurisprudência sobre a dimensão do direito de defesa foram
afastadas de plano, sendo inequívoco que essa garantia contempla, no seu
âmbito de proteção, todos os processos judiciais ou administrativos.

Assinale-se, por outro lado, que há muito vem a doutrina constitucional


enfatizando que o direito de defesa não se resume a um simples direito
de manifestação no processo. Efetivamente, o que o constituinte pretende
assegurar — como bem anota Pontes de Miranda — é uma pretensão à
tutela jurídica (Comentários à Constituição de 1967/69, tomo V, p. 234).

Observe-se que não se cuida aqui, sequer, de uma inovação doutrinária


ou jurisprudencial. Já o clássico João Barbalho, nos seus comentários à
Constituição de 1891, asseverava, com precisão: “Com a plena defesa
são incompatíveis, e, portanto, inteiramente inadmissíveis, os processos
secretos, inquisitoriais, as devassas, a queixa ou o depoimento de inimigo
capital, o julgamento de crimes inafiançáveis na ausência do acusado
ou tendo-sedado a produção das testemunhas de acusação se permitir
reinquiri-las, a incomunicabilidade depois da denúncia, o juramento do
réu, o interrogatório dele sob coação de qualquer natureza, por perguntas
sugestivas ou capciosas.” (Constituição Federal Brasileira — Comentários,
Rio de Janeiro, 1902, p. 323).

Não é outra a avaliação do tema no direito constitucional comparado.


Apreciando o chamado “Anspruch auf rechtliches Gehör” (pretensão à
tutela jurídica) no direito alemão, assinala o Bundesverfassungsgeritch que

4 Conquanto discorde da tese generalista, registro que o Supremo Tribunal Federal, em recentes julgados, vem sedimentando
jurisprudência no sentido de que o devido processo legal se exerceria de conformidade com a lei, razão pela qual eventual
alegação de desrespeito à cláusula do devido processo legal, por traduzir transgressão indireta, reflexa, uma vez que a
ofensa direta seria a normas processuais, não autorizaria o acesso à via recursal extraordinária (v. RE nº 439723/SP, in
Informativo STF nº 572/2009).
10
essa pretensão envolve não só o direito de manifestação e o direito de
informação sobre o objeto do processo, mas também o direito de ver os
seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar (Cf. Decisão
da Corte Constitucional alemã — BverfGE 70, 288-293; sobre o assunto,
ver, também, Pieroth e Schlink, Grundrechte — Staatsrecht II, Heidelberg,
1988, p. 281; Battis, Ulrich, Gusy, Christoph, Einführung in das Staatsrecht,
3ª edição, Heidelberg, 1991, p. 363-364).

Daí afirmar-se, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que


corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5º LV, da Constituição,
contém os seguintes direitos:

1) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão


julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e
sobre os elementos dele constantes;

2) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao


defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre
os elementos fáticos e jurídicos constantes no processo;

3) direito de ver seus argumentos considerados (Recht qauf


Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção
de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar
as razões apresentadas (Cf. Pieroth e Schlink, Grundrechte — Staatsrecht
II, Heidelberg, 1988, p. 281; Battis e Gusy, Einführung in das Staatsrecht,
Heidelberg, 1991, p. 363-364; Ver também, Dürig/Assman, in: Maunz-
Dürig, Grundgesetz-Kommentar, Art. 103, vol IV, nº 85-99).

Dessa perspectiva não se afastou a Lei nº 9.784, de 29.1.1999, que regula o


processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. O art. 2º
desse diploma legal determina, expressamente, que a Administração Pública
obedecerá aos princípios da ampla defesa e do contraditório. O parágrafo
único desse dispositivo estabelece que nos processos administrativos
serão deste observados, dentre outros, os critérios de “observância das
formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados” (inciso
VIII) e de “garantia dos direitos à comunicação” (inciso X).

Também registra Celso de Mello, no que toca à adoção da ampla defesa


no processo administrativo: “RESTRIÇÃO DE DIREITOS E GARANTIA DO
‘DUE PROCESS OF LAW’. - O Estado, em tema de punições disciplinares ou
de restrição a direitos, qualquer que seja o destinatário de tais medidas,
não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária,
desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude
de defesa, pois o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer
medida estatal — que importe em punição disciplinar ou em limitação
de direitos — exige, ainda que se cuide de procedimento meramente
administrativo (CF, art. 5º LV), a fiel observância do princípio do devido
processo legal.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade


desse princípio, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída
em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício,
pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente
administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida
restritiva de direitos. Precedentes. Doutrina.” (RTJ 183/371-372, Rel. Min.
CELSO DE MELLO)’” (MS 24.268/MG, Voto, Min. Celso de Mello).

Assim, nego seguimento ao agravo regimental.

11
(RE 426.147-AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 5-5-06) (destaquei)

VOTO DO SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR):

EMENTA: ATO ADMINISTRATIVO - REPERCUSSÕES - PRESUNÇÃO DE


LEGITIMIDADE - SITUAÇÃO CONSTITUIDA - INTERESSES CONTRAPOSTOS
- ANULAÇÃO - CONTRADITORIO. Tratando-se da anulação de ato
administrativo cuja formalização haja repercutido no campo de interesses
individuais, a anulação não prescinde da observância do contraditório,
ou seja, da instauração de processo administrativo que enseje a audição
daqueles que terão modificada situação já alcançada. Presunção de
legitimidade do ato administrativo praticado, que não pode ser afastada
unilateralmente, porque e comum a Administração e ao particular.

[...] Quanto à matéria de fundo, há de se ter presente a ênfase dada pela


Constituição de 1988 aos direitos dos cidadãos, especialmente quando
em questão a atuação do Estado. É flagrante a diferença de garantias
constitucionais, considerados os preceitos da Constituição anterior aplicável
à hipótese — par. 15 do artigo 153 da Carta de 1969 e da atual, inciso LV do
artigo 5º. No primeiro, a abrangência da norma ficou restrita aos acusados.
Já no segundo, fez-se referência aos litigantes e, em passo seguinte, foram
mencionados também os acusados. Como não se pode atribuir ao legislador,
especialmente ao constitucional, a inserção, em texto de lei, de vocábulos
inúteis, sem o significado vernacular que lhe é próprio, exsurge, ao menos
ao primeiro exame, que a garantia do contraditório e da ampla defesa não
mais está limitada, nos processos administrativos e judiciais, aos acusados,
alcançando nos três campos — administrativo, civil e penal — os litigantes
em geral.

A matéria há de merecer a reflexão dos integrantes de Colegiado do


Supremo Tribunal Federal em face à modificação ocorrida. A esta altura,
verifica-se, até mesmo, um certo paradoxo: aos Agravantes não foi
proporcionada, na fase administrativa, a ampla defesa, e, impetrado o
mandado de segurança, opuseram-lhes, como circunstância a obstaculizar
a via eleita, a necessidade de comprovação de fatos. Tivesse sido observado
o contraditório e a ampla defesa quando do processo administrativo — e
custo a crer na existência de tal processo quando tudo se faz de forma
unilateral — certamente nos autos do mandado de segurança estariam as
provas dos fatos atinentes à controvérsia, porque é de se presumir que
os Impetrantes ou a autoridade apontada como coatora providenciariam a
juntada do processo administrativo que as contivesse.

Voltando ao quadro fático constante do acórdão prolatado pela Corte de


origem, vê-se que a Administração Pública praticou ato cogitando dos
parâmetros da integração de certa parcela aos proventos da aposentadoria
dos Recorrentes. A seguir, tornou insubsistentes tais atos, reportando-se
a determinados processos. Tomou-se o ato anterior como ilegal. Cumpre,
então, perquirir se, na espécie, fez-se indispensável, ou não, a observância
do princípio insculpido no inciso LV do rol das garantias constitucionais.
Nele alude-se aos litigantes e aos processos judicial e administrativo,
mencionando-se, após o direito ao contraditório, a ampla defesa com
os meios e recursos a esta inerentes. O vocábulo “litigante” há de ser
compreendido em sentido lato, ou seja, a envolver interesses contrapostos.
Destarte, não tem o sentido processual de parte, a pressupor uma
demanda. Este enfoque decorre da circunstância de estar ligado também
aos processos administrativos. No caso dos autos os Recorrentes lograram
a integração de certa parcela aos proventos da aposentadoria, observando
certo índice. Relativamente a este ato, ocorreu a presunção de legitimidade

12
que é própria aos praticados pela Administração, ou seja, deve se presumir
a formalização nos moldes preconizados pela ordem jurídica, cobrando-se
dos agentes públicos a atuação responsável. A presunção de legitimidade
dos atos administrativos milita não só em favor da pessoa jurídica de direito
público, como também do cidadão que se mostre de alguma forma por
ele alcançado. Logo, o desfazimento, ainda que sob o ângulo da anulação,
deveria ter ocorrido em cumprimento irrestrito ao que se entende como
devido processo legal (lato sensu) a que o inciso LV do artigo 5º objetiva
preservar. O que não transparece razoável é entender-se que o segundo
ato praticado, por também contar com a presunção de legitimidade, estaria
a revelar como impróprio o contraditório, dispensada, assim, a participação,
no processo administrativo, dos interessados. O contraditório e a ampla
defesa assegurados constitucionalmente não estão restritos apenas àqueles
processos de natureza administrativa que se mostrem próprios ao campo
disciplinar. O dispositivo constitucional não contempla a especificidade
assentada pela Corte de origem. Conforme fiz ver anteriormente o prejuízo
saltou aos olhos quando a Corte de origem, após tomar como dispensável
o contraditório na fase administrativa, assentou que os Recorrentes não
lograram fazer de plano, no mandado de segurança, a prova necessária à
conclusão sobre a existência de direito líquido e certo.

Por tais razões, conheço o recurso interposto pela transgressão ao inciso LV


do artigo 5º da Constituição Federal e o provejo para, reformando o acórdão
proferido, fulminar o ato administrativo praticado, ficando ressalvada ao
Estado a renovação do procedimento com observância ao mandamento
constitucional. Este provimento implica, portanto, a concessão parcial da
segurança. É o meu voto.

(RE 158.543/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 6-10-95) (destaquei)

Em segundo lugar, realçando mais uma vez a observância do devido processo legal,
é de se transcrever trechos do julgamento da paradigmática medida cautelar no Mandado
de Segurança nº 26358 MC/DF, da relatoria do Ministro Celso de Mello, ocasião em que o
Supremo Tribunal Federal, diante da questão sobre a validade jurídica de deliberação do
Tribunal de Contas da União - TCU, o qual indeferira requerimento formulado pela parte
impetrante para realização de prova pericial em processo administrativo instaurado no
âmbito daquela Corte de contas, firmou entendimento nos seguintes termos:

EMENTA: Tribunal de Contas da União. Procedimento de caráter


administrativo. situação de conflituosidade existente entre os interesses do
Estado e os do particular. Necessária observância, pelo poder público, da
fórmula constitucional do “due process of law”. prerrogativas que compõem
a garantia constitucional do devido processo. O direito à prova como
uma das projeções concretizadoras dessa garantia constitucional. Medida
cautelar deferida.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade


do princípio que consagra o “due process of law”, nele reconhecendo uma
insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou
entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade,
ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade
do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes.
Doutrina.

[...]

Assiste, ao interessado, mesmo em procedimentos de índole administrativa,


como direta emanação da própria garantia constitucional do “due process

13
of law” (CF, art. 5º, LIV) - independentemente, portanto, de haver previsão
normativa nos estatutos que regem a atuação dos órgãos do Estado -, a
prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com
os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5º, LV), inclusive o direito à
prova.

O contraditório realizado com a produção de provas necessárias à solução


do litígio é um direito constitucional, de forma que os Órgãos Jurisdicionais,
inclusive o Tribunal de Contas da União, deverão observá-lo, sem, contudo,
impor restrições abusivas, possibilitando, dessa forma, a obtenção da
verdade real e consolidando materialmente as decisões administrativas ou
judiciais.

Com efeito, não se pode desconhecer que o Estado, em tema de restrição


à esfera jurídica de qualquer cidadão ou entidade, não pode exercer a sua
autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício
de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa, pois - cabe enfatizar -
o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer medida imposta
pelo Poder Público, de que resultem conseqüências gravosas no plano dos
direitos e garantias individuais, exige a fiel observância do princípio do
devido processo legal (CF, art. 5º, LIV e LV)

[...]

A jurisprudência dos Tribunais, notadamente a do Supremo Tribunal Federal,


tem reafirmado a essencialidade desse princípio, nele reconhecendo uma
insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou
entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade,
ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade
da própria medida restritiva de direitos, revestida, ou não, de caráter
disciplinar (RDA 97/110 - RDA 114/142 - RDA 118/99 - RTJ 163/790, Rel.
Min. CARLOS VELLOSO — AI 306.626/MT, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “in”
Informativo/STF n  253/2002 - RE 140.195/SC, Rel. Min. ILMAR GALVÃO
- RE 191.480/SC, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - RE 199.800/SP, Rel. Min.
CARLOS VELLOSO, v.g.)

[...]

Isso significa, pois, que assiste, ao interessado, mesmo em procedimentos


de índole administrativa, como direta emanação da própria garantia
constitucional do “due process of law” (independentemente, portanto, de
haver, ou não, previsão normativa nos estatutos que regem a atuação
dos órgãos do Estado), a prerrogativa indisponível do contraditório e da
plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (inclusive o
direito à prova), consoante prescreve a Constituição da República, em seu
art. 5º, incisos LIV e LV.

Vale referir, neste ponto, importante decisão emanada do Plenário do


Supremo Tribunal Federal que bem exprime essa concepção da garantia
constitucional do “due process of law”:

“[...] 3. Direito de defesa ampliado com a Constituição de 1988. Âmbito de


proteção que contempla todos os processos, judiciais ou administrativos,
e não se resume a um simples direito de manifestação no processo. 4.
Direito constitucional comparado. Pretensão à tutela jurídica que envolve
não só o direito de manifestação e de informação, mas também o direito

14
de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador. 5. Os princípios
do contraditório e da ampla defesa, assegurados pela Constituição,
aplicam-se a todos os procedimentos administrativos. 6. O exercício pleno
do contraditório não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a
respeito de fatos, mas implica a possibilidade de ser ouvido também em
matéria jurídica. [...] 10. Mandado de Segurança deferido para determinar
observância do princípio do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º,
LV).” (RTJ 191/922, Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES - grifei)

[...]

Vê-se, portanto, que o respeito efetivo à garantia constitucional do “due


process of law”, ainda que se trate de procedimento administrativo (como
o instaurado, no caso ora em exame, perante o E. Tribunal de Contas da
União), condiciona, de modo estrito, o exercício dos poderes de que se
acha investida a Pública Administração, sob pena de descaracterizar-se,
com grave ofensa aos postulados que informam a própria concepção do
Estado democrático de Direito, a legitimidade jurídica dos atos e resoluções
emanados do Estado, especialmente quando tais deliberações, como parece
suceder na espécie, possam comprometer a esfera jurídica do particular.

[...]

Não foi por outra razão que a colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal
Federal - ao examinar a questão da aplicabilidade e da extensão, aos
processos de natureza administrativa, da garantia do “due process of law”
- proferiu decisão, que, consubstanciada em acórdão assim ementado,
reflete a orientação que ora exponho nesta decisão: “Ato administrativo
— Repercussões — Presunção de legitimidade — Situação constituída
— Interesses contrapostos — anulação — Contraditório. Tratando-se da
anulação de ato administrativo cuja formalização haja repercutido no
campo de interesses individuais, a anulação não prescinde da observância
do contraditório, ou seja, da instauração de processo administrativo que
enseje a audição daqueles que terão modificada situação já alcançada.
[...].” (RTJ 156/1042, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - grifei)

O exame da garantia constitucional do “due process of law” permite nela


identificar, em seu conteúdo material, alguns elementos essenciais à sua
própria configuração, dentre os quais avultam, por sua inquestionável
importância, as seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia
de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento
prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere,
sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa
(direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado
e julgado com base em leis “ex post facto”; (f) direito à igualdade entre
as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas
revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à
observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio
contra a auto-incriminação); e (l) direito à prova.

Vê-se, daí, que o direito à prova qualifica-se como prerrogativa jurídica


intimamente vinculada ao direito do interessado à observância, pelo Poder
Público, da fórmula inerente ao “due process of law”, consoante adverte
expressivo magistério doutrinário (ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO
SCARANCE FERNANDES e ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, “As
Nulidades do Processo Penal”, p. 135/144, itens ns. 1/6, 9ª ed., 2006, RT;
ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, “Direito à Prova no Processo Penal”,
1997, RT; ROGÉRIO LAURIA TUCCI, “Direitos e Garantias Individuais no

15
Processo Penal Brasileiro”, p. 196/209, itens ns. 7.4 e 7.5, 2ª ed., 2004,
RT; ROGÉRIO SCHIETTI MACHADO CRUZ, “Garantias Processuais nos
Recursos Criminais”, p. 128/129, item n. 2, 2002, Atlas; ROMEU FELIPE
BACELLAR FILHO, “Processo Administrativo Disciplinar”, p. 312/318, item
n. 7.2.2.3, 2ª ed., 2003, Max Limonad; CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA,
“Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos”, p. 484, item n. 2.2.3.1,
1999, Saraiva; JORGE ULISSES JACOBY FERNANDES, “Tomada de Contas
Especial”, p. 69/72, item n. 4.1.8, 2ª ed., 1998, Brasília Jurídica; HELY LOPES
MEIRELLES, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 688, item n. 3.3.3.5, 32ª
ed., atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e
José Emmanuel Burle Filho, 2006, Malheiros, v.g.), valendo referir, a respeito
dos postulados que regem o processo administrativo em geral, a lição de
JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO (“Manual de Direito Administrativo”,
p. 889, item n. 7.5, 12ª ed., 2005, Lumen Juris):

[...] O princípio do contraditório está expresso no art. 5º, LV, da CF, que tem
o seguinte teor:

[...]

O mandamento constitucional abrange processos judiciais e administrativos.


É necessário, todavia, que haja litígio, ou seja, interesses conflituosos
suscetíveis de apreciação e decisão. Portanto, a incidência da norma recai
efetivamente sobre os processos administrativos litigiosos.

É por tal razão que a própria Lei nº 9.784/99, que rege o processo
administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, prevê, em seu art.
38, a possibilidade de o interessado, “na fase instrutória e antes da tomada
de decisão [...], requerer diligências e perícias” (art. 38, “caput”), sendo
que “Somente poderão ser recusadas, mediante decisão fundamentada, as
provas propostas pelos interessados quando sejam ilícitas, impertinentes,
desnecessárias ou protelatórias” (art. 38, § 2º).

[...]

Sendo assim, em juízo de estrita delibação, e sem prejuízo de ulterior


reexame da pretensão mandamental deduzida na presente sede processual,
defiro o pedido de medida liminar, em ordem a determinar, até final
julgamento desta ação de mandado de segurança, a suspensão cautelar do
processo de Tomada de Contas Especial instaurado contra a ora impetrante
(TC nº 018.016/2005-1), ressalvada, no entanto, à ilustre autoridade ora
apontada como coatora, a possibilidade de autorizar a pretendida produção
de prova pericial, caso assim o entenda conveniente.

Transmita-se, com urgência, cópia desta decisão ao eminente Senhor


Ministro-Relator da TC-018.016/2005-1/TCU.

2. Achando-se adequadamente instruída a presente impetração, ouça-


se a douta Procuradoria-Geral da República. Publique-se. Brasília, 27 de
fevereiro de 2007.

Sobre a necessidade de instauração prévia de processo administrativo, no qual se


assegure aos interessados o exercício da ampla defesa e do contraditório, encontram-se
ainda iterativos, e, sobretudo recentes, julgados do Superior Tribunal de Justiça - STJ:

RECURSO ORDINÁRIO. REDUÇÃO DOS PROVENTOS DE APOSENTADORIA.


AUSÊNCIA DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. ILEGALIDADE.

16
1. O Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente advertido que todo
ato administrativo que repercuta na esfera individual do administrado, como
no caso de redução de proventos de aposentadoria, tem de ser precedido
de processo administrativo que assegure a este o contraditório e a ampla
defesa.

2. Recurso ordinário provido.

(RMS 11813 / PR, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA
TURMA, DJ 03.12.2007 p. 363.).

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO.


GRATIFICAÇÃO. SUPRESSÃO. DEVIDO PROCESSO LEGAL. NECESSIDADE.
RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E IMPROVIDO.

1. Consoante inteligência da Súmula 473/STF, a Administração, com


fundamento no seu poder de autotutela, pode anular seus próprios atos,
desde que ilegais. Ocorre que, quando tais atos produzem efeitos na esfera
de interesses individuais, mostra-se necessária a prévia instauração de
processo administrativo, garantindo-se a ampla defesa e o contraditório,
nos termos dos arts. 5º, LV, da Constituição Federal e 2º da Lei 9.784/99.

2. O Tribunal de origem não desconstituiu o julgamento do Tribunal de


Contas que determinou a supressão da gratificação. Ao contrário, garantiu
a possibilidade de a decisão do TCU ser efetivada pela Administração, desde
que observado o devido processo legal, motivo por que não há falar em
ofensa ao 4º da Lei 8.443/93.

3. Recurso especial conhecido e improvido.

(REsp 765501 / SC, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA,
DJ 05.11.2007 p. 347)

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PENSÃO.


REDUÇÃO. DEVIDO PROCESSO LEGAL. NECESSIDADE. RECURSO ESPECIAL
CONHECIDO E IMPROVIDO.

1. Consoante inteligência da Súmula 473/STF, a Administração, com


fundamento no seu poder de autotutela, pode anular seus próprios atos,
desde que ilegais. Ocorre que, quando tais atos produzem efeitos na esfera
de interesses individuais, mostra-se necessária a prévia instauração de
processo administrativo, garantindo-se a ampla defesa e o contraditório,
nos termos dos arts. 5º, LV, da Constituição Federal e 2º da Lei 9.784/99.

2. Recurso especial conhecido e improvido.

(REsp 731256 / RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA,
DJ 05.11.2007 p. 346)5

Em arremate, e na mesma direção, conclui-se colacionando julgados de todos —


todos, sem exceção — os Tribunais Regionais Federais do Brasil que, ao analisarem pro-
cessos administrativos nos quais suspensos benefícios previdenciários, decidiram também
pela anulação de atos praticados pela Administração Pública em desrespeito aos princípios
constitucionais do contraditório e da ampla defesa (destaquei):

5 Em reforço do que aqui se esclarece, leiam-se também decisões dessa Corte Especial nos casos específicos de alteração
de contrato, nos quais o devido processo administrativo também não fora observado, o que ocasionou a revisão do ato pelo
Poder Judiciário. Precedentes STJ, RMS 2539- TO e RMS 1603- TO.
17
TRF - PRIMEIRA REGIÃO - AGRAVO DE INSTRUMENTO — 200701000412378
- PRIMEIRA TURMA - DECISÃO: 5/3/2008 - PROCESSUAL CIVIL E
ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DO BENEFÍCIO DE APOSENTADORIA
E PENSÃO POR MORTE SEM OBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO
LEGAL. IMPOSSIBILIDADE. COMINAÇÃO DE PENA DE MULTA DIÁRIA:
IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO DE INSTRUMENTO PARCIALMENTE PROVIDO

1. O ônus da prova de irregularidade na concessão da aposentadoria é do


INSS. Logo, cabe a ele comprovar a irregularidade e, somente após o devido
processo legal, onde deve ser garantido ao beneficiário o contraditório e a
ampla defesa, é que o benefício poderá ser suspenso ou cancelado.

2. Suspensa a aposentadoria e o benefício de pensão por morte percebidos


pela agravada, antes do esgotamento da via administrativa, não merece
censura a r. decisão que deferiu a tutela.

3. Na espécie, não é possível a fixação de multa, uma vez que não restou
evidenciado o descumprimento de obrigação de fazer.

4. Agravo a que se dá parcial provimento.

TRF - SEGUNDA REGIÃO - APELAÇÃO CIVEL — 260200 - Processo:


200102010085956 - SEXTA TURMA - DECISÃO: 11/12/2002

PREVIDENCIÁRIO. SUSPENSÃO DE BENEFÍCIO — RESTABELECIMENTO


— ART. 69 DA LEI Nº 8.212/91. INDÍCIOS DE IRREGULARIDADE —
INSUBSISTÊNCIA.

1 - O Poder de Autotutela, enquanto consectário do princípio da legalidade


objetiva (art. 37, caput, CF/88), assegura à Administração Pública a
prerrogativa de rever seus próprios atos e expungí-los, quando eivados de
nulidade insanável, ou, ainda, revogá-los, por questão de conveniência ou
oportunidade.

2 - A legislação de regência estabelece, de forma explícita, a necessidade


do contraditório. A oportunidade de defesa deve ser prévia à suspensão
do benefício, e se dar por meio de notificação, conforme dispõe o art. 69
do Plano de Custeio da Previdência Social, com a redação dada pela Lei nº
9.528/97.

3 - A concessão do benefício importa em ato administrativo vinculado,


que possui presunção juris tantum de legitimidade e de veracidade, e
que, portanto, somente pode ser desconstituído mediante demonstração
inequívoca de ter sido praticado em descompasso com os preceitos legais,
incumbindo tal ônus a quem aproveita o seu desfazimento.

4 - Em se tratando de suspensão de benefício, ante a presunção de


legalidade de que se reveste o ato concessório, e principalmente por se
cuidar de alegação de fato extintivo do direito do Autor (art. 333, inc. II, do
CPC), incumbe à Autarquia Previdenciária a comprovação da irregularidade
no benefício concedido, tanto na via judicial quanto na administrativa, sob
pena de ofensa ao princípio do devido processo legal; razão pela qual não
pode prosperar a suspensão fulcrada apenas em indícios, em que se atribui
ao segurado ônus probatório que não lhe toca.

5 — Apelação a que se dá provimento.

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TRF - TERCEIRA REGIÃO - APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA
— 285705 - Processo: 200661190071300 - NONA TURMA - DECISÃO:
31/03/2008 - MANDADO DE SEGURANÇA - EFICÁCIA DA LIMINAR EM
AÇÃO MANDAMENTAL POSTERIORMENTE EXTINTA - DIREITO SUBJETIVO
CONSOLIDADO - DECISÃO DO INSS QUE CONCEDE APOSENTADORIA
- INVALIDAÇÃO DO ATO SEM O PRÉVIO E REGULAR PROCEDIMENTO
ADMINISTRATIVO - IMPOSSIBILIDADE.

[...]

3- O mandado de segurança é ação civil de rito sumário especial, destinado


a proteger direito líquido e certo da violação efetiva ou iminente, praticada
com ilegalidade ou abuso de poder por parte de autoridade pública (ou
agente de pessoa jurídica no exercício das atribuições do Poder Púbico),
diretamente relacionada à coação, de vez que investida nas prerrogativas
necessárias a ordenar, praticar ou ainda retificar a irregularidade impugnada
(art. 5º, LXIX, da CF e art. 1º da Lei nº 1.533/51).

4- A jurisprudência desta Corte, na linha dos precedentes do Colendo


Superior Tribunal de Justiça, entende que o cancelamento ou suspensão de
benefício previdenciário, a despeito de ter sido concedido indevidamente,
não prescinde do prévio e regular procedimento administrativo no qual se
oportunizem a ampla defesa e o contraditório, em respeito às garantias
fundamentais previstas no art. 5º, LIV e LV, da Constituição Federal. [...]

7- O deferimento de benefício e a averbação de tempo de serviço são atos


administrativos vinculados a que se atribuem a presunção juristantum de
legalidade e veracidade, exigindo-se-lhes do agente público a motivação
para convalidá-lo, neste particular, entendida como o cumprimento dos
requisitos previstos na legislação previdenciária.

8- É dado à Administração Pública rever seus próprios atos para anular


aqueles que se revistam de ilegalidade, tanto os discricionários como os
vinculados (controle de legalidade), ou, em sede de mérito, revogar os atos
discricionários segundo os critérios de conveniência e oportunidade (art. 69
da Lei nº 8.212/91 e Súmulas nos. 346 e 473 do E. STF).

9- A decisão autárquica que concede a aposentadoria, porque ato vinculado


com todas as suas prerrogativas, é passível de invalidação, desde que
observado o devido processo legal no âmbito administrativo.

10- Sentença anulada de ofício. Concedida parcialmente a ordem de


segurança para determinar o imediato restabelecimento do benefício
previdenciário do impetrante, sem prejuízo de eventual revisão do ato
de sua concessão, por parte do INSS, mediante o regular procedimento
administrativo. Prejudicada a apelação.

TRF - QUARTA REGIÃO - APELAÇÃO CIVEL 200572000001914 - QUARTA


TURMA - DECISÃO: 09/04/2008 - ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO
INATIVO. GRATIFICAÇÃO DE ESTÍMULO À DOCÊNCIA. ATO COMPLEXO.
DECADÊNCIA. INOCORRÊNCIA. PROCESSO ADMINISTRATIVO. AMPLA
DEFESA E CONTRADITÓRIO.

1. Não flui o prazo decadencial previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99


enquanto não homologado o ato de aposentadoria pelo Tribunal de Contas
da União, por tratar-se de ato administrativo complexo. Entendimento do
Plenário do Supremo Tribunal Federal.

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2. A revisão de ato administrativo pela própria Administração, que tenha
repercussão na esfera individual do administrado, deve ser precedida
do prévio processo administrativo, de modo que lhe seja assegurado o
contraditório e a ampla defesa. Precedente do STF.

TRF - QUINTA REGIAO - APELAÇÃO CIVEL — 418948 - Processo:


200181000184410 - QUARTA TURMA - DECISÃO: 25/03/2008
PREVIDENCIÁRIO E CONSTITUCIONAL. APOSENTADORIA RURAL, POR
IDADE. SUSPENSÃO PRÉVIA. AUSÊNCIA DE PROCESSO ADMINISTRATIVO.
PREJUÍZO QUANTO À OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. CF/88. ART. 5º, LV. BENEFÍCIO
ASSISTENCIAL. (AMPARO SOCIAL). LEI Nº 8.742/93. FACULDADE DE
OPÇÃO.

1. A Administração pode, a qualquer tempo, rever o seu ato para cancelar


ou suspender benefício previdenciário, desde que se observe a presença
do contraditório e da ampla defesa, mediante prévio e regular processo
administrativo.

2. Uma vez concedido o benefício significa dizer que o beneficiário preencheu


os requisitos até então exigidos, logo, a sua suspensão unilateral, sem a
instauração prévia de um procedimento administrativo que assegure ao
beneficiário o contraditório e a ampla defesa, fere preceito assegurado no
art. 5º, LV, da CF/88.

3. Em sendo portador de benefício de natureza assistencial, no curso da ação,


previsto na Lei nº 8.742/93, dada a sua impossibilidade de cumulação com
qualquer outro benefício de natureza previdenciária, facultado é ao autor
da demanda optar pelo que lhe parecer mais vantajoso, compensando-se
os valores pagos na esfera administrativa.

4. Apelação e remessa oficial improvidas.

Assim, sintetizados de maneira simples e prática, os princípios do contraditório


e da ampla defesa na seara administrativa se efetivam com a prática dos seguintes atos
pelo administrador público:

a) a prévia e formal cientificação do interessado sobre todos os atos e incidentes de


um processo administrativo devidamente instaurado;

b) a abertura de prazo razoável para que o interessado, diante do seu inconformis-


mo, pratique atos de reação contra os atos administrativos praticados no bojo
desses processos;

c) a concessão do direito ao interessado de produzir prova e de se manifestar,


consignando as observações que desejar sobre a manifestação produzida pela
Administração;

d) a efetiva análise e consideração, pela Administração, dos atos praticados pelo


interessado no exercício do seu direito de participação;

e) a possibilidade, ainda, de o interessado interpor recurso contra as decisões que


lhe são desfavoráveis.

Contudo, em direção oposta a todos os preceitos e a toda a jurisprudência nacional


citada, órgãos e entidades públicas, sob o pretexto de corrigir e aplicar corretamente a
lei ao caso concreto, anulam vários de seus atos administrativos considerados ilegais —
porém já repercutidos no campo de interesses individuais —, sem conferir aos interessados

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a menor garantia de se explicar (contraditório) e talvez demonstrar (ampla defesa) a
verdade que pudesse amparar os seus direitos, ferindo, por conseguinte, as regras e os
princípios constitucionais já mencionados.

Essas situações fático-jurídicas — flagrantemente prejudiciais à Administração —


já que desencadeiam contínuas e desnecessárias lides judiciais nas quais se discute a
(ir)regularidade dos procedimentos então adotados, bem poderiam ser evitadas com a
promoção de uma melhor prestação do serviço público concernente aos atos de instrução
e de decisão nos processos administrativos, o que ocorrerá não somente com a rigorosa
observância dos princípios constitucionais elencados (devido processo legal e os consectários
contraditório e ampla defesa), mas principalmente através do rigoroso cumprimento dos
dispositivos da Lei nº 9.784/99, que regulamenta o processo administrativo no âmbito
federal, pouco difundida entre os próprios órgãos e entidades administrativas.

Delineada a grave questão, é um truísmo dizer que o devido processo legal deve
obrigatoriamente ser respeitado; todavia, vale mencionar que a sua observância tem como
finalidade o resgate do duplo objetivo do próprio processo administrativo, que por um lado,
visa: a) resguardar o administrado, garantindo que os seus interesses sejam efetivamente
considerados, oferecendo oportunidade de exibir suas razões antes de ser afetado; e, por
outro b) garantir uma atuação administrativa mais transparente, estabelecendo controles
no próprio âmbito da Administração ao longo da formação de sua vontade, ao invés de
contentar-se com controles operados de fora, pelo Poder Judiciário, com sérios prejuízos
ao erário.

Como se pode constatar, ainda, essas explícitas garantias de ordem jurídico-


constitucional, no âmbito do processo administrativo, representam um fator relevante
de clara limitação dos poderes da Administração Pública e também uma correspondente
intensificação do grau de proteção dispensada aos direitos dos interessados, fatores que,
sem dúvida, consagram a exigência de um processo formal e regular para que seja atingida
a propriedade de quem quer que seja, e a necessidade de que a Administração Pública,
antes de tomar decisões gravosas a uma pessoa, ofereça-lhe oportunidade de contraditório
e de ampla defesa.

Diante de todo esse encadeamento lógico, conclui-se que a Administração Pública


não poderá proceder contra alguém simplesmente passando diretamente à decisão que
repute cabível, pois terá, antes, o dever jurídico de atender ao conteúdo dos versículos
constitucionais e legais alhures mencionados.

Em suma, enquanto um ato administrativo estiver produzindo os seus efeitos —


especialmente patrimoniais ao interessado — a sua anulação deverá necessariamente
ser precedida do devido processo legal. Do contrário, a prática abrupta e sumária do
cancelamento de um benefício, não sendo oportunizado ao interessado se defender em
prévio e regular processo administrativo, sem dúvida será manifestamente contrária às
garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, a merecer ineludivelmente o
crivo do Poder Judiciário.

REFERÊNCIA
Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14ª ed., São Paulo: Atlas. 2002.

FERRAZ, Sérgio, e DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 2 ed., São Paulo:
Malheiros, 2007.

GRINOVER, Ada Pelegrini. O Processo em Evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


1996.

Justen Filho, Marçal. Ampla Defesa e Conhecimento de Argüições de


Inconstitucionalidade e Ilegalidade no Processo Administrativo, Revista Dialética de
Direito Tributário, nº 25, ano.
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MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação — adjudicação — Anulação em Estudos e pareceres de
Direito Público, edição, v. 3, São Paulo, RT, 1980.

Mello, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed., São Paulo:
Malheiros, 2002.

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