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Introdução Aos Estudos Litrários PDF
Introdução Aos Estudos Litrários PDF
Arturo Gouveia
Caro Aluno,
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de sua distinção de outras formas de arte e de discurso; também ajudará o aluno
a compreender que a teoria é uma prática humana fundamental à existência, pois
não existe nada bem planejado que não seja fruto de alguma reßexão teórica,
seja lá em que nível for. Nessa primeira unidade, o aluno será levado a ir se
familiarizando, aos poucos, com os conceitos que servem para explicar, descrever
e gerar um conhecimento especializado, enriquecendo o seu patrimônio
cultural. O objetivo mais importante nessa primeira etapa é uma reßexão sobre
a literatura, comparando-a com o que não é literatura e mostrando por que essa
distinção é tão importante para o aluno quanto para o professor ou qualquer
pessoa que queira compartilhar desse tipo de conhecimento. Assim, um soneto de
Augusto dos Anjos, “Vandalismo”, entre outros exemplos citados, levará o aluno
a ir diferenciando, do ponto de vista qualitativo, o que efetivamente é literatura
daquilo que não é, não tem nenhuma importância em termos de arte, mas pode
até se fazer passar por tal. Mostraremos esses exemplos no momento preciso.
Na segunda unidade, o estudo começa a ser mais especíÞco. Vamos abordar
a teoria dos gêneros literários, imprescindível à classiÞcação dos tipos mais
diferentes de texto que a tradição, ao longo dos milênios, oferece. Por exemplo, a
história de Sansão e Dalila, relatada no Livro dos Juízes, da Bíblia, é contada em
forma de narrativa. Mas ela poderia ser narrada em forma de poesia, com versos,
com estrofes. Da mesma forma, poderia ser vivida por personagens em um texto
voltado para a encenação teatral. Isso signiÞca que um determinado enredo pode
assumir várias formas. Os fatos aterradores do 11 de Setembro, em Nova York,
poderiam ser transformados em conto, romance, crônica, poema lírico, texto
dramático (teatral). Poderíamos ter os mesmos personagens, os mesmos fatos, o
mesmo tempo, o mesmo espaço, mas com formas diferenciadas que distinguem
cada gênero. Nesse sentido, percebe-se a relevância dessa teoria para levar
o aluno a não ver os textos literários pelo que eles têm apenas de semelhante,
mas principalmente pelas diferenças. A teoria dos gêneros explica em que
consistem tais diferenças e a necessidade de conhecer os devidos meios teóricos e
conceituais para identiÞcá-las.
Na terceira unidade, o aluno perceberá que o curso Þcará ainda mais
especíÞco. Depois de expostos os conceitos sobre gênero lírico, gênero dramático
e gênero narrativo (também chamado, tradicionalmente, de gênero épico), o
estudo vai se deter mais sobre este último. Várias categorias serão conceituadas, o
que constitui cada uma delas, sempre com exemplos bem representativos. Alguns
exemplos serão mostrados para que o aluno tenha uma percepção adequada
do gênero em questão. Depois, serão apresentados alguns contos de Machado
de Assis, considerado pela crítica um dos maiores escritores brasileiros. Serão
sugeridas leituras dos contos, mas, a título de didática, será feito um resumo de
alguns contos, assim como um comentário crítico da situação representada no
enredo e vivida pelos personagens. Acredito que esse trajeto aqui proposto, do
geral ao especíÞco, ajudará a facilitar a compreensão da natureza e dos objetivos
da disciplina em curso.
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REFLITA: Sem a leitura dos textos literários, de jornais, de livros e outras
fontes, não adianta Þcar na teoria pela teoria. A teoria é importante, mas
depende do objeto de estudo, que são os próprios textos literários.
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UNIDADE I
OS FUNDAMENTOS DA LITERATURA COMO
CONSTRUÇÃO ARTÍSTICA
Em primeiro lugar, vamos fazer uma breve reßexão sobre a teoria. Como
você já deve ter ouvido falar, a teoria é algo muito distinto da prática. Entretanto,
a situação real não é bem assim. O que se entende por teoria no senso comum
é algo muito preconceituoso. O senso comum é um tipo de comunicação muito
importante no dia-a-dia, mas um conhecimento mais qualiÞcado é aquele
que passa a duvidar das generalizações do senso comum. E a teoria tem um
papel muito relevante nessa direção. No cotidiano você já ouviu falar diversas
vezes coisas assim: “O brasileiro é preguiçoso”; ou então: “A fome sempre
existiu e não tem jeito”; ou então: “Os artistas não contribuem em nada para o
desenvolvimento nacional”. Essas três frases são tipicamente do senso comum.
Elas circulam em nossa sociedade com o objetivo de fazer com que você
também se apegue às generalizações que ela propagada. O que signiÞca uma
generalização desse tipo? Vamos analisar a primeira frase. Ora, preste ATENÇÃO:
ela aÞrma que todos os brasileiros são preguiçosos, pois o sentido singular dela
está se referindo, na verdade, ao plural. Ora, você acredita que a preguiça é tão
grande assim no Brasil? Se o brasileiro fosse preguiçoso mesmo, você acha que as
maiores empresas multinacionais do mundo estariam funcionando aqui? Se você
fosse dono de uma empresa como uma fábrica ou um banco, você a instalaria
num lugar onde o povo é totalmente preguiçoso? Observe que, com essa
brevíssima reßexão, a gente começa a discutir a frase e duvida do conteúdo dela.
Se formos para a prática, veremos que milhões de pessoas nesse país trabalham
em condições péssimas, mal pagas, mas trabalham intensamente, inclusive
crianças e mulheres grávidas. Assim, quanto mais reßetirmos criticamente, menos
aceitaremos as generalizações.
O que está exposto na segunda frase é algo muito semelhante: ela aÞrma
que a fome sempre existiu e, por isso, a gente não deve se indignar com ela. Nesse
sentido, o senso comum é levado a acreditar que a fome é algo até natural, normal,
o que não deve gerar preocupações. Mas será que os fatos são assim mesmo?
Encontrei um dia na Internet uma matéria curiosa que dizia o seguinte: Bill
Gates, o homem mais rico do mundo, ganha mil dólares por segundo, enquanto
populações inteiras na África têm uma renda per capita de um dólar por mês.
Você acha que isso é natural? Será que esse abismo imenso que separa pobreza de
riqueza é algo que não tem jeito? Uma reßexão mais apropriada sobre o assunto
mostrará que a pobreza é produzida pela riqueza e vice-versa. É o trabalho dos
pobres, explorados, miserabilizados, que gera a riqueza dos poderosos. Portanto,
não existe nada de natural nesse processo. Trata-se de uma questão social de
estratiÞcação e appartheid econômico. O mundo atual, com enormes tecnologias,
poderia produzir alimentos para toda a humanidade, o que acabaria de vez
com a fome. Portanto, o problema da fome não é de natureza técnica nem é uma
maldição do destino; o problema é essencialmente sócio-econômico. Os políticos
não têm interesse em acabar com a fome porque ela gera subordinação. A África
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tem enormes populações famintas, mas Nova York também tem, conforme
última pesquisa feita pela ONU, trinta e cinco mil mendigos! Isso signiÞca que
a fome coexiste, em Nova York, com o maior volume de dinheiro do planeta. E
esse problema não provém de nenhuma destinação maldita, mas da falta de uma
política capaz de integrar as pessoas a terem uma vida digna na sociedade.
As reßexões acima também servem para desmontar a terceira frase. Ela
aÞrma que os artistas são vadios, inúteis, imprestáveis, como se não servissem
para nada na sociedade capitalista, tão caracterizada pelo imediatismo e pela
ambição de ter as coisas materiais em abundância. Ora, será que apenas os
bens materiais são importantes para a formação do ser humano? Será que o ser
humano não precisa de um bom Þlme, uma boa música, um bom livro, visitar
exposições de arte, para se enriquecer intelectualmente? Reßita bem sobre isso:
o preconceito que se tem em relação à arte está baseado na idéia de que a arte
não dá lucro, não tem importância para o seu crescimento, não leva a nada de
proveitoso. Os textos que vamos expor em seguida demonstrarão o contrário do
que está tão banalizado no senso comum.
AGORA É SUA VEZ: Leia de novo, com mais calma, o poema indicado
de Augusto dos Anjos. Ele mostrará a você um tipo de linguagem que é
impossível na lógica e no senso comum que utilizamos no dia-a-dia. Em
seguida, passe a ler com mais apego os conceitos que serão apresentados sobre
a natureza da literatura.
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A podridão me serve de Evangelho.
Em que é que esse verso pode contribuir para que você tenha uma
percepção diferente dos conteúdos que ele transmite? Em primeiro lugar,
vivemos numa civilização ocidental, judaico-cristã, que historicamente teve
muita inßuência do poder da Igreja católica. Por tal inßuência, aprendemos
que o Evangelho é uma palavra que signiÞca “boa nova”, “boa notícia”, que é
a notícia de salvação proporcionada por Cristo. A salvação foi pregada ao longo
dos séculos como a maior esperança em que a humanidade deveria acreditar.
Nossa formação religiosa, que implica outros valores éticos, até hoje dissemina
tais idéias: a salvação é o que garante a vida eterna, o descanso perpétuo com
Deus, longe de todos os tormentos da história. No verso de Augusto dos Anjos,
entretanto, toda essa pregação religiosa sofre uma transformação radical.
Ele inverte radicalmente o sentido original de Evangelho. Segundo o verso,
o Evangelho não contém nada de puro e magnânimo, mas de podridão. O
sentido de decomposição, inerente ao de podridão, é o extremo oposto de uma
eternidade feliz e guardada por Deus. Independentemente dos valores religiosos
do autor (pois essa questão biográÞca não interessa aqui), pode-se deduzir do
verso que ele se afasta do sentido milenar da Bíblia e, portanto, do sendo comum
que se formou no Ocidente desde a disseminação do cristianismo. Nesse sentido,
a podridão é sinônimo de boa nova, como se, ironicamente, a salvação fosse a
decomposição, que é rigorosamente sinônimo da morte. Esse verso, de fato, não
quer transmitir nenhuma esperança, nenhuma sensação de otimismo em relação
ao futuro. O futuro, para ele, já está preÞgurado na podridão. Observe como o
verso se apropria de outro sentido da Bíblia (a previsão, a projeção antecipada
do futuro, no caso a certeza de um futuro Þrme e garantido ao lado de Deus)
para desmanchar, desÞgurar, desconstruir. Esse procedimento de desconstrução
é próprio da literatura para que ela deliberadamente se afaste do senso comum e
gere novos signiÞcados, novos sentidos, mesmo que seja em torno do que é mais
conhecido e aceito convencionalmente. Assim, o destaque de Augusto dos Anjos à
arte e à reßexão, nesse verso, é acrescentar à tradição de valores religiosos e éticos
uma leitura que comumente não se faz dos chamados símbolos sagrados. Nessa
medida, Augusto dos Anjos procede à dessacralização do convencional. Vejamos
agora o verso em um contexto mais amplo:
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revelam nenhuma crença em valores religiosos do cristianismo, como, por exemplo,
a Criação divina do homem. Ao contrário: enfatiza-se que existe um parentesco
muito próximo entre o ser humano e “o animal inferior que urra nos bosques”,
colocados no poema como irmãos. Existe aí muito mais uma propensão a ver o
homem como um animal tosco, bruto, de natureza selvagem, do que uma criatura
de origem divina. É nesse sentido que o texto de Augusto dos Anjos merece o
estatuto de literatura, por conter esse fundamento de negação do que é mais
corrente na cultura e por utilizar determinados meios poéticos, como os versos
decassílabos e as rimas, para atingir o objetivo de estabelecer novos sentidos.
Lembremos agora de uma música de Roberto Carlos que tem um valor
religioso muito forte: “Jesus Cristo”. Essa canção, datada dos anos 70, abre-se com
a seguinte aÞrmação:
Olho pro céu e vejo uma nuvem branca que vai passando.
Olho pra terra e vejo uma multidão que vai caminhando.
Como essa nuvem branca, essa gente não sabe aonde vai.
Quem poderá dizer o caminho certo é você, meu Pai.
Essa canção também apresenta rima e musicalidade. Mas ela é muito pobre
do ponto de vista do signiÞcado. Ela não é capaz de criar um sentido novo para
nada. Limita-se ao que já se sabe ou se acredita. Ela não consegue ultrapassar o
senso comum. Vejamos bem: olhar para o céu e ver nuvem branca, isso é o óbvio!
A nuvem branca “vai passando”, está em movimento, o que também é o óbvio.
As demais linhas também não acrescentam nada que mereça o reconhecimento
de arte, pois não tem criatividade necessária para se distinguir do que já se
convencionou há séculos. Por exemplo, se formos consultar o Evangelho de João,
veremos que Jesus aÞrma ser o caminho, a vida e a verdade, sendo o único meio
para se chegar a Deus. Independentemente de quem acredite nisso ou não, o
importante aqui é veriÞcar que Roberto Carlos apenas reproduz um sentido já
muito utilizado em nossa cultura. Portanto, comparando Augusto dos Anjos
com Roberto Carlos, observamos uma grande diferença entre os dois no que diz
respeito à criatividade artística.
ATENÇÃO: A grandeza poética de Augusto dos Anjos não está no fato de ele
romper com uma crença religiosa. Não é isso, pense bem! O que importa para
a teoria da literatura é veriÞcar a existência de ruptura com o senso comum, o
que pode ser observado em relação a quaisquer valores culturais, não apenas
os religiosos.
REFLITA: Roberto Carlos é pobre não por estar apresentando uma crença
religiosa na salvação, mas por fazer isso de uma forma muito simplória, que
não atinge qualquer qualidade poética. É a linguagem dele que não satisfaz às
exigências da arte.
AGORA É SUA VEZ: Quando você escutar alguma música dessas bandas
de “forró” que estão na moda, procure veriÞcar a qualidade da linguagem
utilizada. Você vai observar se a combinação das palavras gera algum
signiÞcado novo ou se elas apenas reproduzem o senso comum.
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Um dos objetivos dessa comparação sugerida acima é levar você a observar,
com maior consciência crítica, o que você ouve, lê e vê no dia-a-dia. Só assim
você será capaz de distinguir mais as coisas e não achar que tudo tem o mesmo
valor. A criatividade artística não está presente em tudo. A Þnalidade desse
curso é aprimorar a sua capacidade crítica diante dos fatos e das coisas mais
correntes da existência.
Ilogicidade signiÞca falta de lógica. Se eu digo que dois mais dois são
quatro, isso é perfeitamente conceitual. Mas, se eu digo que dois mais dois
são cinco ou zero, já estou me afastando do que é considerado lógico. A lógica
é fundamental para os conceitos, para a ÞlosoÞa, para a ciência, para a técnica,
não para a arte. A arte tem que desenvolver uma lógica própria, um sentido
que seja exclusivamente seu, sem se reduzir à forma de nenhum outro tipo de
conhecimento. Veja, por exemplo, a seguinte frase:
O Brasil é o maior país da América Latina e seus recursos naturais são dos
mais variados do planeta.
Essa frase é inteiramente lógica. Tudo o que ela diz pode ser comprovado
na prática. De fato, o Brasil possui o maior território da América Latina, a qual
se estende do México à Argentina. Os recursos naturais do Brasil também já
foram muito estudados pela ciência e são, de fato, dos mais privilegiados de
todo o mundo. Essa frase, portanto, tem um valor conceitual que merece crédito.
Vejamos agora o seguinte verso, do poeta paraibano André Ricardo:
Esse verso é uma realização literária exatamente por não conter nenhuma
lógica e, com isso, se distanciar do senso comum. O vôo é um fenômeno que
só pode ocorrer numa certa altura, em sentido ascendente, o que é totalmente
incompatível com alicerce. Ainda mais, o pássaro é leve, consegue desaÞar a
força da gravidade, o que não aconteceria se ele carregasse em sua base (em
suas patas) um alicerce de verdade. O alicerce, tal como se conhece na cultura,
é uma base de concreto, pedra, ferro, areia, de material bruto e pesado. Nada
disso pode servir de alicerce para um pássaro voar. Além disso, o alicerce, por
seu peso e por servir de base a construções, é algo próprio do solo, do subsolo,
em sentido descendente, o que contraria o sentido do vôo do pássaro. Um leitor
menos preparado vai dizer, reproduzindo o senso comum, que esse verso de
André Ricardo não tem lógica e por isso não tem valor. Ora, o que a teoria
literária diz é exatamente o contrário: a pertinência dele está na impertinência,
na incoerência, na ausência de lógica. Se o eu-lírico aÞrmasse “O pássaro voa
no céu”, não teria nenhum valor literário exatamente por ser o óbvio. Observe
como a falta de lógica é essencial à criação de novos signiÞcados. É o que pode
ser observado nesse quarteto de Augusto dos Anjos a respeito da vida e da
inteligência:
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A vida vem do éter que se condensa.
Mas o que mais no Cosmos me entusiasma
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as cigarras
são guitarras trágicas.
plugam-se/se/se/se
nas árvores
em dós sustenidos.
gargarejam
vidros
moídos.
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SE
Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.
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Kipling revisitado
Se etc,
se etc,
se etc,
Serás um teorema, meu Þlho.
AGORA É SUA VEZ: Você deve fazer uma pesquisa de imediato: ir a algum
livro de poesia e destacar um verso (ou uma estrofe) que lhe pareça muito
estranha, fora de compreensão, deslocado do senso comum. Transcreva o
verso (ou a estrofe) para as linhas abaixo e procure argumentar com as pessoas
(amigos, alunos, familiares) o que é que o texto tem de diferente, que não se
encaixa na lógica comum.
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No primeiro verso, Zé Ramalho cria uma voz que faz um jogo de
palavras com o termo “treponema”. Treponema é o micróbio que transmite
a síÞlis, chamado cientiÞcamente de treponema pallidum. O verso aproveita
o sentido cientíÞco de “pálido” para lhe atribuir um outro sentido, ao lado
do adjetivo “Viscoso”. Em seguida, o jogo de palavras, que gira em torno de
relações sexuais e doenças sexualmente transmissíveis, estabelece um outro
campo de reßexão, um outro universo de valores, na medida em que tudo
passa a ser desÞgurado por uma meditação em torno da própria música.
Assim, os “gametas”, que são espermatozóides responsáveis pela reprodução
humana, se agrupam não no óvulo, que é o seu receptáculo natural, mas
no “meu som”. Você percebe, portanto, que a combinação de um campo
semântico com outro cria um choque de sentidos que não é comum na
linguagem cotidiana. Observe o efeito semântico desse verso de Augusto dos
Anjos:
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Basta um dia
Pra mim
Basta um dia
Não mais que um dia
Um meio dia
Me dá
Só um dia
E eu faço desatar
A minha fantasia
Só um
Belo dia
Pois se jura, se esconjura
Se ama e se tortura
Se tritura, se atura e se cura
A dor
Na orgia
Da luz do dia
É só
O que eu pedia
Um dia pra aplacar
Minha agonia
Toda a sangria
Todo o veneno
De um pequeno dia
Só um
Santo dia
Pois se beija, se maltrata
Se come e se mata
Se arremata, se acata e se trata
A dor
Na orgia
Da luz do dia
É só o que eu pedia, viu
Um dia pra aplacar
Minha agonia
Toda a sangria
Todo o veneno
De um pequeno dia
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Ao contrário do raciocínio lógico, que tem que ter uma seqüência rígida, a voz
poética criada por Chico Buarque tem a liberdade de dispor os verbos à sua
vontade. A posição das palavras poderia ser trocada, o que não acontece num
enunciado lógico que apresenta causa e efeito.
Esse mesmo procedimento poético aparece na seguinte canção “O índio”,
de Caetano Veloso. Veja esses trechos:
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Quero mais te ver
Com aßição
Esse poema satírico faz uma crítica a Þguras do nosso período colonial,
estendendo-se daquele que fala da vida alheia à autoridade do Papa. No Þnal,
observe que o eu-lírico procede a um esvaziamento de sentido, pois a última
seqüência nem sequer é formada por palavras. Será que você iria se comunicar
com as pessoas através de seqüências sonoras sem sentido?
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Como último exemplo dessas combinações tão diferentes de palavras,
gostaria de lhe apresentar um trecho do conto “A hora e vez de Augusto
Matraga”, de Guimarães Rosa. O conto retrata a vida de um homem que, por
várias maldades cometidas, é vítima de uma vingança: uma surra violentíssima
que ele sofre de vários homens. Depois de anos de recuperação física, Augusto
Matraga se muda para um lugar onde ele não quer ser mais reconhecido, o
vilarejo do Tombador. Um dia, o vilarejo é inesperadamente visitado por um
jagunço muito temido: Joãozinho Bem-Bem. Veja agora como o narrador descreve
o jagunço:
AGORA É SUA VEZ: Você está convidado a ler um texto muito especial: “A
hora e vez de Augusto Matraga”. Ele faz parte do livro Sagarana, de Guimarães
Rosa, e é um dos contos mais perfeitos que eu já li em toda a minha formação.
Quer tentar? Garanto que você não vai se arrepender.
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ATENÇÃO: Leve essa tarefa a sério: procure ler qualquer livro de Paulo Coelho,
que é considerado um grande escritor da atualidade, e transcreva abaixo alguma
frase dele que tenha consistência artística. Ora... você acha que isso é possível?
AGORA É SUA VEZ: Vá direto ao Eu, de Augusto dos Anjos, e leia mais de
uma vez o poema “O morcego”. Em seguida, vá a um dicionário e procure
ver a deÞnição de “semântica”, para você entender o que é campo semântico e
combinação poética de palavras.
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UNIDADE II
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a grande tensão gerada pelo narrador e vivida pelos personagens. O fato de o
marido de Conceição ter uma mulher fora poderia servir de pretexto para ela ter
algum caso amoroso com o jovem estudante. E o que se espera durante toda a
leitura do conto é alguma forma de traição, pelo menos por alguns minutos. A
tensão aumenta na medida em que Conceição mais se aproxima de Nogueira e
estreita as relações de intimidade com ele. Mas nada de extraordinário acontece.
E a ida do jovem para a missa do galo é a conÞrmação das convenções, a vitória
da ordem moral e do comedimento, ao invés do proibido que se espera a todo
instante.
Machado de Assis, nesse conto, cria um enredo que gera uma expectativa
e a esvazia. A transgressão esperada não chega a ocorrer. Tudo acaba dentro
das atitudes mais aceitas pela moral social. O personagem Nogueira, por isso,
que é o narrador em primeira pessoa, transmite ao leitor uma certa sensação de
frustração.
Como se percebe, “Missa do galo” pertence ao gênero narrativo por
preencher as condições básicas dessa forma literária. Esse mesmo enredo,
entretanto, poderia ser passado ao leitor não através de um narrador, mas
em forma de teatro, onde os personagens iriam agir de forma autônoma, sem
necessidade de ninguém para relatar a história. A presença do narrador, portanto,
é uma diferença fundamental entre o gênero narrativo e os demais gêneros.
O OBJETIVO da literatura é criar novos sentidos pela arte, mas não levar as
pessoas a imitar aquilo que se lê.
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o gênero épico (ou narrativo) tende a relatar acontecimentos, o gênero lírico tende
a manifestar o interior do ser humano. Trata-se da representação de sentimentos
como o amor, o medo, a morte, a paixão, a alegria, a tristeza, a dor, o prazer, entre
muitos. Assim, o eu-lírico pode até partir de algum fato histórico objetivo, mas o
que vai predominar na sua voz é o sentimento em torno desse fato. Por exemplo,
o Þnal da Segunda Guerra Mundial, em 1945, é marcado pelas explosões atômicas
sobre o Japão. Isso é um fato histórico concreto. Mas o poema abaixo, de Vinícius
de Moraes, não está bem interessado em relatar o fato histórico, tal como ocorreu
no Þnal do conßito. O principal objetivo dele é retratar a sensação de perdas
irremediáveis e os efeitos terríveis deixados pela irradiação nuclear. Leia com
bem calma o poema:
ROSA DE HIROXIMA
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Mordia-me a obsessão má de que havia
Sob os meus pés, na terra em que pisava,
Um fígado doente que sangrava
E uma garganta de órfã que gemia.
REFLITA: Por que Vinícius de Moraes não coloca nenhuma data no seu
poema? Em que aspecto isso corresponde à natureza do gênero lírico?
DA REALIDADE
DO EXERCÍCIO DA FILOSOFIA
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DAS UTOPIAS
Mário Quintana Þcou conhecido como “Poeta das coisas simples”. Essa
alcunha se deve à predominância de temas triviais e de uma linguagem poética
sem rebuscamento. Tal acessibilidade, conhecida como transparência semântica,
conÞrma-se em quase todos os seus textos líricos. Como você deve já ter
precebido, vários versos apresentam um tom de crítica e deboche à hipocrisia
humana; outros criticam a pretensão de originalidade intelectual; e todos
combinam elementos clássicos (rimas, decassílabos, ritmo) com a concisão da
poesia modernista, que prima muito por textos curtos. Mas, independentemente
de o poema ser longo ou conciso, o que o insere no gênero lírico é a representação
simbólica de sentimentos, sejam eles de origem pessoal ou social.
Menininho doente
Na minha rua há um menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o sapateiro bater sola.
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no mundo capitalista: a desproporção entre a produção material e a produção
de bens simbólicos. O operário citado nos tercetos tem apenas uma conotação
simbólica, uma vez que se trata do próprio eu-lírico ou da representação de um
poeta, o que exclui o sentido denotativo do trabalhador inserido na produção
em série. Com isso, você está abrindo um novo campo de reßexões sobre a sua
própria vida, na condição de aluno ou de professor.
REFLITA: Um dos quartetos de Mário Quintana tem por título “Das utopias”.
Você já pensou para reßetir o signiÞcado de uma utopia? Se já, o que
signiÞcaria, no mundo atual, o conceito de utopia? O que seria, para você, um
pensamento utópico?
João Grilo – (...) Eu me lembro de que uma vez, quando Padre João estava
me ensinando catecismo, leu um pedaço do Evangelho. Lá se dizia que
ninguém sabe o dia e a hora em que o dia do Juízo será, nem homem,
nem os anjos que estão no céu, sem o Filho. Somente o Pai é que sabe. Está
escrito lá assim mesmo?
Manuel – Está. É no Evangelho de São Marcos, capítulo treze, versículo
trinta e dois.
João Grilo – Isso é que é conhecer a Bíblia! O Senhor é protestante?
Manuel – Sou não, João, sou católico.
João Grilo – Pois na minha terra, quando a gente vê uma pessoa boa e que
entende de Bíblia, vai ver é protestante. Bom, se o senhor não faz objeção,
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minha pergunta é esta. Em que dia vai acontecer sua segunda ida ao
mundo?
Manuel – João, isso é um grande mistério. É claro que eu sei, mas ninguém
entenderia nada, se eu explicasse. Nem posso explicar nada agora, porque
você vai voltar e isso faz parte de minha vida íntima com meu Pai.
Veja que o diálogo entre João Grilo e Jesus não precisa ser apresentado
por um narrador. É como se os dois estivessem no palco e falassem diretamente
um ao outro, sem ninguém para mediar as suas ações. Mas Ariano Suassuna
cria, além dos personagens propriamente do enredo, a Þgura do Palhaço, que
desempenha várias funções artísticas, entre elas a de intervir nas cenas para as
devidas mudanças de cenário e continuidade dos acontecimentos. Observe as
passagens que destacamos abaixo, todas pertencentes à fala do Palhaço:
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de grupos sociais diferentes, vão chegando para o local. Num conßito que se
desencadeia, Zé do Burro é assassinado pela polícia, amarrado na cruz por uns
lutadores de capoeira e colocado no altar de Santa Bárbara, à semelhança de
Cristo.
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Mas... é bom reßetir mais uma vez... Por que essa peça de Dias Gomes
pertence ao gênero dramático e não narrativo? Isso se dá por causa da sua
estrutura dialogal. Todo o conßito entre o protagonista e o mundo externo
chega ao leitor pelos atos dos personagens. A intolerância entre Zé do Burro
e Padre Olavo é um recurso dramático que concorre para o efeito de aumento
das tensões do enredo, o que cresce na medida em que Zé do Burro não desiste
de sua promessa e o Padre Olavo também não abre mão de suas convicções
religiosas. Antes do desfecho, vão ocorrendo uns fatos que aumentam a tensão
da peça. Por exemplo, o “secreta”, um espião a serviço da polícia, intervém no
conßito em frente à Igreja para prejudicar Zé do Burro. Bonitão manipula o
“secreta” para causar tumultos e justiÞcar a prisão do camponês. O jornalista
caracteriza o pagador de promessas como a favor da reforma agrária. O Padre
Olavo não procede a nenhuma reßexão crítica de seus procedimentos. E alguns
tipos populares têm simpatia pela causa de Zé do Burro, Þcando contra o Padre
e contra a polícia. No Þnal, o desfecho da peça pode ser compreendido como
um martírio típico do cristianismo primitivo, mas não é reconhecido pelas
autoridades clericais. Fica clara a utilização da tirania – abuso de poder – pela
polícia, quando age contra as classes sociais mais simples. Há, no Þnal de tudo,
uma aliança sutil entre o Estado e a Igreja para aniquilarem inimigos comuns,
considerados perturbadores da ordem estabelecida.
Veja agora essa cena muito especial do Auto da Compadecida, para entender
melhor o gênero dramático. Após a procissão e a missa em latim para o enterro
do cachorro, o Palhaço faz a seguinte intervenção:
Palhaço – Muito bem, muito bem, muito bem. Assim se conseguem as coisas
neste mundo. E agora, enquanto Xaréu se enterra ‘em latim’, imaginemos
o que se passa na cidade. Antônio Morais saiu furioso com o padre e acaba
de ter uma longa conferência com o bispo a esse respeito. Este, que está
inspecionando a sua diocese, tem que atender a inúmeras conveniências. Em
primeiro lugar, não pode desprestigiar a Igreja, que o padre, aÞnal de contas,
representa na paróquia. Mas tem também que pensar em certas conjunturas e
transigências, pois Antônio Morais é dono de todas as minas da região e é um
homem poderoso, tendo enriquecido fortemente o patrimônio que herdou, o que
já era grande, durante a guerra, em que o comércio de minérios esteve no auge.
De modo que lá vem o bispo. Peço todo silêncio e respeito do auditório, porque
a grande Þgura que se aproxima é, além de bispo, um grande administrador
e político. Sou o primeiro a me curvar diante deste grande príncipe da Igreja,
prestando-lhe minhas mais carinhosas homenagens.
Esta longa fala pode ser interpretada de várias formas. Por exemplo, o
Palhaço exerce o papel de um narrador camußado, uma vez que o texto dramático
não tem propriamente narrador e é ele que preenche essa lacuna nos momentos de
45
apresentação, mudança e encaminhamento das cenas. As informações veiculadas
pelo Palhaço contribuem para um efeito fundamental da estrutura do gênero
dramático: a economia de meios. O Palhaço emite juízo, ainda que breve, sobre as
contradições da vida social do bispo, submetido a obrigações sacerdotais que visam à
autoconservação da Igreja e ao mesmo tempo agindo dentro de conveniências diante
do poder econômico da região. O Palhaço comporta-se de forma humilde diante
da passagem do bispo, o que não deixa de ter ressonâncias irônicas. O Palhaço tem
participação ativa no conteúdo do texto e na apreciação crítica da realidade.
Você deve se lembrar que no Auto da Compadecida ocorre um julgamento
para saber se as pessoas vão para o inferno, para o purgatório ou diretamente
para o céu. Na cena que precede o julgamento, ocorrem os assassinatos do
Bispo, do Padre, do Sacristão, do Padeiro e a Mulher, de Severino de Aracaju, do
Cangaceiro e de João Grilo. Sucede, então, nova intervenção do Palhaço:
46
Essas intervenções do Palhaço servem para evidenciar que toda a peça é um
artifício estético. O Þngimento artístico tem primazia sobre a realidade histórica, pois
esta é apenas um referencial que o teatro não consegue reproduzir integralmente,
mas apenas alguns aspectos recriados em forma Þccional. O Palhaço distribui os
papéis e as funções e promove a continuidade da peça, funcionando como uma
espécie de autor Þctício da obra. O enredo é constituído de um conjunto de cenas
que têm um desenvolvimento descontínuo, ou seja, sofre interrupções do Palhaço,
o que caracteriza uma reßexão sobre a própria montagem da peça. Vários planos
da peça se cruzam e se confundem, como o fato de Chicó estar vivo entre os mortos
que serão imediatamente julgados e aÞrmar que estava rezando pela alma do
amigo.
47
Janelas abertas Nº2
(Caetano Veloso)
48
UNIDADE III
A ESPECIFIDADE DO GÊNERO NARRATIVO
A cartomante
Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a
nossa ÞlosoÞa. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo,
numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido
na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras
palavras.
- Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui,
e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o
que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta de uma
pessoa...” Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-
as, e no Þm declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que
não era verdade...
- Errou! interrompeu Camilo, rindo.
- Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua
causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e Þxo. Jurou que lhe queria
muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse
49
algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-
lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois..
- Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
- Onde é a casa?
- Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião.
Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
- Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que
havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava,
paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova
é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões.
Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal
inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram.
No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e Þcou só o tronco da
religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na
mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava
em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento;
limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda aÞrmar, e ele não
formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os
ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada;
Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às
cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se
lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava
uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção
de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de
passagem para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das
origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu
a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do
pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada,
até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou
Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou
a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para
os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
- É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu
marido é seu amigo; falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois,
Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas
do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca Þna e
interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela
vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o
parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida
50
moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal,
que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência,
nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu
a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes
amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita
tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava
de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã,
mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele
aspirava nela, e em
volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a
teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites;
- ela mal, - ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as coisas. Agora
a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os
dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes
insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de
presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi
então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do
bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos,
deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a
mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem,
assim são as coisas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se
acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-
lhe o veneno na boca. Ele Þcou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos,
desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus,
escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada
fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem
padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro.
A conÞança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral
e pérÞdo, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para
desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe
as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz.
Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram
inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio,
uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a
aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconÞada e medrosa, correu à cartomante para
consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a
cartomante restituiu-lhe a conÞança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o
que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três
cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude,
mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras
palavras mal compostas, formulou este pensamento: - a virtude é preguiçosa e
avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
51
Nem por isso Camilo Þcou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter
com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era
possível.
- Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas
que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou mostrar-se
sombrio, falando pouco, como desconÞado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao
outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à
casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a conÞdência de
algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses
era conÞrmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacriÞcando-
se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso
de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela:
“Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Era mais de meio-dia.
Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao
escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse
realidade ou ilusão, aÞgurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas coisas
com a notícia da véspera.
- Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, -repetia ele com os olhos
no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e
lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de
que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo:
depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi
andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de
Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a
idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural
uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser
que Vitela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem
motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria conÞrmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras
estavam decoradas, diante dos olhos, Þxas; ou então, - o que era ainda pior,
- eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já,
à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Ditas assim, pela voz do outro,
tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma
hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que
se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou
a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a
precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia,
picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi.
Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
- Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava,
e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no Þm da rua da Guarda
Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que
52
caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No Þm de cinco
minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, Þcava a casa da
cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer
na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras
estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada
do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande,
extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de
outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe
voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que
esperasse. E inclinava-se para Þtar a casa... Depois fez um gesto incrédulo:
era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe,
com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no
cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns
giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
-Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em
outras coisas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da
carta: ‘’Vem,já,já...’’ E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava
para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um
longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz
da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários, e a mesma frase do
príncipe de Dinamarca reboava-lhe
dentro: “Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a ÞlosoÞa...” Que
perdia ele, se...?
Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido
enÞou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos
pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu.
Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade
fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas,
três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-
la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a
primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma
janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias,
um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com
as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no
rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e
enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de
rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana,
morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre
a mesa, e disse-lhe:
- Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto aÞrmativo.
- E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
53
-A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez
das cartas e baralhou-as, com os longos dedos Þnos, de unhas descuradas;
baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a
estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
- As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-
lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro;
ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela;
ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de
Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e
fechou-as na gaveta.
- A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima
da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
- Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se
fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda,
sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a
despencá-las e comê-las, mostrando duas Þleiras de dentes que desmentiam as
unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo,
ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
- Passas custam dinheiro, disse ele aÞnal, tirando a carteira. Quantas quer
mandar buscar?
- Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante
fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. .
- Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do
senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando,
com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada
que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima,
cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava
livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o céu
estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou
pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos
e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que
eram urgentes, e que Þzera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio
grave e gravíssimo.
- Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece
que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga
54
assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da
cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a
existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se
ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do
rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro.
Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as
palavras secas e aÞrmativas, a exortação: - Vá, vá, ragazzo innamorato; e no
Þm, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos
recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes
de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para
o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço
inÞnito, e teve assim
uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou aporta de ferro do
jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal
teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
- Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram
para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de
terror: - ao fundo, sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela
pegou-o pela gola,e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
55
Comentário
“A Igreja do Diabo”
56
as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Ele confessa aos
homens, em suas pregações, que é o Diabo, para que ninguém tenha mais medo
ou faça imagem distorcida dele. Assim, multidões vão ao Diabo e seguem os seus
princípios:
Essa nova doutrina se propaga e logo o Diabo triunfa. Mas um dia ele
faz uma descoberta chocante: as pessoas, às escondidas, estavam praticando
as antigas virtudes. O Diabo vê que ainda precisa conhecer bem o mal. Sem
compreender de todo o fenômeno, recorre a Deus e lhe relata os fatos. E
Deus lhe explica que o que está acontecendo faz parte da eterna contradição
humana.
Comentário
57
3.2.1 Características Gerais Dos Contos De Machado De Assis
I. Críticas Ao Romantismo
58
em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos,
vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam”.
Nos comentários sobre as cartas anônimas, aparecem frases que poderiam
ser destacadas do texto e lidas em qualquer circunstância, como as famosas
declarações das tragédias de Shakespeare. Aliás, o conto começa exatamente
com um dos pensamentos mais conhecidos de Hamlet: “Há mais coisas no céu
e na terra do que sonha a nossa ÞlosoÞa”. É preciso Þcar atento ao fato de que os
motivos centrais da tragédia, como dúvida, traição, mistério, ambigüidade, são
retrabalhados no conto de Machado de Assis, mantendo sua validade universal.
IV. Ironia
59
não tem virtude alguma, não se adapta a nenhuma proÞssão e se revela, no Þnal,
um crudelíssimo perseguidor de escravos fugidios. Mas as opiniões das amigas
de Clara vêm antes da revelação Þnal de Cândido e o choque com o que ocorre
depois é que produz o efeito irônico.
Em “O enfermeiro”, o primeiro encontro entre Procópio e o Coronel é
resumido assim: “(...) a minha resposta deu uma melhor idéia do coronel. Ele
mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais simpático dos
enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete dias”.
Nada disso, a partir daí, se conÞrma. O Coronel Felisberto é insuportável e
Procópio o mata.
“Noite de almirante” e “Umas férias” já têm ironia no próprio título.
A introdução dos contos é de um entusiasmo enorme para os personagens,
caindo violentamente depois. Deolindo, no primeiro, é traído e humilhado por
Genoveva; no segundo, as “férias” acabam sendo na escola: com horror do clima
sombrio de casa, que se instaura com a morte do pai, as crianças, liberadas das
aulas e felizes por isso, acabam tendo saudade da escola. As “férias”, portanto,
são os estudos.
60
c) através dos nomes
Somadas umas causas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve
míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará
mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno
saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive Þlhos,
não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
Proposta de atividades
61
Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta
o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identiÞcar,
na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade
determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente;
mas como fator da própria construção artística, estudado, no nível explicativo
e não ilustrativo. Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia,
ou da história sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação
estética que assimilou a dimensão social como fator de arte. Quando isto se
dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna interno e
a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica. O elemento social
se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos
psicológicos, religiosos, lingüísticos e outros. Neste nível de análise, em que
a estrutura constitui o ponto de referência, as divisões pouco importam, pois
tudo se transforma, para o crítico, em fermento orgânico de que resultou a
diversidade coesa do todo.
Está visto que, segundo esta ordem de idéias, o ângulo sociológico adquire
uma validade maior do que tinha. Em compensação, não pode mais ser imposto
como critério único, ou mesmo preferencial, pois a importância de cada fator
depende do caso a ser analisado. Uma crítica que se queira integral deixará
de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou lingüística, para utilizar
livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente.
Mas nada impede que cada crítico ressalte o elemento da sua preferência, desde
que o utilize como componente da estruturação da obra. E nós veriÞcamos
que o que a crítica moderna superou não foi a orientação sociológica, sempre
possível e legítima, mas o sociologismo crítico, a tendência devoradora de tudo
explicar por meio dos fatores sociais.
(Antonio Candido, Literatura e sociedade)
62
mesmo (o que naturalmente não é excluído) quer comunicar alguma coisa
a outros que, provavelmente, estão sentados em tomo dele e lhe pedem que
lhes conte um “caso”. Como não exprime o próprio estado de alma, mas narra
estórias que aconteceram a outrem, falará com certa serenidade e descreverá
objetivamente as circunstâncias objetivas. A estória foi assim. Ela já aconteceu
- a voz é do pretérito - e aconteceu a outrem; o pronome é “ele” ( João, Maria)
e em geral não” eu”. Isso cria certa distância entre o narrador e o mundo
narrado. Mesmo quando o narrador usa o pronome “eu” para narrar uma
estória que aparentemente aconteceu a ele mesmo, apresenta-se já afastado
dos eventos contados, mercê do pretérito. Isso lhe permite tomar uma atitude
distanciada e objetiva, contrária à do poeta lírico.
A função mais comunicativa que expressiva da linguagem épica dá ao narrador
maior fôlego para desenvolver, com calma e lucidez, um mundo mais amplo.
Aristóteles salientou este traço estilístico, ao dizer: “Entendo por épico um
conteúdo de vasto assunto.” Disso decorrem, em geral, sintaxe e linguagem
mais lógicas, atenuação do uso sonoro e dos recursos rítmicos.
É sobretudo fundamental na narração o desdobramento em sujeito (narrador)
e objeto (mundo narrado). O narrador, ademais, já conhece o futuro dos
personagens (pois toda a estória já decorreu) e tem por isso um horizonte mais
vasto que estes; há, geralmente, dois horizontes: o dos personagens, menor, e o
do narrador, maior. Isso não ocorre no poema lírico em que existe só o horizonte
do Eu lírico que se exprime. Mesmo na narração em que o narrador conta uma
estória acontecida a ele mesmo, o eu que narra tem horizonte maior do que o eu
narrado e ainda envolvido nos eventos, visto já conhecer o desfecho do caso.
ATENÇÃO: Terminamos por aqui esse material, mas isso é apenas o começo dos
seus estudos sobre teoria da literatura. Vamos apresentar um pequeno glossário
abaixo, para que você consulte e reforce seus conhecimentos.
AGORA É SUA VEZ: Procure ter sempre disposição para consultar o glossário
na medida em que for lendo os conceitos na parte teórica e aplicando-os à sua
leitura dos textos literários.
63
GLOSSÁRIO
64
em terceira pessoa (um narrador externo, que não faz parte do enredo nem se
envolve com os acontecimentos relatados). Existem outras formas de narrador,
como o narrador-testemunha (conta a história, mas não é o personagem central),
porém são formas mais raras.
PERSONAGEM – É todo aquele que desenvolve ou sofre a ação do enredo.
O personagem pode ser principal (protagonista) ou secundário, mas é necessário
buscar a importância de sua ação na estrutura do enredo.
SENSO COMUM – É aquilo que é comumente aceito em uma determinada
sociedade ou uma cultura. É a comunicação no nível mais simples e necessário,
pois sem ela não haveria compreensão básica entre as pessoas. A importância
do senso comum para a literatura e para as artes é que ele serve de referencial
negativo ou a ser negado. Sem essa ruptura com o senso comum, a literatura e as
artes tendem a se realizar em um nível muito pobre.
TEORIA – Um conjunto de princípios lógicos que norteiam a compreensão
de um determinado fenômeno, seja ele real ou imaginário. A teoria só tem valor
se for averiguada por uma demonstração. Caso a demonstração falhe, a teoria
tem que ser repensada e refeita. Na literatura, por exemplo, a teoria não pode ser
aplicada mecanicamente ao texto. Cabe ao exame minucioso do texto veriÞcar se
a teoria pode ser ou não aplicada. Isso depende de como o conceito corresponde
(ou não) à construção especíÞca de um determinado texto literário.
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