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50 anos da Ditadura

Liçoes de resistencia e democracia dos cineclubes

2014, ano de lembrança e reflexão

Como não podia deixar de ser, este ano está sendo marcado por inúmeras efemérides
relativas ao cinquentenário da ditadura que o Brasil viveu entre 1964 e 1985. É uma
reflexão indispensável, trata-se do evento histórico mais importante da nossa
experiência recente, riquíssimo para a compreensão da sociedade atual, que dele traz
múltiplos traços. Conhecer e sobretudo compreender o melhor possível aquele período
é indispensável para evitarmos toda possibilidade de renascimento do autoritarismo -
ou autoritarismos, presentes em diferentes dimensões do convívio social. A maneira
como a sociedade se articulou para derrubar o regime e construir novas bases
democráticas é um reservatório de lições que continuam a servir para não apenas
consolidarmos as instituições democráticas existentes, mas sobretudo para as estender
e aprofundar no sentido de uma justiça social ainda subdesenvolvida em nossas terras.

Muitos dos eventos, mostras, debates que se fizeram pelo País este ano usaram uma
iconografia forte da onipresença militar no período autoritário. Nada melhor para
representar a tirania em estado bruto – admitindo o jogo de palavras – que tropas
armadas, veículos blindados, cavalaria. Mas o arbítrio mobiliava todo o cotidiano, e a
força maior da opressão exercia-se no vasto campo das instituições, na legislação de
exceção, no arrocho salarial, na censura, na repressão à diversidade comportamental,
na proibição de organização, nem sempre com grandes aparatos visíveis. A imagem do
País seria talvez melhor representada por uma cidade vazia, um deserto, um cemitério.
De forma mais ou menos análoga, a imaginária da resistência à ditadura, nesses
eventos, tem destacado o repertório dos tombados na luta armada, seu inegável
heroísmo ressoando forte nos sentimentos de todos nós. Mas também isso não
corresponde à verdade histórica. Falta de articulação e respaldo popular, a resistência

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armada foi derrotada pela reação feroz e ilegítima do Estado e não contribuiu
efetivamente para a derrubada do regime. A lição inestimável que tiramos da luta
contra a ditadura foi que ela foi derrubada por um amplo, longo, difícil, perigoso
trabalho de organização da sociedade civil – provavelmente com tantas ou mais vítimas
que o combate armado – que desaguou numa mobilização crescente até tornar-se
avassaladora.

Os cineclubes são um dos exemplos mais claros e instrutivos dessa sociedade civil que
se expandiu por todo o tecido social. Mas são, também, caso exemplar do estiolamento
e desagregação desse mesmo tecido social na restauração da hegemonia dos
opressores. Seu papel ainda está para ser avaliado, e essa história, para ser contada.
Apresento aqui alguns comentários que podem contribuir para a tarefa, se algum dia
for empreendida.

Prolegômenos

Num livreto que escrevi em 1982 – Movimento Cineclubista Brasileiro –, editado pelo
Cineclube da Fatec de São Paulo, eu propunha uma visão evolutiva do cineclubismo em
nosso País. Partindo da idéia, que tinha então, de que o primeiro cineclube brasileiro
fora o Chaplin Clube, via uma espécie de progressão democrática que começava
naquele clube da elite da capital nacional; passava para o meio universitário do Clube
de Cinema da São Paulo (1940-57); espalhava-se pelos estados e pelas instituições
educativas católicas ao longo dos anos 50; chegava, através dos cineclubes
universitários a “levar cultura para o povo” em experiências mais populares, às
vésperas do golpe militar de 64. Os cineclubes dos anos 70, pensava eu, haviam
superado o paternalismo implícito na geração cineclubista do Cinema Novo, dando
origem a um movimento autóctone nas periferias, que não mais dependia da animação
estudantil. Era o ponto de chegada de uma teleologia juvenil e orgulhosa, de resistência
à ditadura.

A reflexão um tanto simplificadora baseava-se, contudo, em conquistas reais dos


cineclubes daquela etapa da nossa história. Os anos da ditadura militar são

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possivelmente os mais ricos da história dos cineclubes brasileiros, sob vários aspectos.
Marcam a superação de um modelo elitista dominante por 50 anos e o lançamento das
bases de uma nova teoria cineclubista baseada não mais no cinema, no texto, mas no
público, no contexto. Mais que isso, essa geração se inaugurai pelo reconhecimento da
postura colonizada do cineclubismo até então, com o firme comprometimento com o
cinema brasileiro como expressão da nossa identidade e cultura. E, marcada pela
perseguição e pelo arbítrio, criou instituições e modelos de gestão radicalmente
democráticos que levaram o cineclubismo a uma extensão territorial, social e cultural
inigualados em qualquer outro momento.

Passemos rapidamente pela história. Nos anos 50, por aqui, o cineclubismo
baseado no modelo francês de culto ao “bom cinema” havia se conjugado de diferentes
maneiras com um humanismo cristão de inspiração católica. Cabe uma certa analogia
sobretudo com o cineclubismo parisiense do pós-Guerra, que incorporava um pouco do
humanismo de André Bazin com o vanguardismo elitista – às vezes tratada de “cinefilia”
- dos cineclubes que deram origem aos Cahiers du Cinéma e Positif. Aqui, sob influência
daquele modelo, a década se distingue pela expansão nacional dos cineclubes, pelo
florescimento de uma crítica cinéfila em diferentes estados, pela proliferação
igualmente nacional de cineclubes católicos e, finalmente, pelo início de uma
organização autônoma do cineclubismo como movimento culturalii. Na virada e começo
dos anos 60, o cinecubismo universitário se politiza mais, envolvendo-se com os
Centros Populares de Cultura, com o Cinema Novo, e disputando com os cineclubes
católicos dentro do movimento.

Como eu dizia no livrinho de 1982, o golpe militar atingiu mais esse segmento
minoritário, extensão do movimento estudantil. Inicialmente, a ditadura ocupa-se das
organizações realmente de massa, operárias, camponesas, estudantís. Destas últimas
deriva, portanto, a desagregação dos CPCs e o golpe duro em parte da produção
cinemanovista. A maior parte da atividade cineclubista, sem compromisso político, foi
preservada. De certa forma, a ditadura atingiu o movimento de fato, mortalmente, em
1968: a 7ª. Jornada foi realizada naquele ano em Brasília (!), em meio ao golpe na

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sucessão do general Costa e Silva e a edição do Ato Institucional n o5. Com o
recrudescimento da ditadura militar, os cineclubes – e cineclubistas - passam a ser
violentamente perseguidos. É estabelecida na prática a censura prévia às suas
atividadesiii e todo tipo de entraves e pressões vão desmantelando todas as entidades
no País. Calcula-se que existissem cerca de 300 cineclubes em 1968, agrupados em 6
federações regionais filiadas ao Conselho Nacional de Cineclubes. Em 1969 haveria no
máximo uma dúzia de cineclubes em funcionamento e quase todas as suas entidades
representativas haviam sido destruídas ou abandonadas. Exceção importante, o Centro
dos Cineclubes de São Paulo subsistiu, graças principalmente ao empenho de Carlos
Vieira – então já quase vinte anos à frente da entidade.

Carlos Vieira, à esquerda, Hector Babenco, Roberto Santos e Marília Santos


no Clube de Cinema de Marília

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Penso que se possa agrupar esse período da história do cineclubismo brasileiro
em três fases: de reorganização, de expansão e consolidação e, finalmente, de crise e
desagregação.

Primeira fase (72-74) – reestruturação, unidade, cinema brasileiro

Os cineclubes nunca deixam de existir, mesmo nos períodos em que


desaparecem dos espaços midiáticos e acadêmicos e exercem pouca ou quase
nenhuma influência no restante da sociedade. Subsistem no isolamento, sem
notoriedade, atendendo ao que penso ser uma necessidade persistente do público. Na
verdade só são notados quando muito organizados, atuantes, de forma a se impor nos
noticiários, ou quando reconhecidos – geralmente de forma efêmera – por correntes
acadêmicas e/ou midiáticas, como nos anos 20 e 50 na França, por exemplo. Mas estão
sempre por aí, meio escondidos numa faculdade, numa forma de associação de bairro,
numa cidade do interior...

Como já mencionei, depois do “golpe dentro do golpe” subsistiu uma certa


atividade em São Paulo, principalmente em cineclubes tradicionais do interior, como o
Clube de Cinema de Marília ou o Clube Avareense de Cinema, através do Centro dos
Cineclubes. Não podemos esquecer da Cinemateca de Santos, identificada com a forte
personalidade de Maurice Legeard, atuando por fora. Essa atividade se dinamiza com o
surgimento de novos cineclubes estudantis e, a partir de 72, pela ação da Cinemateca
Brasileira, então mantida a duras penas por um grupo de jovens sob a liderança inicial
de Lucila Riberio Bernardet. A circulação do acervo 16mm e a identificação de sua
equipe com a resistência dos cineclubes à ditadura logo deram à Cinemateca um papel
de liderança nesse movimento.

No Nordeste também, várias personalidades da geração anterior do


cineclubismo mantinham atividades diversas de exibição, debate e organização em
muitas cidades da região. A Bahia centralizou de certa forma essa movimentação, que

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incluía uma produção de resistência e culminaria com a criação da Jornada de Curta-
Metragem, sob a direção de Guido Araújo, em 1972.

Mas é do Rio de Janeiro que veio o impulso fundamental para a reorganização


nacional do movimento cineclubista. Dentre alguns cineclubes que se organizaram e
recriaram a Federação do Rio de Janeiro, destaca-se o CC Glauber Rocha, com um
número expressivo de grandes quadros cineclubistas e a liderança de Marco Aurélio
Marcondes. O “Glauber Rocha” era praticamente uma base ou célula do Partido
Comunista Brasileiro; acredito que isso é fundamental para compreender a visão e o
programa organizativo que esse grupo ajudaria a estabelecer em seguida para todo o
País.

O Cineclube Glauber Rocha – parte de seus membros


O último à direita, embaixo, é Marco Aurélio Marcondes

Esse programa pode ser resumido em alguns tópicos: unidade de todos os


cineclubes; criação ou recriação de estruturas institucionais e operacionais; cobertura

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nacional do movimento e, finalmente, compromisso com o cinema brasileiro. Foi Marco
Aurélio, principalmente, que buscou e identificou os núcleos cineclubistas existentes no
País. Em São Paulo, por exemplo, foi o maior promotor da unidade entre os cineclubes
mais tradicionais, ligados ao Centro (Carlos Vieira), e os estudantis, à Cinemateca
(Felipe Macedo).
Em 1972, na primeira Jornada baiana, lançaram-se as bases para a fundação da
ABD e a reorganização do CNC, ambas no ano seguinte: a ABD em setembro, na 2ª.
Jornada; o CNC em outubro, em reunião no Clube de Cinema de Marília, por ocasião da
entrega do tradicional (criado em1966) prêmio Curumin de Cinema Brasileiro. Rio
(Marco Aurélio Marcondes, Luiz Fernando Taranto), São Paulo (Carlos Vieira, Felipe
Macedo) e Nordeste (representado pela Bahia, com o paraibano José Umbelino Brasil)
foram as regiões que participaram. A principal deliberação da “nova” entidade foi a
convocação do congresso nacional dos cineclubes já para o início de 74.

Jornada de Curitiba (1974): Cosme Alves Neto (Cinemateca do Museu de Arte Moderna)
em primeiro plano, e a delegação da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro

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A 8ª. Jornada Nacional de Cineclubes foi realizada em fevereiro de 74, em
Curitiba, com a presença de 40 entidades – entre elas, as duas cinematecas brasileiras
e a ABD recém criada. Penso que as duas grandes resoluções da Jornada foram: a
mudança dos estatutos do CNC, que assumiu uma forma nacional e democrática,
tornando-se uma federação de cineclubes por voto direto – antes era um conselho que
reunia apenas as direções das federações regionais – e a Carta de Curitiba, que definia
o vínculo e compromisso do cineclubismo brasileiro com o cinema nacional. Isso
significou uma ruptura histórica com a postura elitista e colonizada que prevalecia até
então, de culto a um “bom” cinema, fundamentalmente identificado com a produção
estrangeira. Certos autores identificam essa nova postura como herança do Cinema
Novo; equivocam-se, a origem deste novo “nacionalismo” - sem abdicar da crítica que é
inerente à prática do cineclubismo - estava nas posições de Paulo Emílio Salles Gomes e
envolvia todo o cinema brasileiro – da chanchada e Vera Cruz ao Cinema Novo - como
expressão de uma cultura que havíamos desdenhado e desconhecido. Carlos Vieira
presidiu a primeira diretoria do novo CNC.

Segunda fase (75-84) – A Dinafilme e um movimento social nacional

Em Curitiba já se colocava a questão fundamental: como obter filmes para os


cineclubes. Há vários aspectos a considrar nesse tema:

 Primeiro, é preciso lembrar que filme era película – e 16mm a bitola consagrada
dos cineclubes. Além da cara copiagem, a própria circulação de filmes era um
desafio logístico de transporte e custos;
 Os monopólios regionais de exibição, em acordo com as distribuidoras
americanas, não permitiam a circulação de filmes em diversas partes do País;
 Da mesma forma, filmes brasileiros raramente estavam disponíveis e curtas-
metragens menos ainda;
 A Censura proibia sistematicamente filmes mais críticos e a Polícia Federal, os
serviços secretos das forças militares e até organizações terroristas de extrema
direita assediavam e atacavam atividades de vários cineclubes.

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O movimento fez desde logo uma série de experiências de circulação de pacotes de
filmes, com resultados variados. Mas na Jornada seguinte, em Campinas (1975),
concluiu pela necessidade de criação de uma distribuidora organizada, ligada ao CNC.

Na Cinemateca Brasileira, em 1975, tinha havido uma espécie de luta pelo poder:
um grupo mais “técnico”, vindo dos cursos de cinema da USP e contrário a qualquer
atividade que pudesse comprometer o relacionamento da instituição com o governo
militar, acabou assumindo a direção. O pessoal que lá estava desde 1972 foi afastado e
parte dele assumiu a direção da Federação Paulista de Cineclubes, nova denominação e
estrutura adotadas pelo Centro dos Cineclubes. A questão toda foi arbitrada por Paulo
Emílio Salles Gomes: ao mesmo tempo que sacramentava a nova equipe da
Cinemateca, doou o acervo 16 mm – duplicado de cópias já preservadas - para a
Federação. Em fevereiro de 76, na Jornada de Juiz de Fora, foi oficialmente criada a
Dinafilme – Distribuidora Nacional de Filmes, e sua administração central entregue à
Federação Paulista que já tinha sede e acervo em duas salas na famosa Boca do Lixo,
em São Paulo. Marco Aurélio Marcondes foi eleito presidente do CNC e Felipe Macedo,
secretário-geral e diretor da distribuidora.

O acervo inicial, de clássicos do cinema, foi sendo incrementado com o depósito


sobretudo de curtas-metragens feito pelos realizadores. A Dinafilme combinava a
fórmula “trabalho legal – trabalho ilegal”, distribuindo clandestinamente os filmes
proibidos ou não submetidos à Censura (ver nota iii), mas atuando igualmente na
“legalidade”, mais ou menos dialogando com as instituições do governo de exceção.
Com a nova distribuidora, os cineclubes de todo o País puderam ter acesso a filmes iv e
o movimento não parava de crescer, começando a ter um certo peso político real: no
fim da década, o CNC chegou a ter cerca de 600 cineclubes associados e a Dinafilme
atendia a uns 2.000 “exibidores” de caráter cultural e comunitário. Em 1977, Marco
Aurélio afastiu-se formalmente da direção do CNC, tendo sido contratado para criar um
Setor 16mm na Embrafilme. Era o complemento ideal para a programação dos
cineclubes, pois só o Estado tinha recursos para poder fazer cópias de longas-
metragens brasileiros em 16mm. Resumida e esquematicamente: o Setor 16mm da

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Embrafilme fornecia longas-metragens brasileiros; a Dinafilme, clássicos e curtas,
inclusive clandestinos. No começo dos anos 80 a distribuidora cineclubista passou a
distribuir também filmes latino-americanos.

Paralelamente a esse processo, o movimento vivia uma prática política intensa.


Expandia-se horizontal e verticalmente, espalhando-se pelo País todo, sendo adotado
ou trabalhando conjuntamente com muitos movimentos sociais e mesmo estabelecendo
relações internacionaisv. Voltarei a isso. Mas também internamente o movimento
praticava um debate político muito vivo. As assembléias ou jornadas – então anuais,
com eleições a cada 2 anos – especialmente entre 1977 e 1984 foram marcadas por
intensa disputa. Pode-se resumir um pouco essa divisão entre uma visão e programa
que defendiam o cinema brasileiro e um cineclubismo plural, em torno das idéias
gramscianas de nacional-popularvi, de um lado, e uma posição que propugnava uma
prática internacionalista e revolucionária de inspiração trotskista. A base social do
primeiro grupo era bem ampla, nacional, indo dos cineclubes de periferia aos mais
tradicionais e organizados, passando pelos de escolas de todos os níveis, além de
movimentos específicos de gênero, orientação sexual, etc. Os “internacionalistas”
tinham bases exclusivamente universitárias, ligadas a algumas tendências do
movimento estudantil, especialmente em Minas (Grupo Centelha) – onde eram
hegemônicos - e no Nordeste, mas também em praticamente todos os outros estados
(Grupo Liberdade e Luta, em São Paulo, por exemplo). Menos importante, sob alguns
aspectos, tinha a vantagem da organização através das tendências partidárias do
movimento estudantil, resultando numa maior facilidade de mobilização.

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Jornada de Caxias do Sul (1979), a maior até hoje: 124 cineclubes com
direito a voto e quase 500 participantes em renhida disputa eleitoral.

Esse debate, especialmente no primeiro período citado, circulava por uma


robusta imprensa cineclubista e estruturas organizativas cada vez mais radicalmente
democráticas. As federações e o CNC – e muitos cineclubes – tinham boletins
periódicos. A Dinafilme era dirigida por um Administrador eleito na Jornada, amparado
num Conselho (deliberativo) de Administração, o CADINA, com representantes de todas
as federações e grupos de cineclubes ditos isolados. Cada região tinha seu CADINA
regional, que administrava “filiais” e acervos circulantes da distribuidora. Nos dois
níveis, nacional e regional, também tinham seus “boletins Cadina”, com dados da
distribuição e artigos de debate. Assim, as assembleias regionais deliberavam, em
última instância, sobre o andamento da distribuidora entre as jornadas. Era uma prática
difícil, trabalhosa, que criava dificuldades sem conta para a gestão de uma distribuidora
independente, que precisava se custear, manter uma eficiência – que, aliás, esteve
sempre longe do ideal. Mas que durou mais de uma década e deu uma contribuição
inigualável para a cultura e o cinema brasileiros.

Ao mesmo tempo, o reconhecimento da legitimidade dessas instâncias garantia a


base de funcionamento delas, mesmo nas relações entre grupos francamente

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adversários. Nos casos de repressão – fora os casos pontuais, que se contam às
centenas, de cineclubes perseguidos, a própria sede do CNC e a Dinafilme foram
invadidas duas vezes (77 e 79) pela Polícia Federal e o acervo apreendido – a unidade
era exemplar. Na invasão da Dinafilme de 79, a mobilização realizada em cada estado e
nacionalmente foi tão forte que o ministro da Justiça teve de receber a direção do CNC
e devolver os filmes. Foi o momento de maior exposição midiática e social do
cineclubismo brasileiro, em plena ditadura, e a maior vitória política pontual em sua
história.

O debate, a participação, a estrutura democrática caracterizam um movimento


mesmo, uma parcela significativa da sociedade que se apoiava no cinema para se
organizar como sujeito, e sujeito político. Isso ocorria de par com a organização da
sociedade civil em escala muito mais ampla; os cineclubes eram parte de outros
movimentos e organizações sociais, especialmente nos bairros junto a comunidades de
base da igreja então marcada pela teologia da libertação, a iniciativas de alfabetização,
aos movimentos contra a carestia e muitos outros. O cineclubismo também se envolveu
com formas de organização identitárias, culturais, de gênero, como se diz hoje; na
Bahia, graças ao trabalho incansável e liderança carismática de Luís Orlando da Silva,
tornou-se canal importante de expressão do movimento negro. E cineclubes
importantes marcaram também os movimentos feminista, homossexual e outros, que
se destacavam também nas relações com o restante do movimento, nos grandes
congressos anuais.

Luís Orlando da Silva - símbolo de um novo cineclubismo

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Estes exemplos de discussão e muitas outras questões ocupavam todos os
espaços de que dispunha o movimento, em artigos e ensaios, réplicas e tréplicas
aguerridas, irônicas, implacáveis. Essas disputas, como me parece óbvio, contribuíam e
consistiam mesmo na manifestação mais evidente do grau de democracia que regia o
movimento. Independentemente de “hegemonias” locais ou nacional de uma ou outra
tendência, quando havia, as oposições sempre tinham direito e espaços assegurados
para se expressar. Tal foi, de fato, a intenção e modelo do Conselho de
Representantesvii, no CNC (que assegurava a participação das minorias na gestão
majoritária) e a forma de administração ultraparticipativa que marcava – e às vezes até
atrapalhava – a Dinafilme. Mas, quando interesses gerais do movimento estavam em
jogo – como a manutenção dessas mesmas instituições, políticas (da organização) ou
econômicas (basicamente a Dinafilme, mas também a organização de encontros), a
unidade do movimento cineclubista prontamente se estabelecia. O maior e mais claro
exemplo disso foram as mobilizações amplamente nacionais quando das duas invasões
e apreensões na Dinafilme pela Polícia Federal, em 1977 e 79. E todas as Jornadas
anuais - e as Pré-Jornadas entre elas -, organizadas praticamente sem patrocínio (mas
com parcerias com prefeituras de oposição ao regime militar, sindicatos, organizações
religiosas).

Em meio a uma intensa disputa, viia o compartilhamento das “regras do jogo”, a


aceitação dos resultados eleitorais ou de propostas programáticas por eventuais
minorias - que podiam ser bem numerosas ou majoritárias em determinadas regiões –
em função da unidade geral em torno de princípios e conquistas comuns.

Um novo tipo de cineclubismo

A própria conjuntura autoritária e a repressão à organização da sociedade civil


acentuaram o caráter político da organização cineclubista, que passou a valorizar o
público em detrimento do cinema - valor maior da cinefilia consagrada pelo
cineclubismo elitista, especialmente francês, dos anos 20 e 50. Recuperando os valores

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originais dos primeiros cineclubes, de origem socialista e anarquista - o humanismo
cristão e a valorização do público trabalhador e feminino - o cineclube brasileiro do
período da ditadura passou a definir-se majoritariamente como uma organização do
público com vistas à apropriação e à construção de um novo cinema (expressão de uma
nova sociedade), e não mais como um grupo de apreciadores de uma expressão
artística, comprometidos apenas com a sua dimensão estética (independentemente da
sociedade).

Essa postura mais ou menos comum em toda a América Latina, que vivenciava
condições políticas e sociais muito semelhantes, foi possivelmente expressa de forma
mais consciente no Brasil, onde um movimento mais vigoroso e numeroso deu margem
a um debate e uma certa produção teórica mais importante. A influência do
pensamento gramsciano – e particularmente sua concepção das instituições geradoras
de valores éticos e culturais - também está certamente associada ao desenvolvimento
desse pensamento. Concorre para demonstrar isso o fato de que uma reflexão
semelhante, colocando o público na centralidade da questão do cinema, também
surgia, na mesma época, na Itália, com os cineclubistas Fabio Masala, da Sardenha, e
Filippo De Sanctis.

O associativismo é a premissa maior dessa concepção, que reelabora essa base


geral e originária do cineclubismoviii e a aproxima da idéia das instituições valorativas de
Gramsci, essenciais para a construção de uma sociedade efetivamente democrática.
Mas também para a consttrução de um cinema que expresse a cultura e os interesses
do povo – em oposição a um cinema espetáculo comercial que atende essencialmente
às demandas do capital. Assim, como bem ilustra a foto, mais acima, do Cineclube
Glauber Rocha (foto em que não cabem todos os membros do cineclube), os cineclubes
típicos do período tinham dezenas de associados e militantes. Tal conjuntura
(“beneficiada” por um clima repressivo e de relativa ausência de manifestações críticas)
criava um campo de debate interno também bastante intenso, e uma grande
criatividade, gerando idéias e ações que atraíam e mobilizavam grandes públicos.

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Sessões, inclusive clandestinas, tanto nas universidades como nos bairros, não raro
reuniam públicos de muitas centenas de pessoas.

O modelo, creio, se estende e contamina as organizações que o movimento cria:


daí as diversas instâncias participativas já mencionadas, como os conselhos de
representantes do CNC e de gestão da Dinafilme. Também as Jornadas eram abertas a
amplas participações e os cineclubes compareciam com diversos membros, em
delegações numerosas de até dez ou mais pessoas.

Já mencionei a idéia de democratização paulatina do cineclubismo brasileiro,


expressa no livrinho de 1982. De certa forma – e recusando a linearidade e teleologia
do raciocínio – o cineclubismo brasileiro do período ditatorial (retomou e) superou a
geração anterior e suas ações de “levar a cultura para o povo”. Os cineclubes de
bairrros de periferia e de comunidades e movimentos culturais populares – como o dos
negros, especialmente na Bahia – eram autogeridos, sem “orientações” externas e
participavam em igualdade com todos os outros tipos de cineclubes do movimento. Já
no fim dos anos 70 esses cineclubes tornam-se maioria nas jornadas.

Certamente contribuíram para essa expansão com autonomia alguns programas


de criação de cineclubes coordenados principalmente por federações regionais, como as
de São Paulo - Projeto “Intercine” (Plano de Interiorização do Cinema Cultural), que
chegou a até 80 cidades na terceira edição) e Espírito Santo, já com apoios dos
governos estaduais. Outra instituição das federações no período da ditadura foi o Mês
do Cinema Brasileiro, quando todos os cineclubes de sua base regional programavam
filmes nacionais, e outras atividades sobre o tema.

Exceção muito importante a considerar nessa tendência democratizante foi a dos


cineclubes propriamente operários. Os sindicatos são uma base ideal para o
desenvolvimento do cineclubismo: geralmente contam com sede, instalações e
recursos, além de serem virtualmente um polo de afluência de trabalhadores com alto
grau de identidade. Isso, sem me estender sobre o papel central que tem a classe
operária na construção de uma sociedade efetivamente democrática. No entanto,

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pouquíssimos foram os sindicatos que aceitaram ou adotaram cineclubes em sua
estruturaix. Na greve do ABC, em 1978, a Dinafilme montou equipes móveis de
projeção, que exibiam filmes do movimento operáriox, mas a própria diretoria do
Sindicato dos Metalúrgicos proibiu a criação de um cineclube em sua organização –
embora contratasse a produção de vários filmes com um realizador. Essa estreiteza do
movimento sindical com relação à organização cultural – muitos sindicatos e centrais
sindicais promoviam (e o fazem atualmente) espetáculos totalmente comerciais e
anódinos, mas não estimulam a iniciativa cultural operária.

Influência no cinema brasileiro

Cartazes de lançamentos da Dinafilme

Uma crítica comum ao novo modelo de cineclubismo era a da sua politização,


supostamente sinônimo de descompromisso e instrumentalização do cinema. Como se
verá mais adiante, esse elemento estava presente, mas essa politização também
representou interação e influência no cinema brasileiro. Um grande número de
cineastasxi trabalhava orgânicamente com o movimento, cedendo seus filmes para a
Dinafilme – e vários foram produzidos especialmente para ela e para o grande circuito

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de exibição que ela atendia, inclusive clandestinamente. Já mencionei que, em
determinado momento, a Dinafilme atendia 2.000 pontos de exibição no País.

João Batista de Andrade, Leon Hirszman, Tizuka Yamasaki, Jorge Bodanski,


Osvaldo Caldeira, Renato Tapajós, Roberto Gervitz, Sergio Toledo, Carlos Reichembach,
Sílvio Tendler, Alain Fresnot, Agnaldo “Siri” Azevedo, Orlando Bomfin, são alguns dos
muitos realizadores que interagiam com o movimento cineclubista e recebiam sua
influência pelos resultados da circulação de seus filmes. Além de participarem de
debates sobre seus filmes, a Dinafilme também estimulava a elaboração de relatórios
de sessão, inclusive mais informais, o que tinha bastante impacto junto aos
realizadores. Assim, filmes como O Homem que Virou Suco; Eles não Usam Black-tie;
Gaijin; Projeto Jari; Passe Livre; Linha de Montagem; Braços Cruzados, Máquinas
Paradas; Os Anos JK;Trem Fantasma, entre muitos outros, são exemplos de filmes que
dialogam e incorporam em graus variados a inflluência dos cineclubes e,
principalmente, do público que eles reuniam e representavam. O cineclubismo está
presente na estética, como na política, do cinema brasileiro daquele período.

Tendo sido uma das primeiras entidades do cinema brasileiro a se organizar


depois da instalação da ditadura, o CNC e o movimento cineclubista criaram e
participaram de todos os eventos e reuniões importantes (festivais, congressos, etc.) do
meio cinematográfico brasileiro e mantiveram diálogo com todas as instituições
existentes ou que foram surgindo: Associação Brasileira de Cineastas, Associação
Paulista de Cineastas, Sindicatos de Artistas e Téccnicos, etc.

Baseada num texto de Antonio Gouveia Jr. (criador do cineclube do Sindicato dos
Jornalistas e do CC Bixiga), uma Resolução do Conselho Nacional de Cinema (o então
órgão normativo do cinema no País) regulamentou a atividade cineclubista,
reconhecendo no CNC a exclusividade de registro das entidades de base (que, assim,
não precisavam entrar em qualquer contato com a Polícia Federal ou outros órgãos de
controle).

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1980: Gaijin recebe o prêmio Curumin de melhor filme brasileiro,
do Clube de Cinema de Marília. A partir da esquerda:
diretora do Clube de Cinema; Felipe Macedo, da Dinafilme;
Orlando Fassoni, crítico de cinema, e a diretora Tizuka Yamasaki

Presença internacional (77-84)

A partir de 1977, o CNC passa a participar da Federação Internacional de


Cineclubes, sendo incorporado ao seu Comitê Executivo em 1977, em Figueira da Foz,
Portugal. O Secretário-geral da FICC, Jean-Pierre Brossard, participa das Jornadas de
Caxias do Sul (78) e Campo Grande (80). Em 1979, Macedo é eleito novamente para o
Comitê, desta vez em assembléia realizada em Marly-le-roi, perto de Paris. Em 1981, na
primeira assembléia da FICC realizada na América Latina (Havana, Cuba, durante o
Festival del Nuevo Cine), é eleito Secretário Latino-americano.

A relação com a FICC foi praticamente irrelevante, exceto quanto à América


Latina. A organização era extremamente centrada na realidade européia, onde o
intercâmbio entre federações nacionais fortes, sustentadas por países desenvolvidos ou

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socialistas, era uma realidade. Mas a entidade eurocêntrica não fazia quase nenhuma
ação concreta em relação ao resto do mundo.

O encontro de Havana, porém, reuniu diversos países latino-americanos que


compartilhavam uma mesma conjuntura de repressão e, mesmo sem muitos recursos,
dispunham de vontade política para se aproximarem. Felipe Macedo e Diogo Gomes dos
Santos, então diretor da Dinafilme, conseguiram trazer clandestinamente para o Brasil
os filmes mais importantes do Festival e celebraram um acordo com a distribuidora
mexicana Zafra para intercâmbio de filmes. Assim, no começo da década de 80, a
Dinafilme distribuiu diversos documentários latino-americanos, inclusive das
sublevações populares de El Salvador e Nicarágua.

Terceira Fase (84-89) – desestruturação

Se num primeiro período – especialmente entre 1977 e 1980 – o movimento se


dividia em tendências ideológicas e programáticas mas conseguia preservar a unidade
política, a partir de 1982 ele passa a se desentender num plano quase de classe, em
que a intolerância impede a convivência. É um dos fatores da sua desagregação.

A maioria dos cineclubes, de 1974 a 1982, se identifica com os pressupostos aqui


descritos, de primazia do público, do associativismo democrático, de defesa e
participação no cinema brasileiro. Entre a Jornada de 1977 (Campina Grande) e a de
1978, em Caxias do Sul, algumas tendências de orientação trotskista no movimento
estudantil se organizam para disputar as eleições (em 78). A disputa foi acirrada e a
vitória daquela maioria foi apertada. No entanto, como parte da “frente” estudantil
visava mais a tomada da entidade que a prática cineclubista, grande parte desse grupo
se desestruturou completamente logo após a Jornadaxii. Mas a Federação de Minas
continuou, assim como um ou outro cineclube paulista. Na Jornada de Brasília, dois
anos depois, essa oposição havia quase desaparecido e uma espécie de unanimidade
parecia abrir caminhos interessantes numa conjuntura em que a ditadura se
enfraquecia lenta, mas consistemente.

19
Foi em 1982 (Jornada de Piracicaba) que a nova forma de divisão do movimento
se revelou. Ao não ser contemplado especificamente com o cargo de vice-presidente na
chapa montada em reuniões muito amplas, que envolviam quase a totalidade dos
cineclubes presentes, Diogo Gomes dos Santos revelou e dirigiu um “racha” inusitado:
cerca de um terço dos cineclubes votaram favoravelmente ao programa da chapa, mas
se abstiveram na eleição.

Era uma forma de tendência política diferente: não defendia um programa, mas
pessoas. De fato, havia um clima incômodo, algo como o que Franscisco Foot Hardan xiii
chamou de estratégia do desterro, referindo-se ao purismo dos anarquistas no começo
do século passado. De forma semelhante, a maioria dos cineclubes de periferia –
especialmente de São Paulo – e da Federação da Bahia, isolaram-se num discurso “anti-
burguês” (em que burguês era a mera aparência da pessoa, não sua ideologia ou
mesmo a classe social real). Essa postura preconceituosa encontrou seu par num
troféuxiv dado ao grupo na Jornada de Petrópolis, depois de uma confusão no
alojamento: Feios, Sujos e Malvados (referência ao filme de Ettore Scuola). Gomes dos
Santos capitalizou o episódio e o grupo passou a assumir essa denominação. Uma nova
prática política surgiu; diferentemente dos embates orais ou escritos entre as antigas
tendências do movimento, os Feios, Sujos e Malvados promoviam apenas reuniões
fechadas onde agregavam novos aderentes. As duas maiores tendências do
cineclubismo não discutiam, não conversavam, mal conviviam.

Em 1984, na segunda Jornada de Curitiba, Gomes dos Santos e seu grupo


ganharam as eleições por um único voto. O clima de intolerância se manteve e se
acirrou com uma compreensão muito diferente das grandes mudanças por que passava
o País, o cinema, as tecnologias e sobre o papel dos cineclubes nessa transição. Vamos
falar um pouco disso.

Em meu artigo O Modelo de Cinema Brasileiroxv mostro como foram fechados


cerca de 80% das salas de cinema no Brasil nesta mesma época que estamos
examinando: entre os anos 70 e 80. Essa sitiuação – além de muitos outros significados

20
para o cinema no País - deixou um grande número de projetores 35mm disponíveis a
baixo preço, além de cadeiras de cinema. Desde 1982 o movimento, e particularmente
a Dinafilme, discutia a oportunidade de criar cineclubes 35mm, com estrutura mais
profissional (sem abandonar o associativismo e os demais princípios que
subscrevíamos) e como “âncoras” para os cineclubes 16mm, que precisavam se adaptar
às novas tecnologias – então, o VHS.

O filme 16mm estava deixando de ser usado e produzido no Brasil, com a


introdução do videotape na televisão e a disseminação de diferentes formatos
profissionais ou caseiros, de 4, 2 polegadas ou VHS. Para obterem filmes os cineclubes
deveriam se adaptar a mais ou menos curto prazo. Nesse sentido, cineclubes fortes em
35 mm, operando diariamente (e combatendo e substituindo na prática o cinema
comercial), poderiam ajudar a capitalizar nossa distribuidora e financiar a passagem
tecnológica da maioria dos cineclubes. Desde 1982 o CC Bixiga já operava nesses
termos, com enorme sucesso.

O grupo liderado por Gomes dos Santos, assim como sua gestão no CNC, eram,
contudo, contrários aos cineclubes 35mm, que consideravam “burgueses”xvi. Assim,
essa ligação entre cineclubes 35mm, Dinafilme e cineclubes 16mm não foi feita. Um dos
elementos fundamentais para a desagregação da maioria dos cineclubes naquele
momento foi o desaparecimento gradativo do 16mm e a falta de alternativas para
substiuí-lo. Essa postura isolacionista da direção do CNC levou também a um
afastamento da maioria das instituições do cinema brasileiro.

Esvaziado de muitos dos mais atuantes cineclubes, um movimento enfraquecido


continuou sob controle daquele grupo que foi capaz de eleger seus sucessores na
Jornada de 1986, realizada mais uma vez em Brasília. Um novo grupo político substituiu
o de Gomes dos Santos, com o apoio deste. E aqui entramos no terreno da
tragicomédia. A nova direção do CNC era composta por adeptos do general líbio
Muamar Gadafi. Ridiculamente, passeavam armados na assembléia, distribuindo o “livro
verde” do líder, em que se explicava que as mulheres eram inferiores porque adoeciam

21
uma vez por mês – entre outras sandices. A entidade nacional do cineclubismo também
passou a opor-se à Federação Paulista porque o presidente desta, na ocasião, era
judeu. O CNC virou uma anedota de mau gosto, que a esssa altura não chegava a ser
contada fora de um diminuto círculo de fanáticos.

Aqui cabe mais um parênteses importantíssimo: outro fenômeno, ironicamente


associado ao processo de democratização do País, soma-se aos problemas tecnológicos
e políticos do movimento. Na medida em que o regime era obrigado a aceitar o
ressurgimento e a legalização de movimentos e organizações sociais, um grande
número de lideranças cineclubistas abandonavam o movimento para atuar de forma
mais explicitamente política nos DCEs, na UNE, nos partidos políticos. Essa
“debandada/cooptação” foi muito importante no esvaziamento do movimento. No Rio
de Janeiro deve-se somar a isso a “privatização” do Cineclube Estação Botafogo (1987),
que transformou-se inicialmente em sala comercial e depois em um circuito comercial
importante, levando nesse processo também um bom número de quadros do
cineclubismo fluminense e quebrando uma trajetória e uma certa tradição. A Federação
do Rio, contudo, ainda existiria por alguns anos com lideranças que, como em todo o
País, não conseguiram deter o processo de esvaziamento do movimento cineclubista.

Os “gadafianos” não completaram seu mandato. Foram depostos na Jornada


seguinte – realizada na “casa” deles, mais uma vez em Curitiba (87). Uma diretoria de
emergência assumiu, composta por antigos presidentes e dirigentes do CNC. Na
Jornada seguinte, realizada em Campinas, comemorou-se o 60º. aniversário do
cineclubismo brasileiro (a partir do Chaplin Club), numa tentativa de mobilizar e reativar
o movimento, já em plena crise. Em 1989, em Vitória, uma última tentativa marcou
uma Jornada esquelética que elegeu uma direção totalmente nova, mas que nunca
assumiu efetivamente. Institucionalmente, começava o longo hiato que só seria
quebrado em 2003.

22
A conclusão é sua

Reconstruir a História é sempre reinterpretá-la à luz das condicionantes da


atualidade: é, em última instância, um discurso indireto sobre a atualidade, um
instrumento para compará-la e compreendê-la, muito mais que a vã pretensão de
efetivamente reconstruir o momento histórico, definitivamente passado. Mesmo quando
o horizonte dessa história ainda está no campo da experiência de quem o “reconstrói”.
O que só se complica ainda mais quando este foi e é parte da própria história assim
reconstruída. Portanto, este texto se assume em suas delimitações – que não são
limitações, precariedades -, isto é, um engajamento, então como agora, com uma
interpretação e uma prática política em relação ao cineclubismo e ao mundo. Qualquer
outra história do período estaria nas mesmas condições.

A etapa seguinte na trajetória do cineclubismo brasileiro como movimento –


porque como já disse, cineclubes sempre há – começa já neste século. Numa
abordagem formal e superficial, é um quadro completamente diferente: padrão de
normalidade democrática, e outro paradigma tecnológico, resultando em facilidade de
comunicação e acesso que não têm paralelo com os anos que comentei aqui. E um
Estado que não persegue, antes procura fomentar à sua maneira o que entende por
cultura.

Penso, entretanto, que numa perspectiva mais profunda, a situação permanece


substancialmente igual: a sociedade continua reprimida e controlada pelos mesmos e o
Estado a serviço deles. Tanto a reconstrução democrática formal a partir de 1985, como
a apropriação social (na verdade, privatização) dos extraordinários avanços tecnológicos
que se estendem pelos últimos 50 anos, resultaram na reorganização do controle social
– ainda que mais pela desmobilização e alienação que pela repressão direta (também
presente) e na apropriação indevida do trabalho e do produto de todos por muito
poucos, agora até no plano virtual.

Por isso, a descrição dos mecanismos da resistência e da construção de


instituições e organizações populares e democráticas me parece ter a maior importância

23
para compreendermos nosso momento atual. Acredito que os cineclubes estão entre as
mais importantes dessas instituições da sociedade civil que constroem em sua prática
de hoje os fundamentos de uma sociedade livre amanhã. Acredito, como dizia no meu
livrinho de 1982, que “os cineclubes são o embrião da superação do cinema comercial”
numa prática que elimina a divisão do trabalho e a alienação do produtor-consumidor
(ou produtor-público). E desistir dos cineclubes é desistir disso.

São Paulo, agosto de 2014.

i
Carta de Curitiba – documento final da 8ª. Jornad Nacional de Cineclubes, Curitiba, 1974.
ii
1956 – fundação do Centro de Cineclubes; 1958 – Federacão do Rio de Janeiro; 1959 – 1ª. Jornada Nacional de
Cineclubes; 1960 – Federação de Minas Gerais; 1961, Federação do Rio Grande do Sul e fundação do Conselho
Nacional de Cineclubes.
iii
Ironicamente, contra a letra da Lei 5.536, promulgada a poucos dias do AI-5, que liberava os filmes exibidos em
cineclubes da apresentação de Certificado de Censura.
iv
O Clube Teresinense de Cinema, por exemplo, durante anos reunia seus membros para discutir filmes do circuito
comercial; só começou a exibir, a programar filmes de sua escolha, a partir da criação da Dinafilme.
v
O então presidente do CNC, Felipe Macedo, foi eleito para o Comitê Executivo da Federação Internacional de
Cineclubes em 1977 e 79, e Secretário Latino-americano da entidade em 1981.
vi
Além de Antonio Gramsci, os escritos de Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Vianinha, Paulo Pontes, entre
outros, foram importantes na elaboração da “teoria” e programa político dessa corrente majoritária no plano
nacional entre 1972 e 1984.
vii
O CR teve sua composição e objetivos mudados posteriormente, já neste século, e passou a representar as
regiões do País, com um enfoque diferente daquele de representação de posições diferentes ou minoritárias.
viii
A forma de associação característica do cineclube é herança das organizações proletárias que se desenvolveram
em todo o Mundo ao longo do século XIX – os clubes de trabalhadores. Essa forma adquiriu uma dimensão
institucional mais permanente a partir da chamada “lei de 1901”, na França, que reconhecia as associações livres,
sem fins lucrativos, inclusive as informais.
ix
Duas importantes exceções foram os sindicatos dos Metalúrgicos e dos Petroleiros, ambas de Santos (SP), que
mantiveram cineclubes e participaram do movimento cineclubista.
x
Greve!, de Joâo Batista de Andrade; Greve de Março, de Renato Tapajós (produzido pelo Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC), finalizados quase imediatamente, faziam parte dessas projeções que foram feitas durante a
trégua decretada no meio daa greve. Vários outros filmes sobre os movimentos operários e populares foram
distribuídos pela Dinafilme.
xi
É importante lembrar que a realização em película exigia uma produção bem mais complicada e cara que a de
hoje: o termo “cineasta”, nesse contexto, refere-se a uma categoria profissional bem definida.
xii
Essa “frente” era formada pelo grupo Centelha, que controlava a Federação de Minas Gerais, diversos grupos
ligados a organizações clandestinas que tinham a direção da Federação Nordeste e outros poucos cineclubes, com
uma importante representação do grupo Liberdade e Luta, de São Paulo – cuja federação estava em mãos da
maioria, como também as federações do Rio de Janeiro (presidida por Nelson Krunholz), do Espírito Santo
(Claudino de Jesus) e de Brasília (Antenor Gentil Jr.). Quase todos os cineclubes das demais regiões, onde não havia
federação, estavam com a maioria. A direção da Federação Nordeste debandou e acabou com a entidade
imediatamente após as eleições nacionais de Caxias

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xiii
Hardman, Francisco Foot. 2002. Nem Pátria NEM Patrão!: memória operária, cultura e literatura no Brasil.
Editora UNESP – São Paulo
xiv
Uma tradição nas Jornadas, havia sempre um painel de “troféus” atribuídos anonimamente a pessoas,
cineclubes, grupos presentes, ou mesmo a coisas externas à Jornada. Alguém recebia o prêmio Stálin,
identificando-o como autoritário, ou de musa sa Jornada, para uma moça bonita. O bom gosto e a educação nem
sempre compareciam...
xv
Macedo, Felipe. “O Modelo Brasileiro: um estrangeiro em nossas telas”, em Moraes, Geraldo (org.). 2008. O
Cinema de Amanhã. Ed. Congresso Brasileiro de Cinema e Coalizão Brasileira pela Diversidade Cultural. Brasília.
Disponível também na internet.
xvi
O que não impediu que, uns anos depois, assumissem o controle do CC Bixiga, que pouco depois venderam para
o empresário André Sturm, que o transformou em cinema comercial e, em seguida, o fechou.

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