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DOI: 10.4025/cienccuidsaude.v15i1.

29017

MAL DE SIMIOTO: PRÁTICAS DE SAÚDE ÀS CRIANÇAS NO INTERIOR DO


BRASIL1

William Freire Milcharek*


Leandro Felipe Mufato**
Daniela do Carmo Oliveira***

RESUMO
O “Mal de Simioto” é uma doença que possui legitimidade popular e que influencia a busca por tratamento para
problemas de saúde infantil. Objetivou-se compreender as práticas de saúde relacionadas ao Mal de Simioto em
um município no interior do Brasil, na perspectiva dos pais das crianças tratadas. Estudo qualitativo, descritivo,
realizado através da obtenção de dados com o uso de questionário semiestruturado com os pais de crianças que
foram diagnosticadas e tratadas com o Mal de Simioto. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo. As
categorias discutidas foram: A patologia Mal de Simioto e seus aspectos culturais: os sintomas, o diagnóstico, o
tratamento e sua indicação e eficácia; Relação entre Mal de Simioto e os cuidados profissionais de saúde; O perfil
dos curandeiros ou cuidadores informais e a religiosidade no cuidado ao Mal de Simioto. Concluiu-se que o
diagnóstico e o tratamento são práticas baseadas em sintomas que geram um diagnóstico popular. Através da
descrição pela perspectiva dos pais, essa prática baseia-se na crença da eficácia do tratamento e é legitimada pelo
acolhimento do curandeiro, das orientações e medidas de precaução da doença que são repassadas, entre outros
cuidados, além da periodicidade de realização dos banhos.
Palavras-chave: Desnutrição Proteico-Calórica. Cultura. Antropologia Médica. Saúde da Criança.

vivência do adoecimento infantil, posto que por


INTRODUÇÃO meio da cultura os sujeitos constituem suas
opiniões, valores, crenças e modos de pensar,
sentir, relacionar e agir no mundo(3). A busca
O Mal de Simioto é uma forma de
para o tratamento do Mal de Simioto, como um
adoecimento infantil que existe na representação cuidado produzido no âmbito familiar e social,
popular de algumas regiões do Brasil. O nome figura-se à busca de uma alternativa informal de
“simioto” vem do termo “símio”, que significa saúde que pode ser entendida como um campo
“macaco” e é conhecido em alguns estados da não profissional e não especializado da
região Centro-Oeste do Brasil como a “doença sociedade, na qual doenças são reconhecidas e
do macaco”. É um agravo não descrito na definidas para posterior tratamento(4).
literatura médica, entretanto pode ser É preciso compreender a cultura e crenças em
caracterizado como um quadro de desnutrição saúde que envolve o imaginário da população
em crianças por alergia ao leite de vaca ou a cuidada para uma melhor prática profissional de
incapacidade de digeri-lo(1). Não há estudos que cuidado(5). Na dinâmica entre o cuidado
comprovem a correlação entre os dois quadros profissional e as ações sociais em saúde,
de adoecimento, tampouco que indique a percebe-se a dificuldade em distinguir terapias
eficácia do tratamento popular empregado para o oficiais e as populares pela relação complexa
Mal de Simioto. entre as visões biológica, social e psicológica das
Nos casos de crianças de baixo peso, há representações que pertencem a um mesmo
influência de fatores culturais nas famílias que conjunto teórico(6).
podem contribuir para o quadro de desnutrição(2). Quando um cuidado informal é aceito e
Estes fatores também são determinantes na busca legitimado socialmente, por vezes, pode levar à
por uma alternativa informal de saúde na exclusão da busca pela alternativa formal de
_______________
1
Extraído do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Mal de Simioto: práticas de saúde às crianças no interior do Brasil”, apresentado no
Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT), ano de 2015. Não foi apresentado em evento
científico.
* Acadêmico do Curso de Graduação em Enfermagem. UNEMAT. Tangará da Serra, Mato Grosso, Brasil. E-mail: w.1000charek@hotmail.com
** Enfermeiro. Mestre em Enfermagem. Professor Assistente da UNEMAT, Campus de Tangará da Serra, Mato Grosso, Brasil. E-mail:
leandro.mufato@gmail.com
*** Enfermeira. Mestre em Enfermagem. Professora Assistente da UNEMAT, Campus de Tangará da Serra, Mato Grosso, Brasil. E-mail:
danielacarmoliveira@gmail.com
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tratamento, o que merece a atenção de correspondente à família à qual pertenciam (Pai


profissionais e pesquisadores sobre estes 1, Mãe 2 etc.). Realizado dessa forma para
fenômenos. Este estudo buscou investigar: como respeitar o anonimato dos entrevistados.
ocorre a prática de saúde relacionada ao Mal de Para a coleta dos dados, foi elaborado um
Simioto às crianças em um município do interior questionário semiestruturado contendo perguntas
do Brasil? A que ponto essa ação social se fechadas e abertas, desenvolvido
relaciona com o processo de saúde e doença dos especificamente para este estudo, abordando:
serviços de saúde? sexo, idade, profissão, religião, renda mensal,
Espera-se como resultado que o estudo número de filhos, quantos filhos foram
contribua para ampliar a visão dos enfermeiros e submetidos ao tratamento, como foi
demais profissionais para o modo em que a diagnosticado e quem diagnosticou o Mal de
cultura local interfere na assistência às crianças Simioto na criança, o que levou à decisão de
de baixo peso atendidas na atenção primária em busca pelo tratamento, qual a relevância do
saúde. tratamento do Mal de Simioto na saúde do(s)
O objetivo do estudo é compreender as filho(s) destes pais/responsáveis, como os pais
práticas de saúde relacionadas ao Mal de descrevem o banho que é realizado como
Simioto, na perspectiva dos pais das crianças tratamento, como se desenvolveu a crença na
tratadas. eficácia do tratamento popular, se os pais
recomendariam o banho a outras crianças e o
METODOLOGIA porquê, e, por fim, se junto ao tratamento
informal os pais procuraram assistência
Trata-se de um estudo de abordagem profissional para seu filho, e, se sim, foi antes,
qualitativa, desenvolvido com base nas normas durante ou depois do tratamento com o banho.
de uma pesquisa descritivo-exploratória(7). Este As respostas coletadas foram transcritas,
estudo valoriza a pluralidade dos sujeitos e da permitindo a formulação de análise e o
racionalidade e busca abarcar os saberes agrupamento das respostas em categorias para a
provenientes da expressão cotidiana, entendendo apresentação e discussão dos resultados. O
que o contexto sociocultural pode interferir na método empregado foi a análise de conteúdo por
eficácia das ações profissionais em saúde(8). meio da análise temática das respostas aos
A amostra foi aleatória e o número de questionários(3,8). A apresentação dos dados se dá
sujeitos definido de acordo com a saturação dos de forma descritiva, com citações das falas para
dados. O contato com os sujeitos se deu por ilustrar as categorias e discutidas por meio da
literatura pertinente disponível(7). As categorias
meio de busca ativa nas comunidades da cidade
deste estudo compreendem: (a) A patologia Mal
de Tangará da Serra, Mato Grosso, localizada a de Simioto e seus aspectos culturais: os
250 km de Cuiabá, capital do estado. A pesquisa sintomas, o diagnóstico, o tratamento e sua
foi realizada por meio de visita domiciliar aos indicação e eficácia; (b) Relação entre Mal de
pais ou responsáveis de crianças que já foram, Simioto e os cuidados profissionais de saúde; e
ou são, submetidas ao tratamento do Mal de (c) Perfil dos Curandeiros ou Cuidadores
Simioto, no período entre dezembro de 2013 e Informais e a religiosidade no cuidado ao Mal de
março de 2014, em horário e local de acordo Simioto.
com a disponibilidade dos entrevistados. Os Este estudo foi submetido ao Comitê de Ética
critérios para inclusão dos sujeitos na pesquisa da Universidade do Estado de Mato Grosso e
foram: pais ou responsáveis de crianças que são, recebeu parecer favorável de acordo com Parecer
ou já foram, submetidos ao tratamento do Mal de N. 911.316. A pesquisa respeita e atende às
Simioto e concordantes a participar da pesquisa exigências da resolução 466/2012 do Conselho
mediante a assinatura do Termo de Nacional de Saúde.
Consentimento Livre e Esclarecido.
Os sujeitos selecionados constituíram-se em RESULTADOS E DISCUSSÃO
três famílias, sendo nomeadas de Família 1,
Família 2 e Família 3. Foram entrevistados Não foi encontrada na literatura científica
apenas os pais das crianças, recebendo a brasileira nenhuma descrição sobre essa
nomeação “Pai” e “Mãe”, seguido do número prática popular de saúde na perspectiva dos
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pais das crianças tratadas. Os sujeitos cinco pessoas. O Quadro 1 apresenta a


pesquisados constituem-se em um grupo de caracterização do grupo estudado.

Dados da criança tratada e do tratamento

Número de filhos
Renda familiar
aproximada
Profissão

Religião

N.F.T.
Idade

Idade

(R$)
Família/Sujeito Idade Tempo de
quando Retorno
atual tratamento
tratada (anual)
(anos) (meses)
(anos)

Pai 1 Mestre de obras 39 Protestante


Família 1 Consultora de 3000 02 01 05 01 06 02
Mãe 1 35 Protestante
vendas
Família 2 Mãe 2 Autônoma 44 Protestante 4000 02 01 15 02 06 05
Pai 3 Empresário 43 Protestante
Família 3 5000 02 01 12 04 06 03
Mãe 3 Empresária 41 Protestante

Quadro 1. Caracterização dos sujeitos participantes do estudo Mal de Simioto: práticas de saúde às crianças no
interior do Brasil, 2015.

Número de filhos que foram tratados com Mal de Simioto. Idade da criança à época da coleta de dados
(dez/2013-mar/2014).

A PATOLOGIA MAL DE SIMIOTO E SEUS Quando minha filha era pequena, eu levava ela
ASPECTOS CULTURAIS: OS SINTOMAS, O todos os meses no postinho pra acompanhar o
DIAGNÓSTICO, O TRATAMENTO E SUA peso[...]. E eu comecei a perceber que todo o mês
INDICAÇÃO E EFICÁCIA ela estava com o mesmo peso. E a minha sogra na
época comentou que existia esse problema, essa
Ao observar uma criança que apresenta baixo doença chamada Mal de Simioto [...] (Mãe 1)
peso para a idade, macrocefalia, ausência de Assim, o sistema profissional de cuidado
massa corporal e irritabilidade, as famílias serve como fonte de dados para o diagnóstico do
acreditam que é indicativo de Mal de Simioto. Mal de Simioto, uma vez que as informações da
Mirradinho, a cabeça continuava, tipo, crescendo, consulta subsidiam o diagnóstico dos pais. A
mas não estava crescendo, era o corpo que era partir daí, as famílias buscam informações para
mirrado, e parecia que era, igual os antigos confirmação de suas suspeitas por meio da visita
falavam, a doença do macaco, é cabeça grande, a um curandeiro. Para que se chegue a um
corpo mirradinho, pequeno. (Pai 1) diagnóstico da condição patológica, é realizado
um teste com os mesmos ingredientes utilizados
[...] ela começou não comer e ficou muito
magrinha. [...] e ela foi ficando cada dia pior,
no banho do Mal de Simioto, investigando-se a
ficou com a pele muito flácida, né. Não sei se
presença ou não dos “vermes” característicos das
você sabe mas a criança que tem isso, ela fica com crianças doentes.
a pele flácida. [...] Não sei se é porque emagrece O teste diagnóstico pode ter resultado
muito. (Mãe 2) positivo quando ao passar a “massa” na pele da
criança surgirem os “vermes”. A massa utilizada
As famílias acolheram a opção de tratar as no teste é resultante da junção dos ingredientes
crianças com o banho de ervas indicado ao do banho com água fervente que ganha textura
tratamento do Mal de Simioto ao perceberem- pastosa conforme esfria. Os “vermes” são
nas fragilizadas por apresentar peso inadequado pequenos grânulos do tamanho de grãos de arroz
para a idade e ainda da ausência do ganho de que saem da pele da criança para fugir do cheiro
peso ao longo do tempo. Os pais observam das ervas, segundo a crença dos pais
indícios da doença na consulta de puericultura entrevistados. As ervas, com odores
por já terem ouvido falar de histórias característicos, são chamadas de “ervas
semelhantes e se atentarem para sinais de cheirosas”.
desnutrição. Há relatos de manutenção do peso O teste é feito da mesma forma, da massinha. Faz
entre uma consulta e outra que indicou para a a massinha, e passa na pele. Se reagir, eles falam
mãe da criança a suspeita da doença: que são bichinhos, [...] aí a criança tem.(Mãe 2)

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Aí tem a massinha do trigo que você passa, e joga o banho. A cada banho, você troca umas 3 ervas
o banho na criança, [...] aí tem outros ingredientes pra não repetir as mesmas em todos os banhos, e
juntos, e daí você vai tirando, conforme os aí você faz. (Mãe 3)
bichinhos vão começando a aparecer. (Mãe 3)
[...] No banho é feita uma massinha, que é feita
Todas as famílias entrevistadas souberam do com trigo e fermento, né, e um pouquinho de
Mal de Simioto por indicação familiar ou de água. Vira uma massinha, e é passado no corpo.
amigos, ou já ouviram falar de pessoas que já Aí depois deixa agir por alguns minutos, e depois
são conhecidas por realizar o banho, tal como é dado o banho com ervas cheirosas, muitas ervas
cheirosas, assim, de todas que a pessoa encontrar
observa-se nas falas a seguir:
né. (Mãe 2)
[...] a minha sogra na época comentou que existia
esse problema, essa doença chamada Mal de Após o banho, não se deve enxaguar a
Simioto, porque a neta dela já tinha tido isso, e criança. Ela fica em observação até o dia
eles tinham feito esse tratamento. Então ela seguinte se for necessário para a constatação da
sugeriu que a gente désse o banho pra fazer o saída dos “vermes”. Com a constatação, os
teste, pra ver se ela tinha contraído essa doença vermes vão sendo retirados da pele em um banho
também [...]. (Mãe 1) de higienização comum.
[...] a minha mãe fez o teste [...] ela já tinha esse Não há consenso entre todas as técnicas e
conhecimento do passado. E eu tinha uma amiga cuidados para a realização do tratamento. Sobre
minha também, que morava aqui, que também deu o modo de retirada dos vermes da pele das
na filha dela esse banho[...] (Mãe 2) crianças, há relatos de cuidados diferentes. Um
[...] a gente descobriu que tinha um farmacêutico
dos modos ocorre por meio da utilização de uma
que fazia esse tipo de tratamento aqui no salão da lâmina e outro por meio do uso de óleo de oliva
igreja católica. (Mãe 3) associado a um esfregaço com uma bucha de
banho, vegetal ou comum:
Na busca do cuidado informal, a rede de
amigos, parentes e vizinhos se constitui fonte de [...] conforme os bichinhos vai começando a
informações e validam caminhos a serem aparecer, você vai tirando eles. Ou com uma
gilete, né, você vai passando ali com uma
procurados na busca do tratamento(9-10). Há um giletezinha. Eu tirava com uma buchinha, com
significativo desempenho da família e sua rede aquela buchinha vegetal. Mas tem gente que
social no cuidado que é produzido e gerenciado passava a giletezinha. Até no salão mesmo, né,
por ela à criança que adoece(2). A família, por onde foi feito, ele orientou que podia ser, mas
meio desta rede de apoio, não cuida sozinha(10). com o medo do corte eu preferi usar a buchinha, ir
No tratamento do Mal de Simioto, a rede social passando a buchinha. (Mãe 3)
das famílias tem se organizado em oferecer [...] aí depois do banho, aquilo ali não sai, fica
informações e permitir o acesso da família ao grudado. Aí a gente usa depois do banho, o óleo
diagnóstico e tratamento. de oliva. Até porque a pele fica muito seca né, aí o
Compreende-se que o tratamento consiste na óleo de oliva dizem que é bom pra hidratar a pele,
união de vários tipos de ervas doces efervescidas aí a pele não fica tão seca. (Mãe 2)
em água, como no preparo de um chá, e espera-
se reduzir a temperatura até ser passível de O tratamento deve ser realizado várias vezes
aplicação à pele da criança em um banho, porém por semana, até que não haja mais a constatação
de “vermes”. O processo e a obtenção da cura
deve ser aplicado ainda quente. A cada banho
podem levar de seis meses a mais de um ano.
realizado, deve-se substituir três tipos de ervas
Interessante observar que os pais retornam
por novas ervas cheirosas, fazendo um rodízio. periodicamente, de ano em ano, com as crianças
Em seguida, faz-se uma “massa” com trigo, que já foram tratadas para confirmar que ela
fermento e um pouco de água e é colocado ao permanece sem a doença.
fogo. Com a redução da temperatura adquire um
aspecto pastoso. Tem que ser feito mesmo o tratamento certinho,
até parar de sair a massinha lá! O bichinho, não
[...] São 9 tipos de ervas. Na verdade são várias sei o que que é, até acabar de sair tudo, quando
ervas, e você tem que fazer com ervas doces. Não passar e não sair mais nada, e daí sim. Então igual
pode ser ervas amargas, tem que ser com ervas ele falou, não é 9 banhos, 7 banhos, é até o dia
doces. E de vários tipos de ervas, você tira 9 e faz que passar e não sair mais nada. (Mãe 1)

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Os “vermes” são categorizados por cor. São comentar que realizam o banho do Mal de
três categorias, os vermes pretos, os vermelhos e Simioto em seus filhos com o profissional,
os brancos. Os vermes pretos são mais pensando que essa cultura poderia não ser bem
agressivos, os vermes vermelhos são recebida pelo médico ou enfermeiro.
intermediários e os vermes brancos são mais [...]eu fiquei com medo de falar. [...]os médicos,
brandos: eles são contra. Tudo pra eles tem que ter prova
[...]Tem uns que são bem cravados na pele, nos científica [...]ficamos só esperando pra ver qual
poros, e é como se fosse um macarrãozinho. É seria a reação dele. Falei: „pronto, vai correr com
bem estranho assim. O da minha filha era do a gente daqui‟. (Pai 1)
bichinho branco. [...] Aí conforme muda a cor, né, [...] porque os especialistas da área da saúde não
tipo o dela era do branco, e não era tão agressivo acreditam, pra eles isso não existe. Tanto que as
quanto os outros. Porque tem também do crianças ficam aí morrendo de desnutrição e eles
vermelho e preto. O preto, se eu não me engano é não sabem a causa, só falam que a criança só tá
o mais agressivo, né, que agride mais a criança, desnutrida. (Mãe 3)
deixa a criança mais desnutrida e tal, né. Mas
nela, graças a Deus foi do branco. (Mãe 3) [...] aí eu nem comentei nada com os médicos,
porque eles não acreditam mesmo nessa medicina
Todas as famílias acreditam na eficácia do aí, que é mais popular né. (Mãe 2)
tratamento e já indicaram ou indicariam a prática
a outras famílias, como podemos observar nas Nota-se que as famílias entrevistadas, diante
respostas obtidas quando perguntadas se do cuidado médico, sentem-se intimidadas pelo
recomendariam o tratamento: saber deste profissional, procurando não revelar
suas crenças sobre os aspectos da doença. Isto
Com certeza! Porque o exemplo tá dentro de casa, pode ser entendido como exemplo de como o
e é a nossa filha. Ela se desenvolveu, ela é outra modelo biomédico é ainda hegemônico e leva a
criança, comprida, tá crescendo. (Pai 1)
uma visão reducionista da doença, vista como
Com certeza. Pela eficácia né, que ele tem processo exclusivamente biológico e validado
demonstrado, não só minha filha, mas como apenas pelo saber médico(11). Diante isso,
outros que eu já ouvi falar tantos né, que teve a algumas famílias resolvem deixar de buscar
cura, então o tratamento é muito bom. Com assistência profissional e tratar seus filhos
certeza eu recomendaria. (Mãe 2)
unicamente com o banho de Mal de Simioto,
Ah, com certeza. Eu já recomendei, e já ajudei além da descrença das famílias nas consultas
outras pessoas a fazerem o banho, já ensinei como profissionais de rotina.
faz. Com certeza. (Mãe 3)
[...] Não. Não levei em médico, o único
Dessa forma, observa-se que o Mal de tratamento dela foi esse. (Mãe 3)
Simioto é uma doença popular que possui
[...] A gente levava, e então ele fazia os exames de
sintomas específicos para condicioná-la como rotina, passava aquelas vitaminas, né, mas nada
doença, com base em um saber sistematizado e adiantava. (Pai 1)
organizado. O conhecimento dessa prática é útil
para produzir um olhar diferenciado dos [...] antes de a gente fazer o banho, tinha levado
várias vezes no médico, e o médico nunca sabia o
profissionais, principalmente aqueles atuantes no
que ela tinha. [...] Aí depois que a gente fez o
acompanhamento do crescimento e banho que ela melhorou [...]Então a gente não
desenvolvimento infantil, aliando a prática teve nenhum acompanhamento de médico, nem de
popular à prática profissional de saúde. enfermeiro, a respeito disso aí não. (Mãe 2)

RELAÇÃO ENTRE MAL DE SIMIOTO E OS O background cultural exerce importante


CUIDADOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE influência em vários aspectos da vida das
pessoas, incluindo suas crenças e
As famílias entrevistadas são convictas da comportamentos, além de atitudes em relação à
existência da condição patológica e da eficácia doença e dor(5). Tais aspectos certamente terão
do tratamento e isto traz um conflito observado implicações importantes nas questões de saúde e
na consulta da criança com os profissionais da na atenção à saúde. Caberia ao profissional criar
saúde. Os pais se sentem amedrontados em a oportunidade de escuta e construção de

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diálogo, exercitando o agir e o criar de práticas ou são procurados por outras famílias para que
cuidadoras que possam integrar os sujeitos(12). realizem o banho por elas. Contudo, as famílias
Os profissionais de saúde podem analisar a realizam uma triagem de quem realmente é
cultura de saúde em que as famílias que atendem reconhecido como capaz de realizar o
estão inseridas, procurar conhecer os fatores tratamento.
determinantes e condicionantes da desnutrição Quando nós procuramos, não foi só uma pessoa,
da criança. Para isso, faz-se necessário que estes procuramos várias, só que não o tal do achismo,
estejam abertos a novas possibilidades de “eu acho isso, eu acho aquilo”. [...] Mesmo
práticas de cuidados, com o objetivo de porque, você tem que pegar a experiência de
integralidade, aliando práticas populares pessoas antigas, que já mexeram com isso, já
tradicionais, e, assim, incentivar a adesão ao trataram com isso, né. (Pai 1)
tratamento através de uma associação(6). A [...] a gente descobriu que tinha um farmacêutico
desnutrição deve ser analisada dentro de seu que fazia [...]. (Mãe 3)
contexto social, político, econômico e ambiental,
uma vez que as influências culturais isoladas não No cuidado ao Mal de Simioto, os cuidadores
são responsáveis pela maior parte dos casos de citados são pessoas que realizam o cuidado
desnutrição no mundo, mas é um dos fatores que quando acionadas e que não são vistos como
contribui para tanto(5). curandeiros na concepção deste termo, ou seja,
As orientações fornecidas por enfermeiras da aqueles que tratam de enfermidades focando-se
atenção básica podem ser complementadas pelos na pessoa, e não nos sintomas, e que procuram a
pacientes e seus familiares no cuidado, e as harmonia entre corpo e mente para realizar o
orientações não aderidas pelos pacientes podem tratamento(14). Este dado diverge de outras
se darpor conta de uma postura de superioridade subculturas médicas em que os curandeiros estão
adotada pelos profissionais, excluindo, assim, a organizados em associações profissionais com
autonomia do paciente na tomada de decisão(6). regras de admissão e formas de relacionamento
com o paciente(5).
PERFIL DOS CURANDEIROS OU Neste estudo, observa-se a diversidade
CUIDADORES INFORMAIS E A religiosa dos pais e dos cuidadores informais que
RELIGIOSIDADE NO CUIDADO AO MAL realizam essa prática de saúde. No relato da Mãe
DE SIMIOTO 3, que é protestante, o banho praticado em sua
filha foi realizado em uma paróquia da Igreja
Os curandeiros que realizam o banho de Mal Católica.A prática de cuidado às crianças
de Simioto e que participaram dos cuidados às diagnosticadas com o Mal de Simioto é
crianças das famílias entrevistadas podem ser transcendente à religião, não dependendo desta
descritos como cuidadores informais buscados para que o tratamento ganhe legitimidade. Os
pela comunidade. O conhecimento sobre o cuidadores informais que realizaram o banho nas
tratamento e cura do Mal de Simioto é adquirido Famílias 1 e 2 são de religião protestante. Nota-
nos moldes dos curandeiros tradicionais, por se que a religião deixou de ser associada a essa
meio da aprendizagem com seus pais. Eles não prática e que a busca por alternativas informais
são reconhecidos pelo sistema profissional de em saúde é o principal fator determinante no
saúde(13) e não desempenham o papel de desenvolvimento da crença na eficácia.
curandeiro em tempo integral.
Os curandeiros que foram citados neste Eu acho que eu fui mais por curiosidade, porque
as pessoas falavam, né. Aí eu achava estranho
estudo realizam uma prática informal de cuidado ouvir falar que saia um bichinho da pele e tal.
aprendida para esta determinada condição (Mãe 3)
patológica. São pessoas consideradas comuns,
como parentes ou amigos das famílias. Por [...] o meu filho sempre foi magro, e não se
vezes, uma delas se torna conhecida na cidade e alimentava direito, e tal. E por curiosidade, e por
achar que de repente ele pudesse ter, eu levei.
passa a ser procurada pelas famílias. Possuem
(Mãe 3)
diferentes tipos de religiões, padrões
econômicos, naturalidade, empregos. Muitas pessoas transitam simultaneamente
Aprenderam o banho e praticam em seus filhos entre vários sistemas religiosos, sem resultar no
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abandono de algum deles(15). A ausência de submetidas ao banho, é possível constatar que o


vínculo entre a crença nesta prática popular de processo é significativo, favorecendo a adesão a
saúde e a crença religiosa das pessoas que cuidados específicos para a prática do banho,
procuram este cuidado provoca a reflexão de que para remoção dos “vermes” e para a
os profissionais de saúde teriam mais periodicidade do tratamento.
flexibilidade ao associar esta prática popular Assim, os próprios pais indicam o tratamento
com os cuidados profissionais por meio de uma a outras pessoas por acreditarem e constarem a
reestruturação e negociação com os pacientes. eficácia do mesmo, o que torna a prática
Observa-se, ainda, que a intervenção rápida para fortemente disseminada no interior do Brasil.
o início do tratamento e o sucesso obtido nos Pode-se observar, ainda, que essa prática
casos investigados não permitiram que a religião interfere no processo saúde-doença de crianças e
se revelasse com um suporte ou mecanismo de que uma visão profissional limitada, que não
enfrentamento, algo que é presente nas histórias considere as vivências, experiências e
de adoecimento infantil por condição crônica(16). subjetividades apresentadas pelos indivíduos
podem gerar barreiras no acolhimento e no
CONSIDERAÇÕES FINAIS estabelecimento de vínculos com as famílias.
Isto pode ser constatado pelo fato de que os pais
A abrangência antropológica, cultural e
não informam aos profissionais da saúde o
biomédica do adoecimento e tratamento ligado
cuidado informal adotado por receio de serem
ao Mal de Simioto, uma doença aceita pela
reprimidos. A situação reafirma a soberania do
população de algumas regiões do país, ainda é
saber médico em relação aos demais saberes que
pouco conhecida e referenciada. Pode-se
afirmar, neste caso, que na literatura brasileira a explicam os modos de adoecimento.
descrição deste processo de cuidado popular às Ressalta-se a necessidade de novas
crianças ainda é escasso. pesquisas sobre a prática descrita, pois a
Observa-se que a prática é realizada de compreensão de saberes empíricos de
acordo com sintomatologia específica da criança, populações permite a abrangência das ações
baseada em um diagnóstico popular e empírico. em saúde e a melhoria da qualidade da
Através da descrição do tratamento do Mal de assistência às famílias que realizam práticas
Simioto pela perspectiva dos pais de crianças informais de cuidado à saúde.

SIMIOTO’S DISEASE: HEALTH PRACTICE FOR CHILDREN IN THE INTERIOR OF


BRAZIL
ABSTRACT
The “Simioto’s Disease” is a disease that has popular legitimacy and influences the search for treatment for infant
health problems. This study aimed to understand the health practices related to Simioto’s Disease in a city in the
interior of Brazil, from the perspective of parents of treated children. This is a qualitative and descriptive study
performed by obtaining data using a semi-structured questionnaire with parents of children who were diagnosed and
treated for the Simioto’s Disease. The data were subjected to content analysis. The categories discussedwere: The
Simioto’s Disease pathology and its cultural aspects: symptoms, diagnosis, treatment and its indications and
effectiveness; Relationship between Simioto’s Disease and professionalhealth care; The profile of healers or
informal care and religiosity in the care of Simioto’s Disease. It was concluded that diagnosis and treatment are
practices based on symptoms that generate a popular diagnosis. By describing the parent perspective, this practice
is based on the belief of the treatmentefficacy and is legitimized by the healer reception, guidelines and
precautionary measures of the disease that are passed, among other care, in addition to the baths performing
frequency.
Keywords: Protein-CaloricMalnutrition. Culture. Medical Anthropology. Child Health.

EL MAL SIMIOTO: PRÁCTICAS DE SALUD A LOS NIÑOSEN EL INTERIOR DE BRASIL


RESUMEN
La "Enfermedad de Simioto" tiene legitimidad popular e influye en la búsqueda de tratamiento para los problemas de
salud infantil. Este estudio tuvo como objetivo comprender las prácticas de salud relacionadas con la Enfermedad
de Simioto, en un municipio en el interior de Brasil, en la perspectiva de los padres de los niños tratados. Estudio
cualitativo, descriptivo, realizado a través de la obtención de datos con el uso de un cuestionario semiestructurado

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aplicado a los padres de los niños que fueron diagnosticados y tratados con la Enfermedad de Simioto. Estos datos
fueron sometidos al análisis de contenido y surgieron tres categorías: La Enfermedad de Simioto y sus aspectos
culturales: síntomas, diagnóstico, tratamiento y su indicación y eficacia; La relación entre la Enfermedad de Simioto
y los cuidados profesionales de salud; El perfil de los curanderos o cuidadores informales y la religiosidad en el
cuidado a la Enfermedad de Simioto. Se concluyó que el diagnóstico y el tratamiento son prácticas basadas en los
síntomas que generan un diagnóstico popular. En la perspectiva de los padres, esta práctica se basa en la creencia
de la eficacia del tratamiento y se legitima por la acogida del curandero, en las orientaciones y medidas de
precaución de la enfermedad que son repasadas, entre otros cuidados, además de la periodicidad de realización de
baños.
Palabras clave: Desnutrición Proteico-Calórica. Cultura. Antropología Médica. Salud del niño.

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Endereço para correspondência: William Freire Milcharek. Rua Antônio Barbeiro Herrero 13 A, n. 252, Setor
W. Jardim do Lago, CEP: 78300000, Tangará da Serra, Mato Grosso, Brasil. E-mail: w.1000charek@hotmail.com

Data de recebimento: 07/09/2015


Data de aprovação: 03/02/2016

Cienc Cuid Saude 2016 Jan/Mar; 15(1):155-162

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