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Como não podia deixar de ser, este ano está sendo marcado por inúmeras efemérides
relativas ao cinquentenário da ditadura que o Brasil viveu entre 1964 e 1985. É uma
reflexão indispensável, trata-se do evento histórico mais importante da nossa
experiência recente, riquíssimo para a compreensão da sociedade atual, que dele traz
múltiplos traços. Conhecer e sobretudo compreender o melhor possível aquele período
é indispensável para evitarmos toda possibilidade de renascimento do autoritarismo -
ou autoritarismos, presentes em diferentes dimensões do convívio social. A maneira
como a sociedade se articulou para derrubar o regime e construir novas bases
democráticas é um reservatório de lições que continuam a servir para não apenas
consolidarmos as instituições democráticas existentes, mas sobretudo para as estender
e aprofundar no sentido de uma justiça social ainda subdesenvolvida em nossas terras.
Muitos dos eventos, mostras, debates que se fizeram pelo País este ano usaram uma
iconografia forte da onipresença militar no período autoritário. Nada melhor para
representar a tirania em estado bruto – admitindo o jogo de palavras – que tropas
armadas, veículos blindados, cavalaria. Mas o arbítrio mobiliava todo o cotidiano, e a
força maior da opressão exercia-se no vasto campo das instituições, na legislação de
exceção, no arrocho salarial, na censura, na repressão à diversidade comportamental,
na proibição de organização, nem sempre com grandes aparatos visíveis. A imagem do
País seria talvez melhor representada por uma cidade vazia, um deserto, um cemitério.
De forma mais ou menos análoga, a imaginária da resistência à ditadura, nesses
eventos, tem destacado o repertório dos tombados na luta armada, seu inegável
heroísmo ressoando forte nos sentimentos de todos nós. Mas também isso não
corresponde à verdade histórica. Falta de articulação e respaldo popular, a resistência
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armada foi derrotada pela reação feroz e ilegítima do Estado e não contribuiu
efetivamente para a derrubada do regime. A lição inestimável que tiramos da luta
contra a ditadura foi que ela foi derrubada por um amplo, longo, difícil, perigoso
trabalho de organização da sociedade civil – provavelmente com tantas ou mais vítimas
que o combate armado – que desaguou numa mobilização crescente até tornar-se
avassaladora.
Os cineclubes são um dos exemplos mais claros e instrutivos dessa sociedade civil que
se expandiu por todo o tecido social. Mas são, também, caso exemplar do estiolamento
e desagregação desse mesmo tecido social na restauração da hegemonia dos
opressores. Seu papel ainda está para ser avaliado, e essa história, para ser contada.
Apresento aqui alguns comentários que podem contribuir para a tarefa, se algum dia
for empreendida.
Prolegômenos
Num livreto que escrevi em 1982 – Movimento Cineclubista Brasileiro –, editado pelo
Cineclube da Fatec de São Paulo, eu propunha uma visão evolutiva do cineclubismo em
nosso País. Partindo da idéia, que tinha então, de que o primeiro cineclube brasileiro
fora o Chaplin Clube, via uma espécie de progressão democrática que começava
naquele clube da elite da capital nacional; passava para o meio universitário do Clube
de Cinema da São Paulo (1940-57); espalhava-se pelos estados e pelas instituições
educativas católicas ao longo dos anos 50; chegava, através dos cineclubes
universitários a “levar cultura para o povo” em experiências mais populares, às
vésperas do golpe militar de 64. Os cineclubes dos anos 70, pensava eu, haviam
superado o paternalismo implícito na geração cineclubista do Cinema Novo, dando
origem a um movimento autóctone nas periferias, que não mais dependia da animação
estudantil. Era o ponto de chegada de uma teleologia juvenil e orgulhosa, de resistência
à ditadura.
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possivelmente os mais ricos da história dos cineclubes brasileiros, sob vários aspectos.
Marcam a superação de um modelo elitista dominante por 50 anos e o lançamento das
bases de uma nova teoria cineclubista baseada não mais no cinema, no texto, mas no
público, no contexto. Mais que isso, essa geração se inaugurai pelo reconhecimento da
postura colonizada do cineclubismo até então, com o firme comprometimento com o
cinema brasileiro como expressão da nossa identidade e cultura. E, marcada pela
perseguição e pelo arbítrio, criou instituições e modelos de gestão radicalmente
democráticos que levaram o cineclubismo a uma extensão territorial, social e cultural
inigualados em qualquer outro momento.
Passemos rapidamente pela história. Nos anos 50, por aqui, o cineclubismo
baseado no modelo francês de culto ao “bom cinema” havia se conjugado de diferentes
maneiras com um humanismo cristão de inspiração católica. Cabe uma certa analogia
sobretudo com o cineclubismo parisiense do pós-Guerra, que incorporava um pouco do
humanismo de André Bazin com o vanguardismo elitista – às vezes tratada de “cinefilia”
- dos cineclubes que deram origem aos Cahiers du Cinéma e Positif. Aqui, sob influência
daquele modelo, a década se distingue pela expansão nacional dos cineclubes, pelo
florescimento de uma crítica cinéfila em diferentes estados, pela proliferação
igualmente nacional de cineclubes católicos e, finalmente, pelo início de uma
organização autônoma do cineclubismo como movimento culturalii. Na virada e começo
dos anos 60, o cinecubismo universitário se politiza mais, envolvendo-se com os
Centros Populares de Cultura, com o Cinema Novo, e disputando com os cineclubes
católicos dentro do movimento.
Como eu dizia no livrinho de 1982, o golpe militar atingiu mais esse segmento
minoritário, extensão do movimento estudantil. Inicialmente, a ditadura ocupa-se das
organizações realmente de massa, operárias, camponesas, estudantís. Destas últimas
deriva, portanto, a desagregação dos CPCs e o golpe duro em parte da produção
cinemanovista. A maior parte da atividade cineclubista, sem compromisso político, foi
preservada. De certa forma, a ditadura atingiu o movimento de fato, mortalmente, em
1968: a 7ª. Jornada foi realizada naquele ano em Brasília (!), em meio ao golpe na
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sucessão do general Costa e Silva e a edição do Ato Institucional n o5. Com o
recrudescimento da ditadura militar, os cineclubes – e cineclubistas - passam a ser
violentamente perseguidos. É estabelecida na prática a censura prévia às suas
atividadesiii e todo tipo de entraves e pressões vão desmantelando todas as entidades
no País. Calcula-se que existissem cerca de 300 cineclubes em 1968, agrupados em 6
federações regionais filiadas ao Conselho Nacional de Cineclubes. Em 1969 haveria no
máximo uma dúzia de cineclubes em funcionamento e quase todas as suas entidades
representativas haviam sido destruídas ou abandonadas. Exceção importante, o Centro
dos Cineclubes de São Paulo subsistiu, graças principalmente ao empenho de Carlos
Vieira – então já quase vinte anos à frente da entidade.
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Penso que se possa agrupar esse período da história do cineclubismo brasileiro
em três fases: de reorganização, de expansão e consolidação e, finalmente, de crise e
desagregação.
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incluía uma produção de resistência e culminaria com a criação da Jornada de Curta-
Metragem, sob a direção de Guido Araújo, em 1972.
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nacional do movimento e, finalmente, compromisso com o cinema brasileiro. Foi Marco
Aurélio, principalmente, que buscou e identificou os núcleos cineclubistas existentes no
País. Em São Paulo, por exemplo, foi o maior promotor da unidade entre os cineclubes
mais tradicionais, ligados ao Centro (Carlos Vieira), e os estudantis, à Cinemateca
(Felipe Macedo).
Em 1972, na primeira Jornada baiana, lançaram-se as bases para a fundação da
ABD e a reorganização do CNC, ambas no ano seguinte: a ABD em setembro, na 2ª.
Jornada; o CNC em outubro, em reunião no Clube de Cinema de Marília, por ocasião da
entrega do tradicional (criado em1966) prêmio Curumin de Cinema Brasileiro. Rio
(Marco Aurélio Marcondes, Luiz Fernando Taranto), São Paulo (Carlos Vieira, Felipe
Macedo) e Nordeste (representado pela Bahia, com o paraibano José Umbelino Brasil)
foram as regiões que participaram. A principal deliberação da “nova” entidade foi a
convocação do congresso nacional dos cineclubes já para o início de 74.
Jornada de Curitiba (1974): Cosme Alves Neto (Cinemateca do Museu de Arte Moderna)
em primeiro plano, e a delegação da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro
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A 8ª. Jornada Nacional de Cineclubes foi realizada em fevereiro de 74, em
Curitiba, com a presença de 40 entidades – entre elas, as duas cinematecas brasileiras
e a ABD recém criada. Penso que as duas grandes resoluções da Jornada foram: a
mudança dos estatutos do CNC, que assumiu uma forma nacional e democrática,
tornando-se uma federação de cineclubes por voto direto – antes era um conselho que
reunia apenas as direções das federações regionais – e a Carta de Curitiba, que definia
o vínculo e compromisso do cineclubismo brasileiro com o cinema nacional. Isso
significou uma ruptura histórica com a postura elitista e colonizada que prevalecia até
então, de culto a um “bom” cinema, fundamentalmente identificado com a produção
estrangeira. Certos autores identificam essa nova postura como herança do Cinema
Novo; equivocam-se, a origem deste novo “nacionalismo” - sem abdicar da crítica que é
inerente à prática do cineclubismo - estava nas posições de Paulo Emílio Salles Gomes e
envolvia todo o cinema brasileiro – da chanchada e Vera Cruz ao Cinema Novo - como
expressão de uma cultura que havíamos desdenhado e desconhecido. Carlos Vieira
presidiu a primeira diretoria do novo CNC.
Primeiro, é preciso lembrar que filme era película – e 16mm a bitola consagrada
dos cineclubes. Além da cara copiagem, a própria circulação de filmes era um
desafio logístico de transporte e custos;
Os monopólios regionais de exibição, em acordo com as distribuidoras
americanas, não permitiam a circulação de filmes em diversas partes do País;
Da mesma forma, filmes brasileiros raramente estavam disponíveis e curtas-
metragens menos ainda;
A Censura proibia sistematicamente filmes mais críticos e a Polícia Federal, os
serviços secretos das forças militares e até organizações terroristas de extrema
direita assediavam e atacavam atividades de vários cineclubes.
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O movimento fez desde logo uma série de experiências de circulação de pacotes de
filmes, com resultados variados. Mas na Jornada seguinte, em Campinas (1975),
concluiu pela necessidade de criação de uma distribuidora organizada, ligada ao CNC.
Na Cinemateca Brasileira, em 1975, tinha havido uma espécie de luta pelo poder:
um grupo mais “técnico”, vindo dos cursos de cinema da USP e contrário a qualquer
atividade que pudesse comprometer o relacionamento da instituição com o governo
militar, acabou assumindo a direção. O pessoal que lá estava desde 1972 foi afastado e
parte dele assumiu a direção da Federação Paulista de Cineclubes, nova denominação e
estrutura adotadas pelo Centro dos Cineclubes. A questão toda foi arbitrada por Paulo
Emílio Salles Gomes: ao mesmo tempo que sacramentava a nova equipe da
Cinemateca, doou o acervo 16 mm – duplicado de cópias já preservadas - para a
Federação. Em fevereiro de 76, na Jornada de Juiz de Fora, foi oficialmente criada a
Dinafilme – Distribuidora Nacional de Filmes, e sua administração central entregue à
Federação Paulista que já tinha sede e acervo em duas salas na famosa Boca do Lixo,
em São Paulo. Marco Aurélio Marcondes foi eleito presidente do CNC e Felipe Macedo,
secretário-geral e diretor da distribuidora.
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Embrafilme fornecia longas-metragens brasileiros; a Dinafilme, clássicos e curtas,
inclusive clandestinos. No começo dos anos 80 a distribuidora cineclubista passou a
distribuir também filmes latino-americanos.
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Jornada de Caxias do Sul (1979), a maior até hoje: 124 cineclubes com
direito a voto e quase 500 participantes em renhida disputa eleitoral.
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adversários. Nos casos de repressão – fora os casos pontuais, que se contam às
centenas, de cineclubes perseguidos, a própria sede do CNC e a Dinafilme foram
invadidas duas vezes (77 e 79) pela Polícia Federal e o acervo apreendido – a unidade
era exemplar. Na invasão da Dinafilme de 79, a mobilização realizada em cada estado e
nacionalmente foi tão forte que o ministro da Justiça teve de receber a direção do CNC
e devolver os filmes. Foi o momento de maior exposição midiática e social do
cineclubismo brasileiro, em plena ditadura, e a maior vitória política pontual em sua
história.
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Estes exemplos de discussão e muitas outras questões ocupavam todos os
espaços de que dispunha o movimento, em artigos e ensaios, réplicas e tréplicas
aguerridas, irônicas, implacáveis. Essas disputas, como me parece óbvio, contribuíam e
consistiam mesmo na manifestação mais evidente do grau de democracia que regia o
movimento. Independentemente de “hegemonias” locais ou nacional de uma ou outra
tendência, quando havia, as oposições sempre tinham direito e espaços assegurados
para se expressar. Tal foi, de fato, a intenção e modelo do Conselho de
Representantesvii, no CNC (que assegurava a participação das minorias na gestão
majoritária) e a forma de administração ultraparticipativa que marcava – e às vezes até
atrapalhava – a Dinafilme. Mas, quando interesses gerais do movimento estavam em
jogo – como a manutenção dessas mesmas instituições, políticas (da organização) ou
econômicas (basicamente a Dinafilme, mas também a organização de encontros), a
unidade do movimento cineclubista prontamente se estabelecia. O maior e mais claro
exemplo disso foram as mobilizações amplamente nacionais quando das duas invasões
e apreensões na Dinafilme pela Polícia Federal, em 1977 e 79. E todas as Jornadas
anuais - e as Pré-Jornadas entre elas -, organizadas praticamente sem patrocínio (mas
com parcerias com prefeituras de oposição ao regime militar, sindicatos, organizações
religiosas).
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originais dos primeiros cineclubes, de origem socialista e anarquista - o humanismo
cristão e a valorização do público trabalhador e feminino - o cineclube brasileiro do
período da ditadura passou a definir-se majoritariamente como uma organização do
público com vistas à apropriação e à construção de um novo cinema (expressão de uma
nova sociedade), e não mais como um grupo de apreciadores de uma expressão
artística, comprometidos apenas com a sua dimensão estética (independentemente da
sociedade).
Essa postura mais ou menos comum em toda a América Latina, que vivenciava
condições políticas e sociais muito semelhantes, foi possivelmente expressa de forma
mais consciente no Brasil, onde um movimento mais vigoroso e numeroso deu margem
a um debate e uma certa produção teórica mais importante. A influência do
pensamento gramsciano – e particularmente sua concepção das instituições geradoras
de valores éticos e culturais - também está certamente associada ao desenvolvimento
desse pensamento. Concorre para demonstrar isso o fato de que uma reflexão
semelhante, colocando o público na centralidade da questão do cinema, também
surgia, na mesma época, na Itália, com os cineclubistas Fabio Masala, da Sardenha, e
Filippo De Sanctis.
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Sessões, inclusive clandestinas, tanto nas universidades como nos bairros, não raro
reuniam públicos de muitas centenas de pessoas.
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pouquíssimos foram os sindicatos que aceitaram ou adotaram cineclubes em sua
estruturaix. Na greve do ABC, em 1978, a Dinafilme montou equipes móveis de
projeção, que exibiam filmes do movimento operáriox, mas a própria diretoria do
Sindicato dos Metalúrgicos proibiu a criação de um cineclube em sua organização –
embora contratasse a produção de vários filmes com um realizador. Essa estreiteza do
movimento sindical com relação à organização cultural – muitos sindicatos e centrais
sindicais promoviam (e o fazem atualmente) espetáculos totalmente comerciais e
anódinos, mas não estimulam a iniciativa cultural operária.
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de exibição que ela atendia, inclusive clandestinamente. Já mencionei que, em
determinado momento, a Dinafilme atendia 2.000 pontos de exibição no País.
Baseada num texto de Antonio Gouveia Jr. (criador do cineclube do Sindicato dos
Jornalistas e do CC Bixiga), uma Resolução do Conselho Nacional de Cinema (o então
órgão normativo do cinema no País) regulamentou a atividade cineclubista,
reconhecendo no CNC a exclusividade de registro das entidades de base (que, assim,
não precisavam entrar em qualquer contato com a Polícia Federal ou outros órgãos de
controle).
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1980: Gaijin recebe o prêmio Curumin de melhor filme brasileiro,
do Clube de Cinema de Marília. A partir da esquerda:
diretora do Clube de Cinema; Felipe Macedo, da Dinafilme;
Orlando Fassoni, crítico de cinema, e a diretora Tizuka Yamasaki
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socialistas, era uma realidade. Mas a entidade eurocêntrica não fazia quase nenhuma
ação concreta em relação ao resto do mundo.
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Foi em 1982 (Jornada de Piracicaba) que a nova forma de divisão do movimento
se revelou. Ao não ser contemplado especificamente com o cargo de vice-presidente na
chapa montada em reuniões muito amplas, que envolviam quase a totalidade dos
cineclubes presentes, Diogo Gomes dos Santos revelou e dirigiu um “racha” inusitado:
cerca de um terço dos cineclubes votaram favoravelmente ao programa da chapa, mas
se abstiveram na eleição.
Era uma forma de tendência política diferente: não defendia um programa, mas
pessoas. De fato, havia um clima incômodo, algo como o que Franscisco Foot Hardan xiii
chamou de estratégia do desterro, referindo-se ao purismo dos anarquistas no começo
do século passado. De forma semelhante, a maioria dos cineclubes de periferia –
especialmente de São Paulo – e da Federação da Bahia, isolaram-se num discurso “anti-
burguês” (em que burguês era a mera aparência da pessoa, não sua ideologia ou
mesmo a classe social real). Essa postura preconceituosa encontrou seu par num
troféuxiv dado ao grupo na Jornada de Petrópolis, depois de uma confusão no
alojamento: Feios, Sujos e Malvados (referência ao filme de Ettore Scuola). Gomes dos
Santos capitalizou o episódio e o grupo passou a assumir essa denominação. Uma nova
prática política surgiu; diferentemente dos embates orais ou escritos entre as antigas
tendências do movimento, os Feios, Sujos e Malvados promoviam apenas reuniões
fechadas onde agregavam novos aderentes. As duas maiores tendências do
cineclubismo não discutiam, não conversavam, mal conviviam.
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para o cinema no País - deixou um grande número de projetores 35mm disponíveis a
baixo preço, além de cadeiras de cinema. Desde 1982 o movimento, e particularmente
a Dinafilme, discutia a oportunidade de criar cineclubes 35mm, com estrutura mais
profissional (sem abandonar o associativismo e os demais princípios que
subscrevíamos) e como “âncoras” para os cineclubes 16mm, que precisavam se adaptar
às novas tecnologias – então, o VHS.
O grupo liderado por Gomes dos Santos, assim como sua gestão no CNC, eram,
contudo, contrários aos cineclubes 35mm, que consideravam “burgueses”xvi. Assim,
essa ligação entre cineclubes 35mm, Dinafilme e cineclubes 16mm não foi feita. Um dos
elementos fundamentais para a desagregação da maioria dos cineclubes naquele
momento foi o desaparecimento gradativo do 16mm e a falta de alternativas para
substiuí-lo. Essa postura isolacionista da direção do CNC levou também a um
afastamento da maioria das instituições do cinema brasileiro.
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uma vez por mês – entre outras sandices. A entidade nacional do cineclubismo também
passou a opor-se à Federação Paulista porque o presidente desta, na ocasião, era
judeu. O CNC virou uma anedota de mau gosto, que a esssa altura não chegava a ser
contada fora de um diminuto círculo de fanáticos.
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A conclusão é sua
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para compreendermos nosso momento atual. Acredito que os cineclubes estão entre as
mais importantes dessas instituições da sociedade civil que constroem em sua prática
de hoje os fundamentos de uma sociedade livre amanhã. Acredito, como dizia no meu
livrinho de 1982, que “os cineclubes são o embrião da superação do cinema comercial”
numa prática que elimina a divisão do trabalho e a alienação do produtor-consumidor
(ou produtor-público). E desistir dos cineclubes é desistir disso.
i
Carta de Curitiba – documento final da 8ª. Jornad Nacional de Cineclubes, Curitiba, 1974.
ii
1956 – fundação do Centro de Cineclubes; 1958 – Federacão do Rio de Janeiro; 1959 – 1ª. Jornada Nacional de
Cineclubes; 1960 – Federação de Minas Gerais; 1961, Federação do Rio Grande do Sul e fundação do Conselho
Nacional de Cineclubes.
iii
Ironicamente, contra a letra da Lei 5.536, promulgada a poucos dias do AI-5, que liberava os filmes exibidos em
cineclubes da apresentação de Certificado de Censura.
iv
O Clube Teresinense de Cinema, por exemplo, durante anos reunia seus membros para discutir filmes do circuito
comercial; só começou a exibir, a programar filmes de sua escolha, a partir da criação da Dinafilme.
v
O então presidente do CNC, Felipe Macedo, foi eleito para o Comitê Executivo da Federação Internacional de
Cineclubes em 1977 e 79, e Secretário Latino-americano da entidade em 1981.
vi
Além de Antonio Gramsci, os escritos de Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Vianinha, Paulo Pontes, entre
outros, foram importantes na elaboração da “teoria” e programa político dessa corrente majoritária no plano
nacional entre 1972 e 1984.
vii
O CR teve sua composição e objetivos mudados posteriormente, já neste século, e passou a representar as
regiões do País, com um enfoque diferente daquele de representação de posições diferentes ou minoritárias.
viii
A forma de associação característica do cineclube é herança das organizações proletárias que se desenvolveram
em todo o Mundo ao longo do século XIX – os clubes de trabalhadores. Essa forma adquiriu uma dimensão
institucional mais permanente a partir da chamada “lei de 1901”, na França, que reconhecia as associações livres,
sem fins lucrativos, inclusive as informais.
ix
Duas importantes exceções foram os sindicatos dos Metalúrgicos e dos Petroleiros, ambas de Santos (SP), que
mantiveram cineclubes e participaram do movimento cineclubista.
x
Greve!, de Joâo Batista de Andrade; Greve de Março, de Renato Tapajós (produzido pelo Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC), finalizados quase imediatamente, faziam parte dessas projeções que foram feitas durante a
trégua decretada no meio daa greve. Vários outros filmes sobre os movimentos operários e populares foram
distribuídos pela Dinafilme.
xi
É importante lembrar que a realização em película exigia uma produção bem mais complicada e cara que a de
hoje: o termo “cineasta”, nesse contexto, refere-se a uma categoria profissional bem definida.
xii
Essa “frente” era formada pelo grupo Centelha, que controlava a Federação de Minas Gerais, diversos grupos
ligados a organizações clandestinas que tinham a direção da Federação Nordeste e outros poucos cineclubes, com
uma importante representação do grupo Liberdade e Luta, de São Paulo – cuja federação estava em mãos da
maioria, como também as federações do Rio de Janeiro (presidida por Nelson Krunholz), do Espírito Santo
(Claudino de Jesus) e de Brasília (Antenor Gentil Jr.). Quase todos os cineclubes das demais regiões, onde não havia
federação, estavam com a maioria. A direção da Federação Nordeste debandou e acabou com a entidade
imediatamente após as eleições nacionais de Caxias
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xiii
Hardman, Francisco Foot. 2002. Nem Pátria NEM Patrão!: memória operária, cultura e literatura no Brasil.
Editora UNESP – São Paulo
xiv
Uma tradição nas Jornadas, havia sempre um painel de “troféus” atribuídos anonimamente a pessoas,
cineclubes, grupos presentes, ou mesmo a coisas externas à Jornada. Alguém recebia o prêmio Stálin,
identificando-o como autoritário, ou de musa sa Jornada, para uma moça bonita. O bom gosto e a educação nem
sempre compareciam...
xv
Macedo, Felipe. “O Modelo Brasileiro: um estrangeiro em nossas telas”, em Moraes, Geraldo (org.). 2008. O
Cinema de Amanhã. Ed. Congresso Brasileiro de Cinema e Coalizão Brasileira pela Diversidade Cultural. Brasília.
Disponível também na internet.
xvi
O que não impediu que, uns anos depois, assumissem o controle do CC Bixiga, que pouco depois venderam para
o empresário André Sturm, que o transformou em cinema comercial e, em seguida, o fechou.
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