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CORPOS LACERADOS: O SACRIFÍCIO DA PALAVRA

NA OBRA POÉTICA DE GEORGES BATAILLE

Alexandre Rodrigues da Costa – FHA 1

RESUMO: Os poemas do pensador francês Georges Bataille afirmam um lugar de


indistinção, onde as palavras se dispersam, ao obliterarem o sentido, ao se tornarem
paródias de si mesmas. Pensar a poesia, nesses termos, é articulá-la não como
interlocução do homem com o mundo, mas como obra a serviço do desespero, no
sentido de que a palavra só pode ser utilizada em função de sua própria perda. Dessa
forma, o sujeito que escreve o poema não apenas destrói o sentido funcional das
palavras, mas também se assassina, no instante em que sua ação leva-o à exclusão, a
um não lugar na coletividade. A escrita de Bataille forma, assim, uma espécie de
texto canceroso, cujas palavras se multiplicam, ao se dispersarem nas suas próprias
feridas, nos cortes que abrem sobre a página. Este artigo objetiva analisar de que
forma os poemas de Georges Bataille criam uma desordem que aponta para um lugar
inominável, onde os sentidos se perdem, já que o poema é levado à condição de
objeto sagrado, no instante em que aquele que o sacrifica nos conduz ao
desconhecido, à angústia de uma nudez a partir da qual a morte se abre soberana,
imune a qualquer projeto ou plano moral.

Palavras-Chave: Sacrifício. Morte. Informe. Nonsense. Bataille.

Ler os poemas de Georges Bataille é o mesmo que estar diante de


uma ferida que não pode ser fechada. Aberta, ela nos obriga a olhar para
a escuridão que nela se esconde, sol negro que lacera a medida, fazendo
da página o espaço do desvio, da transgressão. Cada palavra, aí, mostra
seus interstícios, a noite que a rodeia, a imensidade de sua própria
sombra. Os poemas de Bataille, nesse sentido, nos cegam, não com uma
suposta beleza idealizada, concebida pelos jogos da razão. Não, seus
poemas nos cegam com o desequilíbrio do verso, a insuficiência e a
desfiguração de suas palavras. Rasgadas, elas não se prendem a um
sentido claro e definido, mas se oferecem, ambivalentes, como naturezas
informes. Como Bataille nos diz em uma das edições de Documents:

Um dicionário começa quando ele não mais fornece o significado


das palavras, mas suas funções. Assim, o informe não é apenas um
adjetivo que dá um significado, mas um termo que serve para

1
Fundação Helena Antipoff. Faculdade de Letras. Ibirité. Minas Gerais. Brasil.
CEP: 32400-000. E-mail: rodriguescosta@hotmail.com.

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desclassificar todas as coisas, exigindo que cada uma delas tenha a
sua forma. O que o informe designa é o incerto que se espalha por
todos os lugares, como uma aranha ou um verme. De fato, para os
acadêmicos serem felizes, o universo precisaria ganhar forma. Todos
os filósofos não têm outro objetivo: a matéria deve servir como um
terno, um terno matemático. Por outro lado, ao se afirmar que o
universo se assemelha a nada, somente o informe é relevante para se
dizer que o universo é algo como uma aranha ou catarro.
(BATAILLE, 1970, p. 217)

Aquele que se atreve a ler os poemas de Bataille depara-se,


portanto, com essa zona incerta, onde a lógica e a racionalidade não têm
mais espaço, onde a gargalhada, o delírio e a sujeira imperam como um
processo de contra-operação: “a prática de uma atitude de pensamento
fadada ao fracasso, descontentamento e imperfeição. Nada mais do que
uma resistência contra os tediosos e formativos efeitos do pensamento
racional” (BILLES, 2007, p. 28). Nesse sentido, a contra-operação é uma
atitude que busca propositalmente a imperfeição, o fracasso, como forma
de tornar indistinguíveis o sagrado e o profano. Ela é o próprio informe
colocado em ação, uma vez que a distinção não tem mais vez e o que
prevalece é o que podemos chamar de orgia da forma. O ataque que
Bataille dirige aos acadêmicos consiste exatamente em criticar os moldes,
os limites impostos pelos vários campos do conhecimento, o “terno
matemático” de que ele nos fala. O informe assinala, portanto, a
desistência de dominar a matéria. Mas para que se vá ao encontro dessa
matéria informe, é necessário abraçar os caminhos da transgressão. E
para que a transgressão ocorra, a contradição deve ser percebida como a
afirmação daquilo que é profano, ou seja, a nossa própria existência. No
instante em que o pensamento se volta para o dualismo, não há espaço
para conciliação ou redenção, mas para o fracasso. Por isso, pensar e
conceber o poema sob os desígnios do informe deixa, na página, como se
fosse ferida, uma palavra sempre aberta, fundada no descontínuo, no
fragmentário. O desconhecido, aquilo que não tem resposta, passa a
dominar a linguagem e o que se estabelece é uma tensão não resolvida
entre nascimento e morte, entre o transitório e o permanente. Longe de
uma síntese, o informe abraça simultaneamente os dois termos, sem que
haja uma conclusão, um fim.
O informe, portanto, não pode ser fechado em uma definição
precisa, pois fazer isso seria ir contra a proposta de Bataille, que é a de
romper com os significados dicionarizados, catalogados. Ao se encarar o
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informe como uma operação, os significados das palavras se tornam
deslizantes, escorregadios, à imagem da aranha ou do catarro. Os limites,
aí, são rompidos, em favor da contestação da ordem, daquilo que é dado
como certo. Não há mais um centro, no qual a razão se estabeleça, ao
contrário, é o incerto que passa a ser o fundamento da existência, no
momento em que as linhas que delimitam o contorno desabam e interno e
externo se confundem. O informe representa, assim, o colapso da
identidade pensada em termos cartesianos, pois permite a imbricação
entre sujeito e objeto, um golpe no discurso lógico e na razão.
Ao dizermos que somente o informe é relevante para se entender
que o universo se assemelha a nada, estamos muito próximos de outro
termo caro a Bataille: o impossível. O impossível (L’Impossible) é o
nome dado à segunda edição do texto originalmente intitulado Ódio da
poesia (Haine de la poésie). O livro é constituído de três partes: “Uma
história de ratos”, “Dianus” e “A Oresteia”. A ltima parte, na primeira
edição de 1947, abria o livro. Ela se constitui basicamente de poemas e de
textos voltados para a reflexão poética. A mudança da ordem do livro
assim como a de seu título são significativas e, em sua explicação do
porquê de tê-las efetuado, Bataille nos dá pistas para o entendimento de
qual a relação entre o impossível e o ódio da poesia:

A primeira vez que publiquei este livro quinze anos atrás, dei-lhe um
título obscuro: Ódio da poesia. Pareceu-me que a verdadeira poesia
só poderia ser alcançada pelo ódio. A poesia não possui nenhum
significado poderoso a não ser pela violência da revolta. Mas a
poesia apenas alcança essa violência pela evocação do impossível.
Quase ninguém entendeu o significado do primeiro título, é por isso
que eu preferi finalmente chamá-lo de O Impossível. (BATAILLE,
1971, p. 101)

Ao ligar o ódio da poesia à violência da revolta, Bataille articula


uma poesia baseada na subversão, naquilo que escapa do reinado da
ciência, do útil, do real. Para entender a relação do ódio da poesia com o
impossível, devemos ter em mente que o impossível concebido por
Bataille é o que se impõe acima de todos os direitos, “uma convulsão que
envolve todo o movimento dos seres, [...] que vai do desaparecimento da
morte à fúria voluptuosa que, talvez, seja o significado do
desaparecimento” (BATAILLE, 1971, p. 102). Essa f ria voluptuosa se
baseia em um contínuo movimento de resistência à satisfação. Seu alvo

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nada mais é do que a própria forma, entendida em termos de perfeição
humana. O impossível, nesse sentido, é o ilimitado, aquilo que se oferece
acima de todas as restrições. Quando Bataille escreve, no prefácio de A
literatura e o mal, que a literatura é uma forma penetrante do mal e que
para nós ela tem o valor soberano (BATAILLE, 1989, p. 9-10), podemos
concluir que para alcançar essa soberania, a literatura deve se utilizar da
violência como uma maneira de quebrar a integridade dos corpos e das
coisas, permitindo que a poesia se cumpra em contradição permanente,
levada ao limite do impossível. Por isso, a literatura, pensada em termos
de soberania, começa quando a possibilidade da vida abre-se sem limite;
de acordo com Maria Christine Lala, “Bataille, através da prática do
comportamento soberano, remove a barreira do limite que é imposto, no
sentido de resgatar o sentido autêntico do sagrado, e o sentido verdadeiro
da poesia retornado como o seu oposto” (LALA, 1995, p. 113). Esse
sentido autêntico do sagrado está na coexistência dos contrários, na
integração e desintegração das formas, naquilo que é o próprio objeto de
horror:

O que é sagrado, sem dúvida, corresponde ao objeto de horror do


qual eu falei, um fétido, pegajoso objeto sem limites, que está
repleto de vida e ainda é o signo da morte. É a natureza a ponto onde
sua efervescência reúne intimamente a vida e a morte, onde está a
morte devorando a vida com substância descomposta. (BATAILLE,
1976, p. 83)
A poesia vista como uma das formas do sagrado não é apenas
uma mera representação da reunião de forças contrárias, mas a própria
presença delas, no instante em que se torna resto, “pegajoso objeto sem
limites”. Mas como conceber a poesia como resto, nutrir seu discurso
com um ódio capaz de lhe dissolver as formas a ponto de os seus
significados se tornarem monstruosos, irreconhecíveis? Em A noção de
despesa, livro que constitui a primeira parte de A parte maldita, Georges
Bataille relaciona o sagrado a um estado de perda: “O sacrifício não é
outra coisa, no sentido etimológico da palavra, que não a produção de
coisas sagradas (...) antes de tudo, fica claro que as coisas sagradas são
constituídas por uma operação de perda” (BATAILLE, 1975, p. 31). Mas
como se dá essa operação de perda no objeto sagrado? Na Teoria da
religião, um dos livros que compõem a Suma ateológica, Bataille nos
explica de que maneira um ser, na condição de coisa, torna-se sagrado:

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O princípio do sacrifício é a destruição, mas, ainda que algumas
vezes ele chegue a destruir inteiramente (como no holocausto), a
destruição que o sacrifício quer operar não é o aniquilamento. O que
o sacrifício quer destruir na vítima é a coisa – somente a coisa. O
sacrifício destrói os laços de subordinação reais de um objeto,
arranca a vítima ao mundo da utilidade e a entrega ao do capricho
ininteligível. (BATAILLE, 1993, p. 37)

Talvez, por isso, não seja estranho que Bataille aborde a questão
da identidade em um texto ao qual dá o título de “Sacrifícios”. Ao longo
da leitura desse texto, não encontramos qualquer referência explícita aos
rituais de sacrifício. O tema do texto perpassa pela noção de identidade,
de um eu que se debruça sobre o vazio ante a iminência da morte. Na
verdade, o que Bataille faz, ao abordar a experiência do eu e de sua
improbabilidade, é discutir de que forma a morte não se opõe à
existência, já que “a aproximação da podridão liga o eu-que-morre à
nudez da ausência” (BATAILLE, 1973, p. 87). Se o eu se projeta para
fora de si, criando, assim, o objeto de sua paixão, em oposição a esse
objeto está a catástrofe, pois “o pensamento vive a aniquilação que o
constitui como uma vertiginosa e infinita queda, e assim não tem somente
a catástrofe como seu objeto, sua estrutura é a catástrofe, ela se absorve
no nada que a suporta e ao mesmo tempo deixa escapar” (BATAILE,
1970, p. 94). O sacrifício seria, portanto, o momento em que, para o eu-
que-morre, é revelada a existência ilusória do eu, a inutilidade dos objetos
que o rodeiam, como se tivesse diante dele “os preparativos de uma
execução, já que a existência das coisas não pode fechar a morte que ela
traz, mas que ela mesma se projetou nessa morte que a encerra”
(BATAILE, 1970, p. 96). A destruição do eu é o sacrifício que o liberta.
Nesse sentido, a irrealidade do mundo deve ser corroída, para que a
natureza da existência esteja em concordância com a natureza extática do
eu-que-morre.
A forma como Bataille articula esse tipo de sacrifício em sua obra
se faz a partir da unificação entre aquele que sacrifica, o sacrificador, e o
que é sacrificado, a vítima. A aspiração de Bataille por “inventar uma
nova forma de crucificar a si mesmo” (BATAILLE, 1973, p. 257) se dá
como resposta a duas opções frente ao sacrifício: “a tragédia propõe ao
homem identificar-se com o criminoso que mata o rei; o cristianismo
propõe identificar-se com a vítima, com o rei destinado a morrer”
(BATAILLE, 1995, p. 196). A saída para essa antinomia, Bataille a

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encontra no mito de Dianus, nome que utilizou como pseudônimo na
primeira edição de O culpado e personagem-narrador em O Impossível. A
escolha por Dianus reúne tanto a figura dionisíaca do acéfalo quanto a de
Cristo, não a figura institucionalizada pela Igreja Católica, mas a vítima
sacrificial cujo renascimento advém do corpo sujo, excremental,
mutilado. Dessa forma, o mito de Dianus dá a Bataille tanto a chance de
unificar esses opostos quanto de questionar a ambivalente natureza do eu.
De acordo com Sir James George Frazer, em O Ramo de ouro, Orestes
teria sido o primeiro Dianus, pois, ao chegar ao bosque de Nemi,
assassinou o sacerdote que lá reinava e estabeleceu o culto à deusa Diana.
Esse ato deu início a um estranho ritual: aquele que assassinasse o
sacerdote seria também assassinado por seu sucessor. Dessa forma, o
indivíduo se tornava ao mesmo tempo assassino e sacerdote, sacrificador
e vítima. Bataille concebe o sacrifício como uma forma de apagar as
fronteiras existentes entre o eu-que-mata e o eu-que-morre. É o que
podemos constatar em um pequeno poema chamado “O livro”:

Eu bebo em tua ferida


e estendo tuas pernas nuas
eu as abro como um livro
onde leio o que me mata. (BATAILLE, 2008, p. 149)

O encontro amoroso se dá através dessa ferida, na qual o sujeito


faz do ler não uma forma de domínio sobre o outro, mas de perda, de tal
forma que o assassino e sua vítima tornam-se indiscerníveis. O
dilaceramento (déchirure) rompe com a homogeneidade pessoal, projeta
para o exterior um eu que nega a sua própria existência a partir da relação
que mantém com o outro. Bataille deixa isso bem claro quando se nomeia
Dianus, em O culpado: “aquele que se chamava Dianus escreveu estas
notas e morreu” (BATAILLE, 1973, p. 239). Como bem observa
Alexander Irwin, Bataille, “ao escrever sua experiência interior, é tanto
soberano e assassino, renegado matador de deuses e salvador auto-
aniquilante” (IRWIN, 2002, p. 31). Nesse sentido, esse poema, assim
como outros de Bataille, pode ser lido como um sacrifício, no qual os
papéis de sacrificador e vítima são unificados a partir de um gesto em que
vida e morte não se opõem, se complementam: “o sacrifício é a vida com
a morte confundida” (BATAILLE, 1980, p. 79). A ang stia da vítima e a
do assassino se tornam a mesma, pois, para que haja sacrifício, é
necessário antes de tudo que ocorra uma identificação entre eles. Pois se a

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vítima é o objeto e o sacrificador, o indivíduo, a destruição do objeto
acarreta a desintegração da identidade dos envolvidos. Já que o matar e o
morrer são solidários, não há destruição do objeto, se não houver objeto e
aquele que exerce o trabalho de destruí-lo: “A morte desorganiza a ordem
das coisas e a ordem das coisas nos mantém. O homem tem medo da
ordem íntima que não é conciliável com a das coisas” (BATAILLE,
1993, p. 43). A arte, tudo aquilo que é engendrado tendo em vista a
poeisis, é a própria materialização da angústia, no sentido de que
compactua com morte, ao destruir todo e qualquer aspecto de utilidade de
sua formação. O eu que participa desse processo é ao mesmo tempo o
sacrificador e a vítima, já que o que está em jogo é a dissolução de sua
identidade, que se realiza como estado de perda:

O termo poesia, que se aplica às formas menos degradadas, menos


intelectualizadas da expressão de um estado de perda, pode ser
considerado como sinônimo de despesa: significa, com efeito, do
modo mais preciso, criação por meio da perda. Seu sentido, portanto,
é vizinho do de sacrifício. (BATAILLE, 1975, p. 32)

Para aquele que faz o poema não há qualquer retorno material,


uma vez que o risco aí assumido exige que empenhe sua própria
existência na representação de seus escritos. Isso não quer dizer que o
poema seja uma cópia ou reflexo de seu criador, mas um resíduo, matéria
destruída, palavras sagradas “limitadas ao nível de beleza impotente, que
retiveram o poder de manifestar toda soberania” (BATAILLE, 1988, p.
342). O furor de escrever coloca-se assim a serviço do desespero, no
sentido de que a palavra só pode ser utilizada em função de sua própria
perda, do abismo que cava. Dessa forma, o sujeito que escreve o poema
não apenas destrói o sentido funcional das palavras, mas também se
assassina, no instante em que sua ação leva-o à exclusão, a um não-lugar
na coletividade. Poderíamos arriscar a dizer, invertendo o postulado de
Keats de que o poema é a máscara do poeta, que, na verdade, o poema é
onde ele se sacrifica, onde sua identidade não desaparece, mas é
despedaçada, para que, a partir de suas carnes, seus ossos, suas vísceras, o
poema surja.
O resultado disso tudo é que os textos de Bataille podem ser
vistos como orgânicos. Conforme bem observa Denis Hollier, o próprio
dicionário crítico de Bataille se ampara em um discurso anatômico-
analítico: “cada artigo, de fato, desloca o corpo, isola o órgão que trata e

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desconecta-o de seus suportes orgânicos, transformando-o no lugar de
uma concentração semântica através da qual a parte ganha o valor que
está amarrado ao todo” (HOLLIER, 1989, p. 78). Cada artigo, assim,
desarticula o todo, criando insubordinação, ao fazer com que as relações
hierárquicas desabem frente à parte isolada. Em vez de se apagar no todo,
a parte se torna aquilo que Hollier chama de “obscenidade fragmentária”.
Verbetes tais como o dedão do pé, o olho, a boca, que Bataille cunhou
para o dicionário, são exatamente onde o discurso anatômico ganha
forma, já que a parte, agora isolada do corpo, não tem mais o propósito de
servi-lo como fundamento de uma imagem nica, integral: “O dicionário
crítico, em Documents, através de concentrações semânticas, produz um
tipo de ereção simbólica do órgão descrito, uma ereção da qual, no fim, o
órgão, como que se por cissiparidade, se desprende de seu suporte
orgânico” (HOLLIER, 1989, p. 79). Mas é possível perceber que essa
visão fragmentada do corpo não se restringe ao dicionário crítico. Em
alguns poemas que compõem O Arcangêlico, Bataille isola partes do
corpo, de tal forma que elas se tornam seres autônomos:

Um longo pé nu sobre minha boca


um longo pé contra o coração

pé de whisky
pé de vinho
pé louco para esmagar

ó meu chicote ó minha dor


calcanhar suspenso me pisando
choro por não morrer

ó sede
insaciável sede
deserto sem saída (BATAILLE, 2008, p. 34)

Liberto do corpo, o pé não se sustenta como uma metáfora, uma


imagem em substituição a outra, mas como aquilo que oblitera o sentido,
rompe com a ordem do discurso. Dessa forma, o pé deve ser apenas o pé;
desprendido do corpo, ele se torna bêbado, sem direção, esmagando todo
e qualquer sentido, abrindo caminho para o nonsense. Ora, o nonsense é o
que possibilita nutrir o discurso poético com um ódio capaz de lhe
dissolver as formas, de maneira que suas imagens se tornem desfiguradas,

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quase inapreensíveis. Para entender melhor como essa desfiguração se dá,
talvez seja interessante nos determos em uma passagem de O Impossível,
no qual Bataille escreve: “a poesia que não se eleva ao nonsense da
poesia é apenas o vazio da poesia, é apenas poesia bonita” (BATAILLE,
1971, p. 220). Para evitar essa poesia bonita, o poeta deve escapar do
mundo do discurso e aceitar o excesso como “o plano onde cada
elemento se converte em seu contrário incessantemente” (BATAILLE,
1971, p. 219). O que se tem, portanto, é uma desordem a partir da qual a
linguagem encontra o nonsense, aquilo que excede o mundo das
consequências felizes. É o nonsense, na concepção de Bataille, que
possibilita que o sentido se quebre e fique suspenso, que o poema não se
torne apenas uma coisa bonita, em conformidade com o vazio do que é
útil.
O nonsense seria, assim, uma forma de quebrar, internamente, as
engrenagens do discurso. É o que podemos ler em A oréstia: “eu me
aproximo da poesia: mas perdê-la” (BATAILLE, 1971, p. 218). Aqui, a
tradução não dá conta da violência contida no verbo manquer, uma vez
que ele pode ser traduzido não só como perder, mas também como
desfigurar, desrespeitar, estragar, falhar, faltar, ofender. A aproximação
da poesia resulta, portanto, no ódio a ela. A partir desse ódio, o discurso é
reduzido a restos, de tal maneira que a linguagem fracassa, desmorona.
Estamos, assim, no extremo do possível, onde a necessidade de dilacerar
o discurso nos remete a um lugar de extravio, de não saber. Em vez de
comunicar algo, o poema se afirma naquilo que escapa ao entendimento.
Seu fim é a imperfeição: “o sentimento que tenho do desconhecido do
qual falei é sombriamente hostil à ideia de perfeição (a servidão mesma, o
‘deve ser’)” (BATAILLE, 1972, p. 16). Se o poema é imperfeito e foge à
utilidade, o desconhecido é tanto aquilo que o ampara quanto o que se
projeta dele como horizonte do impossível. No entanto, o desconhecido
que o poema nos oferece não surge do nada: “o poético é o familiar
dissolvendo-se no estranho, e nós mesmos com ele. Ele nunca nos
desapossa totalmente, pois as palavras, as imagens dissolvidas, estão
carregadas de emoções já sentidas, fixadas a objetos que as ligam ao
conhecido” (BATAILLE, 1972, p. 17). Para que o poema se torne
desfigurado, maldito, é necessário que suas palavras tenham o sentido
obliterado, se tornem inacessíveis, de maneira que jamais constituam um
caminho a ser trilhado a fim de se alcançarem determinados objetivos, o
que seria a total rendição do poema ao discurso lógico, utilitário do dia a
dia:

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Dente de ódio
tu és maldita
quem é maldita pagará

tu pagarás tua parte de ódio


o horrível sol tu morderás
quem é maldito morde o céu

comigo tu rasgarás
teu coração amado de pavor
teu ser estrangulado de tédio

tu és amiga do sol
não há nenhum repouso para ti
teu cansaço é minha loucura (BATAILLE, 2008, p. 49)

A angústia, que o poema gera a partir do desconhecido, não


ocorre de repente, ela se faz na gradual desfiguração do mundo ao nosso
redor. A perda de sentido do poema, o nonsense, é a entrada ao
desconhecido, mas isso não quer dizer que o conhecido seja esquecido: “a
imagem poética, mesmo se ela leva o conhecido ao desconhecido,
prende-se, no entanto, ao conhecido que lhe dá corpo, e ainda que ela o
dilacere e dilacere a vida nessa dilaceração, se fixa a ele” (BATAILLE,
1971, p. 170). Dilacerar o conhecido não é negar-lhe a existência, mas
deslocá-lo, deformá-lo, de tal maneira que o discurso lógico que o cerca
desabe. Nesse sentido, de acordo com Bataille, “a poesia é um termo
mediador, ela esconde o conhecido no desconhecido” (BATAILLE, 1971,
p. 222), ou seja, a angústia que o poema nos oferece surge da tensão entre
aquilo que nos é familiar e o que nos foge à compreensão. Como um
“entre” a poesia conjuga duas realidades, o conhecido e o desconhecido,
sem chegar a uma síntese. À continuidade de uma palavra interrupta,
esférica, surge a necessidade de uma linguagem de ruptura, descontínua,
fundada na fragmentação. O desconhecido, a questão sempre aberta, se
estabelece nessa tensão não resolvida entre a continuidade e a
descontinuidade.
A poesia, articulada como forma de transgressão, seria, assim, o
movimento sem fim, no qual o texto se torna, pelo excesso, fracasso. O
discurso poético, nesse sentido, não é só a possibilidade de conjugar o ser
pela subtração, determinado por “um poder, que tudo pode, pode

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inclusive isso, suprimir-se como poder” (BLANCHOT, 2007, p. 192),
mas a afirmação da obra que se constrói por suas ruínas, por sua
incompletude, pela proposital incapacidade de se sustentar em seu dizer.
O poema, dessa forma, se concretiza a partir de um errar que o mantém
no limite de um não saber, pergunta aberta pelo infinito da questão:
“poder enfim não saber nada, ou antes, se eu não sei nada, é que nenhuma
questão pode ser feita” (BATAILLE, 1988, p. 530). O ódio à poesia
torna-se então esse tempo sempre presente, no qual os limites da forma
desmoronam, para nos lançar nessa afirmação que não se afirma, que é a
morte.
A escrita de Bataille forma assim uma espécie de texto canceroso,
cujas palavras se multiplicam, ao se dispersarem nas suas próprias
feridas, nos cortes que abrem sobre a página. Daí a proliferação de
sentido, já que nesse texto orgânico, o câncer não só ameaça a
continuidade como causa rupturas ao longo do discurso. O texto se torna
um mergulho no desconhecido, o que é possível apenas quando se tem
em mente que o nonsense é uma forma de levar a palavra a se afirmar
além de si mesma. O que temos, então, são palavras cegas que dilaceram
o discurso lógico, à medida que o entendimento é levado à exaustão de
seus sentidos. Mas para que se chegue a essa palavra cega, é necessário
alcançar o limite onde o não saber é ainda saber:

Há no entendimento um ponto cego (tache aveugle): que lembra a


estrutura do olho. No entendimento, como no olho, só se pode
percebê-lo com dificuldade. Mas, enquanto o ponto cego do olho é
sem consequência, a natureza do entendimento quer que o ponto
cego tenha, em si mesmo, mais sentido do que o próprio
entendimento. Na medida em que o entendimento é auxiliar da ação,
o ponto é aí tão negligenciável quanto ele o é no olho. Mas, na
medida em que o homem considere a si mesmo, no conhecimento, eu
diria uma exploração do possível do ser, o ponto absorve a atenção:
não é mais o ponto que se perde no conhecimento, mas o
conhecimento nele. A existência dessa forma fecha o círculo; mas ela
não pôde fazê-lo, sem incluir a noite, de onde ela só sai para retornar
a ela. Como ia do desconhecimento ao conhecido, lhe é necessário se
inverter no topo e retornar ao desconhecido. (BATAILLE, 1973, p.
129)
Nesse ponto cego, que o conhecimento negligencia, a palavra
mergulha na escuridão, ultrapassa a medida de si mesma, para chegar ao
outro lado do discurso, de forma a se exceder naquilo que a mantém viva:

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o sentido. É o que nos diz Bataille em O Impossível: “Quando aceitar a
poesia troque-a pelo seu contrário (ela se torna mediadora de uma
aceitação)” (BATAILLE, 1971, p. 218). Esse contrário da poesia, sua
contraparte mediadora, se estabelece, quando a palavra se torna cega, ou
seja, a partir da multiplicidade e do esgotamento de seus sentidos. Se a
poesia torna-se mediadora, no sentido de que se abre à heterogenia, a
metáfora já não tem obrigatoriamente a função de estabelecer identidade
entre os seres, pois o que se quer é a indistinção das coisas, o entre-lugar
onde a reversibilidade rompe com a integralidade da palavra,
comprometendo os seus significados. Apaga-se a identidade, impede-se a
transposição. Cega, a palavra abraça o excesso, o equívoco, até se tornar
perda. Mas isso não quer dizer que a transposição desapareça, pois, na
verdade, ela se abre múltipla, emaranhada em si mesma.
Os poemas de Bataille nos levam para esse lugar de perda, onde o
desconhecido se afirma a partir dos destroços do discurso lógico. O que
se revela, assim, é uma desordem amparada na morte, na desintegração
que esta proporciona, no instante em que a palavra desorienta, rompe com
a medida dos significados. O nonsense passa a ser o questionamento de
todas as coisas indiferentes ao fracasso, ao desejo de se dilacerar naquilo
que nos olha e buscamos ver, já que o desconhecido mantém a estranheza
mesmo quando algo nos é familiar. A angústia gerada por esse
movimento articulado pelo desconhecido se fundamenta, portanto, em
uma palavra inacabada, aberta àquilo que a questiona, sendo ela questão
que não se formula, que se perde na morte que nomeia, ao evocar o que
está além. É a ang stia do enigma, do “eu” transformado em esfinge. A
palavra, nessa perspectiva, não é salvadora, mas, antes, desnorteadora,
pois o enigma se funde a ela, de tal forma que a escrita se realiza pela
impossibilidade de assinalar qualquer resposta e pela própria falta que a
mantém. Finita e ilimitada, a palavra poética oferece em sacrifício as
coisas que nos traz, sob a condição de colocá-las sob nossas sombras, de
fazer de nossos questionamentos os labirintos nos quais as perderemos:

INSIGNIFICÂNCIA

Adormeço
a agulha
de meu coração
choro
uma palavra

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que perdi
abro
o contorno
de uma lágrima
onde a madrugada
morta
se cala. (BATAILLE, 2008, p. 129)

No poema acima, retirado dos Poemas eróticos, o espaço das


palavras passa a ser o da perda, no qual todas as representações se
ajustam a partir da noite, da morte. As palavras que compõem os versos
“a agulha/de meu coração” só podem existir como imagens precárias,
solicitadas apenas para morrer. Por isso, na palavra perdida, o que se quer
é o ilimitado, aquilo que soberanamente não se restringe a nenhuma
forma. A morte, assim, desempenha um papel crucial no poema, pois é
ela que permite não só que as identidades sejam apagadas, mas que o
impossível, o contorno rompido de uma lágrima, possa existir. Em A
parte do fogo, Blanchot diz: “somente a morte me permite agarrar o que
quero alcançar; nas palavras, ela é a nica possibilidade de seus sentidos”
(BLANCHOT, 1997, p. 312). Assim, as palavras apontam para a morte, a
partir do momento em que não somos mais capazes de nos apoiar sobre o
significado do poema. A escrita nos oferece um entendimento da morte
não como algo similar à palavra, mas como parte integrante dela, de tal
forma que morte e palavra nos levam a questionar o próprio saber, tendo
o ser como lacuna de si mesmo. Mas, para isso, é necessário esclarecer
que essa escrita só pode se articular a partir de sua própria incompletude.
Esse sentido de incompletude torna-se evidente na escrita de Bataille, no
instante em que, inapreensível, a morte torna-se representação que excede
a própria representação, questão que ultrapassa a possibilidade de
questionar. A morte seria, assim, uma forma de evitar que o poema se
torne um mero discurso amparado em um jogo de semelhanças, uma vez
que ela desarma todo arcabouço teórico e nos oferece apenas um campo
de impossibilidades, de experiências desfeitas.
Dessa forma, os poemas de Bataille geram uma angústia que é,
antes de tudo, o não saber. O não saber, segundo Bataille, desnuda, revela
o que até então o saber escondia. Ver através do não saber é deixar que o
nonsense impere. Daí a angústia da falta de explicação, de o porquê de as
coisas se apresentarem como são. Ao contrário do célebre aforismo de
Nietzsche, “aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se

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tornar também um monstro”, os poemas de Bataille parecem afirmar que
“o ódio à poesia” é aquilo que nos incita a correr o risco de olhar para o
abismo, sabendo que podemos nos transformar em monstros. O poema é
a materialização desse abismo, e sua monstruosidade, sua desfiguração,
em vez de nos assustar, é o que nos leva a aceitá-lo como espaço de
perda, onde as palavras têm o seu sentido contestado e onde nos
perdermos, dilacerados, tão incompletos quanto podemos ser.

LACERATED BODIES: THE SACRIFICE OF THE WORD


IN THE POETIC WORK OF GEORGES BATAILLE

Abstract: The poems of the french thinker Georges Bataille affirm a place of
indistinction, where words are dispersed, when they obliterate the sense, to become
parodies of themselves. Think the poetry in these terms is not articulate it more as a
dialogue between man and the world, but as the work in the service of despair, in the
sense that the word can only be used according his own loss. Thus, the subject who
writes the poem not only destroys the functional sense of the words, but also it
suicides at the instant that its action leads to exclusion, a non-place in the
community. The writing of Bataille thus forms a kind of cancerous text, which words
are multiplied, when they disperse themselves in their wounds, in the cuts which are
opened on the page. Therefore, this paper aims to examine how Georges Bataille's
poems create a disorder that points to an unnamed place where the senses are lost,
since the poem is brought to a condition of sacred object, at the instant who sacrifices
it leads us to the unknown, the anguish of a naked, from which death opens itself
sovereign, immune to any project or moral scheme.

Keywords: Sacrifice. Death. Formless. Nonsense. Bataille.

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